ESTADO, AMÉRICA LATINA E COVID-19 n. 15 (2020)

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|ED. N 15| DEZEMBRO |2020

REVISTA DIGITAL DO INSTITUTO LATINO-AMERICANO DE ARTE, CULTURA E HISTÓRIA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DA INTEGRAÇÃO LATINO-AMERICANA

ISSN 2317-2738

ESTADO, AMÉRICA LATINA E COVID-19


Sobre A revista SURES, de periodicidade semestral e em formato digital, surge com a proposta de apoiar a pesquisa interdisciplinar e de contribuir para o desafio de pensar de modo plural as epistemologias do hemisfério sul. Por isso se define como veículo de desafios, difusão e debate de ideias, estudos e relatos de experiências, além de se constituir em espaço aberto à comunidade acadêmica, não apenas latino-americana mas internacional, que traduzam reflexões de caráter transnacional sobre temas dos mais variados enfoques e que iluminem as relações interculturais no século XXI.O veículo se constitui como um espaço aberto à comunidade acadêmica, com foco na atividade crítica, tanto no que diz respeito às categorias conceituais como em seus desdobramentos estéticos, éticos e políticos.A revista SURES tem ainda o propósito de divulgar conhecimentos, saberes, línguas originárias e propostas teóricas e práticas inéditas sobre a atuação na pesquisa do Instituto de Arte, Cultura e História da Universidade Federal da Integração Latino-americana e contribuir para a formação de recursos humanos na pós-graduação. SURES: Arte, Cultura e História na América-Latina/ Instituto Latino-Americano de Arte, cultura e História da Universidade Federal da Integração LatinoAmericana – v.1, v. 2 n. 14. (abr. 2020) - Paraná/Foz do Iguaçu: ILAACH-UNILA. Dossiê: Formación docente en América Latina: la Pedagogía Decolonial en Debate. ISSN 2317-2738 História – América Latina 2. Ditaduras Memória I. Universidade Federal da Integração Latino-Americana. Instituto Latino-Americano de Arte, Cultura e História. 02

|SURES

DEZEMBRO

2020


ORGANIZAÇÃO DESTA EDIÇÃO: Clécio Ferreira Mendes Doutor em História pela PUC-SP e Prof. visitante do Instituto Latino-Americano de Arte, Cultura e História – ILAACH - UNILA Michele Dacas Relações Públicas do departamento de culturas e comunicação da PROEX/UNILA e doutora em comunicação social pela UFMG

EXPEDIENTE

Rogério Gimenes Giugliano Doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília UNB e Prof. do Instituto Latino-Americano de Economia, Sociedade e Política - ILAESP - UNILA

CORPO EDITORIAL

PARECERISTAS CONSELHO EDITORIAL Diana Araujo Pereira (UNILA) Jorgelina Ivana Tallei (UNILA) Michele Dacas (UNILA) Paulo Renato Silva (UNILA)

DIAGRAMAÇÃO E PROJETO GRÁFICO Michele Dacas (UNILA) Gabriel Gusttavo de Souza Lauton Oliveira

REVISÃO TEXTUAL Ana Luiza Suficiel (UNILA)

SITE

revistas.unila.edu.br/sures

E-MAIL

suresrevista.unila@gmail.com

ANA RITA UHLE (DOCENTE/UNILA) FERNANDO CORREA PRADO (DOCENTE/UNILA) GIOVANNA SAMPAIO ISMAR CAPISTRANO COSTA FILHO (DOCENTE/UFC) JANAINA SANTANA (DOCENTE/CESUFOZ) MEIRE OLIVEIRA SILVA (DOCENTE/UNIOSTE) RODRIGO TEIXEIRA ROGERIO GIUGLIANO (DOCENTE/UNILA) ROSIMEIRE DE OLIVEIRA SOUZA (DOCENTE/UFPA)

FOTO DE CAPA E SEÇÕES DESTA EDIÇÃO Foto de Alexandre Andreata, registro realizado durante as eleições presidenciais da Bolívia.


FOTO: COVID-LATAM/ELIANA APONTE - CUBANAS HACIENDO COLA CON DISTANCIAMIENTO SOCIAL EN LA PANADERÍA LA MODERNA. LA HABANA, CUBA.

índice

DOSSIÊ ESTADO, AMÉRICA LATINA E COVID-19

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Editorial

07

Interação presidencial e o enfrentamento da pandemia Covid-19 - Ricardo Uhry e Álvaro Nunes Laranjeira A Fronteira em Desencanto: Notas sobre o Estado, turismo e COVID-19 em Foz do Iguaçu-BR Gabriel de Siqueira Gil; María Noel Clerici Hirschfeld; Hernán Venegas Marcelo

22

43

COVID-19, proteção social e desenvolvimento - Anna Paula Pinheiro dos Santos e Raphael Lobo Duarte Batista Teixeira

63

Ribeirinhos e Covid-19: A saudade do Rio e a tristeza na feira em tempos de pandemia Carlos Eduardo do Vale Ortiz e Nair Ferreira Gurgel do Amaral

75

COVID-19: Reflexiones desde el Sur Andino - Cliver Ccahuanihancco Arque; Javier Santos Puma LLanqui; Duverly Joao Incacutipa Limachi

97 Vulnerabilidade social em tempos de pandemia - Maria Lucia Alves Fabiano

FLUXO CONTÍNUO 115 Passagens da arte moderna à pós-moderna - Rafael Marino 129 ABORDANDO O RACISMO E A SEGREGAÇÃO ESPACIAL NOS ESTADOS UNIDOS E NO BRASIL. Entender a história dos espaços para transformar o futuro das cidades americanas - Angélica Santamaría Alvarado

ENTREVISTA 92 "Uma interpretação crítica e social dos números da pandemia", entrevista com o professor

da Unioeste, Gilberto Calil

ARTES VISUAIS

Mulheres Latinamerica 2020 / Gabriela Noujaim

60


SEBASTIAN GIL MIRANDA (BUENOS AIRES, ARGENTINA COVID LATAM

Editorial

planeta e à vida. Ao mesmo tempo, quase

Neste número, a Revista SURES mergulha

sistema mundo ancorado na reificação do

no terreno movediço da história

capital e na mercantilização da existência.

contemporânea e soma-se ao esforço

Somente uma sociedade que avança de

global de lançar interpretações sobre

forma tão devastadora sobre a natureza e

acontecimentos extraordinários que

preenche quase todos os espaços

passam diante e através de nós, mesmo

humanos de desigualdade poderia ser

ainda que inacabados. Para lidar com tal

berço para uma situação como a que

desafio e almejando contribuir tanto com

vivemos hoje.

as Ciências Sociais quanto com

Já estabelecida por todo o globo desde

reflexão/produção cultural, juntam-se

que o vírus trafegou pelas veias abertas

aqui olhares intempestivos que procuram

do capitalismo global, a pandemia passou

expor as fraturas e as trevas de nosso

a impor um teste extremo sobre os

tempo, mas que não se furtam em dar luz

princípios estruturantes do sistema mundo

sobre os traços do porvir.

contemporâneo. As fraturas expostas

A Pandemia de SARS-Covid-2 que assola o

tornam evidentes as dores antes

mundo é produto do modelo de

encobertas pela lentidão e complexidade

globalização destrutiva que impusemos ao

dos processos históricos em que

como um contra-golpe, a crise humanitária que vivemos expõe a desigualdade desse


estávamos imersos. A desigualdade de

A Revista Sures disponibiliza-se para

acesso à saúde, o fardo sobre a vida das

contribuir com esse processo e entende a

mulheres, a contínua concentração de

necessidade de discutir os acontecimentos

capital em meio à catástrofe, o descaso e

recentes, porque discutir nosso presente é

a violência com as populações negras e,

uma das funções das ciências humanas,

por fim, o desdém pela vida em si, emergiu

principalmente eventos de imenso

rompante diante de nós. Em paralelo, em

impacto e efeitos sobre nossa sociedade e

meio a esse turbilhão, consolidaram-se

que dizem tanto sobre o sistema ao qual

também novos laços de solidariedade e

está submetida. Nosso foco, como não

luta que prometem produzir novas e bem-

poderia deixar de ser, está nas regiões

vindas utopias e uchronias.

periféricas do sistema mundo e,

Os impactos da pandemia são de tal

especialmente, sobre Nuestra América.

ordem que as temporalidades e

Neste número, compartilhamos olhares

espacialidades da existência humana e

sobre proteção social, vulnerabilidade,

social foram definitivamente afetadas. O

tristeza e saudade em tempos de Covid-

tempo e o espaço do trabalho, dos laços

19. Sobrevoamos territórios andinos e

sociais e familiares, do afeto e das

ribeirinhos até chegar a Foz do Rio Iguaçu.

relações de solidariedade são apenas

E, por fim, destacamos a inserção da

alguns exemplos das dimensões

mostra de artes visuais da Casa de Cultura

transformadas, tanto pela difusão do

da UNB, mulheres latino-americana; e a

COVID-19 quanto pelas diversas formas

entrevista “Uma interpretação crítica e

de reação dos Estados Nacionais. O

social dos números da pandemia", com o

cenário atual expôs e aprofundou os

professor da Unioeste, Gilberto Calil.

diferentes graus de cuidado que forças políticas hegemônicas possuem diante da proteção da vida em si, variando desde a busca pela proteção máxima até o desdém

Boa leitura!

reacionário e necropolítico pela ciência e pela vida. Com a pandemia ainda em andamento, nos encontramos apenas no começo da tarefa analítica que cabe a Universidade e pesquisadores neste momento. Certamente, desvendar os efeitos desse

Por CLÉCIO FERREIRA MENDES, MICHELE DACAS

cenário sobre a vida constituirá uma longa

E ROGÉRIO GIMENES GIUGLIANO

caminhada.

(ORGANIZADORES DESTA EDIÇÃO


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ESTADO, AMÉRICA LATINA E COVID-19

SURES/DEZ/20

INTERAÇÃO PRESIDENCIAL E O ENFRENTAMENTO DA PANDEMIA COVID-19 RICARDO UHRY (1) ÁLVARO NUNES LARANJEIRA (2)

Resumo No momento em que o mundo se depara com a batalha frente ao Covid-19, que já matou mais de 151 mil pessoas e infectou mais de cinco milhões de brasileiros, examinase o processo de interação do Presidente da República Jair Bolsonaro com cidadãos brasileiros. Os achados iniciais indicam aspectos complexos: (a) uma postura contraditória entre a interação presidencial e a comunicação oficial do Estado para fazer frente ao desafio do Covid-19, (b) a falta de coordenação das ações, o que contribui com mais mortes, (c) sua incapacidade de interagir comunicativamente para fazer frente à ameaça virótica e (d) um paradoxal medo de enfrentar a pandemia. Palavras-chave: Comunicação oficial, Interação, Presidente, Covid-19, Morte.

Resumen En un momento en que el mundo enfrenta la batalla contra el Covid-19, que ha matado a más de 151 mil personas e infectado a más de cinco millones de brasileños, se examina el proceso de interacción entre presidente de la República Jair Bolsonaro y los ciudadanos brasileños. Los hallazgos iniciales señalan aspectos complejos: (a) una postura contradictoria entre la interacción presidencial y la comunicación oficial del Estado para enfrentar el desafío Covid-19, (b) la falta de coordinación de acciones, que contribuye al mayor número de muertes, (c) su incapacidad para interactuar

comunicativamente para enfrentar la amenaza viral y (d) un miedo paradójico de enfrentar la pandemia. Palabras clave: Comunicación oficial, Interacción, Presidente, Covid-19, Muerte.

Abstract At a time when the world is facing the battle against Covid-19, which has already killed more than 151 thousand people and infected more than five million Brazilians, the process of interaction of the President of the Republic Jair Bolsonaro with the Brazilian citizens is examined. The initial findings indicate complex aspects: (a) a contradictory stance between presidential interaction and official communication from the State to face the Covid-19 challenge, (b) the lack of coordination of actions, which contributes to more deaths, (c) his inability to interact communicatively to face the viral threat and (d) a paradoxical fear of facing the pandemic. Keywords: Official communication, Interaction, President, Covid-19, Death. (1)

Doutorando

(Universidade

em

Tuiuti

Comunicação do

Paraná

e

UTP),

Linguagens Mestre

em

Administração: estratégia de gestão do conhecimento (UFPR),

membro

Interações

dos

grupos

comunicacionais,

de

pesquisa

Imagens

e

INCOM Culturas

Digitais (UTP). E-mail: ricardouhry@yahoo.com.br. (2) Professor Doutor do Programa de Pós Graduação em Comunicação e Linguagens (UTP), coordenador do Grupo de Pesquisa PPGCom UTP JOR XXI


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1 INTRODUÇÃO

Final de setembro. Com a chegada da primavera, cada vez mais pessoas saem às ruas, vão às aulas, às compras, às praias, aos bares no fim de semana, sugerindo descuido com relação às medidas de enfrentamento da pandemia Covid-19, e as mortes só aumentam. Por quê isto ocorre? O Brasil soma mais de 142 mil mortes acumuladas frente a um milhão de mortos no mundo todo; está em segundo lugar em número de óbitos; no número de casos posiciona-se em terceiro lugar; em mortes por milhão, ocupa o terceiro lugar. Enquanto outros continentes se recuperam, o Brasil consolida-se como segundo país mais afetado pela pandemia no mundo, só abaixo dos Estados Unidos. As causas de tantas mortes podem estar relacionadas com o negacionismo presidencial e a falta de coordenação entre os governos federal, estaduais e locais. Em suma, trata-se de uma combinação de “condições biológicas, negligência política e demora para agir” (CASTANHO; BALAGO, 2020). O processo de interação comunicativa de quem ocupa a presidência da República está devidamente documentado jornalisticamente e disponível on-line na Web, o que nos permite fazer uma análise discursiva de como o líder político em questão se comporta diante de uma ameaça virótica global que causa muitas mortes, o que, por sua vez, pode estar correlacionado com a sua postura incongruente frente à pandemia.

Uma importante questão a respeito do chamado “vírus da ideologia” coronavírus Covid-19 foi levantada por Žižek (2020): “o que está por trás do pânico demonstrado pelas autoridades?”. Esta é uma das questões que norteia o presente estudo de caso, em que se colocam as perguntas: como é a interação comunicativa do presidente com os cidadãos brasileiros? Por que o medo de enfrentar a pandemia? 2 METODOLOGIA A abordagem metodológica utilizada neste estudo de caso único (YIN, 2001, p. 61-67) coloca o foco no processo de interação comunicativa do político que está ocupando a presidência do Brasil. Para tal, serão selecionadas como fontes de evidências e de indícios de sua interação, documentação jornalística on-line - disponível na Web - , e aplicadas técnicas de pesquisa indiciária (BRAGA, 2008, p. 74-88; GINZBURG, 2007) e de análise de discurso (FAIRCLOUGH, 2001; GREIMAS; LANDOWSKI, 1986). Para fazer as relações que se propõe neste estudo, Braga (2008, p. 87) alerta para o cuidado de que é “preciso inferir, através do exame de indícios pertinentes para isso, o que é propriamente comunicacional e o que deriva de circunstâncias sociais de outras ordens”. Assim, ao examinar o caso singular da interação do Presidente brasileiro com a população frente à pandemia, busca-se não só examinar este processo, mas também refletir sobre a postura do Presidente para enfrentar desafios globais como o vírus e tecer considerações finais.


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3 INTERAÇÃO PRESIDENCIAL

O advento da pandemia coronavírus SARSCov-2 (Covid-19) pode ser considerado como um acontecimento inesperado, que apareceu na China no final de 2019 e se espalhou pelo mundo todo. Diante disso, faz-se análise da interação presidencial e se examina a postura do dirigente político frente à pandemia desde o dia 6 de fevereiro de 2020, quando o governo do Brasil tornou públicas “as medidas para enfrentamento” do coronavírus, estabelecidas em Lei N.º 13.979, que foram aprovadas pelo Poder Legislativo e sancionadas pelo Presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, e seu Ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, os quais assumiram papéis actanciais de “actantes-sujeitos” dotados de modalidades “querer-fazer, saber-fazer e poder-fazer”, de acordo com a semiótica de Greimas e Courtés (1983, p. 11-12). Apresentadas a pandemia e a ação do Estado brasileiro, vamos nos ocupar da comunicação. A primeira indagação é em relação à forma de comunicação que predomina para o enfrentamento da pandemia. O Brasil tem uma estrutura comunicacional que envolve leis que disciplinam o funcionamento do Estado brasileiro, entre as quais se situa a comunicação oficial, que é a que engloba as informações públicas oficiais, ela parte do Legislativo e é sancionada pelo Executivo. A comunicação oficial envolve “questões ligadas à comunicação entre Estado, governo e sociedade” (MATOS, 1999), o fluxo

comunicacional entre o Estado e o cidadão para a vivência democrática. A comunicação oficial deveria estar contida na comunicação pública, no entanto, na visão de Mattos (2007), a esta última “tem sido subestimada no Brasil”, reduzida “a aspectos secundários”, embora devesse considerar “todos os agentes sociais, conferindo a cada um peso específico. Jornalista, legislador, cidadão.”. Sendo assim, a comunicação pública é uma “ação coletiva sobre questões de interesse público, cujo objeto é a tomada de decisões consensuais para benefício mútuo” e que “tende a promover um ambiente de confiança e cooperação entre os agentes” (MATOS, 2007, p. 56-57). A “cooperação” não é o que se verifica no caso em estudo, pois, ao contrário, evidenciase uma postura centralizadora do Presidente: “[em] algumas pessoas do meu governo, algo subiu à cabeça deles. Estão se achando demais. Eram pessoas normais, mas, de repente, viraram estrelas, falam pelos cotovelos, têm provocações", referindo-se aos seus ministros. Há uma espécie de “lei do silêncio”, que tolheu inclusive seu próprio porta voz, que foi demitido. O Presidente não aceita declarações que contrariam suas posições públicas: "Quem manda sou eu, vou deixar bem claro. Eu dou liberdade para os ministros todos, mas quem manda sou eu." (URIBE; CARVALHO, 2020). Para ser considerada “comunicação pública”, Duarte (2007, p. 59) registra que é exigido: “(a) compromisso em privilegiar o interesse público em relação ao interesse individual e


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coletivo; (b) centralização do processo no cidadão; (c) ser mais do que um processo informativo; (d) adaptação às necessidades dos públicos; (e) assunção da complexidade, tratando como um todo uno” (Adaptado de DUARTE, 2007, p. 59). Do que se sugere que o presidente privilegia mais o “individual”, de forma centralizadora. Com relação às exigências e às considerações , parece que, a princípio, as medidas de enfrentamento previstas na Lei não podem ser caracterizadas como comunicação pública, mas sim, podem ser consideradas como “Comunicação Oficial”, que seria a comunicação oficial pública do Estado brasileiro por meio da qual se estabelece, em leis, o “poder-fazer” dos actantes-sujeitos, o que será relacionada com a comunicação interativa do Presidente da República. Diante desse contexto, consideramos: 1º. a Comunicação Oficial, que é como definimos a comunicação do Estado, que engloba as ações conjuntas do Legislativo e do Executivo que criaram a Lei; 2º. a Comunicação interativa de um cidadão que está desempenhando a função de Presidente da República e que se manifesta falando, dando entrevistas, fazendo lives na Internet, participando de videoconferências etc. Assim, para efeito deste estudo, delimita-se a análise e exclui-se a comunicação pública da Secom e do Ministério da Saúde e dos demais órgãos do Executivo, devido à tendência centralizadora do presidente.

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O pressuposto que se assume é que a interação presidencial é instrumento comunicacional frente à pandemia e que a comunicação oficial estabelece o marco legal. Definimos interação como a comunicação de pelo menos duas pessoas, na qual se pressupõe convívio, diálogo, trato, contato constante, mas também envolve discórdia, confronto de percepções e contingências. A interação é, portanto, atividade compartilhada, em que existem trocas e influências recíprocas, um conjunto de relações entre indivíduos, grupos ou mesmo entre grupos (adaptado de UHRY, 2010, p. 20). No processo de interação presidencial de Bolsonaro com os brasileiros, destaca-se seu costume diário de sair da residência oficial Palácio da Alvorada e de encontrar-se com cidadãos no “cercadinho”, local no qual interage. Também costuma fazer visitas nas cercanias de Brasília e de cidades satélites, ainda que essas práticas estejam em desacordo com o isolamento social estabelecido em Lei N.º 13.979, sancionada pelo próprio Presidente Bolsonaro, e defendidas pelo Ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta. Dados estes fatos pode-se evidenciar que, apesar de ter sancionado a Lei, o Presidente da República assume uma postura de negação da pandemia: “está superdimensionado o poder destruidor desse vírus” (9 de março); “é muito mais fantasia” (10 de março); 20 de março, 11 mortos por Covid19: “uma gripezinha” (URIBE; CHAIB; COLETTA, 2020), como se não acreditasse


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que o vírus seja uma realidade e possa matar, o que é típico do medo em relação ao acontecimento, por não conseguir enfrentar a existência uma guerra virótica no Brasil. Em 26 de março, com 77 mortos: “brasileiro não pega nada” de vírus (CARVALHO, 2020, p. A6). A interação de Bolsonaro contra a medida de isolamento social implica mais do que a negação do perigo do vírus. Em primeiro de abril disse: “vírus é igual a chuva. Você vai se molhar, mas não vai morrer” e, no dia seguinte, quando havia 299 mortos, ironizou: “Tá com medinho de pegar vírus?”. Em 12 de abril, havia 1.223 mortos e 22.169 infectados: “o vírus está começando a ir embora”; 20 de abril (2.575 mortos): “eu não sou coveiro”. (CARVALHO, 2020, p. A6). Apesar disso, o presidente Bolsonaro provocou aglomeração para fazer foto, abraçou pessoas, inclusive um idoso, colocou a mão no ombro delas, entre outras coisas que contrariam as regras recomendáveis de distanciamento social. "Estão destruindo o emprego no Brasil de forma irresponsável, até porque a curva (do vírus) não tem achatado." Nessa ocasião, Bolsonaro retirava a máscara a todo momento para conversar com os simpatizantes. "Esse vírus vai pegar mesmo, não tem como fugir". (adaptado de FERNANDES, 2020a). Podemos confrontar a interação presidencial com o conceito de “competência de comunicação”, que Greimas e Courtés (1979, p. 63) assim definiram:

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Conhecimento implícito ou explícito das regras psicológicas, culturais e sociais, pressupostas pela comunicação, não é mais do que a confrontação – contratual ou polêmica – de dois sujeitos competentes: sua competência desigual, positiva ou negativa, é, por um lado, modal (dando lugar a operações de manipulação), e, por outro lado, semântica (explicando a comunicação recíproca do saber e de seus mal-entendidos e ambiguidades).

As “regras psicológicas, culturais e sociais” pressupostas na comunicação são identificáveis e, assim, a interação presidencial pode ser analisada sob a ótica das “competências de comunicação interativa” (UHRY, 2010, p. 88-90). É o que pode servir para avaliar aspectos da capacidade de interação: o Presidente cria condições para fazer críticas úteis e de forma positiva? Será que é útil e lógico criticar as medidas de isolamento social, que foram sancionadas pelo próprio Presidente? E as críticas que o Presidente faz podem ser consideradas fundamentadas a partir de que perspectiva? Em 14 de maio, com 13.993 mortos, Bolsonaro defende o fim das medidas de isolamento social: “Tem que abrir, vamos morrer de fome, a fome mata. É o apelo que faço aos governadores”, sugerindo terminar o isolamento social (adaptado de CARVALHO, 2020, p. A6). Nessa interação presidencial se evidencia uma divergência entre os “actantes-sujeitos” dotados de modalidades “querer-fazer, saber-fazer e poder-fazer”, uma vez que o actante Ministro da Saúde Mandetta quer “fazer-fazer” valer o isolamento social e o actante Presidente Bolsonaro quer impor “fazer não fazer”.


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As medidas defendem os interesses coletivos de preservar a saúde da população, mas o actante Presidente em sua interação parece mais preocupado com interesses individuais. Devido ao conflito gerado em relação à necessidade de cumprimento das medidas de distanciamento social, Bolsonaro acabou demitindo o Ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta, que explica: “Bolsonaro foi negacionista desde os primeiros dias. A gente tentava trazê-lo de volta para a realidade. Mas ele se recusou. E se recusa até hoje a encarar a realidade, de que é falso o dilema entre economia e saúde (VARGAS, 2020)." E, contrariando os especialistas, o Presidente Jair Bolsonaro afirmou que o isolamento social não teve impacto no achatamento da curva de infecção do novo coronavírus. "Até porque 70% da população vai ser infectada." Jair Bolsonaro vem descumprindo as recomendações de distanciamento social e passeia por regiões de comércio e promove aglomerações. Embora a flexibilização do distanciamento social seja defendida enfaticamente por ele, o novo Ministro da Saúde, Nelson Teich, defende que “a gente tem uma definição clara: o distanciamento permanece como a orientação”. (Adaptado de FERNANDES, 2020b).

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Trata-se de uma interação que sugere uma relação de contradição devido ao fato de o Presidente sancionar medidas de enfrentamento da pandemia, que são uma ação frente ao acontecimento (pandemia) e, ao mesmo tempo, interagir de forma contrária, o que caracteriza uma “Comunicação Alternativa”, desencadeada a partir da interação do presidente, que é uma forma manipulativa de fazer com que o actante Ministro da Saúde aceite “fazer não fazer” a Lei N.º 13.979, que ambos subscreveram, o que afeta a todos. Cria-se, a partir disso, a seguinte tensão: se o actante ministro não aceita se submeter, o actante Presidente pode demiti-lo e nomear outro, e mais outro, até encontrar um que se submeta, o que acaba por transformar a ação (Lei, que deveria ser uma prática), em um acontecimento para a população, pois se torna inesperado o que irá ocorrer (adoção ou não das medidas), em lugar do que seria esperado (a adoção das medidas), como se demonstra na figura seguinte.

º

Figura n.

1: Estruturas modais do tipo factitivo no quadrado

semiótico. Fonte: adaptado de GREIMAS; COURTÉS (1983, p. 269).


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Na figura referida evidenciam-se as “estruturas modais do tipo factitivo”, uma “configuração discursiva” manipulativa “sustentada por uma estrutura contratual e, ao mesmo tempo, por uma estrutura modal” (GREIMAS; COURTÉS, 1983, p. 270). Dessa forma os actantes estão impelidos a uma “posição de falta de liberdade”, pois, diante da Lei, sancionada sob a égide do “querer fazer, saber fazer e poder fazer,” criou-se a “obrigação de aceitar o contrato proposto” que, no caso concreto, são as “Medidas de enfrentamento do Covid-19”. Isto sugere, então, uma contradição: para fazer frente à pandemia, o Estado adotou “I” ação de intervenção (Comunicação oficial - medidas de isolamento), o que, em decorrência da “II” interação presidencial negacionista, contrária à essa ação (Comunicação alternativa), a transforma em um acontecimento imprevisível. Ao analisar a comunicação interativa do Presidente como estratégia discursiva, sob a perspectiva semiótica, pode-se destacar um cruzamento enunciativo que pode ser associado ao “quadrado semiótico” de Greimas e Courtés (1983, p. 364-368), em que “ao menos dois termos” “I” e “II” se encontram em “distinção de oposição”:

º

Figura n.

2: Contradição entre comunicação oficial e interação

presidencial. Fonte: autores.

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Trata-se de uma clara contradição comunicativa, pois o Presidente oficialmente sancionou a Lei n.º 13.979 (“asserção” Comunicação oficial, “fazer-fazer”), uma ação que estabelece as medidas para enfrentar a pandemia e, em sua interação, coloca-se na postura negacionista (“negação” Comunicação alternativa, “fazer não fazer”), o que pode induzir seus seguidores, simpatizantes e mesmo demais cidadãos a “uma relação de complementaridade”, tornando possível que o negacionismo e o descumprimento das medidas, propostos pela interação presidencial, venham a “produzir essas duas implicações paralelas” (GREIMAS; COURTÉS, 1983, p. 365) inicialmente não previstas (acontecimentos inesperados) e que foram representadas na figura n.º 2: (i) O cidadão não seguir as medidas sanitárias, por influência da “Comunicação alternativa”, em decorrência da interação presidencial, o que pode contribuir com mais mortes, e sugere eficácia de uma “Comunicação Não-oficial” de negar o Covid19 e as Medidas de enfrentamento, por influência do caráter mítico e de movimentos identitários com o Presidente; (ii) O cidadão assimilar a “Comunicação oficial” e cumprir as medidas de isolamento social frente à pandemia, o que implica em um “Não à Comunicação Alternativa”, desconsiderando a interação presidencial.


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A propósito, pelo fato de a interação envolver a possibilidade de discórdia de um ponto de vista de um actante (presidente) com relação a outro actante (Ministro da Saúde, por exemplo), quer dizer que uma pessoa pode discordar de si próprio? Como alguém sanciona uma lei com medidas das quais discorda? A “modalidade factiva é uma estrutura modal hipotáxica que se constitui uma comunicação contratual” que pode ser associada a “configurações complexas de manipulação” (GREIMAS; COURTÉS, 1983, p. 177-178). Do que se sugere que a manipulação presidencial, por meio da interação, contribui para transformar uma ação (Lei) em um acontecimento inesperado. É a interação presidencial uma prática comunicacional que permite ao presidente encontrar-se com cidadãos brasileiros e interagir, o que caracteriza uma ação de aproximação com o povo e que, ao mesmo tempo, é uma prática que tem força como exemplo e a prática deveria manter coerência com o contexto internacional. Quanto à sugestão para avaliar a capacidade de interação do presidente, a pergunta que se faz é: estaria o Presidente bem informado sobre o mundo e os saberes? A interação pode ser considerada uma sequência de trocas comunicativas no sentido de expor seu ponto de vista, justificar-se, retrair-se, e mesmo hostilizar entre o político e os cidadãos: a alguns seguidores quer agradar, aos demais, hostiliza e deprecia. Há uma lei sancionada pelo Presidente e sua interação é contraditória.

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Da interação presidencial, destaca-se que parece que o político só quer ter contato no “cercadinho” com seus simpatizantes, procurando afastar quem queira dialogar e trazer algum questionamento sobre pandemia, discriminando também a imprensa. É possível propor para avaliação da capacidade de interação do presidente as seguintes questões: ele consegue lidar com conflito e hostilidade? É aberto à crítica? Adota postura defensiva? Aceita dialogar? Por outro lado, Jones e Gerard (1967) apresentam uma teoria da interação que tipifica os modos que podem ou não ocorrer – contingências – encontrados ou originados das interações, sugerindo que os fatos imprevisíveis ou fortuitos que escapam ao controle dominam toda interação. A pseudocontingência domina quando cada parceiro da interação conhece tão bem o plano de comportamento do outro, que tanto as réplicas quanto suas consequências podem ser perfeitamente previstas, do que resulta uma conduta semelhante a uma peça bem encenada (JONES; GERARD, 1967, p. 512). Essa ritualização pode ser relacionada com a interação entre Bolsonaro e o Ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta, quando este reafirma e defende as medidas de enfrentamento e aquele as critica e publicamente as descumpre. Para Jones e Gerard (1967), a contingência parece ser a base da constituição da interação pois os planos de comportamento de cada participante da interação são concebidos,


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separadamente e, assim, é imprevisível o efeito sobre o outro e podem provocar tanto uma reorganização na estratégia interativa quanto uma modificação de seus planos de comportamento (JONES; GERARD, 1967, p. 512). No caso em estudo, a pandemia traz desafios para uma interação presidencial que aparentemente faz a defesa da economia, assumindo a visão dos donos dos negócios, em detrimento de cidadãos que podem morrer se não houver isolamento. Suas interações claramente opõem-se às “medidas de enfrentamento da emergência em saúde pública” (BRASIL, 2020) que o próprio presidente sancionou. Assim, a contingência se transforma em um dos tipos de interação e mostra sua ambivalência produtiva: nasce da interação e, ao mesmo tempo, é sua propulsora. Na relação entre desiguais, considerando a interação do presidente e o cidadão como exemplo, os parceiros podem perguntar-se para saber se controlam a contingência ou se suas imagens da situação transpõem a falta da capacidade de apreender com a experiência alheia de, no caso, não respeitar o isolamento, não usar máscara. As réplicas na reação têm um fim determinado e integram um contexto de ações que funcionam como um horizonte da interação (JONES; GERARD, 1967, p. 512). Em tal “horizonte de interação”, quando o Presidente ouve algo que o desagrada relacionado à pandemia ou aos mortos, por exemplo, terceiriza a culpa dizendo que a responsabilidade é dos governadores,

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dos prefeitos, do Ministério da Saúde. Contrariado com cobranças, chegou mesmo a ameaçar de não ir mais no “cercadinho” para conversar com o povo. Sobre tal aspecto, é possível acrescentar na avaliação da capacidade de interação do Presidente outros questionamentos: consegue negociar e apelar para mediação quando necessário? É capaz de discutir pontos de vista e fazer parcerias? A propósito, Fiorin (2019) fez análise do discurso de Bolsonaro, em que destacou: Esse discurso maximiza os extremos, eliminando a moderação na política, pois a vê como conflito, preferindo os confrontos, priorizando uma lógica de guerra permanente no país, fechando o espaço para consensos, negando-se a resolver as diferenças pela discussão e a negociação (FIORIN, 2019, p. 381).

No caso em análise, com relação à pandemia, não há negociação, mas confronto. Evidencia-se uma postura contraditória em que há “medidas de enfrentamento da emergência em saúde pública” (BRASIL, 2020), e o Ministério da Saúde recomenda isolamento social e uso de máscaras de proteção em relação ao vírus, mas o presidente na sua interação desconsidera e as hostiliza (apesar de a ter sancionado!), interagindo contra o isolamento social recomendado e desprezando o uso de máscaras. Trata-se de uma atuação interativa e conflitiva paradoxal com o seu auxiliar ministro. Pode ser visto como contraditórias as falas do presidente e ministros da Saúde, quando o presidente adotava interação antagônica à


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Comunicação Oficial e a dos ministros e às recomendações do Ministério da Saúde. No caso, evidencia-se uma interação que foge aos conceitos de simétrica ou complementar e pode ser considerada autoritária e prepotente, em que o Presidente leigo na área de saúde recomenda impositivamente o uso de cloroquina e hidroxicloroquina, que é desaconselhado pelos médicos especialistas e pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e pelo órgão de controle de saúde norte-americano Food and Drug Administration (FDA), o que levou ao pedido de demissão de Nelson Teich, Ministro da Saúde que não queria se submeter à recomendação descabida de Jair Bolsonaro. Na avaliação da capacidade de interação do presidente, cabe a questão: evidencia tolerância na conversação, permitindo o retorno do outro e respeitando a contra palavra (feedback)? Seguiu-se a nomeação de um general da ativa, Eduardo Pazuello, um leigo e sem expertise na área de saúde e que, submisso, subscreveu sua ordem de recomendação do remédio. Na avaliação da capacidade de interação do Presidente, cabe também questionar: percebe-se o Presidente aberto a conhecer as ideias alheias, receber sugestões e interagir? Consegue estimular o outro a dialogar, buscando convivência? É o que pode ser relacionado com a “contingência assimétrica”, que domina quando o parceiro da interação, no caso o atual ministro interino da saúde Eduardo

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Pazuello, renuncia à atualização de seu próprio plano de comportamento e segue sem resistência o parceiro interativo Bolsonaro, ou seja, submete-se, adapta-se e é ocupado pela estratégia de conduta interativa de Bolsonaro (JONES; GERARD, 1967, p. 512). Chegou-se a limitar as informações sobre a situação da Covid-19 no Brasil. “Ao acumular dados, além de não indicar que a maior parcela já não está com a doença, não retratam o momento do país”, disse Bolsonaro em rede social, complementando que, com isso, "acabou matéria no Jornal Nacional". Os principais jornais montaram um consórcio para ter acesso aos dados junto às secretarias de saúde dos estados (Adaptado de BATISTA, 2020). Para avaliar a interação é possível colocar: percebe-se o Presidente aberto aos acontecimentos? Como age, quando as informações não agradam? Os aspectos destacados da interação do Presidente podem ser relacionados com os números crescentes de mortes pela pandemia e dão uma ideia como ele está se saindo na administração da pandemia, ao incentivar implicitamente o descumprimento das “medidas de enfrentamento” da pandemia. “Se a economia afundar, afunda o Brasil”, disse, salientando os efeitos econômicos das “medidas,” destacando os “empregos destruídos, informais sem renda, país à beira da recessão”, o “efeito colateral do combate


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ao vírus não poderia ser pior que o próprio vírus”; “excesso de preocupação apenas com uma questão [saúde] e não podia despreocupar com a outra [economia] (adaptado de CARVALHO, 2020, p. A6). A competência de interação comunicativa do presidente a ser avaliada pode ser: “Consegue formular argumentações com proficiência?”. Assim, fica para reflexão a avaliação da competência interativa presidencial frente à pandemia. 4 ENFRENTAMENTO DO MEDO DA PANDEMIA

Dessa forma, os brasileiros se defrontam com uma sombra pairando sobre eles na forma de um vírus, o que os faz lembrar que a morte pode continuar acontecendo em decorrência da inabilidade interacional de nosso líder político. A pandemia nos lembra de nossa finitude e pode provocar o reexame de nossa vida. Fazer com que se defrontem com uma análise crítica da interação de um político eleito para enfrentar os desafios que a realidade global coloca e que tem demostrado incapacidade de assumir seu papel de nos salvar do monstruoso vírus com apoio dos “deuses” da ciência, algo que o Presidente desconsidera como se fosse desimportante. No momento que, com seu medo de enfrentar o desafio mortal, a interação do Presidente brasileiro prega o fim do isolamento social e a reabertura do comércio, dos shoppings e outros locais de aglomeração, estará implicitamente banalizando a morte de seus cidadãos?

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Quem também refletiu sobre o temor da morte foi Kübler-Ross (2017, p. 5-14), ao destacar que os acontecimentos “são responsáveis pelo crescente medo da morte, pelo aumento do número de problemas emocionais” e que precisamos melhor compreender a morte e o morrer. A possibilidade da morte provoca um “medo universal, mesmo sabendo que podemos dominá-lo em vários níveis” pois a ciência nos proporciona “melhores meios de nos prepararmos e às nossas famílias para este acontecimento inevitável”. Ao tempo que Kübler-Ross (2017) propõe a questão “estamos nos tornando mais ou menos humanos?” ao lidar com a morte e o morrer, ela traz uma explicação construída na interação com os que tomaram conhecimento da fase terminal de sua doença, que é apresentada a seguir em forma de estágios que podem ser relacionados com a pandemia: (i) Negação e isolamento: a primeira reação do paciente é que “não pode ser verdade”, que é uma defesa temporária, não se consegue enfrentar a triste realidade, o que é substituído por aceitação parcial, ou pelo isolamento mais que a negação (KÜBLER-ROSS, 2017, p. 43-54).(ii) Raiva: a segunda reação do paciente é raiva, inveja dos sadios, ressentimento, muitas mágoas que já estavam reprimidas, a revolta contra Deus e as pessoas (KÜBLER-ROSS, 2017, p. 5586).(iii) Barganha: a terceira reação do paciente é uma barganha com Deus que, se decidiu nos levar deste mundo e ainda não atendeu nossos pedidos dos estágios anteriores, é a quem devemos apelar com calma e quem sabe venhamos a ser recompensados por bom comportamento e venhamos a receber um prolongamento da vida, ou dias sem dor (KÜBLER-ROSS, 2017, p. 87-90).(iv) Depressão: a quarta reação do paciente é entrar em depressão, com aumento da tristeza, sentimento de culpa e aflição diante da realidade de ter de se preparar para deixar este mundo (KÜBLER-ROSS, 2017, p. 91-116).(v) Aceitação: a quinta reação do paciente é aceitar e poder contemplar seu fim próximo com certa “tranquila expectativa”, quase uma “fuga de sentimentos” (KÜBLER-ROSS, 2017, p. 117-142).


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Tais estágios podem ser associados com alguém que tenha contraído o vírus Covid19. A parte mais triste é que o infectado não pode contar com o apoio próximo de seus parentes e amigos que, por sua vez, não podem fazer a despedida adequada, no caso de morte. É possível fazer uma correlação com a pandemia, do que se destaca: (i) a negação: em 5 de junho, com mais de 35.000 mortos, o Presidente resolve não mais divulgar, como se tentasse esconder os números de mortos para resolver a questão: “É para pegar dados mais consolidados”. E mesmo com o aumento nos números de mortes e infectados, Bolsonaro, junto ao Ministério da Saúde, continua a negar a pandemia e a tentar “esconder” dados. Há uma crise em que se evidencia muito medo: o Presidente quer mudar o número das mortes aceitáveis, corrigir os índices desfavoráveis (“evitar subnotificações e inconsistências”), e que o levam a disparates como “vamos esconder os números de mortos” (BATISTA, 2020), quando chegou aos 35.000 brasileiros mortos pelo Covid-19. A segunda fase (ii), a raiva da pandemia, acabou virando um lamento raivoso em 28 de abril, com 5.083 mortes: “E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagre” (CHAIB; CARVALHO, 2020). Sua interação é no sentido de o Presidente estar com medo de enfrentar a pandemia e, ao mesmo tempo, com muita raiva de que a “gripezinha” venha matando. Justifica que não pode fazer milagres, sendo Messias só de nome e sentindo raiva de não ser capaz de enfrentar o vírus.

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Bolsonaro finalmente chega à quinta fase, (v) a da aceitação, pelo menos nos momentos seguintes: em 3 de maio, com 7.025 mortos e 101.147 infectados, finalmente admite: “Muitos perderão a vida, é uma realidade.” Em 7 de maio, diante de 9.146 mortos e 135.106 infectados, o presidente da República consola os familiares dos mortos dizendo que há “um bem muito maior que a própria vida, que é nossa liberdade”. Que interação, em que oferece o consolo da liberdade aos familiares dos mortos!? Que “liberdade” é essa? Em 2 de junho, diante de 31.199 mortos e 555.383 infectados, o presidente aceita: “Eu lamento todos os mortos, mas é o destino de todo mundo”. Em 6 agosto: “A gente lamenta todas as mortes, vamos chegar a 100 mil, mas vamos tocar a vida e se safar desse problema” (CARVALHO, 2020, p. A6). Ou seja, como o Presidente parece mobilizar a pulsão de morte (Tânatos), aceita que os brasileiros morram, o que “é o destino de todo mundo”, embora queira “se safar”. Parece mais a aceitação da morte alheia. E, com relação a sua própria morte e de sua família? Trata-se de algo que não cogita, sugerindo que, na aparente aceitação das mortes, esteja implícito o seu medo do vírus e da morte. E, mesmo ao “aceitar” as mortes em decorrência do vírus, continua se justificando que todos morrem e que temos um “bem maior que a vida, a nossa liberdade”. E deixa claro seu propósito: “tocar a vida e se safar desse problema” (CARVALHO, 2020, p. A6). Será que tal interação convence os que vão morrer e aos seus familiares?


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E volta para nova fase de negação. Em 15 junho, Jair Bolsonaro contesta as 43.959 mortes, ao dizer que o número de mortes “não condiz com a realidade. Muita gente falece de várias comorbidades e, entre elas, o Covid”, como se não houvesse 888.271 infectados pelo vírus. E apesar de, em 7 de julho de 2020, ter dito que contraiu o vírus, continua numa postura negacionista, defendendo hidroxicloroquina, que diz estar tomando para sua autocura. Interage, em 12 de julho de 2020, preocupado com efeitos colaterais da economia “desemprego, sem renda, recessão” (CHAIB; CARVALHO, 2020). Em 15 de outubro, mais de 151 mil mortes, mais de 5 milhões de brasileiros contraíram o vírus. Referindo-se aos “desvios de recursos públicos destinados ao combate à pandemia” por parte do vice-líder de seu governo, Bolsonaro declara que: “De vez em quando a pessoa faz malversação do dinheiro público.” (WETERMAN, 2020). 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A interação do presidente da República parece contribuir para aumentar o medo da pandemia e das mortes, causar tristeza, sentimento de culpa e aflição diante da realidade de mais de 151 mil mortos e 5.140.863 casos confirmados com o vírus em 15 de outubro, evidenciando-se a falta de ação efetiva do governo federal. Uma das possíveis razões é apresentada pelo site de verificação de fake news Aos fatos: “o Presidente proferiu mais falas falsas ou distorcidas ao dar declarações espontâneas durante entrevistas e transmissões ao vivo

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nas redes sociais”, ou seja, em sua comunicação interativa há “60,6% das declarações consideradas falsas ou distorcidas” (RIBEIRO; CUNHA, 2020). E, quando Bolsonaro sugere agir, trata-se de sugerir a invasão de hospitais para ver se há leitos disponíveis, insinuar que os dados são falsos, entre outras interações questionáveis, ou destacar sua preocupação com a economia. Por outro lado, com relação à tipologia interativa de Jones e Gerard (1967), a interação de Bolsonaro em 5 de junho, quando não divulga os dados de mortes sob a alegação de “é para pegar dado mais consolidado” (BATISTA, 2020), pode ser considerada a “contingência reativa” que domina quando o plano de comportamento respectivo do parceiro da interação (Bolsonaro) tenta encobrir a reação momentânea ao que acaba de ser dito ou feito (o número de mortos, infectados). A imprevisibilidade torna-se orientada pelo momento e impede tentativas do cidadão de expressar seu plano de comportamento. A “contingência recíproca” domina o esforço de orientar a reação do cidadão de acordo tanto com o próximo plano de comportamento, quanto reage às percepções momentâneas, como a interação Bolsonaro em 15 de junho: [as mortes] “Não condizem com a realidade. Muita gente falece de várias comorbidades e, entre elas, o Covid” (CARVALHO, 2020, p. A6), com relação à reação dos cidadãos desaprovando as ações interativas de Bolsonaro. As consequências


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são que tal interação pode prejudicar o social, em que cada um seria enriquecido pelo outro, ou pode conduzir à débâcle, a uma hostilidade mútua e crescente, com que ninguém se beneficia. Qualquer que seja o conteúdo do processo de interação, há subjacente uma mistura de resistência dual e de mudança mútua que distingue a contingência recíproca de outros tipos de interação (JONES; GERARD, 1967, p. 512). O fato de o processo de interação comunicativa de quem ocupa a presidência brasileira estar registrado jornalisticamente, e disponível on-line na Web, permitiu-nos analisar discursivamente como o Presidente brasileiro se comporta diante de uma ameaça pandêmica global que causa mortes em massa, e ocasionou uma ruptura na representação social da realidade, e que pode ser relacionada a: (i) uma postura contraditória entre a interação presidencial e a comunicação oficial do Estado para fazer frente ao desafio do Covid-19, tendo-se evidenciado contradição entre a comunicação oficial (Lei n.º 13.979) e a interação negacionista do Presidente; (ii) falta de coordenação das ações, pela incapacidade de interagir com prefeitos, governadores e demais instituições, poderes e grupos representativos de forma a unir o país e fazer frente aos desafios da pandemia; (iii) a desmobilização do Ministério da Saúde com a demissão de dirigentes comexpertise na área de saúde e técnicos capazes, substituídos por militares leigos

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e sem conhecimento na área de saúde, o que contribui com mais mortes pela pandemia; (iv) sua incapacidade de interagir comunicativamente para fazer frente à ameaça virótica, o que se sugere ao avaliamos as competências interativas de comunicação do presidente; (v) um paradoxal medo de enfrentar a pandemia. O “pânico demonstrado” (ŽIŽEK, 2020) em sua interação é sugerido por seu aparente medo de enfrentar a pandemia, a partir da análise discursiva de suas interações. Tais constatações permitem sugerir que a postura do Presidente brasileiro é equivocada, o que pressupõe que se adotasse uma comunicação adequada poderia mobilizar forças para enfrentar, de forma conjunta com os estados e municípios, e adotar interações voltadas à conciliação e à busca de soluções. Assim poderia melhor enfrentar interativamente a pandemia. Seu insucesso interacional se reflete tanto na má recepção de sua fala, quanto no número crescente de mortos e infectados. Ao não apoiar a ação do Estado (Lei), afirmar que “lamenta todas as mortes” e, ao mesmo tempo, propõe: “tocar a vida e se safar desse problema” (CARVALHO, 2020, p. A6), demonstra não se importar com a pandemia, que provocou mais de 151 mil mortes, levou mais de 5 milhões de brasileiros a contraírem o vírus (15 outubro). Diante disso o questionamento que fica é: poder-se-ia falar em banalização da morte?


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FRONTEIRA EM DESENCANTO NOTAS SOBRE O ESTADO, TURISMO E COVID-19 EM FOZ DO IGUAÇU-BR GABRIEL DE SIQUEIRA GIL (1) MARÍA NOEL CLERICI HIRSCHFELD (2) HERNÁN VENEGAS MARCELO

Resumo

Abstract

A pandemia do COVID-19 transformou o cotidiano social, além de impactar abruptamente as relações econômicas em escala mundial após a suspensão de todas as atividades consideradas não essenciais e do fechamento das fronteiras. Foz do Iguaçu, localizada na região da fronteira entre Argentina, Brasil e Paraguai, é um dos principais destinos turísticos do Brasil. Neste contexto, analisamos as transformações estruturais nas relações de trabalho e não-trabalho perante a reorganização do mercado global, com destaque ao impacto no setor do turismo. Fazemos uma análise da realidade local frente a mundialização da cultura e digitalização do capital que, diferente de apontar para o aprofundamento de crises anteriores, será interpretado enquanto um processo de estruturação de novas formas de exploração e dominação. Trataremos e defenderemos a ideia de que a pandemia se comporta como uma forma de desencanto do mundo transfronteiriço.

The frontier in disenchantment. Notes on the State, Tourism and COVID-19 in Foz do Iguaçu-BR

Palavras-chave: Pandemia; Fronteira trinacional; Mundialização da Cultura; Turismo de Compras; Colonialismo de Dados; Dependência. (1) Mestrando PPGIELA (UNILA), e-mail: gabriel.sgil@hotmail.com. (2) Doutoranda em Ecologia na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), e-mail: maria.clerici.h@gmail.com. (3) email: hernan.venegas@unila.edu.br

Docente UNILA,

The COVID-19 pandemic transformed social life in addition to abruptly impacting economic relations on a global scale, after the suspension of all activities considered non-essential and the closure of borders. Foz do Iguaçu in the border region between Argentina, Brazil, Paraguay, is one of the main tourist destinations in Brazil. In this context, we analyze the structural changes in work and non-work relations, in view of the reorganization of the global market, with a prominent impact on the tourism sector. We make an analysis of the local reality in view of the globalization of culture and digitalization of capital, which, different from indicating the deepening of previous crises, we interpret it as a process of structuring new forms of exploration and domination. We will address and defend the idea that the pandemic behaves as a form of disenchantment in the cross-border world. Keywords: Pandemic; Trinational frontier; Globalization of Culture; Shopping Tourism; Data colonialism; Dependency.


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1 INTRODUÇÃO

“Uma fronteira não é o ponto onde algo termina, mas, (...), a fronteira é o ponto a partir do qual algo começa a se fazer presente”. Martin Heidegger, “Building, Dwelling, Thinking”, 1971 Após a pandemia do novo coronavírus uma “nova realidade” começou a ser fazer presente, na qual as fronteiras (re)adquiriram um papel central. Ao tipificar o Estado como “uma comunidade humana que reivindica com sucesso o monopólio legítimo do uso da violência e um território determinado”, Max Weber (2004) assimilou a dimensão central da vida moderna associada à burocracia e o processo de “racionalização” e de “desencantar” do mundo. Pierre Bourdieu (1996, p. 97) reinterpretou esta máxima, entendendo o Estado tal como “um ente x (a ser determinado), que reivindica com sucesso não apenas o monopólio da violência física, mas também da violência simbólica em um território determinado e sobre uma população correspondente. Sem dúvidas, é na fronteira que o Estado faz sentir com mais evidência seu poder (APPADURAI, 1997), pois nela estão tensionadas as oposições que sustenta a própria fronteira como expressão do patrimônio da nação. Weber diz sobre a ética protestante que “(...) o indivíduo deveria permanecer na condição e na vocação em que Deus o houvesse colocado, e deveria restringir suas atividades mundanas aos limites a ele impostos pela

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condição de vida estabelecida” (WEBER, 2004). Partindo do conceito de vocação descrito por Weber, entendemos neste contexto que o espaço social das cidades de fronteira configura um espaço necessariamente simbólico (BOURDIEU, 1996), limitado e restringido sobre a forma do Deus representado pelo Estado, cuja vocação simbólica associada revela-se pela fronteira, caracterizadas pela sua vocação militar, aduaneira e civilizacional. No século XXI as fronteiras internacionais passaram a ser simbolizadas como valor do multiculturalismo, do encontro cultural e lugar para integração (cultural e econômica), fato que converteu algumas fronteiras em um espaço central da produção e acumulação dos capitais na globalização, sendo elas utilizadas, inclusive, como recurso para o turismo internacional e transfronteiriço. A planificação territorial e setorial na cidade de Foz do Iguaçu, na Tríplice Fronteira entre Brasil, Argentina e Paraguai, acompanhou o desenvolvimento histórico do capitalismo e desenvolvimento regional (SOUZA 2009). Ao transformar os sentidos e significados obtidos pela própria materialidade da fronteira em seu limite, o turismo que universaliza seu olhar e se aproveita de realidades existentes para se expressar (URRY 2001; BOYER 1984) posiciona-se dentro do universo dos bens simbólicos e culturais, convertendo-se num “reforçador de fronteira” (GRIMSON, 2003). Assim, sua interface com as dinâmicas e fluxos fronteiriços, dentro da política internacional


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que produz nas fronteiras um processo de flexibilização burocrática (DE PAULA, 2002), fazem do turismo local um fenômeno chave na constituição simbólica da região da “Tríplice Fronteira”, como lugar próprio na construção da imagem de destino turístico de Foz do Iguaçu. A pandemia do novo coronavírus, que trouxe como consequência o fechamento das fronteiras e a suspensão de atividades de mobilidade, tanto interna quanto externa (como medida de proteção para diminuir a propagação do vírus), teve um impacto enorme na organização da cidade de Foz do Iguaçu. Segundo estimativas do IBGE, o turismo que corresponde a 3,71% do PIB nacional deve ter uma queda de 39% em 2020 (MECCA e GEDOZ, 2020). Neste sentido, trabalhos acadêmicos vêm discutindo as relações associadas ao Turismo durante e pós COVID-19, procurando por possíveis respostas e lacunas (DE SÁ, 2020). Mario Beni, por exemplo, interpreta “a pandemia como parte da crise global que decorre de outras crises anteriores”, e ainda sustenta em relação ao turismo que “a única maneira de não retrocedermos à 2010, seria a utilização global regional e local das TI direcionadas à completa implementação das Destination Manager Organization [DMOs]” (BENI, 2020). Entretanto, tal perspectiva desconsidera e até mesmo invisibiliza a nova Divisão Internacional-Informacional do Trabalho (BELTRÁN, 2016), baseada nas históricas relações de dependência na América Latina, imersas ou ocultadas nas 'novas roupagens' do capitalismo global. Uma das características essenciais do

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momento que estamos vivendo é a aceleração da implementação de práticas laborais e sociais vinculadas ao espaço digital, que respondem a digitalização dos capitais (e-commerce, lojas online, viagens virtuais, reuniões e conferências virtuais, trabalho remoto “home office”, implementação de medidas de ensino a distância). A acumulação de dados advindos do uso de plataformas digitais não conduz apenas para uma nova fase do capitalismo, mas também uma nova fase da mundialização com novas relações entre as dinâmicas e demandas locais e globais (COUDRY & MEJÍAS, 2019). Neste contexto, buscamos analisar, com base na realidade histórica de Foz do Iguaçu, as transformações que são observadas nas relações de trabalho e não-trabalho vinculadas à reorganização do capital no Sistema-Mundo, com destaque ao impacto no setor do turismo no contexto da pandemia do novo coronavírus. Para dado objetivo, começaremos por problematizar a relação entre Fronteira e Turismo. Trataremos e defenderemos aqui a ideia de que a pandemia se comporta como uma forma de desencanto do mundo transfronteiriço vivido até então na Tríplice Fronteira, entendendo que esta abordagem possibilita entender a reorganização burocrática da cidade entorno do turismo. Nos aprofundaremos no atual debate sobre a digitalização do capital, que está vinculado à relação entre os Estados e as transnacionais tecnológicas, pois acreditamos que não é possível entender os possíveis desdobramentos da pandemia do novo


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coronavírus, especialmente no setor do turismo, sem entender a estrutura e reorganização do capitalismo digital. Ao final, fazemos uma análise da realidade local frente a mundialização da cultura e digitalização do capital que, diferentemente de apontar para um 'novo normal' ou para o aprofundamento de crises anteriores, será interpretado enquanto um processo de estruturação de novas formas de exploração e dominação. É esta racionalidade técnica e econômica, lastreada por políticas públicas, que interpretamos como um comportamento de desencanto do mundo transfronteiriço em Foz do Iguaçu. A metodologia configurou-se de natureza qualitativa, do tipo descritiva e exploratória (uma vez que a pandemia do COVID19 ainda é um assunto pouco conhecido e explorado) com abordagem teórica, e fundamentada em dados advindos de pesquisa em fontes jornalísticas da região trinacional, artigos produzidos na área e o marco teórico dos estudos de fronteira, cultura, tecnologia e sociedade. Esperamos que os leitores encontrem nas próximas páginas argumentos que encorajem novas pesquisas sobre o turismo em sua relação e interdependência com a fronteira, tendo os processos de mundialização da cultura e digitalização do capital como horizontes para assentar nossas análises.

2. Fronteira e Turismo - duas vocações As fronteiras internacionais tornaram-se um pilar dos Estados nacionais modernos, como caracterizado na literatura sociológica,

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histórica e geográfica, tendo como marco constitutivo o “Tratado da Paz de Westphalia” (1648). Desde então, a maior peculiaridade do Estado-nação moderno foi a noção de que suas fronteiras territoriais poderiam manter indefinidamente as fábulas da singularidade étnica (APPADURAI,1997), tornando a soberania territorial um elemento central na definição das “comunidades imaginadas” (ANDERSON, 2008) e “identidades sociológicas” (HALL, 2006). A “crise do Estado-nação no século XX” que Anjur Appadurai (1997) reconhece como uma “crise de soberania”, faz parte do novo ciclo de concentração de capital na globalização (IANNI, 1999). Com isso, a fronteira interpretada como limite da soberania e da atuação da violência exercida pelos Estados, passa a ser caracterizada por seu uso flexível, pela “desburocratização” (econômica e fiscal) e também reconhecida como o espaço das políticas de fomento para o desenvolvimento territorial e cultural integrado. Como destaca George Yúdice, “a cultura se tornou pretexto para melhoria sociopolítica e para o crescimento econômico” (YÚDICE, 2006). Na divisão internacional do mercado cultural, isto significa que existe uma relação que imbrica a diferença local com a regulação, administração e investimentos transnacionais. Neste sentido, as fronteiras converteram-se em um lugar ou local da cultura (BHABHA, 1997) que demarcam os encontros e os desencontros culturais (EAGLETON 2005) as hibridações desde um olhar latino-americano (CANCLINI 1989), ocasionadas por uma realidade em que os


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Estados quase não tem condições de controlar ou estabelecer a dominação em sua totalidade. O turismo, enquanto objeto de interesse econômico e científico, só ganha destaque no contexto do pós-guerra. O turismo praticado durante quase um século pelas elites econômicas, a aristocracia e uma pequena fração da classe média, viu seu domínio e alcance distender-se até pontos isolados do globo. Com o apoio das Nações Unidas, o turismo tornou-se um produto do mercado internacional, com investimentos de empresas multinacionais como parte do “ProyectoTurístico-Transnacional” (HERNÁNDEZ, 2009) cada vez mais em evidência nas instâncias supranacionais, como a OMT e a OMC (Organização Mundial do Turismo e Organização Mundial do Comércio), que buscam estimular que localidades que nunca estiveram ligadas a economia setorial do turismo, o utilizem como caminho para o desenvolvimento e modernização. Os artefatos do patrimônio mundial e da humanidade, estabelecidos através das diretrizes do Patrimônio Mundial da UNESCO em 1972, são exemplos da materialização deste projeto turístico-transnacional, estabelecidos em consonância com a Organização Mundial do Turismo fundada em 1974. Esta manobra de internacionalização transformou o turismo, por vezes definido como a “indústria sem chaminé” ou “indústria da paz” em parte da fábula da globalização. A constituição das narrativas “encantadas” da globalização como destacaria

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Milton Santos (2008) denota, desde suas primeiras formulações, os usos ideológicos do turismo e sua relação contraditória com os discursos e imaginários sobre as fronteiras, encarado como fenômeno social capaz de ‘diluir’ e ‘transbordar’ às antigas fronteiras políticas e culturais como marcadores da distância ideológica. Assim, ampliam-se os acordos multilaterais para concessão de vistos turísticos e formação dos grandes empreendimentos transfronteiriços ligados aos mega blocos econômicos. O turismo passa a ser tratado como elemento-chave para integração cultural entre os povos em uma relação de alteridade e aceitação da diferença, em oposição a condição originária das fronteiras pensadas e planejadas como um instrumento técnico e simbólico, constituídas para exercer sua “vocação militar” e/ou “aduaneira”. No caso do MERCOSUL, os processos fronteiriços constituem uma entrada estratégica para a compreensão dos processos culturais (GRIMSON, 2003), e a decorrência da permeabilização do turismo nas fronteiras ocorre por uma constelação complexa de motivações (FERNANDES, 2018).

2.1 As duas vocações de Foz do Iguaçu Na cidade de Foz do Iguaçu, as palavras ‘fronteira’ e ‘turismo’ são confundidas no imaginário da região. A fronteira e o turismo foram constituídos como “vocações” distintas e ao mesmo tempo relacionais. Num primeiro movimento, distinguir ambas categorias passa por reconhecer que cada uma corresponde às demandas políticas,


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técnicas e culturais próprias, enquanto resultado de políticas territoriais e de planificação econômica (setorial) diferentes, mesmo quando observamos a existência de uma evidente articulação entre ambas. A noção de “vocação turística” em Foz do Iguaçu remete ao próprio desenvolvimento histórico associado a territorialização das fronteiras internacionais no Cone Sul. Inúmeros relatos de viajantes, autoridades políticas e a própria circulação do imaginário sobre a natureza do espaço da fronteira do (I)iguaçu, conforma uma realidade que orientou a cidade para seu destino manifesto, i.e., para exercer sua vocação turística (SOUZA, 2009). Desde então, a região da fronteira em associação com o recurso cênico propiciado pelas Cataratas do rio Iguaçu, na fronteira com a Argentina, e pelas Sete Quedas no rio Paraná, na fronteira com o Paraguai, foi pensada como potencialmente turística. Essa realidade tornou-se concreta só no final do século XX devido aos seguintes fatores: a patrimonialização das Cataratas do Iguaçu, na fronteira Brasil-Argentina (nomeadas de Patrimônio Natural da Humanidade pela UNESCO em 1986); a construção da Usina de Itaipu na fronteira Brasil-Paraguai na década de 1970 (construída sobre as Sete Quedas, as quais ficaram submersas no lago da Itaipu, o que possibilitou a capitalização das Cataratas como única maravilha da região); a concomitante inauguração da Ponte da Amizade em 1965 e da estrada BR-277 (que forneceram a infraestrutura e os dispositivos econômicos e políticos necessários para o desenvolvimento turístico e comercial da

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região); e a facilitação dos fluxos transfronteiriços, advindos dos acordos associados à criação do MERCOSUL em 1991. É importante observar que o denominador comum entre estes fatores é o território brasileiro. Podemos entender a cidade de Foz do Iguaçu como centro geográfico e elemento “unificador” na infraestrutura urbana da Tríplice Fronteira, a qual possibilita a entrada e saída de um Estado para o outro (ao não existir uma ponte entre Argentina e Paraguai). A partir deste ponto de vista e sobre uma dimensão mais simbólica, o espaço urbano da cidade brasileira configura o marco estruturante na normalização das relações “transfronteiriças”. Se por um lado o Parque Nacional na fronteira com Argentina possibilitou o turismo com referência a paisagem na fronteira, por outro lado, a Usina de Itaipu está relacionada à fronteira em sua dimensão geopolítica, i.e., pela sua vocação “econômica” e “militar”. A relação com Paraguai, diferentemente da Argentina, é de natureza socioeconômica, construída pelas relações de trabalho em torno do comércio. Ainda que os limites entre a atividade turística e econômica nesta fronteira tenham uma linha muito tênue, podendo ser muitas vezes confundidas, ambas correspondem a lógicas e processos territoriais díspares e à burocracia flexível na fronteira. Tal constatação não pode ser sinalizada do mesmo modo na fronteira entre Brasil e Argentina, onde o artefato simbólico e político das Cataratas como Patrimônio Mundial, funciona como garantia da


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soberania territorial da nação, ao dispor de maior estabilidade burocrática e jurídica. Assim, a flexibilização burocrática por si só não permite reconhecer toda a complexidade do problema que envolve fronteira e turismo nesta realidade objetiva e concreta. Torna-se nada mais que uma baliza para pensarmos o processo relacional existente entre as duas dimensões das vocações (i.e., fronteiriça e turística) que estão associadas a região, sem que isso signifique a destituição ou anulação da fronteira em sua dimensão simbólica e material histórica.

2.2 Duas vocações: um abismo de um passo

O fluxo internacional de mercadorias e recursos na região da fronteira em suas três dimensões, como ser, material/natural, trabalho/humano e de informação/ conhecimento/dados, permite destacar, como fez Pierre Bourdieu, que é no “domínio da produção simbólica que particularmente se faz sentir a influência do Estado” (BOURDIEU, 1996, p. 95). O turismo como atividade econômica depende da valorização do espaço e da organização estratégica dos territórios. É a singularização e simbolização dos espaços orientados para a visitação turística aquilo que nos permite afirmar e reconhecer os lugares de destaque dentro da lógica de valor de uso e troca, pois é a criação de um capital simbólico que “determina a ultra valorização dos lugares turísticos” (COSTA, 2010). Assim, a projeção da imagem das Cataratas do Iguaçu como “destino do mundo”, no jargão institucional e slogan do turismo local, codifica e reconstrói

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um imaginário construído pela dialética entre valor criado e valor contido no espaço. A valorização referencial que fragmenta e rearticula o território da nação, como é o caso da institucionalização de um Parque Nacional ou um bem de referência ao patrimônio, cria disparidades sóciosespaciais no interior do próprio território geopolítico e reforça a ideia de lugares que conseguem ser portadores de uma vocação específica. A materialidade e imaterialidade presente neste contexto mescla-se e hibridiza com a relação entre natureza-cultura, entre o nacional e o não-nacional, entre o eu cidadão e não-reconhecimento da própria cidadania universal-global, como pretende a ONU ou a UNESCO. Os territórios do turismo são, portanto, dotados de sentido pela ação política, como formas espaciais recentes, mas que manifestam sobretudo interesses e projetos de poderes determinantes para que a paisagem (cultural, geológica ou natural) se converta como afirma Everaldo Costa (2010) no resultado da produção do espaço e ingerência do capital. Se para o historiador Michel de Certeau (2014) a ideologia é responsável por produzir o poder simbólico determinante para a naturalização dos efeitos da disciplina, notamos que o discurso da memória histórica associado a uma cidade de Foz do Iguaçu está determinado pelos próprios signos e símbolos interpretados como recurso. Isto é, a fronteira e as Cataratas do Iguaçu como espaços simbólicos de referência para o turismo internacional como recurso que, naturalmente, estão disponíveis para


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construção estratégica do cotidiano principalmente dos planos econômicos.

e

3. O preâmbulo à pandemia - Estado, modernização e dependência tecnológica As últimas décadas foram marcadas pelo crescimento da acumulação massiva de dados e informações, como consequência dos avanços nas tecnologias da informação e crescimento da indústria tecnológica e de insumos que permitiram a popularização das tecnologias. Tal como o projeto civilizatório nas primeiras etapas da colonização e, posteriormente, o projeto civilizatório póscolonial ou nacionalista, estamos vivenciando uma realidade nova em que a digitalização dos capitais e o novo modelo de acumulação reconstroem as fronteiras civilizacionais e impõem um novo paradigma civilizatório que passa pela exploração de dados, advindos da produção, exploração e reprodução massiva de informações (COULDRY & MEJIAS, 2019).

3.1 Modernização, colonialismo e dependência tecnológica Através do uso de plataformas de sociabilidade virtual e inúmeros aplicativos de uso cotidiano por bilhares de usuários, o tempo todo estão sendo produzidos dados. Este fenômeno tornou-se a maior fonte de informação sobre o comportamento humano na história, assim como corresponde ao maior processo de acumulação de informações em escala mundial que se pode ter notícia.

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A exploração de dados está dividida em diferentes fases, que requerem de infraestrutura e tecnologia específica. Começa com a coleta de dados dos usuários “em troca” de algum serviço, sendo os conjuntos de dados vendidos para diferentes finalidades (para empresas, governos, instituições). As plataformas de redes sociais no modelo extrativista de dados participam de todas as etapas de produção; coletam os dados, processam dados, criam algoritmos, vendem estes recursos a empresas, e também cobram pelo espaço de propaganda e personalização da experiência na plataforma sociabilidade e consumo. As plataformas de serviços (Amazon, Booking, Airbnb, Ifood, Uber, etc.) seguem a lógica de mercado que explora os dados dos usuários (utilizando-os como ferramenta de marketing para continuar incentivando o consumo direcionado) e a força de trabalho, já que, entre outras questões, não respeitam à legislação trabalhista de cada Estado por se tratarem de empresas transnacionais. As mudanças mais significativas deste novo modelo de produção e extração de recursos passam a ocupar um espaço determinante na denominada “uberização” das relações de trabalho e “tinderização” das relações sociais[1]. [1]Tem sido proposto recentemente este termo nos estudos de psicologia social, para referir-se às formas presentes de relacionamento social, que tendem a colocar o indivíduo por cima do coletivo, fomentando o aparente/visual como elemento principal da tomada de decisões. Colocam o Tinder mais do que um aplicativo de encontros, como exemplo de uma ferramenta para acelerar e mecanizar o comportamento de tomada de


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decisão, tornando os processos binários, capazes de evitar questões e emoções subjacentes. As relações passam a adotar dicotomias do “sim/não”, “curtir/ignorar”, “compartilhar/passar” que não deixam espaço para o “talvez” atribuído ao contexto.

Entretanto, como em outros processos extrativistas associados ao desenvolvimento capitalista, os recursos de valor econômico não estão reduzidos ao processo materialista como fundamento para a riqueza das nações em uma perspectiva Liberal. Tão pouco se reduz à dimensão do conflito entre salário e lucro, que coloca o trabalho como dimensão central da produção no pensamento marxista. É necessário pensarmos que além da exploração da natureza e do trabalho, os dados (informações) tornam-se uma forma nova de recurso e acumulação capitalista que vê a dimensão do “não-trabalho” (cotidiano) como o principal recurso a ser capitalizado, de forma que as ações cotidianas (materializadas em clicks) passam a fazer parte do processo e dinâmica de produção de capital. Como Mejías e Couldry (2019) colocam: El capitalismo industrial, según Marx, cambió la sociedad al transformar la actividad humana universal del trabajo en una forma social con una dimensión abstracta (a través de la mercantilización del trabajo). Hoy en día, el colonialismo de datos está cambiando la sociedad al transformar la vida humana en una nueva forma social abstracta que también está disponible para la mercantilización. Los medios para esta transformación son, no sólo las relaciones laborales, sino, más ampliamente, las relaciones sociales mercantilizadas, o, más sucintamente, las relaciones de datos.

A dataficação, portanto, não é só um

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momento ou etapa do capitalismo, senão que é a continuação, a permanência do colonialismo na contemporaneidade em uma situação que a própria colonialidade do ser descrita por Aníbal Quijano (2002) se redesenha e reifica sobre a forma de quantificação massiva de algoritmos. Segundo Mejías (2020), como os teóricos da dependência sugeriram, o problema da América Latina não é a que a modernidade nos exclua, e sim que nos inclua. A penetração financeira e tecnológica das corporações e empresas transnacionais na América Latina impedem seu desenvolvimento auto suficiente. Isto ocorre porque as empresas nacionais, frente à modernização do capital, são obrigadas a migrar e desenvolver-se no âmbito digital (como está acontecendo de forma exacerbada na pandemia do novo coronavírus), tornando-se ainda dependentes de infraestrutura tecnológica e capital suficiente para competir, o que por sua vez prescinde dos serviços das transnacionais[2], tanto do espaço de propaganda quanto dos dados para o marketing. Assim, o mesmo jogo de relações de poder se revela, ficando as nações categorizadas como periféricas presas na dependência histórica. Neste sentido é que Mejías (2020) defende que “La dataficación representa un momento colonial en que se da la apertura de una nueva frontera de extracción, dando lugar a otra gran bonanza de acumulación mediante despojo.”


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[2] Um exemplo atual é a chegada da Digital Colony no Brasil em 2020. A empresa é a maior plataforma de investimentos em infraestrutura digital da Colony Capital, Inc. (sediada em Califórnia, EUA), proprietária e operadora de empresas que fornecem infraestrutura sem fio, incluindo macro-torres, que abrangem todas as principais áreas urbanas, suburbanas e rurais do Brasil.

3.2 Estado e transnacionais na era da mundialização e digitalização

O capital informacional que antes era organizado e capitalizado em benefício do Estado hoje é desviado, ou melhor, “extraído” como um recurso que não pode ser capitalizado e concentrado pelos Estados sem ser por intermédio de corporações que atuam para além das linhas fronteiriças tradicionais. O tensionamento entre o local e o global, entre o nacional e o regionalcontinental, perante a infiltração das transnacionais no cotidiano da realidademundo, revela assim os conflitos e choques que demarcam os novos desafios a serem enfrentados pelos Estados e blocos econômicos na reorganização do capital, dada a supervalorização dos dados como recurso no século XXI. Se por um lado “o Estado-nação delimitou geograficamente as fronteiras do poder” (ORTIZ 1994, p. 94), por outro lado, as grandes corporações transnacionais redefiniram estes limites para além das fronteiras geopolíticas da realidade mundializada, movidas pela força da conveniência da cultura na era da globalização. Como Ortiz (1994) coloca “as agências transnacionais são instâncias

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mundiais da cultura, sendo responsáveis pela definição de padrões de legitimidade social”, e: Se realmente nos encontramos diante de uma totalidade mundializada, é preciso reconhecer que os mecanismos existentes no seu interior são em boa parte (ainda que não exclusivamente) moldados pelas “indústrias culturais globalizadas”. Elas representam um tipo de instituição que supera em muito o alcance de outras instâncias, cujo raio de ação é ilimitado. Tanto a escola como outras tradições populares têm um âmbito de atuação restrito aos domínios regional ou nacional. Por outro lado, se imaginarmos o mundo como um espaço no qual se afrontam diferentes concepções e ideários políticos, temos que a presença de conglomerados adquire um peso desproporcional. Como o Estado-Nação possui uma capacidade específica para ações internacionais, restam a eles uma grande margem de manobra. As grandes empresas, pela sua filosofia e pelos seus interesses econômicos, são agentes políticos privilegiados. (ORTIZ 1994, p. 165)

As plataformas digitais, propriedade das transnacionais do Vale do Silício e conhecidas como o imperio GAFAM (Google, Amazon, Facebook, Apple, Microsoft), são um exemplo de agente de poder privilegiado no mundo globalizado. O alcance de domínio espacial das plataformas e os mecanismos de funcionamento que utilizam a mineração de dados, o profiling e a dinâmica dos algoritmos são estruturados no sistema econômico global e ao mesmo tempo estruturantes da realidade e cotidiano local colocado em xeque o de concentração dos capitais pelo campo burocrático em um Estado.


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O espaço digital ocupa uma posição estratégica, tanto para o mercado de consumo, por apoiar-se numa lógica que prima o visual, o estético e superficial, quanto para o universo político, dado o poder de visibilidade, velocidade e quantidade de informação que pode ser repercutida em períodos de tempo curto a milhões de pessoas, através de funções como “impulsionar ou promover” e “otimizar” oferecidas (vendidas) pelas empresas. O espaço digital tornou-se, assim, um elemento carregado de signos que assim como qualquer outro espaço não pode ser entendido como neutro, ou, em palavras de Henri Lefebvre como um “objeto científico removido da ideologia ou da política. (…) Porque o espaço, que parece homogêneo, que aparece como um todo em sua objetividade, na sua forma pura, como o determinamos, é um produto social” (2001, p. 341). O espaço digital é, na sua materialidade, um produto social construído, planificado, gerenciado, controlado e vigiado por uns poucos sobre um mundo globalizado. Dado que as ações humanas são reguladas através de processos coletivos e normativos de construção de regras sociais, o que nos coloca também como produto e produtores de cultura, estes espaços, por vezes mal compreendidos na sua dimensão social, são moldadores de comportamentos, opiniões, preferências e posicionamentos. Como apontou Hermánn (2005), nossos julgamentos morais modificam-se quando confrontados com novas narrativas e

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diferentes experiências estéticas. O espaço digital onde continuamente estamos sendo expostos a uma diversidade de imagens e conteúdos que passam por filtros e estratégias de marketing direcionadas pelas nossas informações exploradas, constitui-se assim num complexo sistema onde as possibilidades de manipulação dos processos e controle social são extremas. Levando àquilo que Ortiz (1994, p.15) chama a atenção em relação aos processos de produção orientados “customized” (estratégias de ação das grandes transnacionais no final do século XX) que, apoiados sobre o discurso da “desmassificação” e do culto à diversidade e consumo personalizado, toma forma de realização da liberdade individual e sinônimo de democracia, mas que provocam exatamente o contrário. O mundo da cultura torna-se neste contexto o espaço no qual as crenças sobre a “horizontalidade” do espaço, balizadas pelo tecnoptimismo associado, se transformam em conivência, da mesma forma que “toda dominação procura despertar e entreter a crença na sua legitimidade” (Weber apud Ortiz 1994, p. 161). É fundamental, portanto, considerar a dimensão ética-estética para compreender a realidade histórico-cultural perante a qual nos encontramos, pois é a manipulação da informação, em sua forma textual e/ou visual, à qual estamos continuamente expostos, que legitima e conduz as nossas tomadas de decisão, e numa escala maior, que condiciona a ordem social da nossa época.


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3.3 Conveniência da cultura e a digitalização do capital em Foz do Iguaçu A cidade de Foz do Iguaçu como expressão da modernidade mundo (IANNI 2000), está determinada ambiguamente pelos próprios signos e símbolos interpretados como recurso econômico, isto é, a Fronteira e as Cataratas do Iguaçu como espaços simbólicos de referência para o turismo internacional alinhado com a mundialização da cultura e consumo digital através das plataformas. A mundialização da cultura (ORTIZ, 1994) diante desta realidade ganha características que extrapolam a dimensão das corporações transnacionais mais tradicionais. Além das empresas historicamente associadas ao desenvolvimento capitalista, as novas empresas de tecnologia passaram a promover, através da descentralização (logística e espacial), uma nova centralidade configurada como uma “cultura mundializada”, orientada pela definição de padrões de consumo e estilo de vida através das plataformas virtuais globais. Hoje em dia vemos como Foz do Iguaçu, uma cidade historicamente associada à fronteira, ganha feições que se ligam à “cultura global”. Os exemplos disto são o Dreams Park Show, um complexo turístico de lazer e entretenimento que conta com atrações como o Dreamland Museu de Cera, Maravilhas do Mundo, ou Super Carros. O Dreams Park Show reproduz esculturas em referência aos patrimônios históricos da humanidade, personalidades políticas ou

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públicas internacionalmente reconhecidas. Também conta com atrativos relacionados à indústria audiovisual animada dos EUA, fugindo dos processos sociais e culturais da região. Outros traços da lógica da mundialização da cultura podem ser vistos no “Marco das Américas” ou “Marco das Três Fronteiras”. O Marco conta com uma indumentária narrativa e literária que se liga ao período colonial pelo Memorial Cabeza de Vaca, narrada a partir da apresentação cênica dos artefatos utilizados na produção do filme hollywoodiano “A Missão” sob a direção de Mel Gibson. Outra evidência, relaciona-se à própria constituição étnicacultural da região da Tríplice Fronteira e seu uso explícito como recurso para o turismo. Segundo o “jargão do turismo local”, Foz do Iguaçu possui mais de 82 grupos étnicos, tornando-se referência da expressão da multiculturalidade, mercantilizada através de shows, de experiências gastronômicas e do city tour da cidade, que ampliam a dimensão simbólica do lugar em sua ligação à cultura mundializada como conveniência para o mercado e o discurso do turismo em sua integralidade (YÚDICE, 2004). Ainda que pareça simplista pensar os usos destes elementos como fenômenos da mundialização da cultura, é no domínio destas referências internacionais que o espaço simbólico do turismo na cidade de Foz do Iguaçu, se desterritorializa. Quer dizer, o patrimônio natural associado ao Parque Nacional já não é a única referência junto a imagem da cidade turística. Existe, portanto, evidentes marcas simbólicas que, para além


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da referência ao valor dos bens e paisagem local, conectam o “olhar turista-internacional” com outras regiões (ou destinos turísticos) que se afastam da simples relação cultura nacional ou das trocas culturais ocorridas nas fronteiras. Como dito antes, a planificação do turismo tratada sempre como elemento dependente da planificação econômica nacional, entra no contexto da globalização através da tecnologia pela forma mundializada de administrar e gerir os recursos relativos à cultura. É através da extração, processamento, manejo e comercialização de dados que funciona a economia do turismo (na lógica apresentada no item 3. sobre o capitalismo digital). Neste contexto, as relações entre “imagem de destino” e “consumo turístico” transformam-se significativamente por intermédio do uso das plataformas que atuam estimulando o consumo, personalizado e diversificado, de acordo com os perfis dos próprios sujeitos na rede. As imagens (fotografia e vídeo) e a prática turística estão historicamente relacionadas, desde a invenção da câmera fotográfica, os viajantes usam a imagem para auto exposição como forma de distinção. Nos estudos sobre o turismo no século XX, o papel das mídias na promoção de imagens de destino já aparece como central na definição e articulação dos destinos turísticos (URRY 2001, KRIPPENDORF 1989; PAIVA 1995). Contudo, é no século XXI que a imagem como recurso e produto “sobreexplorado” da mão do

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desenvolvimento das tecnologias da informação (da digitalização do capital), da mundialização da cultura e da diversificação dos mercados e da oferta transforma a prática turística em escala global. Por exemplo, Durieux Zucco et al. (2019) investigaram a imagem de destino em redes sociais virtuais a partir da análise de 1500 fotos publicadas no Instagram de três destinos no Brasil, entre eles Foz do Iguaçu. Encontraram que as imagens são determinantes das características de um destino e que, a partir da análise das mesmas, é possível entender quais características deve possuir um destino para tornar-se atrativo. Cabe ressaltar que por trás da divulgação turística existe uma disputa de poder sobre o espaço e sobre a construção dos imaginários sobre os destinos. A imagem turística, longe de ser um objeto construído de forma espontânea, responde aos interesses dos grupos dominantes (de maneira direta ou indireta). Essas construções do imaginário sobre o destino turístico carregam relações, poderíamos dizer, de tipo colonialistas, que pela romantização, fetichização e folclorização da cultura e do outro, perpetuam as assimétricas relações de poder históricas (seja de classe, étnica, racial e/ou de gênero).


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As plataformas digitais (Facebook, Instagram) conformam o espaço que possibilita esta dinâmica, constituindo um marco na indústria e marketing do turismo. É através ou a partir delas que o turista/consumidor escolhe a experiência de viagem em base ao marketing ao que está indissociavelmente sujeito, dada a lógica do espaço. O turista, então, passa a buscar nos destinos aquilo que lhe foi oferecido em base ao imaginário construído previamente, através de imagens e comentários sobre o lugar (grandes exemplos podem ser entendidos pelo incentivo a postagem de imagens com o #cataratasday, ou os novos “selfpoint” da cidade). Desta forma, as plataformas centralizam e direcionam o “olhar turista” como reconheceu John Urry (2001). A oferta turística é definida, então, não apenas pelos operadores do turismo, mas também em relação aos fluxos de informações e exploração de dados no espaço virtual, de forma que os destinos turísticos são moldados conforme a imagem e discurso global sobre o local, como visto na realidade iguaçuense. Por outro lado, as plataformas virtuais descentralizaram a própria dinâmica econômica do turismo ao permitir ao turista escolher e planejar através do planejamento e consumo por aplicativo (Airbnb, Booking, Trivago, etc.). O jogo de narrativas confunde o próprio indivíduo ou, inclusive, o pequeno empresário local, que pós a retórica da flexibilização burocrática, de empreendedorismo e independência, transladam a maior parte dos recursos

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econômicos movimentados pelo turismo para corporações e empresas transnacionais, colocando cada vez mais a população local fora da margem da produção de valor pelo turismo e seu consumo. Desta forma, as relações de trabalho que antes assentavam-se nas legislações trabalhista agora organizam-se pelo uso de plataformas transnacionais que vulnerabilizam as comunidades dependentes da econômica do turismo. George Yúdice (2004) reconhece as fronteiras internacionais da América Latina como o local onde está evidenciado o tensionamento entre a soberania estatal e o poder transnacional das corporações. De modo geral, pode-se dizer que foram nas fronteiras que as empresas transnacionais obtiveram maiores vantagens econômicas. As isenções fiscais e facilitação econômica favoreceram a circulação e comercialização em escala global dos produtos culturais da mundialização, como no caso de Ciudad del Este (Paraguai) em relação a Foz do Iguaçu (Brasil) A facilitação na circulação de mercadorias, que alterou a dinâmica do turismo de compras na fronteira entre Brasil e Paraguai, é outra variável importante para compreensão da realidade local transformada pelo avanço do mercado global de bens simbólicos e do capitalismo digital. O comércio em Ciudad del Este, que outrora ficou famoso e amplamente conhecido pelo contrabando de produtos de segunda linha, falsificados ou de origem ilegal, passou a conviver cada vez mais com um fluxo de compradores que buscavam as vantagens da


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isenção fiscal para comprar produtos eletrônicos, em resposta às demandas geradas pela indústria tecnológica e mercado digital.

4. “Todo Cambia” - um novo contextocenário O contexto recente de pandemia instaurou formas de exceção e exclusão (tal como os fechamentos das fronteiras e aduanas) e medidas de proteção à população como o isolamento social. Como precedente, apenas no período da II Guerra Mundial a fronteira entre Brasil, Argentina e Paraguai permaneceu um período tão longo obstaculizado pelo poder estatal (SILVA 2010). Neste contexto, Foz do Iguaçu alinhou-se à onda de digitalização no nível econômico e institucional, público e privado. Desde a implementação de aulas à distância no ensino à migração de processos burocráticos ao ambiente virtual, toda atividade laboral viuse em algum ponto afetada e transladada ao espaço digital. O caso do turismo não é diferente. Ainda que a prática da atividade per se tenha sido cancelada durante um tempo e a cidade foi uma das pioneiras em receber turistas nacionais baixo estritos protocolos de segurança, grandes transformações deram-se no setor. Uma delas é a inauguração do e-Marketplace “Cooperativado do Turismo de Foz do Iguaçu e da Região Turística Cataratas & Caminhos – Pós Covid-19”, uma plataforma tecnológica onde qualquer turista, brasileiro ou

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estrangeiro, que queira comprar produtos e serviços da cidade, poderá fazê-lo diretamente das lojas virtuais[3]. Segundo seu criador, Vadis da Silva, através da plataforma “acabou a concorrência e a desigualdade entre pequenos e grandes e, entre ricos e pobres, pelo menos dentre aqueles que souberem melhor usufruir dos benefícios disponibilizados por esta infraestrutura tecnológica” (SOARES 2020). As implicações de empreendimentos deste tipo para o turismo da cidade e para o turismo na Tríplice Fronteira não são banais. Diferente do enunciado quanto ao desaparecimento da “concorrência e desigualdade”, temos no uso das plataformas a reprodução das assimetrias históricas na forma do atual colonialismo de dados, onde se aprofunda o modelo desigual de distribuição e circulação da riqueza através da atividade turística. Um exemplo disto se faz evidente no trabalho de Franco et al. (2020), que buscaram entender o impacto das agências Online Travel Agency (OTA) frente a agências de viagem tradicionais (físicas) em Foz do Iguaçu -PR. Os autores observaram que as OTAs impactaram as vendas das agências tradicionais, gerando um decréscimo de aproximadamente 40% das vendas destas últimas, desafiando a manutenção do mercado turístico tradicional (FRANCO et al., 2020). Neste breve exemplo podemos dimensionar quão longe da

[3] Loja virtual: https://www.gestour.com.br/fozdoiguacu/


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realidade tecnológica estão alguns pequenos microempresários locais ligados ao turismo. Por trás da aparência de “fácil acessibilidade” das tecnologias de comunicação, temos uma enorme brecha educacional e cultural quanto aos usos de tecnologias. De outro modo, a racionalidade técnica que é aqui representada pela entrada das plataformas digitais na economia e realidade turística de Foz do Iguaçu, diferentemente de representar um novo normal, simbolizam a continuidade de um modelo racional e colonialista de exploração dos recurso naturais e culturais na fronteira, agora através do não-trabalho além do trabalho. Outra grande mudança no setor do turismo na cidade de Foz do Iguaçu, é a inauguração de lojas francas. Anunciadas durante a pandemia do novo coronavírus, as lojas visam estimular o “turismo de compras” na cidade brasileira, apresentando-se como um divisor nas relações do turismo na chamada região transfronteiriça. Segundo o secretário municipal de Turismo de Foz do Iguaçu, Gilmar Piolla, “a ideia é desenvolver um novo segmento do setor, para oferecer mais atrativos aos turistas nacionais (…) de forma a atrair em torno de 25% do público que viaja para destinos de compras mundialmente famosos, como Miami, Paris e outros”[4]. A notícia da abertura das lojas francas do lado brasileiro repercutiu de diversas formas nas cidades vizinhas. Do lado argentino da fronteira, o portal de economia Economis noticiou: “Alerta frontera: abrió una loja free en Foz do Iguaçu” (ECONOMIS, maio 2020).

[1]

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Diversificar a oferta turística parece ser o caminho encontrado por gestores e articuladores do turismo local. No entanto, a estratégia do poder público do lado brasileiro é mais do que uma forma de superar a crise do setor, até porque o projeto existe desde antes da pandemia. A implementação do turismo comercial faz parte do processo que aqui defendemos, de capitalização e concentração turística da cidade de Foz do Iguaçu. A pandemia e o consequente fechamento das fronteiras atuaram como forças catalisadoras deste processo. E, embora segundo o próprio secretário G. Piolla, a ideia não é competir com as cidades vizinhas, já que a cota será aditiva, o superintendente do Cataratas JL Shopping, Lindenor Cavalheiro, na inauguração do primeiro Duty Free Liberty em Foz do Iguaçu disse “não será mais necessário atravessar a fronteira, teremos esta facilidade aqui”[5]. Apesar de que ainda seja cedo para estabelecer maiores conclusões, demonstrase com isto como os diferentes movimentos orquestrados pelos Estados vizinhos colocam em evidência uma “nova” disputa em torno do turismo e principalmente da própria narrativa da fronteira neste contexto de flexibilização da burocracia e relações de trabalho.

[4]agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/202007/foz-do-iguacu-aposta-no-turismo-de-compras-pararestabelecer-economia [5]http://www.fozdoiguacudestinodomundo.com.br/novida des/a-primeira-loja-franca-em-shopping-center-no-brasilser%C3%A1-no-cataratas-jl


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Tanto que, meses depois da divulgação da notícia em Foz do Iguaçu, do lado argentino o mesmo portal. Economis noticiou “Logro histórico: Misiones podrá ser una zona aduanera especial con rebaja de impuestos” (ECONOMIS, outubro 2020). Segundo o Deputado Nacional pela província de Misiones, Ricardo Wellbach, “es una conquista histórica que da paso a la transformación económica de Misiones y a combatir con mejores armas las asimetrías eternas con Paraguay y Brasil” (ECONOMIS, outubro 2020). Vemos, portanto, que após a pandemia do COVID-19, a fronteira voltou a ser protagonista em sua dimensão política, sanitária e militar vinculada a gênese do Estado nacional moderno. Corrompeu, com isso, a própria dimensão simbólica instaurada no último período, que a permitia ser reconhecida e caracterizada como o espaço ou “o local” das relações econômicas internacionais e encontro intercultural na era da globalização e mundialização da cultura. Desta forma, parafraseando a definição de desencanto dada por Weber (2004), propomos que a pandemia funciona como uma forma de desencanto do mundo transfronteiriço vivido até então na Tríplice Fronteira, enquanto uma racionalidade econômica do local, que destrói qualquer possibilidade de liberdade de circulação, restando como única alternativa a adoção de uma prática relacionada àquilo que lhe foi “destinado”, i.e., a sua vocação (de fronteira política e sanitária), pois é a única forma esperada e apresentada de “segurança e

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sucesso”. Esta abordagem possibilita entender a reorganização burocrática da cidade entorno do turismo. O desencanto transfronteiriço na Tríplice Fronteira, que começa com o bloqueio das fronteiras para a segurança da população, é potencializado pelas complexas relações de desigualdade e dependência emergente à pandemia entre os três países. Enquanto à relação de dependência, esta se faz evidente com as manifestações sociais tanto no lado paraguaio como argentino. Em Puerto Iguazú a população protestou pedindo a abertura da ponte: “Trabajadores vinculados al turismo piden que se reabra el puente internacional Tancredo Neves para que puedan llegar turistas brasileños” (CLARIN, novembro 2020). Em Ciudad del Este, foram várias manifestações promovidas por trabalhadores de diversos setores de serviços, até a ponte abrir[6]. Em contrapartida, do lado brasileiro a realidade é outra. Se antes da pandemia Foz do Iguaçu, que já se sobressaia pela sua oferta turística diversificada, só dependia do turismo de compras das cidades vizinhas, hoje não depende mais. A cidade parece caminhar a uma “emancipação turística” em relação às demais cidades da Fronteira Trinacional, transformando o caráter interdependente do turismo da região para um modelo em que Foz do Iguaçu se torna auto suficiente, o que [6] Manifestantes realizam novo protesto no Paraguai pela abertura da fronteira. https://foz.portaldacidade.com/noticias/regiao/manifesta ntes-realizam-novo-protesto-no-paraguai-pela-abertura-dafronteira-5555


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revela a “dependência” econômica das cidades da região com o turismo realizado na margem brasileira da fronteira. Desta forma, concretiza-se uma nova etapa turística da cidade brasileira que se caracteriza pela concentração e diversificação de serviços em Foz do Iguaçu, como colocamos anteriormente. Agora, além da cidade ser o centro perimetral da região trinacional e elemento unificador da infraestrutura urbana da fronteira, observamos uma cidade que se destaca das demais por sua capacidade de ‘represar’ as diferentes modalidades de turismo que existem na região trinacional. Por outro lado, a justificativa da necessidade deste empreendimento mantém uma forte relação com o capitalismo digital e seus efeitos sociais, dado que junto da economia digital 2.0 inauguram-se diferentes possibilidades para as transações digitais no território nacional que permitem um monitoramento eficiente e individualizado sobre o consumo. Diferentemente da economia do papel, a digitalização das transações financeiras, a compra obrigatória com documento pessoal (CPF, passaporte, documento de identidade) e o uso de cartões torna mais interessante deslocar o centro comercial para a cidade brasileira por duas razões principais: de um lado, a possibilidade de diversificação e potencialização do consumo turístico na cidade (devido ao acúmulo de dados e informações) e, de outro, a possibilidade de vigilância e monitoramento da população local e circulante. Assim, temos como resultado um processo dialético ligado a flexibilização e o enrijecimento das

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políticas fiscais, comerciais e aduaneiras, que junto das novas relações comerciais na fronteira trinacional contribuem para o desencanto da “fábula” proporcionada pelas relações transfronteiriça entre os três países do MERCOSUL.

5. Considerações finais “(...) Si el pasado no tiene nada que decir al presente, la historia puede quedarse dormida, sin molestar, en el ropero donde el sistema guarda sus viejos disfraces. El sistema nos vacía la memoria, o nos llena la memoria de basura, y así nos enseña a repetir la historia en lugar de hacerla”. Divórcios, El libro de los abrazos, Eduardo Galeano (1992). A pandemia do novo coronavírus, mais do que gerar uma “nova realidade”, evidenciou e acelerou os processos relacionados a digitalização do capital com entrada na mundialização da cultura que estavam nas sombras do cotidiano do “antigo normal”. Vimos no começo deste trabalho que Beni (2020) sustenta que a crise do novo coronavírus poderia retroceder a economia setorial do turismo em dez anos, por coincidência ou não, período caracterizado pelo crescimento e permeabilização da economia digital na escala global, e no turismo nacional. Ao dimensionar a dependência tecnológica como uma continuidade no modelo produtivo capitalista, vemos que o problema do


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extrativismo se reatualiza na América Latina, impondo severos limites às visões economicistas que tendem a invisibilizar a sociedade e seus conflitos. A nova dimensão da produção e acumulação pelo não-trabalho, diferentemente de capitalizar sobre o ócio ou sobre o tempo livre do trabalho através do consumo e lazer, faz das relações de dados um elemento central e parte estruturante das relações sociais contemporâneas e de produção capitalista no século XXI. A digitalização é uma realidade que ressignifica a culturas, os gostos, hábitos, gestos, práticas, saberes e comportamentos a fim de capitalizar sobre a vida e o cotidiano, convertendo o mundo em mercadoria, algo que também produz novas relações turísticas. As mudanças na planificação turística de Foz do Iguaçu são um exemplo de convergência entre os distintos processos e fenômenos discutidos no trabalho, ligados por um lado à mundialização da cultura e digitalização do capital e, por outro, à efetivação do poder do Estado e reafirmação do papel das transnacionais. Dado que ainda é cedo para realizar conclusões, pois a pandemia continua em transcurso, nossas últimas considerações buscam abrir caminho a novas interrogantes baseadas naquilo que podemos analisar objetivamente. Neste sentido é que nos perguntamos se o desencanto provocado pelo fechamento das fronteiras será apenas um momento ou irá perpetuar-se de forma mascarada através do protagonismo da cidade brasileira em relação às cidades vizinhas.

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Por enquanto, a políticas efetivação do turismo comercial ou de compras é um fato que não podemos diminuir em importância, assim como as novas regras para funcionamento da atividade turística durante e após pandemia, que prescindem do máximo controle dos governos locais e nacionais, tanto na fronteira quanto sobre os sujeitos que circulam nesta realidade. Reconhecer estas 'novas relações’ de produção e dominação, transforma-se em parte do desafio presente em um “mundo que se modifica radicalmente, cabendo a nós intelectuais, procurar decifrá-lo, mesmo sabendo de nossa condição fragilizada em relação a este quadro abrangente”[7]. Entender a dinâmica da mudança e transformação da realidade não nos exime da necessidade de detectar a estrutura invariante que demarca uma continuidade diante da realidade que está em movimento. As plataformas digitais, que são também estruturantes do cotidiano social, reproduzem uma “velha estrutura” que ganha nova roupagem em forma de sedução pelo tecnoptimismo e dominação através da alienação e exploração. Marx em sua célebre frase define “las tragedias se repiten como farsas”, Eduardo Galeano escancara a

[1] Renato Ortiz (1994) na apresentação do livro Mundialização e Cultura, ao referir-se à globalização como abordagem de pesquisa nas ciências sociais na década de noventa.


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realidade dependente e colonialista do continente ao reconhecer: “entre nosotros, es peor: las tragedias se repiten como tragedias" (GALEANO 1989). Mediar e problematizar teoricamente ambas dimensões, de maneira relacional, é uma tarefa indispensável e o desafio a se realizar desde a academia.

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COVID-19, PROTEÇÃO SOCIAL E DESENVOLVIMENTO ANNA PAULA PINHEIRO DOS SANTOS (1) RAPHAEL LOBO DUARTE BATISTA TEIXEIRA (2)

Abstract COVID-19, SOCIAL DEVELOPMENT

Resumo O objetivo do presente artigo é fazer uma análise histórica das funções do Estado, visando a compreensão do papel do Estado brasileiro devido à retomada de políticas neoliberais, como o ataque ao Estado de bemestar social em um cenário de pandemia do Covid-19 que revela o potencial e as fragilidades do sistema de saúde público brasileiro. Palavras-chave: História Econômica - Proteção social SUS - Neoliberalismo - Covid-19.

PROTECTION

AND

The objective of this article is to make a historical analysis of the functions of the State, aiming at understanding the role of the Brazilian State due to the resumption of neoliberal policies such as the attack on the welfare state, in a scenario of the pandemic of the Covid-19 that reveals the potential and weaknesses of the Brazilian public health system. Keywords: Economic history - Social protection SUS - Neoliberalism - Covid-19

(1)

Discente

Federal

do

da

curso

de

Integração

Ciências Latino

Econômicas Americana

app.santos.2017@aluno.unila.edu.br. ORCID: 0003-1929-7118.

(2)

Graduado

em

da

Universidade

(UNILA).

E-mail:

https://orcid.org/0000-

Ciências

Contábeis

pela

Universidade da Amazônia (UNAMA). Mestre em pós-graduação em Integração

Contemporânea

da

América

Latina

(PPGICAL/UNILA).

Também possui graduação em Ciências Econômicas pela UNILA. mail: raphael.teixeira@aluno.unila.edu.br.

E-


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Além da conjuntura liberalizante em curso, dos problemas relacionados ao gasto público social nos governos neoliberais e da política econômica que reforça a dependência da pauta exportadora brasileira, surgem os desafios da pandemia do Covid-19 revelando a competência e as fragilidades do sistema de saúde público brasileiro e as consequências de uma política que desmoraliza o Estado de bem-estar social para a população. Por isso será feita uma análise das funções desempenhadas pelo Estado de acordo com cada contexto histórico para o entendimento da necessidade do ente governamental em uma situação de crise sanitária, política e econômica, como o atual, destacando a importância do financiamento estatal para o Sistema Único de Saúde, o SUS. Considerando que a economia brasileira já encontrava-se em recessão antes do início da pandemia e a gravidade do impacto do novo coronavírus no Brasil, a retomada de políticas neoliberais aspirando recuperação econômica implica a retomada de uma agenda liberalizante, privatizante e desregulamentadora que, como nos anos 90, busca abrir caminho para as práticas de livre mercado, o que resultou na especialização regressiva da economia brasileira, expressa pelo predomínio das exportações de produtos primários em detrimento de um Estado desenvolvimentista que preza pela inovação e competitividade da indústria nacional. No Brasil, essa retomada neoliberal foi iniciada com Michel Temer (PMDB) e acentuada pelo governo de Jair Bolsonaro

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(sem partido), com o ministro Paulo Guedes e até o presente momento o que ocorre é a tentativa de desmonte da estrutura pública e do planejamento estatal através do sucateamento dos sistemas consolidados. No governo interino de Temer Golpista (PMDB), a primeira medida adotada pela via fiscal foi o congelamento dos gastos públicos por 20 anos por meio da Emenda Constitucional 95/2016, o que significa que, pelo menos durante os próximos 20 anos será baixo o investimento social, o que pode comprometer a ação do sistema público de saúde a longo prazo. Diante da pandemia do coronavírus, o Conselho Nacional de Saúde (CNS) reivindica a revogação da Emenda, sob o argumento de que: “Em meio a um cenário emergencial, alertado inclusive pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como “pandemia mundial”, é urgente que Supremo Tribunal Federal (STF) declare qualquer medida que retira dinheiro da Saúde como inconstitucional” (CNS, 2020).

Outro episódio de ataque ao sistema de saúde público brasileiro foi através das declarações insinuantes do Presidente Jair Bolsonaro (sem partido) sobre os profissionais cubanos que atuavam no programa “Mais Médicos” levando acompanhamento médico a regiões vulneráveis. As declarações resultaram no rompimento do acordo de cooperação por parte de Cuba e na saída desses profissionais de suas funções, mas, “devido à dificuldade da fixação de médicos em regiões de difícil acesso e extrema pobreza”, os médicos cubanos voltaram a atuar no país” (EL PAÍS, 2020).


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Sendo assim, a retomada pela via neoliberal além de prolongar o desadensamento da estrutura produtiva brasileira ao priorizar a retomada econômica pela agropecuária voltada à exportação, também implica na desvalorização e na falta de investimento nos sistemas de proteção social consolidados, como o Sistema Único de Saúde (SUS), conjunturas que oportunizam argumentos de excessos na política fiscal e ineficiência do sistema, viabilizando a privatização dos serviços públicos. Na primeira seção será feita uma trajetória cronológica das funções do Estado, de acordo com a teoria econômica dominante - clássicos, marxista, keynesianos, neoclássicos - desenvolvida em cada momento histórico, desde sua formação na acumulação primitiva até os tempos atuais, destacando sua atuação em grandes projetos de desenvolvimento e crescimento econômico e posteriormente, em uma conjuntura de capitalismo predatório, seu papel na redução das desigualdades próprias de um sistema assimétrico, considerando a concepção da visão marxista que o Estado surgiu para perpetuação da classe dominante como tal, principalmente na periferia do sistema capitalista, visando o entendimento das dificuldades de atuação do Estado na dinâmica socioeconômica do Brasil. Baseado no debate sobre as funções do Estado, na segunda seção será abordada a atuação e importância do sistema de saúde público brasileiro, o SUS, no combate ao coronavírus e na oferta de saúde básica considerando a onda privatizante nos governos neoliberais. Será tratada a

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problemática da retomada neoliberal no Brasil com o Presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e o desempenho do governo na busca por soluções coordenadas para o controle da pandemia, além da problemática em relação a inserção subordinada do Brasil no comércio internacional e a questão da soberania nacional no desenvolvimento de um país que está mergulhado em uma recessão econômica desde 2015. Finalizaremos com as considerações finais sobre a atuação do Estado brasileiro na pandemia e as dificuldades na trajetória da recuperação socioeconômica brasileira que já vinha passando por uma crise econômica, política e social com a maior taxa de desemprego da história, considerando o atual governo e o direcionamento dado à política econômica.

Funções do Estado Segundo Oliveira (2007), “O Estado cumpre na sociedade, desde a sua origem, determinados papéis que variam em função de sua inserção na realidade históricoconcreta” (OLIVEIRA, 2007, p.13), com essa contribuição a respeito das funções do Estado e considerando a inserção atrasada da América Latina, especialmente do Brasil no sistema capitalista de produção, será possível compreender a necessidade de um Estado que priorize a proteção social e a estrutura de demanda nacional, oferecendo as condições básicas de produção e reprodução para a população. Sendo assim, a atuação do Estado em cada fase do desenvolvimento capitalista vai responder à


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política adotada pelo governo para gerir a máquina pública de acordo com o contexto sócio-econômico protagonizado. Na fase de gestação do Estado Moderno, dado o modo de produção que estava sendo formado com as relações comerciais do Mercantilismo (03), primeira expressão da acumulação primitiva, o órgão centralizador tinha importante função coercitiva e atuação absoluta na economia e na sociedade - daí a existência de governos absolutistas - devido à realidade da época em relação a disputa por território. O aparelho institucional ainda era pouco desenvolvido pois estava em sua fase inicial, suas ações corresponderam a acumulação de metais preciosos e coerção para obtenção de riqueza e consequentemente, poder. Essa etapa inicial da formação estatal segundo Oliveira (2007), aconteceu com a aliança entre a burguesia comercial e o Estado, revelando a origem dessa relação que também é tratada em Mandel (1977) e Oliveira (2003). Após um longo período de formação e expansão do Estado capitalista, num dado momento de avanço das forças produtivas iniciou-se um período de ruptura com os padrões da antiga e fechada organização estatal, para dar lugar a um Estado mais aberto às relações comerciais, porém, sem participação ativa na economia. Isto porque,

(03) “[...] dado o predomínio do capital mercantil sobre o capital industrial” (OLIVEIRA, 2007, p.15).

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a burguesia comercial que viabilizou a centralização do Estado e impulsionou a I Revolução Industrial desejava escoar sua produção para o exterior, o que levou a formulação da teoria liberal clássica que prega a liberdade econômica, abertura das fronteiras comerciais e a livre concorrência protagonizada por pensadores como Adam Smith e David Ricardo que desenvolveram teorias sobre o comércio entre as nações no século XVIII. A ideia era que, sem a intervenção do Estado na economia o mercado seria auto regulado através da livre concorrência, mas percebe-se que assim seria inviável o fornecimento de certos tipos de bens (04) essenciais para toda a população, cabendo ao Estado uma função complementar na atividade econômica, atuando somente na promoção de bens essenciais à reprodução social, algo que não é convidativo ao mercado capitalista. “E, como se considerava o Estado uma força externa, à medida que este não surgira com a sociedade, mas em determinado estágio de seu desenvolvimento, sua presença na vida econômica era vista como uma barreira que impedia a sociedade de alcançar essa eficiência” (OLIVEIRA, 2007, p.20).

No século seguinte, com o desenvolvimento do sistema, o pensamento crítico marxista ampliou a análise e deu maior atenção ao caráter burguês do Estado, evidenciado pelo

(04) “Os chamados bens públicos, por exemplo: “[...] defesa e segurança públicas, iluminação de ruas e avenidas, proteção ambiental, etc” (OLIVEIRA, 2007, p.20).


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domínio da classe burguesa em relação ao Estado Moderno capitalista e a necessidade de perpetuação dessa dominância para beneficiar a burguesia, traduzido por exemplo pela ocupação de cargos públicos ou pelo direcionamento das políticas econômicas e sociais. Na obra “Teoria marxista do Estado” o economista Ernest Mandel aborda a relação de dominância que a burguesia nacional exerce sobre o Estado e como esta instituição existe para perpetuar a dominância social desta classe, segundo Mandel: “Mas logo que a divisão social do trabalho se desenvolve e a sociedade se divide em classes, aparece o Estado e é definida a sua natureza: aos membros da sociedade como um todo, é negado o exercício de um certo número de funções; só uma pequena minoria toma o exercício dessas funções” (MANDEL, 1977, p.11).

O autor entende que a formação do Estado Moderno só foi possível com a divisão social do trabalho e a estruturação da sociedade de classes, e argumenta que o Estado por si só é uma entidade burguesa a partir do momento que restringia a uma parte da população burguesia - o exercício de atividades da nação e impôs à outra parcela da população a condição de subjugado, fato que atende aos interesses burgueses. Fazendo um link entre as contribuições de Oliveira e de Mandel sobre a consolidação do Estado capitalista, o fornecimento de bens públicos compreendido por Oliveira como função do Estado por ser uma incapacidade do mercado, é tratado em Mandel como atividades anteriormente coletivas e que

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foram centralizadas e restringidas pela existência de uma sociedade de classes, é com essa centralização de atividades que o Estado adquire poder e são estes instrumentos utilizados indiretamente pela burguesia para perpetuar a dominância. Em relação ao Estado, a teoria marxista entende que nasceu com a sociedade de classes para perpetuar a classe dominante, e seu fim ocorrerá quando finalizar essa ordem classista. Considerando a configuração da pirâmide social e a dificuldade de mobilidade social da época, para o marxismo neste período, a luta de classes era o instrumento capaz de abalar as estruturas dominantes. Até esta etapa do desenvolvimento estatal os eventos ocorreram nas regiões de desenvolvimento originário e em alguns países em desenvolvimento atrasado, quando a noção de Estado Moderno e liberal chegou nas economias da América Latina foi representado pela metrópole, através da colonização causada pelo desejo de expansão econômica e territorial daqueles. Este Estado refletiu uma combinação do desejo de acumulação do liberalismo e a brutalidade do Estado absolutista, possibilitado respectivamente pela aliança entre a metrópole e a burguesia (5) comercial e pela dizimação da população nativa. Com o desenvolvimento das atividades econômica, política e institucional das colônias ocorrem

(5) Composta pelos imigrantes europeus já que a organização social das colônias não era como a das metrópoles configuradas pela sociedade de classes.


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os processos de independência e a história da massa social das nações da América Latina passa a ser a luta por direitos, haja visto os privilégios da burguesia nacional que também exerceu controle indireto sobre o Estado através da influência projetada sobre seus próprios interesses - a predominância da atividade econômica agrário exportadora beneficiou os grandes latifundiários que concentravam sua produção para a exportação prorrogando a possibilidade da sociedade industrial e a escravidão foi fonte de lucro da burguesia comercial, fato que produz impactos sociais no país que são sentidos até os tempos atuais. Até o século XX a noção geral que se tinha do Estado capitalista era marcada pelo liberalismo clássico, figurando uma instituição complementar na atividade econômica, o que esclarece o predomínio dessa corrente nos segmentos populares. Até que os eventos mundiais levam a necessidade de pensar formas alternativas de atuação estatal para o contínuo desenvolvimento do sistema e: “a monopolização crescente do capital, que teve início na última quadra do século XIX, colocou a necessidade cada vez maior da intervenção do Estado nesse processo” (OLIVEIRA, 2007, p.23). Nessa etapa de desenvolvimento do capitalismo é evidente como o sistema expandiu e aglutinou outras nações que se industrializaram de forma atrasada, viabilizada pela II Revolução Industrial. A presença do Estado nessa fase como dinamizador da industrialização atrasada é crucial, já que ocorre uma

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desvantagem em relação à pioneira na atividade industrial - Inglaterra - além da industrialização, a presença do Estado foi necessária devido aos conflitos gerados mundialmente pela expansão do sistema. Vale ressaltar que neste período, as nações da América Latina não estavam inseridas nesses processos de revoluções industrial e tecnológicas, devido aos diversos fatores impostos a sua organização socioeconômica que retardaram estes processos colonização, escravidão, oligarquias - que não possibilitaram esse desenvolvimento. A teoria que pregou maior intervenção do Estado na economia foi desenvolvida principalmente pelo economista John Maynard Keynes como forma de sustentar o sistema capitalista em iminente colapso devido aos efeitos sentidos mundialmente pela crise de 1929, o que o livre mercado não foi capaz de impedir, nem amenizar. Keynes refutou as teorias concorrenciais de oferta desenvolvidas pelos economistas clássicos e apoiou-se nos mecanismos de demanda, tendo o Estado como articulador, para explicar “a importância dos investimentos públicos para atenuar as flutuações cíclicas do capitalismo e para viabilizar uma política de pleno emprego” (OLIVEIRA, 2007, p.25). Atribuindo ao Estado o papel de estabilizador da atividade econômica e de atenuante das desigualdades sociais, através do fornecimento de bens essenciais para a vida humana, que uma parcela da população não tem condições de adquirir - e que mais tarde serão encarados como direitos básicos - e assim, garantindo o funcionamento do


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os processos de independência e a história da massa social das nações da América Latina passa a ser a luta por direitos, haja visto os privilégios da burguesia nacional que também exerceu controle indireto sobre o Estado através da influência projetada sobre seus próprios interesses - a predominância da atividade econômica agrário exportadora beneficiou os grandes latifundiários que concentravam sua produção para a exportação prorrogando a possibilidade da sociedade industrial e a escravidão foi fonte de lucro da burguesia comercial, fato que produz impactos sociais no país que são sentidos até os tempos atuais. Até o século XX a noção geral que se tinha do Estado capitalista era marcada pelo liberalismo clássico, figurando uma instituição complementar na atividade econômica, o que esclarece o predomínio dessa corrente nos segmentos populares. Até que os eventos mundiais levam a necessidade de pensar formas alternativas de atuação estatal para o contínuo desenvolvimento do sistema e: “a monopolização crescente do capital, que teve início na última quadra do século XIX, colocou a necessidade cada vez maior da intervenção do Estado nesse processo” (OLIVEIRA, 2007, p.23). Nessa etapa de desenvolvimento do capitalismo é evidente como o sistema expandiu e aglutinou outras nações que se industrializaram de forma atrasada (6), viabilizada pela II Revolução (6) Para o entendimento dos processos de industrializações originárias, atrasadas e tardias, ver o livro “Processos de Industrialização” de Carlos Alonso Barbosa de Oliveira (2003).

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Industrial. A presença do Estado nessa fase como dinamizador da industrialização atrasada é crucial, já que ocorre uma desvantagem em relação à pioneira na atividade industrial - Inglaterra - além da industrialização, a presença do Estado foi necessária devido aos conflitos gerados mundialmente pela expansão do sistema. Vale ressaltar que neste período, as nações da América Latina não estavam inseridas nesses processos de revoluções industrial e tecnológicas, devido aos diversos fatores impostos a sua organização socioeconômica que retardaram estes processos colonização, escravidão, oligarquias - que não possibilitaram esse desenvolvimento. A teoria que pregou maior intervenção do Estado na economia foi desenvolvida principalmente pelo economista John Maynard Keynes como forma de sustentar o sistema capitalista em iminente colapso devido aos efeitos sentidos mundialmente pela crise de 1929, o que o livre mercado não foi capaz de impedir, nem amenizar. Keynes refutou as teorias concorrenciais de oferta desenvolvidas pelos economistas clássicos e apoiou-se nos mecanismos de demanda, tendo o Estado como articulador, para explicar “a importância dos investimentos públicos para atenuar as flutuações cíclicas do capitalismo e para viabilizar uma política de pleno emprego” (OLIVEIRA, 2007, p.25). Atribuindo ao Estado o papel de estabilizador da atividade econômica e de atenuante das desigualdades sociais, através do fornecimento de bens essenciais para a vida humana, que uma parcela da população não


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tem condições de adquirir - e que mais tarde serão encarados como direitos básicos - e assim, garantindo o funcionamento do sistema, “[...] serviços de saúde, educação, saneamento, por exemplo. Sua importância para a sociedade [...] bem como a necessidade de se garantir o acesso ao seu consumo aos cidadãos que não dispõem de poder de compra para adquiri-los, aumentou consideravelmente a sua provisão pelo Estado, especialmente a partir das idéias keynesianas e da importância assumida por políticas redistributivas com a constituição do welfare state” (OLIVEIRA, 2007, p.26).

Keynes reconhece com essas contribuições que a extrema pobreza não é benéfica para o bom funcionamento do sistema capitalista, por isso aponta em uma situação de crise econômica, o Estado como articulador da estabilidade e da redução das desigualdades através do fortalecimento de uma boa estrutura de demanda, dando as condições para a inclusão da população na geração de renda e no consumo, e assim levando a cimentação do Estado que promove o bemestar social. O século XX foi marcado por diversos acontecimentos, entre eles crise do sistema em 1929, imperialismo e disputa hegemônica, que acarretaram em duas guerras mundiais, tentativa de implementação do comunismo desencadeando as corridas espacial e armamentista, e como consequência economias e territórios devastados, situações de crise que precisaram de Estados nacionais protecionistas e participativos, tanto nas economias

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desenvolvidas quanto nas economias de desenvolvimento atrasado e tardio. Neste período, principalmente os Estado Unidos utilizaram de um Estado protecionista tanto para a recuperação pós crise de 29 quanto para viabilizar planos de ajuda econômica aos países devastados pelas guerras e como consequência, ascenderam a uma posição hegemônica no cenário internacional. Os processos de industrializações tardias das economias da América Latina tiveram alguma influência externa keynesiana e um importante respaldo nas teorias industrializantes da CEPAL. No Brasil, até a completa estruturação do planejamento estatal o que ocorreu foi a execução fragmentada/regionalizada da política econômica, focada no escoamento da produção de café dos grandes latifundiários que desenvolveu a malha ferroviária regional e pequenas manufaturas. O rompimento com as oligarquias regionais viabilizou a estruturação institucional e burocrática do aparelho estatal (8), levando aos primeiros passos da industrialização brasileira no final da década de 30, proporcionada pela economia do café (9), voltada ao seu escoamento e fonte de divisas para (7) A principal política adotada pelo governo norteamericano foi o New Deal que abriu caminho para a participação ativa do Estado na recuperação econômica e que será o alvo de críticas dos neoliberais em ascensão. (8) Importante ressaltar que a queda da demanda mundial por produtos primários devido a crise de 1929 e todo o contexto externo conturbado também estimularam o desenvolvimento industrial brasileiro. (9) A política de queima do café promovida pelo governo Vargas num cenário de baixa demanda figura política protecionista de controle de preços; em 1937 foram impostas barreiras à importação de certos produtos para estimular à produção interna.


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aquisição de máquinas e equipamentos que foram utilizadas na industrialização pesada em 1950, no período militar e nos anos 80, protagonizadas pelo Estado desenvolvimentista em meio a crise externa do capitalismo monopolista e diferente do ocorrido nos países de industrialização originária e atrasada. A consolidação plena da industrialização brasileira industrialização tardia - ocorreu num momento em que os países desenvolvidos caminhavam para a III Revolução Industrial, figurando um grande atraso das forças produtivas, considerando que neste período priorizou-se o crescimento e não a estabilidade econômica, todo este cenário de industrialização de forma muito acelerada vai implicar numa série de problemas para o Estado brasileiro a partir dos anos 80 e 90, como a crise da dívida, quando emerge o pensamento neoliberal (HENRIQUE, 1999). Posteriormente será tratado como a necessidade de um gasto público elevado para concretização do projeto industrial brasileiro contribuiu para o discurso neoliberal dos anos 90 acerca da ineficiência do Estado na América Latina devido à crise da dívida dos anos 80. No final do século XX, após a reestruturação das nações envolvidas em conflitos e a consolidação da hegemonia internacional norte americana frente ao comunismo, havia uma forte necessidade da nação hegemônica em repudiar qualquer iniciativa comunista e aliada ao rechaço ao intervencionismo keynesiano, formou-se espaço para exaltar a liberdade dos mecanismos de mercado e

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sustentar a redução da participação do Estado na economia, ascendendo o pensamento neoliberal, através de autores como Friedman e principalmente Hayek. Segundo Perry Anderson (1995), para Hayek a intervenção do Estado visando o “igualitarismo” tira a liberdade dos indivíduos e a “vitalidade da concorrência”, que são fontes de prosperidade para o capitalismo no pensamento liberal e que as desigualdades insustentáveis e que deveriam ser amenizadas pelo Estado no pensamento keynesiano - eram naturais do sistema, eram saudáveis e até necessárias (ANDERSON, 1995). O pensamento neoliberal foi ganhando força nos EUA e na Europa até que sua influência foi sendo disseminada num contexto de globalização econômica, o que não impediu também a contínua adoção de medidas keynesianas pelos diversos governos do mundo. Sendo assim, o pensamento neoliberal ganhou força nos países centrais, sobretudo nos EUA (10) e Europa e sua influência foi projetada na América Latina por meio do Consenso de Washington. Num contexto internacional de maior mobilidade de capitais com a financeirização, redução da participação do Estado, desregulamentações e privatizações, a reunião do Consenso de Washington procurava explicações e soluções para a crise que assolou a América

(10) Perry Anderson (1995) chama atenção para a adoção de políticas keynesianas em meio a corrida armamentista no mesmo momento em que são ditadas diversas receitas neoliberais, ver p.12.


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Latina nos anos 80 - crise que levou a interrupção da industrialização brasileira e ao elevado déficit público. Segundo Bresser Pereira (1991), a abordagem do Consenso em relação aos problemas da América Latina rondava em torno do crescimento excessivo do Estado e das políticas populistas, culminando no receituário neoliberal dos anos 90 para recuperação econômica: “A partir dessa avaliação, as reformas no curto prazo deveriam combater o populismo econômico e lograr o equilíbrio fiscal e a estabilização. A médio prazo ou estruturalmente a receita é adotar uma estratégia de crescimento market oriented ou seja, uma estratégia baseada na redução do tamanho do Estado, na liberalização do comércio internacional e na promoção das exportações” (BRESSER PEREIRA, 1991, p.6).

O autor conclui afirmando que “a abordagem de Washington sugere que é suficiente estabilizar a economia, liberalizá-la e privatizá-la, para que o país retome o desenvolvimento. As evidências, entretanto, não comprovam a hipótese” (BRESSER, 1991, p.7). Sendo assim, nos anos 90 com a adoção da agenda neoliberal, o Brasil assistiu ao início de uma série de privatizações de empresas estatais consolidadas durante a industrialização sob o pretexto de pagamento da dívida pública, a queda do investimento industrial levando a estagnação econômica e a aposta na agropecuária voltada à exportação, a presença expressiva do capital internacional privado com as multinacionais estrangeiras dominando a esfera produtiva e a financeira, o distanciamento das políticas sociais e o aumento da desigualdade elevando índices de pobreza, medidas que

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conforme indicado por Bresser (1995), não surtiram os efeitos de crescimento prometidos. A adoção destas medidas reforçou a concorrência desigual no âmbito do comércio internacional e a inserção dependente do Brasil na Divisão Internacional do Trabalho (DIT). O desaparelhamento e abandono do Estado desenvolvimentista e a adoção da estratégia de especialização regressiva implicaram na reprimarização da economia no longo prazo, principalmente considerando que a partir de meados de 2003 o cenário externo de industrialização também tardia e o processo de urbanização do Leste Asiático, principalmente da China que se tornou a maior parceira da América Latina no início do século XXI, produziu uma demanda elevada por produtos primários elevando as exportações de commodities brasileiras em quantidade e preço, mais um fator que implica no abandono de uma estratégia industrializante, já que a melhora nos termos de intercâmbio foi um estímulo à importação de manufaturados (SOUEN, 2018). O Estado brasileiro atuou com uma política fiscal expansionista e considerando o nível de desigualdade interna da economia brasileira, neste período a ampliação de políticas sociais rondavam em torno de amenizar as desigualdades, combate à pobreza e a consolidação de um mercado de consumo de massas através da estratégia redistributiva, com a atuação de programas sociais governamentais.


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No entanto, em 2008 ocorreu a segunda grande crise financeira do capitalismo que impôs uma trajetória de queda nos índices de atividade econômica brasileira, a queda da demanda mundial por commodities em um cenário de baixa atividade industrial implicou a necessidade de retomada da intervenção do Estado para sustentação do sistema. De acordo com Bresser Pereira (2009) a contenção da crise por parte dos governos se deu de forma rápida devido ao conhecimento prévio do receituário keynesiano de proteção econômica, diferente do ocorrido em 1929. O autor também chama atenção para a desproteção financeira ocorrida com a desregulamentação provocada pelo neoliberalismo nos anos 90 e a confiança na livre ação dos mercados em detrimento da proteção estatal, real sustentador da crise, para o autor: “[...] agora, quando vemos o Estado surgir em cada país como a única tábua de salvação, como o único possível porto seguro, fica evidente o absurdo da oposição entre mercado e Estado proposta pelos neoliberais e neoclássicos [...] O Estado é muito maior do que o mercado [...] Cabe ao Estado regular e garantir o mercado e, como vemos agora, servir de emprestador de última instância” (BRESSER PEREIRA, 2009, p.134).

Sendo assim, o Estado vem atuando para “regular e garantir o mercado”, mas na América Latina é imprescindível sua atuação integrada para redução das desigualdades na região. Na segunda década do século XXI, ocorreu uma onda de protestos na América Latina, devido à insatisfação popular com medidas econômicas que não beneficiam a população e cenários políticos conturbados.

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No caso do Chile por exemplo, maior modelo de enraizamento neoliberal dos anos 90, manifestantes foram às ruas reclamar “o fracasso do sistema privado de aposentadoria, a mercantilização da saúde e da educação o custo de vida, e as dificuldades impostas pelo neoliberalismo” (EL PAÍS, 2019). Na Bolívia de Evo Morales a batalha da elite contra a permanência do líder no país terminou com a ascensão de governantes da direita conservadora, por outro lado, na Argentina após a eleição de Macri e a grave crise econômica que abateu o país, voltam os governantes progressistas representados por Alberto Fernández e Cristina Kirchner. No Brasil, os indicadores econômicos já vinham apresentando resultados negativos desde 2013 quando desencadeou uma série de protestos populares em relação ao aumento no valor da passagem do transporte público em São Paulo, ao passo que efetuavam-se grandes investimentos públicos para a Copa do Mundo de 2014, que levou à expansão de movimentos como o “Passe Livre” e o “#NãoVaiTerCopa”. Em 2015 ocorreu o agravamento da situação econômica resultando na maior recessão já enfrentada pelo país que levou ao impeachment da Presidenta Dilma Rousseff (PT) em 2016, e a ocupação interina da presidência pelo vice Michel Temer (PMDB) que de pronto anunciou uma série de medidas de recuperação econômica que caminharam para uma guinada neoliberal.


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Tomando como base as contribuições de Teixeira, Dweck e Chernavsky (2018) sobre a política fiscal e fazendo um paralelo com a ascensão de um projeto ultraliberal no Brasil, os autores apontam o alcance do mainstream acadêmico contrário à expansão fiscal apontada por essa corrente como causa da recessão. O mainstream criminalizou as políticas fiscais expansionistas adotadas pelos governos petistas e colocou em pauta novamente o discurso da ineficiência estatal. Os autores afirmam que o uso da política fiscal como dinamizadora de uma estratégia de demanda mais forte durante o governo Lula - que possibilitou o avanço da estrutura social - e a austeridade protagonizada pelo governo Dilma não foram as únicas causadoras da crise econômica e do impeachment (TEIXEIRA, DWECK & CHERNAVSKY, 2018), revelando o caráter estrategista e político dos fatos. A questão do uso da política fiscal como dinamizadora de projetos de crescimento atrelado ao discurso da eficiência ou não do Estado é alvo de muitos debates na América Latina, no Brasil especialmente desde a industrialização brasileira que implicou em uma elevada dívida pública. Os autores apontam que a política de Dilma Rousseff (PT) foi de encontro com a redução das receitas principalmente desonerações fiscais visando o aumento do investimento privado - e não aumento do gasto público, sendo insustentável o argumento de crise fiscal, conforme Teixeira, Dweck e Chernavsky (2018): “colocar a culpa da crise no aumento

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de gastos públicos é atentar contra os dados. E apontar como solução para a crise a contenção dos gastos públicos no momento de contração cíclica é altamente questionável, para não dizer irresponsável” (TEIXEIRA, DWECK & CHERNAVSKY, 2018, p.9).A posse de Temer Golpista (PMDB) desencadeou uma série de medidas de recuperação econômica que rondavam em torno justamente do contingenciamento de gastos públicos visando o retorno da confiança dos agentes privados em um cenário de recessão econômica, o que não ocorreu como pode ser evidenciado pelo contínuo aumento da taxa de desemprego no país. A urgência na aprovação da EC 95/2016 só confirma a criminalização política do uso dos instrumentos fiscais pelo governo para promoção de crescimento econômico e desconcentração de renda. “Ao impor limites constitucionais à política fiscal, eliminase o principal mecanismo de distribuição de renda antes a disposição do Estado. Isto porque como no Brasil a arrecadação do governo ainda é fortemente concentrada em impostos indiretos e, portanto, muito regressiva. Todo o efeito distributivo da política fiscal fica por conta da política de gastos públicos” (TEIXEIRA, DWECK & CHERNAVSKY, 2018, p.22).

A eleição do Presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e os anseios liberais do ministro da economia Paulo Guedes, seguem caminhando para o contingenciamento dos gastos e redução da participação do Estado na economia, contando com o apoio político das mesmas elites capitalistas que viabilizaram o processo de impeachment para a aprovação de uma série de reformas


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liberalizantes e conservadoras. Medidas como a reforma da previdência pela capitalização, a defesa de um valor máximo para o gasto social, a ânsia pelas privatizações e a banalização do Estado de bem estar social, retomam o discurso dos anos 90 e distanciam políticas de proteção social, revelando um possível cenário de caos social no longo prazo, considerando a atual situação econômica do Brasil. Por fim, encerrando o debate acerca das funções do Estado na economia, assim como Bresser Pereira (1991), Teixeira, Dweck e Chernavsky (2018) produziram uma síntese referente à condução da política fiscal e atuação do Estado para retomada do crescimento de acordo com as teorias neoclássica e keynesiana. Os autores apontam que a teoria neoclássica aposta na “contração fiscal e na participação restrita do Estado, atuando somente para garantir a estabilidade das principais variáveis macroeconômicas - taxa de juros e inflação” para que os agentes privados se sintam confiantes para investir num ambiente econômico favorável; para a teoria keynesiana, o Estado atua de forma ativa em um cenário de instabilidade econômica visando a criação de demanda através do investimento público para dar suporte aos investimentos privados: “Os gastos públicos têm papel relevante na gestação de um ambiente favorável aos investimentos privados, capaz de sustentar as expectativas dos agentes econômicos e o crescimento. Isto se dá pelo mecanismo do multiplicador keynesiano, pelo qual os aumentos do gasto público trazem uma expansão da demanda agregada em magnitude maior que a dos gastos, o que num contexto de

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existência de fatores de produção ociosos, leva à expansão da atividade econômica” (TEIXEIRA, DWECK & CHERNAVSKY, 2018, p.9).

Sendo assim, em momentos de instabilidade econômica, bem como em grandes projetos de desenvolvimento e para garantia da estabilidade é imprescindível a atuação do Estado aliada ao mercado de forma integrada na economia, pois em um cenário de crise sanitária em meio a uma recessão econômica e instabilidade política como o atual, o mercado não vai reagir de forma autônoma para garantir a reprodução social. Como podemos notar empiricamente, em uma situação de crise o setor privado busca a melhor forma de não sofrer grandes perdas, iniciando as demissões em massa, revelando a necessidade de amparo social que só o Estado vai promover.Considerando a inserção do Brasil - e da América Latina no geral - no processo de globalização dos anos 80 e 90, é necessária a atuação do Estado para conferir proteção social e redução das desigualdades próprias do sistema que resultam na falta de amparo social à população e enfraquecimento das estruturas do país, considerando ainda a caracterização do Estado como instituição que desde o início perpetua a dominação de classe e estratificação social, este ente deve ter responsabilidade com toda a população do país, proporcionando formas dignas de reprodução da vida cotidiana. Porém, reconhecemos que a forma atual do sistema capitalista que figura um modelo predatório resulta em dificuldades para a periferia do


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sistema na competição desigual no âmbito internacional e na consolidação de um projeto de soberania nacional.

SUS e o caso brasileiro Feita a discussão a respeito das funções do Estado e tendo concluído que, no Brasil, assim como na América Latina de modo geral, a instituição tem também o importante papel de promover a proteção social de todos os cidadãos devido ao modo de inserção destes países no capitalismo assimétrico mundial, consideremos a criação do sistema de saúde público brasileiro, o Sistema Único de Saúde (SUS), pela Constituição de 1988 para cumprir o fornecimento de um direito básico que é o acesso à saúde. O SUS emerge como uma importante política pública de inclusão social regional a partir de sua atuação de alcance universal e como uma importante peça do desenvolvimento nacional, considerando sua importância para o bem-estar social e para a capacidade produtiva da economia. Devido à especificidade e importância do SUS e a fragilidade da estrutura tecnológica produtiva da região da América Latina, autores como Gadelha e Temporão (2018) e Leão e Giesteira (2020) enfatizam a importância do investimento em capacidade produtiva no campo da saúde no Brasil devido à debilidade tecnológica identificada na estrutura produtiva nacional decorrente do processo de especialização regressiva que passou a economia, tendo em vista o fortalecimento e autonomia do sistema, acompanhado da chance de redução das importações destes

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equipamentos dando lugar a produção e inovação nacional, segundo Leão e Giesteira (2020): “O Sistema Único de Saúde (SUS), um dos maiores sistemas públicos de saúde do mundo, vê-se subitamente fragilizado porque o país não conta com uma base produtiva e tecnológica suficientemente diversificada” (LEÃO & GIESTEIRA, 2020, p. 29).

Mesmo que alta, a gravidade do coronavírus no Brasil poderia ser ainda maior e mais desastrosa para a população se não fosse pela existência do SUS, em paralelo, os efeitos poderiam ser minimizados se o SUS estivesse operando mais próximo de sua máxima capacidade. Destacando aqui, a adoção da EC 95/2016 que implicou na redução do financiamento necessário para a plena atuação do SUS durante e pós pandemia e a debilidade tecnológica da estrutura produtiva do Brasil na área da saúde que resulta em importações de produtos médicos e hospitalares que poderiam estar sendo produzidos internamente, dado o teor do sistema de saúde existente no país. A retomada de políticas neoliberais no Brasil com o Presidente Jair Bolsonaro (sem partido) além de implicar em desamparo social, também resulta na falta de desenvolvimento de Ciência e Tecnologia importantes para grandes projetos tecnológicos na área da saúde. No início de seu mandato o Presidente proferiu uma série de ataques às universidades públicas brasileiras, fonte de desenvolvimento de inovações tecnológicas no país. A revista CNN chama a atenção para


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o grau de contaminação do Brasil e como o país está servindo como fonte de testes de vacinas, com participação de pesquisas de instituições públicas e privadas brasileiras: “[O Brasil] Tem, de fato, uma combinação incomum e atraente para a pesquisa: uma taxa altíssima de transmissão e, ao mesmo tempo, centros de pesquisa respeitados internacionalmente e um sistema de saúde pública com experiência na criação e distribuição de vacinas” (CNN, 2020).

Por outro lado, a entrevista destaca a falta de articulação da presidência com os centros de pesquisa nacionais, nos momentos que o Presidente subestima o vírus e enquanto os centros especializados seguem na busca pela vacina promovendo intercâmbio de pesquisas, pelo Presidente: “são aguardados os resultados das próprias experiências do governo brasileiro com distribuição em massa de hidroxicloroquina. Os testes médicos não demonstraram a eficácia deste medicamento no tratamento para o novo coronavírus” (CNN, 2020). Mesmo com diversos estudos científicos alertando sobre a ineficácia do remédio para o tratamento do vírus, o Presidente segue recomendando sua ingestão para mitigar os efeitos da doença. Resgatando o debate a respeito das funções do Estado, as instituições de ensino públicas são um meio de desenvolvimento de pesquisa e inovação, que são extremamente relevantes em um cenário como o atual e para o desenvolvimento do país. Instituições como a Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), Universidade de São Paulo (USP), Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) entre outras instituições e universidades públicas e

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para privadas têm atuado arduamente no combate ao coronavírus, seja com pesquisa para o desenvolvimento de vacinas ou por meio da fabricação de equipamentos de proteção - mesmo com as dificuldades relacionadas a falta de articulação do governo federal com as próprias universidades e com os governos estaduais. Sobre as consequências econômicas, a CEPAL tem alertado sobre o impacto negativo do coronavírus nas economias latino-americanas, pois em sua maioria estes países concentram sua pauta exportadora em produtos primários e devido à necessidade de distanciamento social mundial, a diminuição - e em casos extremos a paralisação - da produção leva ao rompimento das cadeias produtivas. A comissão econômica da CEPAL alerta para as consequências econômicas da pandemia na região da América Latina, apontando a necessidade de um novo modelo de desenvolvimento que integre a região e amenize os problemas deixados pela pandemia e possibilite a retomada em conjunto dos países. De acordo com o Relatório da CEPAL sobre o coronavírus, a região da América Latina depende marcadamente de suas exportações e os países que dependem das exportações de primários sentirão maior impacto (CEPAL, 2020). A redução da demanda mundial e consequentemente das exportações da região vai acarretar na queda dos preços de produtos primários, implicando uma redução dos termos de troca da região e uma queda do poder de compra


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estatal para a aquisição de máquinas e equipamentos - quedas além das que já eram observadas antes da crise sanitária. Conforme tratado no início da sessão sobre a questão da fragilidade tecnológica da região e a necessidade de importação dos produtos, o fato de ser dependente de equipamentos hospitalares importados de outros países em meio a uma pandemia é grave, por ser um momento em que todos estão demandando os instrumentos necessários para tratar seus pacientes e assim inicia-se uma corrida de estoques, como foi evidenciado por Leão e Giesteira (2020), “Autoridades sanitárias têm relatado carência de testes, insumos e equipamentos para proteger os profissionais de saúde e atender a crescente população contaminada” (LEÃO & GIESTEIRA, 2020, p. 29). Concluímos salientando que, mesmo antes da pandemia do Covid-19 a América Latina, sobretudo o Brasil já vinha apresentando queda nos indicadores e recessão econômica, com a pandemia a tendência é que ocorra uma piora da situação do país devido também ao aumento acelerado do desemprego, a falência de pequenas empresas e a falta de capacidade do sistema de saúde público de amparo total à população devido ao baixo investimento, aliado a necessidade de focar as ações do SUS na pandemia. Sendo assim e conforme recomendado pela CEPAL, é urgente a adoção de medidas econômicas que visem a proteção social e que resultem efetivamente em recuperação do crescimento econômico.

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Considerações Finais Finalizados os debates teóricos a respeito das funções do Estado sob uma perspectiva histórica, desde sua formação até sua atuação no capitalismo contemporâneo, é possível ter a dimensão da necessidade de atuação e fortalecimento do Estado brasileiro, para cumprir com a responsabilidade de mitigar os efeitos da pandemia do coronavírus e mais do que isso, para a recuperação econômica e superação da situação de dependência. Também foi possível traçar a trajetória, no período recente, das bases de retomada do neoliberalismo, através da questão fiscal e os problemas dessa escolha que preconiza a redução da participação do Estado na economia, em um cenário de crise que eleva a desconfiança dos agentes privados e súplica pela ação do agente sustentador do sistema.Além dos problemas decorrentes da escolha pela via neoliberal, também houve uma busca para evidenciar a importância dos sistemas públicos consolidados, como o Sistema Único de Saúde (SUS) para a população da região da América Latina e principalmente do Brasil, mas também para o potencial do sistema que não está sendo completamente explorado, o que nos leva ao argumento da necessidade de fortalecimento desse sistema para melhora da capacidade produtiva nacional, integração e bem estar social na região. Destacando a importância de desenvolvimento de Ciência e Tecnologia no âmbito nacional tendo em vista o


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aumento do potencial de competição internacional e a credibilidade científica do país que, como evidenciado pela CEPAL (2020), necessita de um novo modelo de desenvolvimento direcionado realmente para as problemáticas e potenciais da região, um desenvolvimento insubordinado, emancipador e integrado regionalmente.

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Mulheres Latinamerica 2020 Por Gabriela Noujaim

COLEÇÃO TRIANGULAR, ACERVO DA CASA DA CULTURA DA AMÉRICA LATINA - UNB.

A Casa da Cultura da América Latina, do Decanato de Extensão da Universidade de Brasília, foi criada para promover e divulgar a arte e a cultura latinoamericana, incentivar e estender o conhecimento acumulado nos centros de pesquisa à sociedade mais ampla. A CAL vem se consolidando como um espaço de pesquisa, preservação e divulgação do patrimônio artístico da Universidade e das expressões culturais latino-americanas. Ao longo dos seus mais de 30 anos de existência, a CAL reuniu um acervo que chega a 2700 itens, parte deles disponíveis no site para fruição e pesquisa.

"O VÍDEO MULHERES LATINAMERICA 2020 FOI PRODUZIDO DURANTE O PERÍODO DE QUARENTENA DEVIDO À COVID-19. O VÍDEO É MARCADO PELO SOM DA BATIDA DE UM CORAÇÃO. A CERTA ALTURA, A SILHUETA DA ARTISTA APARECE DE FORMA FANTASMAGÓRICA SOBRE A REGIÃO DA AMÉRICA LATINA NO MAPA-MÚNDI. LOGO APÓS, EM OUTRA SEQUÊNCIA DE IMAGENS, ENTRA A PROJEÇÃO DE UMA RADIOGRAFIA DE PULMÃO SOBRE O CORPO DELA E TAMBÉM O ÁUDIO DE SUA RESPIRAÇÃO. NO TRECHO DOS ROSTOS DAS MULHERES USANDO A MÁSCARA, TOCA UMA MÚSICA, QUE SE FUNDE AO BATIMENTO CARDÍACO, MARCANDO TAMBÉM O COMPASSO. A MANCHA NA RADIOGRAFIA, COM A RESPIRAÇÃO, É UMA MANEIRA DE CHAMAR A ATENÇÃO PARA UM VÍRUS SILENCIOSO, QUE NINGUÉM VÊ, E QUE É NEGLIGENCIADO POR MUITOS CHEFES DE ESTADO, O QUE AGRAVA A SITUAÇÃO DA PANDEMIA, PRINCIPALMENTE EM PAÍSES POBRES COMO O BRASIL. GABRIELA NOUJAIM ACREDITA QUE, COMO DIZ O DITADO POPULAR, “A UNIÃO FAZ A FORÇA”. AO MOSTRAR O GRUPO DE MULHERES NO VÍDEO, ELA TRANSFORMA O INVISÍVEL, VISÍVEL. ESSAS MULHERES, LUTANDO PELA SOBREVIVÊNCIA, TRAZEM SUAS MARCAS DE ALMA ESTAMPADAS NAS MÁSCARAS CIRÚRGICAS E FORMAM UM SÓ CORPO. A SEGUNDA ETAPA DO PROJETO “COV19 LATINAMERICA” VAI REUNIR UM TOTAL DE 30 MULHERES PARA A PRODUÇÃO DE UM LIVRO-OBRA, QUE SERÁ LANÇADO NO FORMATO DIGITAL, ON-LINE, ATÉ O FINAL DO ANO DE 2020." PÁGINA 60


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Mulheres Latinamerica 2020 Por Gabriela Noujaim


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RIBEIRINHOS E COVID-19: A SAUDADE DO RIO E A TRISTEZA NA FEIRA EM TEMPOS DE PANDEMIA CARLOS EDUARDO DO VALE ORTIZ (1) NAIR FERREIRA GURGEL DO AMARAL (2)

Abstract Resumo O artigo em questão intitulado: “Ribeirinhos e Covid-19: A saudade do Rio e a tristeza da feira em tempos de pandemia” tem como principal objetivo evidenciar como o processo de desterritorialização afetou os ribeirinhos e como, atualmente, os produtos dessa realidade estão somatizados às consequências da pandemia. Além disso, para que houvesse pontuações assertivas sobre a temática, o escrito contou com concepções de pensadores como: Canclini (1998), Macedo (2020), Hall (2006), Junior (2015), Arruda (1999), Ivo (2010) e Chediak (2015). A presente pesquisa é de caráter bibliográfico e pretende mostrar as alternativas dos ribeirinhos que ingressam nas feiras livres de Porto Velho assim como as dificuldades relativas à (re)existência dentro da nova realidade da pandemia do Covid-19. Palavras-chave: Covid-19 - Pandemia - Ribeirinhos Feirantes - Desterritorialização

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Universidade

Federal

de

Rondônia

-

UNIRE-mail:

carloseduardodovaleortiz5@gmail.comOrcid: https://orcid.org/00000002-0296-0131 (2)

Universidade

Federal

de

Rondônia

-

UNIRE-mail:

nairgurgel@uol.com.br Orcid:https://orcid.org/0000-0001-9253-4664

RIBEIRINHOS AND COVID-19: THE LONGIN FOR RIO AND THE SADNESS OF THE FAIR IN TIMES OF PANDEMIC

The article in question entitled: “Ribeirinhos and Covid-19: The longing for Rio and the sadness of the fair in times of pandemic” has as main objective to show how the process of deterritorialization has affected the riverside residents and currently, how these products are somatized the consequences of the pandemic. In addition, for there to be assertive scores on the theme, the writing had conceptions of thinkers such as: Canclini (1998), Macedo (2020), Hall (2006), Junior (2015), Arruda (1999), Ivo (2010) and Chediak (2015). The present research is bibliographic. The article shows the alternative of riverine people who enter the free markets in Porto Velho as well as the difficulties related to reexistence within the new reality of the Covid-19 pandemic. Keywords: Covid-19 - Pandemia - Riverside Marketers - Desterritorialization


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1. Introdução No presente artigo trabalhamos com uma linha de pesquisa bibliográfica[1] e abordamos questões relativas ao processo de resiliência dos ribeirinhos desterritorializados, que encontraram nas feiras livres de Porto Velho, capital do estado de Rondônia, um lugar para se reerguer. O escrito intitulado: "Ribeirinhos e Covid-19: A saudade do Rio e a tristeza da feira em tempos de pandemia", visa mostrar parcialmente como se deu o processo de (re)existência dessa comunidade desde o trágico momento da desterritorialização até a atual conjuntura da pandemia do Covid-19. Além disso, dentro de uma perspectiva teórica, entre os pensadores que auxiliam no entendimento de todo o contexto, estão: Canclini (1998), Macedo (2020), Hall (2006), Junior (2015), Arruda (1999), Ivo (2010) e entre outros autores que juntos, estão em uma consonância de ideias que auxiliam no desenrolar da temática. A pesquisa em questão surgiu como fruto da dissertação de Chediak (2015) e Júnior (2015) que evidenciaram em seus estudos

[3] [...] a pesquisa bibliográfica implica em um conjunto ordenado de procedimentos de busca por soluções, atento ao objeto de estudo, e que, por isso, não pode ser aleatório. (LIMA, 2007, p.38) [...] reafirma-se a pesquisa bibliográfica como um procedimento metodológico importante na produção do conhecimento científico capaz de gerar, especialmente em temas pouco explorados, a postulação de hipóteses ou interpretações que servirão de ponto de partida para outras pesquisas. (LIMA, 2007, p.43)

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como os discursos dos ribeirinhos são percebidos pelas esferas socioculturais e quais eram suas dificuldades no que compete ao período anterior e posterior a enchente de 2014 em Porto Velho. Dificuldades essas que foram somatizadas à pandemia.

2.Introdução O poder do rio na história rondonense e na vida ribeirinha Rondônia é um estado que, em sua constituição, possui um histórico de movimentos que deixaram diversas marcas no território. Marcas políticas, econômicas, culturais e até mesmo linguísticas. Movimentos e marcos como os ciclos da borracha e do garimpo e até mesmo a construção da Estrada de Ferro Madeira Mamoré são incluídos nessa linha de pensamento. E o mais recente marco, com essa mesma essência, é a presença das usinas hidrelétricas no Rio Madeira. As usinas de santo Antônio e de Jirau são algumas das obras mais relevantes do governo federal, pois as mesmas foram planejadas para suprir a energia elétrica do Brasil. As construções das barragens das duas usinas alagaram uma área estimada em 50 mil hectares de floresta e ainda fez com que uma média de 5 mil famílias ribeirinhas saíssem de seu habitat natural, obrigatoriamente, fazendo com que “migrassem” para o espaço urbano. (CHEDIAK, 2015)


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É nítido que as usinas trouxeram progresso no que se refere a empregos e movimentação financeira dentro da esfera rondoniense. A chegada das usinas alavancou uma enchente evolutiva nos aspectos sociais, econômicos e políticos. Rondônia, assim como todo o restante do Brasil, pode ser caracterizada como um estado miscigenado, pois dentro do território rondoniense, não existe nenhum traço cultural que transcende a outro. Essa amálgama é percebida de forma clara quando é feita a análise do calendário cultural local, no qual existem datas como a do arraial flor do maracujá, festas de rodeio, bois-bumbás e blocos carnavalescos. Todo esse emaranhado de valores culturais não define a cultura rondoniense, mas já mostra que o estado sofre constantes absorções de elementos culturais e agrega esses valores para a suas vertentes culturais em construção. Segundo Silva (2001) relata em seu livro “Da chibata ao Inferno”, uma história que não é comum de ser contada nos livros escolares na disciplina de história, mas que ajuda a compreender com uma intensidade um pouco mais profunda, todos os pontos referentes à fusão de valores culturais diversos em Rondônia. O escritor diz que no período da construção da estrada de ferro, na cidade de Porto Velho, houve um fluxo intenso de migrantes vindos diretamente da Bahia no período em que ocorreu o movimento da Revolta da Chibata.

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O líder do movimento, João Cândido, conhecido como “O Almirante Negro”, organizou todo o processo, pois as condições alimentícias e trabalhistas eram simplesmente desumanas. Em meio à Revolta da Chibata, muitos marinheiros sofreram repreensões para que servissem de exemplo para os demais rebelados, e alguns eram presos, quando insultavam ou incomodavam os seus chefes. Com essa reação do governo de prender os rebeldes, medidas foram tomadas para que houvesse a calmaria no ambiente. A primeira medida foi prender o líder “Almirante Negro” na Ilha das Cobras e os demais, aqueles que seguiam as ordens do almirante, foram enviados para trabalhar na comissão Rondon, na construção da estrada de ferro. Dentre os que estavam obrigados a trabalhar na construção da estrada, estavam ex- marinheiros, criminosos comuns e prostitutas. O autor alega um total de 105 ex- marinheiros, 298 criminosos comuns e 44 prostitutas que chegaram para trabalhar na construção da estrada de ferro madeira Mamoré. Toda essa conjectura serve de argumento inicial para demonstrar o quão rico e diverso é o contexto de construção cultural do estado de Rondônia. Pelo fato do mesmo ser constituído por brancos, indígenas e negros, pode-se afirmar que a região é cosmopolita e também é uma região híbrida que possui um vasto multiculturalismo.


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Partindo desse pressuposto, conhecer os valores culturais que fazem parte do âmbito social é o mesmo que adquirir ciência de todas as perspectivas referentes a discriminação, a intolerância, e até mesmo do preconceito linguístico e racial. Além de permitir uma maior lucidez em relação aos pontos que abordam as vertentes da discriminação, entender o conceito de cultura, é fundamental para uma evolução geral. Canclini (2006 p. 29) relata que a substância cultural, pode ser definida como aquilo que nos faz entender com mais clareza como funcionam as mudanças e as transformações básicas dos esquemas de caráter social. As ideias multiculturais auxiliam a sociedade de forma geral a se diferenciarem, a manter um posicionamento diante de valores etnocêntricos, e por consequência, reduzir os laivos do preconceito linguístico, social e da discriminação. Contudo, os ribeirinhos são povos tradicionais que representam uma parcela da população de Porto Velho e possuem uma rotina pautada na existência do rio; os mesmos têm contato com o ambiente natural e ainda mantém um vínculo simbólico com o flúmen que corta o seu habitat natural. Umas das concepções mais específicas sobre a identidade desse povo é feita por Silva (2000), o qual nos diz que: "Temos a definição de ribeirinho a população constituinte que possui um modo de vida peculiar que as distingue das demais populações do meio rural ou urbano, que possua sua cosmovisão marcada pela presença das águas.

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Para estas populações, o rio, o lago e o igarapé não são apenas elementos do cenário ou paisagem, mas algo do modo de se viver do homem. Dessa forma, quando estabelecemos nossa conceituação, temos claro que nem todas as populações humanas que vivem às margens dos rios são consideradas populações ribeirinhas”. (SILVA, 2000)

Assim, a região amazônica, o que obviamente inclui o estado de Rondônia, passa a ser considera como um berço de caráter híbrido e multicultural, onde diversas e vastas essências de caráter social, econômico, político, administrativo, e linguístico, permeiam as entranhas dos estados da região amazônica.

2.1 Desterritorialização e a mutação de identidades Canclini (1998) trabalha com a ideia referente ao hibridismo, o qual consiste na visão de que há pontos da constituição cultural que devem ser especificados para um amplo entendimento do contexto. Dentre esses pontos de caracterização do hibridismo na sociedade, existe a visão de que “desterritorialização”[4] e a “reterritorialização” criam uma nova

[4] Partindo da ideia de que território é aquele espaço de estabilidade e organização, a ação de desterritorializar é uma ação de desordem, de fragmentação para buscar encontrar novos saberes, menos instituídos, adotando uma percepção diferenciada que está pronta para descobrir novas ideias além das previstas. A Desterritorialização é uma “saída” do “território”. Mas este processo requer “naturalmente” uma reterritorização, ou seja, a “criação” de um outro novo Território. (CANCLINI,1998)


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perspectiva de gêneros constitucionalmente híbridos[5], pois os indivíduos que passam por esse processo tornam-se suscetíveis a modificações pessoais e comportamentais no que se refere a costumes comunitários, moldando aos poucos a sua identidade. Hall (2006) afirma que as antigas identidades, antes entendidas a partir de um ponto de vista essencialista, estão em declínio, e que esse fenômeno faz com que novas identidades desabrochem no seio comunitário e que o indivíduo da atual sociedade seja constituído de forma fragmentada, ou seja, a essência do sujeito que era visto como um ser unificado passa a ser modificada com base nas alterações de valores sociais. Conforme Haesbaert (1997), os informes sobre o deslocamento obrigatório geram uma pluralidade de transformações que giram em torno de perdas as quais vão além da perspectiva da mudança de espaço físico ou do estranhamento de pequenas situações do novo cotidiano, visto que a desterritorialização passa do limite de perdas pessoais, pois tal processo gera a perda de valores simbólicos e culturais que são praticamente irreparáveis. Um outro ponto que vale salientar, sobre essa construção de identidade, é abordar a

[5]Em Canclini (1998) o hibridismo é responsável pelo enfraquecimento dos grandes processos simbólicos e da ideia de identidades homogêneas. Conforme essa noção, todos os indivíduos podem romper a territorialidade, entendida aqui como “as fronteiras, com seus arames rígidos” (as dificuldades, as lutas) ou “arames caídos” (a possibilidade de adquirir novo conhecimento e mesclá-los com seus).

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definição de Woodward (2000) sobre essa temática. A autora nos conta que a identidade pode ser definida com base em dois eixos: o simbólico e o social. O simbólico consiste na linha de pensamento das características nacionais, como a comida, danças, costumes e outros elementos afins. Já o eixo social, gira em torno do pensamento da coletividade, o qual envolve a história, a memória, o espaço e o tempo. Bakhtin (1998) alega que: "A sociedade em transformação alarga-se para integrar um ser em transformação. Nada pode permanecer estável nesse processo. Por isso a significação é absorvida pelo tema e dilacerada por suas contradições vivas, para retornar enfim sobre a forma de uma nova significação, como uma instabilidade e uma identidade igualmente provisórias." (BAKHTIN, 1988, p. 136).

Desta forma, subentende-se que toda a movimentação social, toda essa conjectura sobre o contexto sociocultural, que se pauta na questão da formação de uma nova identidade, saindo do contexto tradicional devido a essas vicissitudes, faz com que o processo fique intimamente vinculado ao fenômeno do multiculturalismo. Nenevé (2009), que se destaca na área por suas aprofundadas pesquisas sobre o assunto, traz a seguinte pontuação: O multiculturalismo é um sistema de crenças e comportamentos que reconhece e respeita a presença de todos os grupos diversos em uma organização ou sociedade, reconhece e valoriza as suas diferenças socioculturais e estimula e capacita sua contribuição continuada com um contexto cultural inclusivo dando poder a todas as pessoas nesta organização ou sociedade. (NENEVÉ, 2009 p. 14)


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Ainda trabalhando com a cultura e a identidade, e envolvendo os ribeirinhos dentro da conjuntura em questão, Arruda (1999) infere sobre a ideia de população tradicional, dizendo que: (...) apresentam um modelo de ocupação do espaço e uso dos recursos naturais voltados principalmente para a subsistência, com fraca articulação com o mercado, baseado em uso intensivo de mão de obra familiar, tecnologias de baixo impacto derivadas de conhecimentos patrimoniais e, normalmente, de base sustentável... Em geral ocupam a região há muito tempo e não têm registro legal da propriedade privada individual da terra, definindo apenas o local de moradia como parcela individual, sendo o restante do território encarado como área de utilização comunitária, com seu uso regulamentado pelo costume e por normas compartilhadas internamente. (ARRUDA, 1999 p.79-80).

3. A nova realidade dos ribeirinhos: da água para as calçadas das feiras A cidade de Porto Velho, capital do estado de Rondônia, possui muitos movimentos tradicionais, movimentos que vão desde eventos culturais até algumas atividades econômicas, entre elas, destaca-se a feira livre. Sobre tal atividade, Mascarenhas (2008) conceitua: A feira livre no Brasil constitui modalidade de mercado varejista ao ar livre, de periodicidade semanal, organizada como serviço de utilidade pública pela municipalidade e voltada para a distribuição local de gêneros alimentícios e produtos básicos. Herança em certa medida da tradição ibérica (também de raiz mourisca), posteriormente mesclada com práticas africanas, está presente na maioria das cidades brasileiras, sobretudo naquelas com população superior a 300 mil habitantes (excetuando-se obviamente o Plano Piloto da capital federal, Brasília, pautado em princípios urbanísticos singulares). (MASCARENHAS, 2008, p.75)

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Desse modo, pode-se afirmar que essa atividade simboliza uma tradição que permeia não só a região norte do Brasil. As feiras livres representam muito mais do que uma venda informal, elas são também uma forma de sociabilidade e consequentemente, fontes de aprendizagens. A realidade e as crenças de uma comunidade podem ser percebidas dentro desse contexto relativamente comum e simples, mas cheio de significados. Com o processo de desterritorialização dos ribeirinhos de Porto Velho em virtude da construção das usinas, o governo federal criou projetos e amparou parte dos atingidos pela enchente com a construção de moradias populares. Durante certo tempo, as moradias supriram parte da necessidade dos ribeirinhos, mas algumas situações começaram a ganhar corpo dentro da perspectiva em questão. Comunidades inteiras desapareceram e perderam seus antigos hábitos na beira do rio. A título de localização, a comunidade de São domingos se encontrava na Vila de Santo Antônio, à margem esquerda do Rio Madeira[6] que passa por Porto Velho (seguindo a BR 319, ramais Jatuarana e Monte Cristo).

[6] O Rio Madeira é um rio da bacia do rio Amazonas que banha os estados de Rondônia e do Amazonas. É um dos afluentes principais do rio Amazonas. Tem extensão total aproximada de 3315 km, sendo o 17º maior do mundo em extensão." https://pt.wikipedia.org/wiki/Rio_Madeira. Acessado em 26 jun.. 2020.


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Essas pessoas dependiam exclusivamente do rio e o tinham como fonte de vida. Pescavam o que era necessário para sobreviver e colhiam o que plantavam na beira do rio, plantavam e colhiam mandioca para fazer farinha, dentre outras produções que somente poderiam ser obtidas a partir dele. Com a inserção dos ribeirinhos em condomínios, casas e apartamentos cedidos pelo governo, ocorrências de suicídio e depressão começaram a surgir desses territórios de onde os ribeirinhos estavam inseridos (JÚNIOR, 2015). Ora, com o crescimento da sensação de impotência, por não ter mais sua colheita e pesca disponível, alguns ribeirinhos mais idosos adoeceram, outros entraram em depressão e alguns outros, independentemente da idade ou do gênero, ingressaram na marginalidade, visto que, o que ganhavam de auxílio por parte do governo não era suficiente para suprir as necessidades básicas. (COSTA JUNIOR, 2017) Sob o mesmo ponto de vista, as feiras livres de Porto Velho foram consideradas recintos de acolhimento para essa população que ficou “desamparada” por ter saído de sua realidade e submergida em outra totalmente diferente. As ruas ficaram mais extensas, os horários foram estendidos e o número de feirantes aumentou consideravelmente (ALMEIDA, 2014). Assim, muitos ribeirinhos conseguiram se reerguer em virtude da atuação nas feiras livres da capital do estado de Rondônia, mesmo eles não tendo o mesmo padrão de

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vida que antes mantinham residindo na beira do Rio. Nesse mesmo sentido, Serra (2001) discorre: A introdução do capital então, prevalece sobre toda a cultura de um povo, trazendo consigo o fantasma da exclusão, presidindo um campo deslocado e um espaço delineado por forças alheias a toda uma historicidade e a toda uma cultura. Diante deste fato, há um grande dilema: Optar pelas formas modernas de inserção no mercado de trabalho de maneira convencional, competitiva considerando suas conseqüências, ou, contar com a vontade política, no sentido de estudar e propor formas de desenvolvimento que contemple as características culturais e formadoras dessa população, estabelecendo uma nova sistemática de trabalho, produção e, conseqüentemente de como entrar no mercado sem perder sua caracterização de populações tradicionais. (SERRA, 2001, p.10 - 11)

Pode-se, portanto, afirmar que a desterritorialização trouxe vários produtos para a população ribeirinha, entre esses produtos está o processo de hibridismo, que consiste na mudança de identidade, o que também acompanha outras perspectivas, como esse conjunto de vicssitudes que obrigaram os ribeirinhos a mudarem as profissões, os valores, as residências, os hábitos, os princípios e a começarem uma nova vida, seguindo somente a fé e a força de seus braços.

3.1 Covid e a feira livre: A invisibilidade do vírus e a visibilidade dos problemas dos feirantes No início de 2020 o Brasil e o mundo se depararam com um mal invisível que parou todas as estruturas, um mal que invadiu e destruiu muitas estruturas, independentemente da posição dos países


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no ranking econômico, todos tiveram que retroceder e se adaptar à realidade, o surgimento de um vírus com o nome de Covid-19. Sobre esta questão, Macedo (2020) coloca: "O Coronavírus é uma família de vírus que causam infecções respiratórias, no caso da pandemia desse novo agente, foi descoberto em 31 de dezembro de 2019 em Wuhan na China, O vírus atual faz que os portadores deles tenham a doença chamada de coronavírus (COVID-19). Os primeiros coronavírus humanos foram destacados pela primeira vez em 1937, no entanto, foi em 1965 que o vírus foi descrito como coronavírus, em decorrência do perfil na microscópica, assemelhando-se a uma coroa. A maioria das pessoas se infecta com os coronavírus comuns ao longo da vida, sendo as crianças pequenas mais propensas a se infectarem com o tipo mais comum do vírus. Os coronavírus mais comuns que infectam humanos são o alpha coronavírus 229E e NL63 e beta coronavírus OC43, HKU1. (MACEDO, 2020, p.2)

O Brasil, assim como todo o mundo, necessitou entrar em quarentena em virtude do surgimento do vírus. Contudo, alguns países demoraram a entrar em estado de quarentena em virtude do posicionamento político de seus representantes.[7] Em consonância, Macedo (2020) declara: "O primeiro teste positivo para COVID-19 no país aparece [7] Desde o início da disseminação do novo coronavírus (covid-19) no Brasil o presidente, Jair Bolsonaro, (sem partido) tem insistido em minimizar os riscos da pandemia à saúde pública. Isso fica claro nos atos e falas do chefe do executivo. Apenas no mês de março, o presidente utilizou as expressões "histeria", "gripezinha" e "fantasia" para se referir à doença, além de, dizer que a situação não pode ser tratada como “se fosse o fim do mundo”. Disponível em: https://congressoemfoco.uol.com.br. Acessado em 27 de Junho de 2020.

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em 26 de fevereiro de 2020 importado por um paulistano que havia recentemente visitado a Itália. Cinco dias após o primeiro caso, outro caso positivo é confirmado no país e em apenas 11 dias a soma dos casos confirmados atinge 25 pessoas. A população brasileira é estimada entre 211 milhões de habitantes (IBGE, 2020), destes 8% são homens que se enquadram no perfil etário da doença contudo novos casos da doença avançam rapidamente no país. Enquanto a Itália decreta quarentena nacional 10 dias após os primeiros casos positivos, a quarentena é regulamentada pelo Ministério da Saúde 16 dias após a detecção do primeiro caso, totalizando mais de 100 casos confirmados". (MACEDO,2020, p.5)

Em decorrência disso, todos os setores no mundo começaram a sentir o impacto dos dias de quarentena, visto que o comércio e outros setores vistos e entendidos como não essenciais, pararam os seus serviços e tiveram quedas significativas em seus rendimentos. Outros setores quebraram e chegaram a declarar falência. O surgimento do vírus, além de trazer quebras no setor financeiro para as capitais do Brasil, também parou as atividades que acontecem nas periferias dessas cidades, entre essas atividades, estão as feiras livres. No que compete às atividades que acontecem nas periferias, Ivo (2010) declara: [...] as periferias se constituem como lugares híbridos e heterogêneos de um cotidiano compartilhado por sujeitos que vivem na adversidade e na busca por justiça social e por direitos sociais e direitos sobre a cidade, como o acesso à moradia, à saúde, ao transporte, à educação e ao consumo cultural, que interagem e se mesclam com a cidade normatizada, racional, "legitimada", ultrapassando velhas noções morais de culpabilidade da pobreza ou de territórios de riscos, que podem sugerir sentidos estigmatizados de criminalização da pobreza. (IVO,2010, p.5)


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Referindo-se ao combate ao coronavírus, Oliveira (2020) declara em consonância: "O mundo está “sangrando e doido”, mas estamos diante de mundos com diferentes realidades. Há um mundo em estado de letargia e nele pessoas em confinamento, muitos em teletrabalho, e outros já sem trabalho. E para esse mundo repete-se as recomendações de cuidados básicos, como utilizar máscaras, manter as casas ventiladas e higienizar as mãos com regularidade. Mas, estamos também diante de um outro mundo, que os mecanismos de gestão da pandemia aprofundam sua marginalização. A margem infinita da exclusão. Neste contexto, podemos citar as periferias e favelas do Brasil. Para esse mundo, repete-se também as recomendações de cuidados básicos. A pergunta que se faz é: como estar em quarentena se as pessoas que vivem nas comunidades raramente têm trabalho formal? Como ventilar as casas com suas janelas pequenas e insuficientes para uma boa ventilação? Como lavar as mãos em moradas onde o abastecimento de água potável é intermitente e, muitas vezes, até inexistente? Para esse mundo o que significa #fiqueemcasa?" (OLIVEIRA,2020, p.2)

Portanto, ao recortar tal pensamento, podese observar que as periferias de todas as cidades do Brasil têm padecido, e o sofrimento ficou ainda mais intenso e mais nítido com o surgimento do Covid-19. Dentro de uma limitação, os ribeirinhos que sofreram com a desterritorialização em Porto Velho, com o processo de adaptação ao espaço urbano e com o novo formato de trabalho, agora precisam adaptar-se ao período de quarentena, que durará por um tempo ainda indeterminado e, consequentemente, se prolongarão as dificuldades financeiras dessa comunidade. Sem políticas públicas no município para essa comunidade, a realidade de alegrias e fartura foi substituída por dias de

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necessidades e tristezas, sem o olhar dos governantes para amenizar as dificuldades silenciosas de um povo que saiu da beira do rio e hoje está na cidade, lutando para sobreviver dia após dia.

4. Considerações finais O escrito em questão abordou o processo de desterritorialização que aconteceu com as comunidades ribeirinhas de Porto Velho, capital do estado de Rondônia. Além disso, abordou questões sobre o processo de resiliência dessa comunidade em sua nova realidade na área urbana da cidade. Ademais, os óbices que seguem essa comunidade desde o período da enchente ainda continuam a assombrar os desterritorializados, porém com o acréscimo da pandemia global por causa do Covid-19. As feiras livres, movimentos que fazem parte da cultura das cidades e representam uma atividade significativa no que compete ao setor econômico, são locais que recebem as pessoas que desejam trabalhar e ter de onde tirar seu sustento. Seguindo este princípio, as feiras de Porto Velho receberam os ribeirinhos que precisavam se reerguer depois da enchente comercializando seus produtos. Com a chegada da pandemia, o comércio parou e os problemas das comunidades residentes das zonas periféricas começaram a se intensificar, porém, estas comunidades ainda continuam invisibilizadas pelos governantes. A ideologia capitalista, que insiste em apontar que números são e


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devem ser mais importantes que pessoas, cega grande parte das pessoas e faz com que as mesmas achem normal que pessoas padeçam por não terem condições básicas de sobrevivência. Os ribeirinhos sempre resistiram às enchentes da vida, e continuam resistindo dia após dia. Contudo, esse escrito tem o intuito de mostrar que existem histórias, pessoas, valores e preceitos que estão padecendo. As políticas públicas ajudam a manter de pé alguns setores empresariais, pautados na ideia de produção e lucros. No entanto, é imprescindível que elas também alcancem aqueles que vieram de outra realidade, de outro contexto. Destarte, o que resta agora não só para os ribeirinhos de Porto Velho, mas para todos os cidadãos que vivem nas periferias, aqueles que não podem seguir as hashtags das redes sociais, #ficaemcasa, aqueles que não têm as mesmas condições para cumprir a quarentena, aqueles que não tem apoio de seus governantes para garantir assistência básica de vida, é fé de que dias melhores virão, de que isso irá passar e de que tudo o que se perdeu será reconquistado, assim como diz a canção de Gilberto Gil: “Andar com fé (...), que a fé não costuma faiá”.

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COVID-19: REFLEXIONES DESDE EL SUR ANDINO CLIVER CCAHUANIHANCCO ARQUE[1], JAVIER SANTOS PUMA LLANQUI [2], DUVERLY JOAO INCACUTIPA LIMACHI [3]

Resumen

Abstract

La imposición del sistema hegemónico mercantilista como arquetipo mundial ha denotado su fragilidad en tiempos de pandemia; la dialéctica de pensamientos que permitían pensar y repensar los sistemas ha sido reducida a la cuarentena ideológica de sus fundamentos. El presente artículo se inscribe en el desarrollo de la salud pública desde una mirada política, social y cultural desde el contexto Andino. Su objetivo es el de problematizar e interpretar el desempeño de los sistemas de gobierno en la región, y proponer posibilidades desde el sur andino. Se ha utilizado el método descriptivo observacional directo, utilizando la técnica etnográfica digital y la revisión bibliográfica en profundidad. El resultado de la investigación permite esbozar, a partir de la realidad andina, posibles horizontes para el género humano. Palavras-chave: Covid-19; Cultura; Reflexiones; Sur andino; Sistemas. [1]

Especialista

en

Derechos

Humanos

en

América

Latina

por

la

Universidad Federal de la Integración Latinoamericana (UNILA-Brasil); Magister en el Programa Interdisciplinar en estudios Latinoamericanos

COVID-19: REFLECTIONS FROM THE SOUTHERN ANDEAN The imposition of the hegemonic mercantilist system as a world archetype has encouraged its fragility in pandemic’s time. The dialectic of thoughts that has granted to the systems to think and rethink has been reduced to the ideological quarantine of their foundations. The recent article addresses about the development of public health, from a political, social and cultural perspective from the Andean context. Its aim is to problematize and interpret the performance of government systems in the region and indeed necessarily suggest possibilities from the southern Andes. The direct retrospective observational method has been used, using digital ethnographictechnique and in-depth bibliographic review. Given that the result enables to the investigation to outline from the Andean reality possible horizons for the human race.

(IELA) de la Universidad Federal de la Integración Latinoamericana (UNILA-Brasil). Correo clivers7nba@hotmail.com. [1] Dr. En Ciencias Sociales por la Universidad Nacional del Altiplano. Magister en Peritación y Criminalística por la Universidad Nacional de San Agustín Arequipa, Actualmente es docente de pre y post grado de la Universidad Nacional del Altiplano Puno- Perú. [1] Antropólogo, Dr. En Ciencias Sociales por la Universidad Nacional del Altiplano, Actualmente es docente de pre y post grado de la Universidad Nacional del Altiplano Puno- Perú.

Keywords: Covid-19; Culture; Reflections; Southern Andes; Systems.


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CH’UMAYNIN

1. Introdução

Ch’ulla llika tikachasqa tiqsi muyupi kamachikusqam, kay pacha tiqsi muyu unquypi mana kallpayuq kasqanta qhawarichikun; Chaynam, yuyanchakuy hamut’aypiqa waqmanta waqmantam nunanpa rimayninta, kay wataypi pisicharikun. Kay patachasqa qillqa hawa allin kawsaypa puriyninpim qillqachikun, kay Anti pachamanta huk hamut’ana, runa llikachasqa, hina yachay tarpuy qhawanamanta pacha qhawarichikun. Aypayninqa chaninchana, sasachana, purichina llika kamaqpa suyunpi, hinataq Anti qhipamanta imam kanman. Llamk’anapiqa chhiqan ch’uya qhawaypim qillqarikun, hinamanta runa ñit’ina llamk’ana puriyninta wakirichispa hukmantataq qillqa kamayuqkunata ukhumanmantapacha t’aqwirikun. Qhawmikipaypa lluqsisqanqa huk pacha ñankunatam Anti runa kasqanchikpi riqsirichiwanchik. Palavras-chave: Covid – 19 nisqa; Anti yuyanchakuykuna, Yachay tarpuy, Llikakuna.

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qhipa,

En diciembre de 2019 la ciudad de Wuhan, considerada el monstruo del acero y concreto, y uno de los cuatro hornos de la maquinaria económica china, sufre el brote de un nuevo virus SARS-CoV-2 que causa el coronavirus (COVID-19), el mismo que se expande rápidamente en todas las provincias de China, reportándose seguidamente el contagio de la enfermedad en países de diferentes regiones del mundo, relacionada e inferida ésta a la globalidad totalizante contemporánea (que ha roto las fronteras nacionales de los estados, a través del sistema de mercado y su valorización mercantil para todo). La Organización Mundial de la Salud (OMS) ha declarado la emergencia sanitaria internacional, decisión muy criticada por su dilatación temporal, por la que incluso hoy el imperio hegemónico retira todo tipo de financiación, como expresión de quien puede más, puede lo menos desde su poder monetario y adquisitivo, demostrando a la vez la “minusculez” de los Estados nacionales respecto a quien gobierna el mundo; así mismo para el patio trasero de la hegemonía y quienes ilusamente creen y siguen la institucionalidad internacional, la OMS revela su débil actividad ejecutiva reducida a simples apaciguamientos de acción meramente discursiva y/o consejera. Sin duda, esta pandemia no puede ser reducida a la reflexión sólo epidemiológica disciplinaria, sino más bien a su análisis


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interdisciplinar con la política, economía, sociedad y, por supuesto, la cultura. Entonces el covid-19 ¿es o no una guerra bacteriológica que pugna por el nuevo imperio mundial económico? y si esto fuera verdad ¿es posible que esto signifique la reestructuración más feroz del capitalismo contra la humanidad? Entendemos que ambas preguntas son necesarias de tratar en el contexto actual y creemos que es el momento de dar un abordaje alternativo desde el sur, partiendo de la consideración de las fuentes y raíces ancestrales fundadas en sus principios de pensamiento andino, pues la nebulosa de ideologías dominantes en las que se le ha estancado como pensamiento se resume al mismo estilo hipócrita de hoy reverenciar el renacer de la naturaleza, sin criticar siquiera al sistema que lo llevó a tal nivel de depredación, o peor aún, llegar a la falacia de preferir dar ánima a un mercado, que desde ya es omnipotente en el control social de las vidas, y catalogar de retrógradas y salvajes a sociedades originarias, que consideran un ser viviente a su naturaleza. Sin duda se vierte la necesidad inexorable de ver y responder el porqué de la precariedad como seres humanos y como cultura. Así, el presente artículo tiene por objetivo problematizar e interpretar el desempeño de los sistemas de gobiernos en la región, a través de un análisis construido que parte del contexto del Perú andino y las posibilidades desde el sur andino. Su contenido se encuentra dividido en tres partes: la primera, que explica la

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metodología utilizada en la elaboración de este trabajo, así como la técnica e instrumentos; la segunda, que expresa el resultado y discusión derivada de la interpretación y análisis del fenómeno COVID-19; finalmente la tercera parte advierte posibilidades redactadas en forma de conclusiones.

Metodologías y materiales El trabajo de investigación considera la postura cualitativa, bajo la metodología de la investigación etnográfica y específicamente a la etnografía digital acorde a tiempos de cuarentena nacional en la que se inscribe, así refiere Colmenares (2012) al señalar que promover procesos reflexivos y auto reflexivos profundos, incentiva a la acción permanente y al logro de verdaderos cambios y transformaciones en el pensamiento de los actores sociales. La nueva realidad nos permite reorientar el enfoque a un espacio digital, sumergidos en tiempos actuales, con eso no difiere el estudio de la problematización e interpretación de este artículo para problematizar el desempeño de los sistemas de gobierno en la región; la unidad de análisis constituye la sistematización de casos presentados por los medios de comunicación, experiencias compartidas por los mismos actores que participaron en las entrevistas desde diferentes países, esta metodología ayuda entonces a la sistematización de experiencias como aquella interpretación crítica de una o varias


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experiencias vividas ordenadas y explicadas lógicamente (Holliday, 2012).

La OMS y el COVID-19: una descripción rápida de la propagación del virus A finales del 2019, el municipio de WuhanChina es afectado por un nuevo virus que genera neumonía sin presencia de mortalidad, la apariencia de tal virus es inofensiva, empero, el inmediato aumento de casos ahora advierten y activan el interés internacional, incluyendo el de la Organización Mundial de la Salud, que da una serie de recomendaciones a los países de diversas regiones para la realización de pruebas de descarte del virus, bajo la especulación de imposibilidad de contagio entre humanos. El 13 de enero Tailandia vio el primer caso que advierte la desmitificación del contagio entre humanos, ahora señalando la posibilidad mínima y excepcional de dichos casos, el 20 de enero en Corea del Sur de la misma forma surge otro caso, el 23 de enero en Singapur, el 24 de enero en Francia, seguidos de Australia, Alemania, España, Italia y finalmente en los Ángeles Estados Unidos, lo que indica la llegada del virus a América del Norte; todos los casos tienen un denominador común: son llevados por ciudadanos chinos o al menos residentes en dicho país, lo mismo que desencadena un posicionamiento arisco frente a estos, incluso llegando a la xenofobia que advertía una activación de alerta racial contra los países asiáticos. El 22 y 23 de enero la OMS convoca a una

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reunión de emergencia según se prevé en su reglamento sanitario internacional (RSI 2005), avizorando la posibilidad de ingresar a un estado de emergencia de salud pública internacional, la misma que no es concretada, fundamentando que la cantidad necrológica causada por el virus es insuficiente para activar dicha categoría; el 30 de enero de 2020 la OMS, mediante el comité de emergencia, declara la emergencia de salud públic de importancia internacional, avistando que el brote ya ha dado saltos exponenciales a nivel mundial, por lo que China brinda informe sobre el brote, su prevención, protección, contención para las personas y personal médico. Seguidamente, la OMS el 11 de febrero de 2020 anunció el nombre oficial de enfermedad invisible que embiste a la humanidad (COVID-19), virus coronavirus de tipo 2 causante del síndrome respiratorio agudo severo (SARS-CoV-2), que es relacionado genéticamente al SARS del año 2003, por lo que se toma de inmediato las directrices de la Organización Mundial de Sanidad Animal (OIE) y la Organización de la Naciones Unidas para la alimentación y la Agricultura (FAO). Durante el mes de febrero se va incrementando el contagio ahora en nuevos países de la región latinoamericana como Brasil, quienes el 26 de febrero confirma su primer caso de COVID-19, seguido de Ecuador, Argentina, Chile y finalmente el Perú el 06 de marzo; la emergencia sanitaria es violenta, y la prevención y acciones para su no contagio es insignificante desde los


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estados, por lo que, el 11 de Marzo de 2020 se declara la pandemia; consecuentemente a esta y cuatro días después, mediante mensaje a la nación el presidente del Perú, Martín Vizcarra y su conjunto directivo sacan a luz el Decreto Supremo N° 044-2020PCM[4], el mismo que decreta el Estado de Emergencia Nacional por las graves circunstancias que afectan la vida de la nación a consecuencia del brote del COVID19, decisión que, en una primera instancia, de hecho fue muy controversial desde estamentos económicos ante la parálisis del país en relación a la economía mundial.

El Perú: un análisis rápido del contexto sanitario La actualidad sanitaria peruana desentrama una tragedia que comienza con la propia denominación, “El año de la Universalización de la Salud”, la cual irónicamente es antagónica a su realidad actual, ya que destapa toda la precariedad en tanto instituciones y gobernabilidad desde el Estado. Así mismo y por si no fuera suficiente, se le suma la pomposa y extravagante celebración del Bicentenario de la República en 2021, que en análisis poco objetivos se señalaba el gran avance modernista y desarrollado, que hoy se resume al solo maniatado listado de buenas intenciones alejadas de su realidad material;

[4]Véase:cdn.www.gob.pe/uploads/document/file/566448 /DS044-PCM_1864948-2.pdf

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no es ajeno a nadie que la salud pública en el Perú tiene un nivel paupérrimo que la limita a apotegmas de entrar vivo y salir muerto, pueda que se surta un poco grotesca como afirmación, empero que sumariamente describe el estado deplorable de todo lo público y estatal peruano. El sistema de salud peruano deberá ser entendido como un rezago más del proceso histórico vivido durante la colonización, edad media y república hasta la actualidad, pero ello no es perdurable en el tiempo, sino a través de los lineamientos jurídicos constitucionales que rigen la maquinaria estatal, copiadas de otras realidades impropias para hacerlas de pleno derecho y, por lo tanto, justa en su razón de ser en nuestra contextualidad. Es así que la realidad material en salud mediada desde el Estado constituido en un Estado constitucional de derecho, es direccionada por la Constitución Estatal, que en el caso peruano es la de 1993. Partiendo de ello, existe gran controversia al respecto, pues los lineamientos impregnados en su contenido detentan posicionamientos y tendencias liberales que imposibilitan la universalización de la salud. El artículo 11° de la Constitución estatal de 1993 señala: que el estado garantiza el libre acceso a la prestación de salud y pensiones, a través de entidades públicas y privadas o mixtas; que a la vez supervisa asimismo su eficaz funcionamiento; lo que bajo una interpretación literal rápida, nos da a entender, que el estado tiene toda potestad de vigilar, controlar y examinar la


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institucionalidad de quienes brindan este servicio respecto a este bien jurídico protegido, que es el acceso a la salud pública; empero ello es desmitificado a través del artículo 58° de la propia constitución, que plantea los principios del régimen económico del estado, señalando que: la iniciativa privada es libre, a través del cual el estado orienta el desarrollo del país, para actuar principalmente en las áreas de promoción de empleo, salud, educación, seguridad, servicios públicos e infraestructura; de lo que se puede colegir sin duda alguna, que el Perú ejerce una economía social direccionada por el mercado, que termina precarizando lo estatal respecto lo privado desde el discurso del libre mercado. Entiéndase así, que la fragmentación institucional de la salud pública es propia de los principios propugnados desde la carta magna, que además de ello también burocratiza e incluye un manejo vertical y diferenciado, como bien es manifiesto desde el seguro social de salud (EsSALUD) y el Sistema Integral de Salud (SIS), divorciados en la actualidad.

(...) la tendencia es a que el perfil del sistema público ya no sea el clásico, público estatal y burocrático, sino comience a adquirir rasgos de un sistema cada vez más abierto, y esta tendencia choca con la herencia reglamentarista, […] para la infraestructura, la hipercategorización de establecimientos, y todo lo demás que se hereda del pasado, por no hablar de la omisión de las nuevas tecnologías individualizadas y de la medicina de avanzada de bajo costo en el mundo. (ARROYO, 2015, p. 55).

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La salud pública desde entonces se ha tornado clasista y exclusiva, que distingue su atendimiento de uno respecto al otro, refiriendo ello también lo urbano respecto a lo rural, “la exclusión y la pobreza siguen siendo, por lo tanto, las principales trabas al ejercicio de nuestros derechos y a nuestra existencia y convivencia en sociedades pluriétnicas, multilingües y multiculturales” (ROMERO, 2007, pág. 79). Esto expresa una vez más la perspectiva de clase en el servicio de salud, no cabe yerro alguno en manifestar que, la pandemia ha desenmascarado la eterna falla de origen sustentada en las bases estructurales y normativas estatales, pues la regla de juego instaurada en la carta magna peruana es la de un estado neoliberal heredado desde la colonia, que en el fondo “manifiesta la histórica y profunda exclusión e inequidad social, económica y étnico-cultural de amplios sectores de la población, principalmente andino y amazónico, nativo y rural” (LAZO., ALCALDE., ESPINOSA., 2016, p. 21). Es en tanto que en ello se sustenta la precarización del sistema estatal peruano, siempre magnificando lo privado, coligiendo la afirmación tácita anticipada de que el derecho a la salud como derecho humano es un simple y vago deseo albergado en lo subreal, o al menos así lo parece para los excluidos e infrahumanos, que comprenden los pueblos originarios y urbanos marginales, quienes viviendo el sueño burgués difuminado por el sistema en forma de imágenes colectivas para toda la sociedad aceptan dicha realidad.


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Sistemas y Covid-19: fracaso de una modernidad impuesta La emergencia sanitaria global golpea las potencias del mundo consideradas elites de la economía mundial, los Estados que hasta ese momento adulaban su hegemonía estable e inquebrantable bajo la lógica capital en su máxima esfera neoliberal, comparten ahora el terror y pánico de los pequeños y minúsculos Estados nacionales de tercer mundo. Idiotismos como “this is a chinese disease” señalada por Trump, simplificando la problemática sanitaria a la duración de los productos chinos u “o coronavírus é só uma simples gripezinha” de Bolsonaro, reduciendo el virus a una simple gripe común, ahora son reemplazados por “I am a president in times of war” o “soy un presidente en tiempos de guerra”, no cabe duda que el hidra capitalista señalado por Zibeti (2015) hoy se descubre y muestra todas sus cabezas infestas en todos los Estados donde se generó el colapso total de las instituciones; hoy la realidad mundial enfrenta una guerra contra un invisible a la cual denominamos pandemia. La imagen del capitalismo como una hidra. (...) me parece interesante para comprender cómo funciona el sistema, cómo nuestra lucha se enfrenta a muchas cabezas y cómo esas cabezas se reproducen a pesar de nuestra lucha. Por un lado, nos permite comprender la complejidad para terminar con un sistema tan complejo; por otro, abre las puertas para reflexionar sobre la actividad revolucionaria, ya que esta puede ser integrada por el capitalismo en muy diversas formas (ZIBETI, 2015, p. 296).

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Es en 2020 que la economía mundial sostenida por las grandes potencias mundiales del sistema capitalista sufre un gran declive, como si fuese un apagón provocado por nuevos polos de poder. Esto conlleva a generar infinidad de tesis de distintas índoles (conspiracionistas, míticas, teológicas, etc.), con la única finalidad de tratar de entender el panorama contextual en pandemia. La más notada explicación del fenómeno sin duda recayó en la explicación del surgimiento de un nuevo orden mundial, “China”, algo que para el análisis no resulta descabellado, pues la ley de la historia y su ciclicidad espiral ya nos advierte de tal fenómeno desde los orígenes; entonces, considerando que este es un fenómeno natural de transición sustancial de quien gobernaba a quién gobernará el mundo, respecto su incidencia determinante de capacidad de producción y distribución, ¿será que la instauración del nuevo orden significa la agonía del sistema actual?, o ¿es simplemente el continuismo ahora más perfeccionado y voraz del sistema?; y si mejor pensamos en si ¿es la posibilidad de dar un cambio estructural en el sistema que permita poner un punto aparte a la historia narrada por los vencedores?, mejor vayamos con el análisis de quien disputa esta lucha por la hegemonía. China, el motor impulsor del nuevo boom de la economía mundial y quien en estos últimos tiempos ha desempeñado un papel trascendental respecto la nueva industria y el comercio mundial, ahora no sólo es frenada y afectada por un proceso de aislamiento social


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dispuesto por su propio gobierno, sino también por la divergencia ideológica que la mantiene en estand by respecto al modo de organización político-económico que reflejará ante tal recesión mundial. El capitalismo, sin duda, no es una opción rentable desde sus propios términos de mercado o al menos así lo parece. "En las últimas tres décadas, China ha pasado de ser una economía estatal planificada aislada a un centro de producción capitalista integrado. Las oleadas de nuevas inversiones están reconfigurando y profundizando las contradicciones de China, creando multimillonarios como Ma Yun, mientras millones de personas que viven abajo— los que cultivan, cocinan, limpian y ensamblan su infraestructura electrónica—luchan por escapar del destino de un extenuante trabajo sin fin" (CHUANG, 2020, p. 14).

La contracultura, sin lugar a dudas, se hace desde ya notar entre el bosquejado nuevo imperio, por un lado el partido comunista chino que en medida conserva la tradicionalidad de su cultura, y por otro el movimiento de liberación de Hong Kong que ofrece la miel capitalista británica. Si bien esta no es problemática del ahora, es sin duda la expresión clara de la dicotomía de sistemas, que en su momento se contuvo con la posibilidad del doble sistema; empero esto revela otra verdad que hasta la fecha es propuesta desde los estados liberales en la conquista global del mundo, esta es la propuesta dialógica, que en su linealidad histórica ha evolucionado en mecanismos más sofisticados para el sometimiento y hegemonía total de un sistema, el capitalista. Es decir, se propone un tipo de diálogo cultural direccionado, que en apariencia

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propone una horizontalidad dialógica entre culturas, sin embargo, esta perspectiva no mide el nivel de arrogancia desde un sistema a otro, lo cual tarde o temprano termina rompiendo fronteras para someterla a la perpleja esclavitud, que en analogía a la narrativa de la “cabaña del Tío Tom” de (Breecher, 1852), crea buenos salvajes, buenos esclavos, y buenos consumidores. Es entonces precisamente aquí donde encontramos un punto de bifurcación de definición cultural que ponen de alternativa a las comunidades andinas, ya que estas salen de la lógica formal capitalista para proponer una practicidad de vida diferente a la idealizada desde el modelo desarrollista neoliberal, “pues esta expresa su humanidad colectiva en una economía de lo necesario, desde sus principios de reciprocidad y complementariedad manifiestas en sus instituciones como la mita, minka, ayni, apjata[5] etc.” (MURRA, 1975, pág. 75). Y por otro lado, antagónica a la anterior, el capitalista, cuya apología recae en un humano faber mercantilista, cuyo objetivo final es la hiper producción y exportación en masa, lo mismo que lo lleva desde ya a ser considerado como el quimera económico de caos universal. Así también lo infiere Streeck;

[5] Ver Murra. Alude a los lazos de organización social que deben ser tomados (…). El deber de vengar y el de prestar ciertos servicios son partes de la reciprocidad, derecho a usar la energía humana de su comunidad (…). No recibían ni "tributos ni salario". Los campesinos "le hacían cierta cantidad de sementeras para su sustentación y la casa cuando había necesidad.


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"La vida social y la acumulación de capital durante el interregno pos capitalista dependen de que los individuosconsumidores se adhieran a una cultura de hedonismo competitivo, que hace virtud de la necesidad de tener que luchar, cada uno con sus propias fuerzas, contra la adversidad y la incertidumbre. Para que la acumulación de capital se mantenga bajo el pos capitalismo, esa. cultura debe hacer obligatorias las esperanzas y las ensoñaciones, movilizar esperanzas y sueños para sostener la producción y fomentar el consumo, pese a su bajo crecimiento y a la creciente desigualdad y endeudamiento (STREECK, 2017, p. 63).

Entonces, ¿cuál es el nexo entre la economía y el virus?, y ¿por qué pretender pensar en un suicidio desde el mismo sistema?, ambas preguntas hacen referencia al problema fundamental de la pandemia sobre cualquier otra perspectiva posible, pues incluso hoy Tedros Adhanom en sus declaraciones ha negado rotundamente la manipulación genética del virus, desestimando cualquier conspiración bosquejada en aras de la supremacía económica. Ello en tanto, sólo hace confirmar una respuesta que está lejos de pensar reduccionistamente a los Estados nacionales en disputa del poderío, a más bien referirse al tipo de sistema hegemónico como único responsable de tal suceso epidemiológico. El capitalismo, si bien ha deslumbrado a la humanidad con la quimera modernista y del desarrollo a gran escala, mediado por la cultura funcionalizada e instrumentalizada, y sustentada por una base de libertades individuales universales, es la depredación del medio natural y su nomenclatura valorativa mercantil. La misma ha servido como medio de pago para dicha ambrosia humana, conduciendo el destino inicial de la especie humana relacional del

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hombre con lo natural, a la sola reducción del todo natural en sus términos y fundamentos primarios, interpretado desde la biología como virus. "Acallad, queridos humanos, todas vuestras ridículas exhortaciones a la guerra. Apartad todos los deseos de venganza que dirigís contra mí. Extinguid el halo de terror con el cual rodeáis mi nombre. Nosotros, los virus, desde el fondo bacteriano del mundo, somos el verdadero continuum de la vida sobre la tierra. Sin nosotros, nadie habría visto jamás la luz del día, tampoco la primera célula (...). Las más honestas de entre vosotras lo saben bien: yo no tengo otro cómplice más que vuestra organización social, vuestra estúpida fijación con “la gran escala” y la economía, vuestro fanatismo por el sistema. Solamente los sistemas son “vulnerables”. El resto vive y muere. No hay algo así como “vulnerabilidad” más que para aquello que ya apunta al control, a su extensión y a su perfeccionamiento. Miradme bien: no soy más que el reverso de la muerte imperante". (ANÓNIMO, 2020, p. 09).

Entonces, ¿es o no una lección de la naturaleza contra la petulancia del hombre, cuyo pensamiento antropocéntrico ha querido demostrar el dominio sobre el todo incluyendo ella misma?, creemos que sí, empero la humanidad aún no es consciente de ello, ya que la única preocupación en tiempos de pandemia se remite a la perspectiva económica que incluso hace postular desde los pocos, el elegir entre vida y economía, eligiendo siempre la segunda. Los Estados, ahora alimentados del pavor e histeria social, maduran su biopolítica advertida estructuralmente por Foucault (2002), la agonía sistémica es tratada por los Estados, inclusive por los más minúsculos, a través de shocks necesarios para revivir, o al menos mantenerla viva, significando incluso que esto sea su óbito


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como institución; la maquinaria intelectual hegemónica sabe que el sistema es autosuficiente y regenerativo como organismo parásito o como un propio virus sistémico. La humanidad clama a sus estados volver a la normalidad, aun sabiendo que esa normalidad anormal es la que empecina al hombre naturalizar la explotación y depredación a cambio de una gratificación que merma su voluntad y dignidad en valor; de ello desprendemos que la humanidad aún no ha llegado al nivel de consciencia superior que lo haga ser sensato de por única vez valorar (no mercantilmente) su razón y esencia de existencia como fin y no sólo como simple medio. Entonces, he aquí la posibilidad de hablar de los otros subalternos, en cuya cultura y noción del ser, sobrepasa la sola capacidad de autopercepción individual y éxito personal propugnado por la mercantilidad capitalista. La Pachamama andina, la Brahmas India, la Coatlicue Azteca, son sólo algunas deidades puestas de ejemplo que muestran el nivel de consciencia colectiva humana, que hoy en tiempos de pandemia es parva e inexistente; proponer sistemas y estructuras alejadas de la mercantilidad e incluso la posibilidad descapitalizar la economía, sacándola de su sola comprensión desde el mercado, es una posibilidad muy factible desde lo subalterno, comprendiendo esto a partir del ser comunitario perviviente y resiliente a las catástrofes generadas por el sistema, demostrando que la expresión de su comunalidad no dependiente del estado y

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sobreviviente a su violencia aún es vigente, y que la restructuración de ella en la actualidad dependerá en primacía de la posibilidad en el respeto a los principios locales en comunidad, que hoy se restructuran a la par del efecto inverso de la migración campo-ciudad, ahora traducida en la migración urbano-rural.

Del Sur Andino excepcional al estado nacional: una autocrítica a la realidad peruana latinoamericana en tiempos de pandemia.

El Perú, como tantas de las realidades latinoamericanas, desentrama su historia en tiempos de pandemia bajo el espectro residual de su imposición cultural; la pandemia actual ha desenmascarado más allá de la sola precariedad institucional para llevarnos al problema existencial que nos ha conducido a tal nivel de degeneración social. Este hecho nos transporta al problema del indio advertido por Mariategui (1979), ahora actualizado y caracterizado por un nuevo actor social, cuya nominación va desde la más abominable noción de racialización, hasta la más empoderada figura de superación, “el cholo”. Este no es sino la categorización más refinada que expresa la eterna segregación del indio respecto su antagónico superior misti o q’ara[6], que lo ha insertado a la eterna vagues de su [1] Ver, (Rivera, 2010, pág. 69). Q’ara es la persona culturalmente desnuda y usurpadora de lo ajeno.


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subjetividad de quien no es y quiere ser. En este artículo creemos que es momento de problematizar la condición subjetiva de la sociedad peruana, abordando desde la transeccionalidad sistemática de raza, género y clase, lo cual lleva a partir de la autocomprensión del cholo como paria reproductor de un proceso histórico ajeno, pues entendemos que los procesos de cambio, se han hecho desde las más grandes tragedias como el que nos asemeja este tiempo de pandemia, considerando propicio redefinir el cauce del quién es el ciudadano peruano y extirpar la idolatría colonial, modernista y religiosa, que sólo ha simplificado su existencia a la miserable y agónica infrahumanidad. Hoy la realidad peruana afronta una doble posibilidad: ¿cambiar la subjetividad y mejorar las estructuras de organización social? o ¿mantener naturalizando la individualidad que engorda al sistema depredador?, no cabe duda que el problema deriva de la época colonial de interrupción, encubrimiento, etnocidio, etc., de Abya Yala[7], empero ¿que nos lleva a hablar sobre la época colonial respecto a la situación pandémica actual?, Aguilar et al. (2020, p. 15) describe que “las grandes epidemias del siglo XVI influyeron de manera determinante la manera en la que se instaló el orden colonial en estas tierras en los siguientes siglos”. [7] Ver también (Ruiz, 2016, pág. 12). Abya Yala, significa Tierra Madura, Tierra Viva o Tierra en Florecimiento, fue el término utilizado por los Kuna, pueblo originario que habita en Colombia y Panamá, para designar al territorio comprendido por el Continente Americano.

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Esto a la vez nos recuerda al qhipanayra[8] de Cusicanqui, quien advierte sobre el olvido direccionado de la memoria profunda, que desde el sistema opresor reduce a su mínimo cargo de conciencia y resarcimiento, respecto el precio del proyecto civilizador en opresión para con los otros; y desde el oprimido (indígena), continuar en la alienación de su ser, que lo eterniza en su padecimiento. Entonces, no sugerimos que sea esta la oportunidad a mera forma vengativa de colonizar e imponer un orden diárquico o autárquico inca y/o andino, pues sonaría descabellado y romántico a la vez, pero sí creemos que sea el momento de descolonizar, despatriarcalizar y desclasificar sociedades, y plantear mejor una alternativa coherente a la realidad en tiempos difíciles, como bien lo manifestaba (Quijano, 2014). La globalización en curso es, en primer término, la culminación de un proceso que comenzó con la constitución de América y la del capitalismo colonial / moderno y eurocentrado como un nuevo patrón de poder mundial. Uno de los ejes fundamentales de ese patrón de poder es la clasificación social de la población mundial sobre la idea de raza una construcción mental que expresa la experiencia básica de la dominación colonial y que desde entonces permea las dimensiones más importantes del poder mundial, incluyendo su racionalidad específica, el eurocentrismo (QUIJANO, 2014, p.778).

Entonces, tratando de responder la primera [8] Ver, (Arque, 2020, pág. 26) Q’ipanayras, sería el producto del pasado sustentado en la acción de activación y representación de la memoria profundainterpretado como futuro, lo que en consecuencia da el entendimiento sobre el tiempo andino, como una constante actualización del pasado con la incorporación de nuevos elementos de futuro reflejado como presente.


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cuestión en tanto subjetividad para mejorar las estructuras de la sociedad, debemos señalar que en la medida de lo posible y sea aceptada o no, la realidad peruana descansa en el pilar de una nueva universalidad basada en la diversidad, que otorgue sentidomás amplio a lo particular, que proyecte y consolide los espacios públicos de diálogo, consenso y cohesión, “identificando la nación y una nueva modernidad desde lo popular-nacional, de lo andino” (ALCÁNTARA, 2014, p. 63). Esto se puede comprobar, incluso con la tradicionalidad expelida consciente o inconscientemente por sus ciudadanos; ello nos lleva a entender que, incluso la más cruenta extirpación de idolatrías, así como la más basofiante colonización, no ha conseguido borrar del ADN social a la cultura andina. Es a partir de ellos que nos es posible postular la restructuración de la organización social bajo fundamentos prístinos de la comunidad respecto la individualidad, pues deberá ser esa misma comunidad la que reordene la individualidad de sus seres humanos. Ya Reyes (2020) lo señalaba: El indio, a pesar de las leyes de cien años de régimen republicano, no se ha hecho individualista. Y esto no proviene que sea refractario al progreso como pretende el simplismo de sus interesados detractores. Depende, más bien, de que el individualismo, bajo un régimen feudal, no encuentra las condiciones necesarias para afirmarse y desarrollarse. El comunismo, en cambio, ha seguido siendo para el indio su única defensa. El individualismo no puede prosperar, y ni siquiera existe efectivamente, sino dentro de un régimen de libre concurrencia. Y el indio no se ha sentido nunca menos libre que cuando se ha sentido solo”. (REYES, 2020, p. 02)

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Sin embargo, existe una pequeña precisión que dar bajo tal argumento, pues si bien los estados nacionales bajo el contrato social individual para con sus ciudadanos, y todo el proceso histórico no ha expelido toda la tradición cultural, es la economía y la globalización del sistema la que eliminando fronteras culturales, obligándolas a dialogar, resultando de esta inmediatamente una subordinación de principios que concluyen en subordinación social e instrumentalización cultural, que denota al individuo actual. La realidad comunal está siendo cada vez más consumida en la actualidad, por lo que son sólo vestigios de quienes fueron los runas[9], ahora casi extintos en la desolación de sus montañas, las que resisten, soportan y sostienen su organización comunitaria. La insostenible realidad actual de las comunidades sustenta la irreprochabilidad de los cholos, pues si bien la transición de lo que fueron y ahora son, no fue cuestión de elección, sino de imposición. El panorama actual destella una pequeña posibilidad complementada por la ciclicidad histórica y metódica dialéctica, pues entendiendo a que todo está en un constante cambio de cómo quien fue semilla, para ser flor, seguidamente fruto y finalmente volver a ser semilla, la comunalidad responde al mismo proceso,

[9] Runa, dícese al ser humano colectivo andino, denominación que incluye al varón y la mujer de los andes.


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pues si bien el desarrollo y modernidad occidental ha llevado a la desolación andina de la comunidad y repudio total de su ruralidad, es hoy que la comunidad se expresa como inalienable y sustentable de fundamento. La restructuración andina es posible en la medida que sus principios y valores sean nuevamente puestos en práctica, pues si bien la teorización andina se basa en su practicidad de vida, son momentos de dificultad las que han vuelto a repensar tal vigencia. Un aspecto central, si queremos democratizar la sociedad en América Latina, es “democratizar el conocimiento ya que al darle credibilidad a los diferentes saberes les estamos dando credibilidad a las propias comunidades que producen conocimientos” (MEJÍA, 2009, p. 84). Con respecto al segundo postulado, es un hecho que el propio sistema ha demostrado su orientación al fracaso, al punto de entrar a tal contradicción del antes detestar posturas relacionadas al comunismo y socialismo, y ahora en la actualidad proporciona medidas más socialistas y comunistas que las propiamente hechas por sistemas donde rige dicha línea, empero seamos cuidadosamente analíticos, pues si bien esto podría llevarnos a concluir como el fin del sistema capitalista, se bosqueja posibilidades de una reestructuración más feroz, pues tengamos en consideración que su perdurabilidad actual se conecta con vías artificiales asistidas por sus micro Estados, que al mero estilo del plan Marshall de Europa o el New Deals de Norteamérica, hacen “inyecciones

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económicas surtidas como especie de mecanismos artificiales para aplazar su deceso, que extienden y conectan la paternalista dependentista desde el exterior, lo cual asegura el anclamiento futuro y oportunista para su aprovechamiento como eterno patio trasero. Una cosa es aprender del mundo más amplio en que dicha cultura se inserta, otra bien diferente verse barrido por ese mundo; “de ahí que las naciones más pequeñas pueden necesitar el derecho a autogobernarse para controlar la dirección y la velocidad del cambio” (KYMLICKA, 1996, p. 147), sea cual fuere, es este el momento de transición que deberá ser aprovechada, para la reorganización, reestructuración y restablecimiento social y así generar una nueva y más consciente sociedad colectiva y comunitaria.

Interpretación cualitativa del fenómeno: Dada la naturaleza de la investigación y acorde a los fines planteados por los investigadores, a continuación, se expresan los resultados de criterio correspondiente al objetivo general señalado, derivado de la aplicación de los instrumentos y métodos a los informantes, así mismo se ha hecho la interpretación funcionalmente conectada con la teorización de los anteriores apartados.

a) A la pregunta ¿Qué tendencia política es la de tu gobierno?


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Responde al objetivo principal de desempeño de los sistemas de gobierno en la región y como información general de la tendencia política propugnada desde los entrevistados, ello con la finalidad de avizorar el fenómeno pandémico y su respectivo tratamiento desde cada uno de estos; así mismo se interpreta que equivale a la tendencia política de izquierda de países consideradas como comunistas y/o socialistas, una gran mayoría a la postura política de derecha o capitalistas; esto colige por tanto que en América Latina y América insular la tendencia política es capitalista, aunque bajo criterios subjetivos propias de la investigación se concluye que aún no existe una definición clara de la postura de los países Latino Americanos, debido a la crisis institucional partidaria, que ha llevado a la auto definición como híbridos, como es el claro caso de Perú y Ecuador, en cambio, se concibe que países como Cuba aún mantienen su postura política hasta la actualidad.

considera especificar que respecto países como Cuba, Alemania y Uruguay, son quienes tienen una considerable mejor respuesta desde sus estados al fenómeno mundial, ello derivado de la institucionalidad creada desde sus gobiernos; países como Ecuador, Brasil y Perú han denotado un retraso en las medidas, ello en función de institucionalidad interna y otro en razón y mérito al tipo de mandatario que conduce cada país.

b) A la pregunta ¿Cuál es el Panorama en tu país respecto el COVID-19?

c) A la pregunta ¿Cuál es el nivel de aceptabilidad desde la población respecto las políticas públicas en materia de salud, asistencia social y economía?

Responde a la percepción en tanto medidas de acción tomadas desde los entrevistados, acorde a las posiciones y tendencias políticas, resultando que la mayoría ha tomado acciones inmediatas frente a la pandemia del COVID-19 y pocos países no han tomado acciones o tuvieron retraso en las decisiones para el tratamiento de la emergencia sanitaria mundial. Así mismo, se

Interpretación cualitativa del fenómeno: Dada la naturaleza de la investigación y acorde a los fines planteados por los investigadores, a continuación, se expresan los resultados de criterio correspondiente al objetivo general señalado, derivado de la aplicación de los instrumentos y métodos a los informantes, así mismo se ha hecho la interpretación funcionalmente conectada con la teorización de los anteriores apartados.

Se tiene que los Estados, según los entrevistados, expresan su aceptabilidad sobre las acciones tomadas y materializadas en políticas públicas de índoles diversas (Salud, Asistencia Social y Económica), así mismo, se tiene que esta minoría obedece a países como Cuba,


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Alemania y Uruguay, los mismos que han resguardado indirectamente de la posición política del país, su fin primordial como estado cual es la sociedad; por otro lado se tiene que la mayoritaria, considera reprochable el desempeño estatal, lo cual colige que en tanto políticas públicas para el resguardo de la sociedad, se han priorizado otras cuestiones, estos son los casos de Brasil, Ecuador y Perú.

d) A la pregunta ¿Cual crees que sea el horizonte futuro respecto esta pandemia para tu país? Respecto a esta interrogante, los entrevistados consideran positivo y de posibilidades a los horizontes futuros respecto a la pandemia, considerando que ello propone cuestiones de cambio a niveles institucionales, estructurales y personales, bajo el sentido de repensar los actuales panoramas que en sentido propio del cambio de paradigma serán difíciles empero no imposibles. Por otro lado, otros lo consideran negativo e incierto respecto a la crisis y recesión económica en futuro, las cuales sólo se agravarían con gobernantes con tendencias políticas orientadas al capital, lo que colige la idea de imposibilidad de posibilidades.

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Conclusiones [10]: La caja de pandora, como muchos lo han señalado, ha sido abierta, empero ni siquiera el imperialismo sistémico es quien sabe cómo y cuándo cerrarla, la pugna entre el antiguo y nuevo imperio cesará sólo en cuanto éste nuevamente deslumbre con su sostenibilidad y sustentabilidad quimérica como modelo civilizatorio, mientras tanto todos los posibles escenarios se tornan más complejos, imposibilitando siquiera bosquejar posibilidades universales pero si expectativas locales que viabilicen acciones para tomar riendas y cambiar el curso de la historia, y subsecuentemente romper con el mito de la eternidad del capitalismo como formación única del horizonte social civilizatorio. Considerando que en América Latina existen 45 millones de personas indígenas equivalentes al 10 % de la población total latinoamericana (Broch; JEPSEN; LEIVA, 2017), ello nos colige que existen 826 formas prácticas de vivir alternativamente, y que la sola apreciación simplista que dan organismos como el Banco Mundial, bajo discursos que afirman la “existencia de condiciones estructurales que anclan a los pueblos indígenas a la pobreza e impiden el

[10] Agradecimientos or su colaboración brindada en las entrevistas virtuales respecto su realidad vivida en pandemia desde Alemania a María Eduarda Michelin, de Cuba a Madona Gonzales Yera, de Ecuador a Diego Alarcón Mejía, de Brasil a Julio da Silveira Moreira, de Uruguay a Alexis Capovianco, y Perú a Cesar Rodríguez Aguilar.


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desarrollo de su pleno potencial económico”, sólo hacen notar su desentendimiento del multiverso cultural, que posiciona su egocéntrica hegemonía como forma única y lineal de la dinámica cultural. No es ajeno a nadie el poder concluir que es el Estado que ha debilitado y fragmentado a las otras culturas, sea esta por políticas públicas que han anclado a los pueblos a su dependencia paternalista e inutilidad desarrollista, que hoy ven con desprecio y carga problemática estructural desde la economía, así como marginal desde lo político. El Estado peruano desde siempre ha sufrido la hidrocefalia y centralización en la capital bajo el pretexto del sueño del progreso, asemejada al sueño americano norteamericano, el mismo que llevó a un nivel exacerbado de migración del campo a la ciudad, este fenómeno provinciano responde no sólo como proceso histórico de desintegración de las comunidades andinas a través de la fragmentación de su organización comunal matriz, sino también de la alienación subjetiva que reajusta la lógica opresor-oprimido, esto explica a la vez la facilidad de expropiación de territorios que concuerdan con la idea de no querer ser más indígena, desencadenando finalmente la vulneración total de los derecho colectivos como comunidad, de quienes aún son y se proponen como alternativa de sociedad.

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El sistema de salud peruano, sin duda alguna, no fue prioridad dentro de los últimos gobiernos, ya que las gestiones populistas y demagogas de dichos gobiernos solo se limitaron al proceso electoral en su pugna por el poder. El destape de la estrepitosa corrupción sistemática estatal antecede como virus político al virus biológico e incluso es más letal, ya que la condición precaria y padecimiento como institución del sector salud ha derivado de ella, por lo que hoy ha negado en cuanto más humano y vulnerable es el hombre a su derecho universal como es el derecho a la salud. La medicina originaria, eternamente subalternizada, expresa ese mínimo posible para el aseguramiento de la salud de su población, se han manifestado muchos estudios del porqué de poblaciones originarias con bajo indicie de contagio y probabilidad de muerte, sin siquiera entender este conocimiento ancestral bosquejado en la comunidad; pues decir que es una enfermedad nacida de la naturaleza, es decir que su cura está en la misma naturaleza desde los originarios, no como cuestión de chamanismos ni romanticismos, sino diálogo y entendimiento con el todo.

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DOUTOR

EM

HISTÓRIA

PELA

UNIVERSIDADE

FEDERAL

FLUMINENSE

(UFF)

E

PROFESSOR

DO

CURSO

DE

HISTÓRIA E DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA DA UNIVERSIDADE ESTADUAL DO OESTE DO PARANÁ

(UNIOESTE),

LIVROS,

DE

PODER,

INTEGRANDO

“INTEGRALISMO

DIREITA,

E

HEGEMONIA,

O

GRUPO

HEGEMONIA DITADURA

E

DE

PESQUISA

BURGUESA” FASCISMO.A

HISTÓRIA

E

(EDUNIOESTE, COLUNA

SE

PODER.

2011)

E

É

AUTOR,

PESQUISA

DEBRUÇARÁ

SOBRE

ENTRE SOBRE A

OUTROS ESTADO,

DINÂMICA

DA

LUTA DE CLASSES, COM ÊNFASE NO PAPEL DAS ORGANIZAÇÕES DE DIREITA, NO BRASIL E NO MUNDO. PARA TANTO,

O

DEBATE

NO

BRASIL

PERPASSA

TAMBÉM

OS

SIGNIFICADOS

DO

PETISMO

E

O

PAPEL

DA

COLABORAÇÃO DE CLASSES NA CONSTRUÇÃO DESTA NOVA DINÂMICA SOCIAL, BEM COMO RECUPERAR O QUE FOI 2013 E SEUS IMPACTOS NA LUTA DE CLASSES DESDE ENTÃO. PARA ISSO, A COLUNA INICIA COM UMA

SÉRIE

ESPECIAL

QUINZENAL

SOBRE

GRAMSCI

E

O

FASCISMO,

RECUPERANDO

O

DEBATE

SOBRE

AS

CONDIÇÕES POLÍTICAS E SOCIAIS DA ASCENSÃO DO FASCISMO.

Entrevista

mug

0202/ORBMEZED/SERUS

Uma interpretação crítica e social dos números da pandemia"

Gilberto Calil Professor da Unioeste

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Acho importante recuperar como este trabalho se iniciou, pois foi algo inteiramente não planejado. Entre o final de fevereiro e meados de março, comecei a acompanhar de forma mais sistemática a evolução da pandemia no mundo. O primeiro caso registrado no Brasil foi em 25 de fevereiro e desde então comecei a observar o ritmo de evolução no país, ao mesmo tempo em que se conformava o discurso negacionista. Passei, então, a produzir quadros com números indicando o ritmo de evolução nos distintos países, tentando evidenciar que a situação era grave e que era irracionalista negar a gravidade da situação comparando os números de casos sem relacionar com o tempo de circulação na pandemia, como faziam os negacionistas bolsonaristas. No final de março, países europeus já registravam números alarmantes, mas mesmo com números mais baixos, o ritmo de expansão aqui era maior. Estes quadros que passei a divulgar eram bastante despretensiosos, mas tiveram certa circulação. A observação dos números permitia observar uma questão relevante, que é o fato de que o desenvolvimento de uma pandemia é determinado pela articulação entre aspectos especificamente biomédicos, relativos ao comportamento do vírus, e aspectos relacionados ao comportamento social. E embora eu não

tenha formação e qualificação para avaliar o primeiro aspecto, passei a concentrar a atenção no segundo, observando os discursos públicos, as políticas governamentais e os comportamentos sociais em distintos países, percebendo que produziam resultados radicalmente distintos. No início de abril, na sequência do desastroso discurso de Jair Bolsonaro de 24 de março, que sistematizou sua perspectiva negacionista, e quando circulavam intensamente informações falsas nas redes sociais, publiquei um primeiro texto sobre a construção da tragédia brasileira que estava em curso (esquerdaonline.com.br/2020/04/05/brasila-construcao-da-tragedia/). Passei então a publicar textos com análise dos números, tentando identificar as diferentes tendências de evolução da pandemia, e ao mesmo tempo comecei a realizar o programa Números da Pandemia, inicialmente diário, e que mantém-se com duas edições semanais, já tendo mais de 120 edições realizadas (www.youtube.com/playlist? list=PLJCjTsoxOhd9eun7fvRhRUBI12snsmP 9). Em termos metodológicos, a análise foca essencialmente a conexão entre as políticas governamentais e as diferentes formas de desenvolvimento da pandemia, buscando compreender como tais políticas fazem com que alguns países ainda tenham menos de 10 mortes por milhão de habitantes enquanto outros chegam a 1000. Ao mesmo tempo, a análise do processo brasileiro propõe uma reflexão que considera o negacionismo como elemento constituinte da estratégia de fascistização de Bolsonaro, o que considera como elementos articulados a disseminação de falsas informações, os pronunciamentos e atitudes de Bolsonaro, a divulgação de medicamentos ineficazes, o discurso em

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SURES - O SEU TRABALHO COM OS NÚMEROS DA PANDEMIA É CADA VEZ MAIS CONHECIDO E UTILIZADO, TANTO EM UNIVERSIDADES, COMO EM PARTIDOS POLÍTICOS E SINDICATOS, PARA AVALIAR O AVANÇO DA DOENÇA E CONTRAPOR O NEGACIONISMO IMPERANTE NO ATUAL GOVERNO. ENTÃO, INICIALMENTE, PERGUNTAMOS: COMO VOCÊ REALIZA O SEU TRABALHO? QUAL A SUA METODOLOGIA? QUAIS SÃO AS FONTES PARA O LEVANTAMENTO DOS DADOS? QUAIS OS REFERENCIAIS TEÓRICOS PARA LEITURA E ANÁLISE DOS NÚMEROS, ESTATÍSTICAS E GRÁFICOS?

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SURES - DURANTE TODO ESSE PERÍODO DA PANDEMIA, TEMOS OBSERVADO UMA FORTE DISPUTA PELOS NÚMEROS NA TENTATIVA APONTAR DIFERENTES LEITURAS SOBRE A REALIDADE QUE ESTAMOS VIVENDO. COMO ESTAS DISPUTAS POLÍTICAS SOBRE AS ESTATÍSTICAS DA PANDEMIA TÊM INFLUENCIADO A FORMA DE COMBATER A PANDEMIA PELO GOVERNO E TAMBÉM O PRÓPRIO COMPORTAMENTO DA SOCIEDADE?

De acordo com a agência Aos Fatos de checagem de notícias falsas, Bolsonaro defendeu 34 vezes a hipótese de que a superação da pandemia só ocorrerá quando uma parcela da população tiver sido contaminada (geralmente estimada em 70%). Subdimensionar a letalidade, abrandar controles e estimular comportamentos antissociais são decorrências desta política, que em termos políticos lhe permitia ainda ter o monopólio das ruas, já que apenas seus seguidores realizavam manifestações, o que se deu até a emergência do movimento antifascista e antirracista em junho. Coerentemente com isso, sabotou as políticas – já muito tímidas, limitadas e

insuficientes – de dois ministros da saúde e de governadores e prefeitos e logrou atingir uma situação de completo descontrole. Sistematicamente, Bolsonaro atuou no sentido de naturalizar as mortes, disseminando um discurso eugenista e que responsabiliza as próprias vítimas, que teriam perecido não em virtude da omissão governamental, mas por terem “comorbidades”, omitindo o fato de que as inúmeras comorbidades relacionadas abarcam grande parte da população brasileira. O coroamento desta política deu-se com a intervenção militar no Ministério da Saúde que passou a restringir a divulgação pública dos dados e a realizar uma verdadeira guerra de informações. Isto se explicita de forma particularmente bizarra e agressiva com a campanha desenvolvida pela Secretaria de Comunicação, que propõe “comemorar” o elevado número de “recuperados”, omitindo as inúmeras e dramáticas sequelas de grande parte dos contaminados e que perduram por semanas ou meses. Desta forma, o dado dramático de que estamos entre os países com os mais altos índices de contaminação (chegando a 3% no final de novembro nos dados oficiais, possivelmente entre 10% e 20% na realidade), que expressa o terrível fracasso das políticas governamentais, é paradoxalmente saudado e comemorado.

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defesa da contaminação generalizada em busca da chamada “imunidade coletiva”, a restrição de testes e a guerra de informações disseminada sobretudo a partir da militarização do Ministério da Saúde (www.niepmarx.blog.br/revistadoniep/index. php/MM/article/view/372). Mesmo reconhecendo as omissões e manipulações dos dados oficiais, é possível produzir uma interpretação crítica, que, por exemplo, considere em conjunto o número de casos registrados e a relação entre testes realizados e resultados positivos; ou ainda complemente a análise do número oficial de óbitos com os registros de Síndrome Respiratória Aguda Grave não especificada (que já passavam de 60 mil em 19 de outubro, quando o Boletim Epidemiológico deixou de ser publicado).

SURES - NO CASO DO ATUAL PRESIDENTE BRASILEIRO, QUAIS FORAM AS ESCOLHAS TOMADAS E COMO OS DADOS DA SUA PESQUISA REFLETEM A COMPLEXIDADE POLÍTICA, ECONÔMICA E SOCIAL DESSE GOVERNO E O QUE O DIFERE DOS DEMAIS PAÍSES SUL-AMERICANOS NO ENFRENTAMENTO À COVID-19?

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SURES - NO INÍCIO DA PANDEMIA, A COVID-19 FOI CHAMADA DE DEMOCRÁTICA COM O ARGUMENTO DE QUE ALCANÇAVA TODAS AS CLASSES SOCIAIS. NO PROCESSO QUE VIVENCIAMOS NOS MESES SEGUINTES, ESSA IDEIA AINDA SE SUSTENTA? OS ÍNDICES DA CONTAMINAÇÃO E DAS MORTES PODEM NOS DAR UMA LEITURA SOCIAL SOBRE A DOENÇA?

Também em relação a este aspecto, a militarização do Ministério da Saúde vem tornando cada vez mais difícil uma avaliação concreta embasada em dados detalhados. Informações relativas ao perfil social e étnico das vítimas deixaram de constar no Boletim Epidemiológico a partir da militarização do Ministério da Saúde, que além disso não é publicado há mais de 40 dias. Mas os dados que se têm são suficientes para mostrar que os setores populares e a população preta e parda, além de terem maiores índices de contaminação, também tem uma letalidade proporcionalmente maior, o que se explica não apenas pela maior presença de comorbidades, mas especialmente pelo fato de que em geral demoram mais a receber atendimento e a ter internação hospitalar, o que é determinante no desenvolvimento da doença. Além disso, é inegável que quanto maior a condição de precariedade das relações de trabalho, há menos condições de proteção e maior exposição à contaminação.Ainda assim, trata-se de um vírus sobre o qual os conhecimentos avançam rapidamente, mas ainda são parciais e que não é inteiramente compreendido e em relação ao qual não há medicação específica estabelecida, e, portanto, mesmo entre os que possuem todos os recursos e tem acesso a atendimento e internação, uma parte pode igualmente perecer.

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Atualmente a maior parte dos países latinoamericanos apresenta números dramáticos, com mais de 700 mortes por milhão de habitantes (Brasil, Peru, Equador, Bolívia, Argentina, Chile, Colômbia). As exceções são Paraguai, Venezuela e Uruguai, que no final de novembro registravam (242, 31 e 22). Mas o quadro dramático compartilhado pelos principais países não significa um desenvolvimento homogêneo. O governo brasileiro, se estivesse disposto a conter a pandemia, teria a sua disposição uma estrutura formidável através do Sistema Único de Saúde, incluindo milhares de agentes comunitários de saúde, algo que não encontra similar nos países andinos. É por isso que foi necessária uma intervenção ativa e sistemática de Bolsonaro para produzir efeitos dramáticos que em outros países deram-se mesmo sem que os governos se assumissem explicitamente negacionistas. No entanto, dentre os sete países com piores resultados, apenas a Argentina teve um governo que atuou de forma sistemática para conter a pandemia, tendo obtido resultados muito positivos até junho. Desde então, a expansão descontrolada da pandemia deu-se como resultado das ações e manifestações produzidas pela direita argentina, que defendeu e disseminou comportamentos ostensivamente antissociais e produziu uma situação dramática. O Peru, devastado por uma sequência de governos neoliberais, tem a pior letalidade do continente, enquanto o Equador, com o repressivo governo Moreno, e a Bolívia sob o comando do governo golpista, tem números igualmente muito elevados, mas que se estima serem na realidade muito piores, com base no número de mortes acima da média histórica.

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Penso que devo ser prudente na resposta a esta questão, em virtude dos limites determinados pela minha área de formação. Os números certamente não permitem dizer quanto fôlego ainda tem a pandemia, nem dão indicadores claro sobre questões como sazonalidade (que se fosse determinante de forma exclusiva, implicaria em uma baixa no número de casos no Brasil neste momento, ao contrário do que ocorre). O que me parece seguro afirmar é que esperar a resolução da situação através da contaminação indiscriminada para produzir “imunidade coletiva” é inteiramente descabido. Basta observar que o estado de Roraima, um dos que tem a pior relação entre testes e resultados positivos, já tem mais de 10% da população contaminada (mais de três vezes a média do país). Portanto, mesmo que aquele estado já tivesse em situação de estabilidade por saturação, ainda teríamos que triplicar o número de casos e mortes. Mas sequer é possível dizer que a pandemia esteja sob controle na Roraima. Na Itália, a cidade de Milão, que foi epicentro da pandemia em março e abril, é hoje novamente a cidade com maior número de contaminações. Portanto, parece inteiramente descabido apostar neste caminho.Uma solução provisória, que está inteiramente fora de cogitação na maior parte da América do Sul, é a interrupção da transmissão comunitária, que se deu em países como o Vietnã pelo fechamento precoce do país (logrando ter até hoje 35 óbitos, tendo quase metade da população brasileira) ou através de lockdown seguido de reabertura gradual, que

permite que o país mais populoso do mundo esteja há mais de seis meses sem registrar óbito (e ainda que se possa legitimamente desconfiar das informações oficiais chinesas em relação à inexistência de óbitos no período, parece inquestionável que conseguiram interromper a transmissão comunitária. A outra alternativa passa pela vacinação, dado que a produção de uma medicação segura e efetiva parece muito mais distante. E neste ponto, novamente a politização e o negacionismo marcam a política do governo brasileiro. Os resultados que temos hoje parecem promissores, com dificuldades econômicas, logísticas e de produção, mas não parece haver outro caminho para a superação da pandemia que não passe pela vacinação em massa, em patamar suficiente para interromper a circulação comunitária do vírus (índice que só poderá ser determinado a partir do índice de eficiência da vacina).

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SURES - OS DADOS QUE VOCÊ VEM ESTUDANDO APONTAM PARA ALGUM CENÁRIO PÓS-PANDEMIA? QUAIS AS PERSPECTIVAS EM RELAÇÃO A SUPERAÇÃO DA CRISE SANITÁRIA PELOS GOVERNOS NA AMÉRICA LATINA?

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VULNERABILIDADE SOCIAL EM TEMPOS DE PANDEMIA SOCIAL VULNERABILITY IN PANDEMIC TIMES MARIA LUCIA ALVES FABIANO (1)

Resumo

Abstract

O presente texto tem o objetivo de discutir sobre o nosso atual modo de vida em tempos de pandemia (Covid-19), e de que forma a sociedade está lidando com tantas mudanças e disparidades. Além disso, estamos diante de uma nova crise planetária, na qual precisamos repensar nosso modo atual de vida e encarar que os rumos que a humanidade tomou estão nos levando ao caos social, econômico e ambiental. Por isso, faz-se necessário e urgente aprofundar as discussões sobre a retomada do papel do Estado e das políticas voltadas aos mais vulneráveis, tão necessárias em momentos de crise, de forma que a relação saúde-enfermidade e sua correlação com dilemas atuais de ordem social, política e econômica nos faça compreender melhor o momento atual e também os rumos que podemos tomar. Palavras-chave: Covid-19. Vulnerabilidade. Políticas. Estado.

This text aims to discuss our current way of life in times of pandemic (Covid-19) and how society is dealing with so many changes and disparities. In addition, we are facing a new planetary crisis in which we need to rethink our current way of life and face the directions that humanity has taken, which are leading us to social, economic and environmental chaos. Therefore, it is necessary and urgent to deepen the discussions on the resumption of the role of the State and the policies directed to the most vulnerable, so necessary in times of crisis, so that the healthdisease relationship and its correlation with current social and political dilemmas and economic, make us better understand the current moment and also the directions we should take. Keywords: Covid-19. Vulnerability. Policies. State

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Doutora

em

Ciências

Sociais

e

mestra

em

Economia

Política pela PUC-SP. Docente da Universidade Estácio de Sá - São Paulo. luciafabiano@uol.com.br ORCID - https://orcid.org/0000-0001-9675-5106 LATTES - http://lattes.cnpq.br/1034340973727271.


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INTRODUÇÃO A vida mudou de repente, num piscar de olhos sentimos a fragilidade de nossas vidas, são tantas questões que de repente invadem nossos pensamentos e nos fazem refletir sobre o que realmente importa. Aquela correria toda em busca do “ter”, que agora nos parece tão banal, pois simplesmente nos sentimos impotentes diante de algo que não podemos ver ou conter, pois não podemos impedir que chegue até nós ou até aqueles que amamos. A humanidade está alarmada e não sabe o que fazer diante de um vírus tão devastador que nos tira da vida de maneira tão abrupta e repentina. E agora? Essa é a primeira pergunta que nos fazemos diariamente, desde que tudo isso começou. Quando voltaremos ao normal de nossas vidas? Será que vale a pena voltar aquele normal? O que precisamos aprender e mudar? Como iremos continuar? Será que nos tornaremos pessoas melhores? Será que a partir de agora olharemos com mais amor e empatia ao sofrimento alheio? Ou será que a humanidade simplesmente continuará da mesma forma? No entanto, para refletirmos sobre o presente, precisamos também olhar para o passado, ver o que aconteceu e encarar que essa não é a primeira vez que uma pandemia desestabiliza a humanidade, que nos coloca todos no mesmo lugar de impotência e de fragilidade. Contudo, apesar da Covid-19 surgir como uma doença que

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pode contaminar a qualquer um, independentemente do status social, o que ela tem de alcance geral, tem também de desigual, pois pode afetar de forma desproporcional determinados grupos sociais, dentre eles os mais fragilizados: enfermos, idosos e, especialmente, aqueles em situação de maior vulnerabilidade socioeconômica. Tal fato escancara as profundas desigualdades sociais, econômicas e culturais a que estamos submetidos. Haesbaert (2020) também reflete sobre a situação atual e argumenta sobre um ponto importante em relação aos mais pobres, destacando que não se pode exigir que os mais pobres se submetam a reclusão temporária, pois ela só é realmente possível e segura para os mais ricos, que dispõem de condições para o distanciamento social e o isolamento. De acordo com essa visão, surge no debate a questão da vulnerabilidade de uma grande parcela da população que ficou exposta de forma aguda na pandemia da Covid-19. O conceito de vulnerabilidade que surgiu em meados dos anos 1980 inicialmente associada a aspectos epidemiológicos e individualizantes, com o foco da vulnerabilidade social no sujeito a partir da possibilidade de exposição da pessoa à infecção pelo vírus HIV/AIDS (AYRES, et al., 2009), ganhou a partir da década de 1990 um maior espaço na produção científica e também no discurso daqueles que trabalham com saúde e assistência social.


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Contudo, de lá para cá houve uma evolução do termo e do seu entendimento, que assumiu várias conotações e atenta para diferentes contextos sociais, designando, por exemplo, grupos ou indivíduos fragilizados, seja de forma econômica, jurídica ou política, que necessitam de auxílio e proteção para a garantia de seus direitos como cidadãos. Dessa forma, assim como Ayres et al. (2009) e Figueiredo & Noronha (2008), entendemos que o vulnerável carrega, nesse sentido, a ideia do mais fraco, ou seja, aquele que está em desvantagem quanto ao critério de distribuição (renda, serviços, qualidade de vida, educação, saúde, etc.) e que deve ser alvo de políticas públicas específicas de auxílio e de busca de garantia de direitos, caracterizando uma parcela da população cada vez maior que se encontra em uma situação desfavorável em relação a outros grupos populacionais. Importante também destacar que entendemos que o conceito de vulnerabilidade social não está somente associado à pobreza ou a questões econômicas, pois as próprias características do Estado acabam interferindo nessa definição, uma vez que as desigualdades presentes em uma dada estrutura social interferem no grau de vulnerabilidade dos diversos grupos a ela pertencentes (BRASIL, 2004). Dessa forma, a vulnerabilidade surge de um resultado negativo entre a disponibilidade de recursos materiais e simbólicos dos atores, sejam eles indivíduos

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ou grupos, e o acesso à estrutura de oportunidades sociais, econômicas e culturais (FIGUEIREDO & NORONHA, 2008) disponíveis nessa sociedade. De acordo com essa visão, Palloma Menezes (CEE, 2020), socióloga e pesquisadora das questões raciais e de gênero, aponta que os dados indicam que a Covid-19 tem sido mais letal entre a população negra do que entre os brancos, sendo um ponto de partida essencial para debater essa vulnerabilidade maior e reconhecer a desigualdade estrutural presente na sociedade brasileira. Segundo a socióloga, um levantamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE (2018) aponta que 75% dos mais pobres no país são negros, e com isso, a pandemia tornou essa desigualdade de renda étnicoracial mais explícita no Brasil, além de destacar o quanto temos pouca sensibilidade para pensar nisso e nos efeitos devastadores que isso causa nesse grupo populacional. Sendo assim, a condição socioeconômica é fundamental no combate à pandemia, e mais, na garantia da vida, portanto, o momento é propício para que façamos uma reflexão séria sobre nosso modo de vida nesse planeta e o que contribuiu para nos deixar tão vulneráveis e ameaçados em pleno século XXI, apesar de todo o avanço tecnológico, inclusive na medicina que temos ao nosso dispor.


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Butler (2015) lembra-nos de que há um elemento comum que nos vincula uns aos outros: a precariedade da vida e que sem abrigo, alimento ou formas de sociabilidade e trabalho não há vida que seja garantida, do mesmo modo que não existe a possibilidade de afastar de nós o sofrimento e a mortalidade. Por essa razão, Sousa (2020) coloca que a condição precária é politicamente induzida, fazendo com que certas populações sejam expostas a formas diferenciadas de vulnerabilidade, conforme a organização das suas redes de apoio, tanto social como econômico. É certo que todos estamos olhando para o desenvolvimento da pandemia, mas é necessária uma visão mais abrangente do que está acontecendo no mundo, na América Latina e, especialmente no Brasil. No caso brasileiro, a pandemia tem escancarado de forma latente diversos problemas, dentre eles, um sistema de saúde precário, que apesar de ser um dos maiores sistemas de saúde público do mundo, chamado Sistema Único de Saúde SUS, e das inúmeras conquistas e avanços desde a sua criação em 1988, que atende 74% da população do país que depende exclusivamente da saúde pública conforme dados da Pesquisa Nacional de Saúde – PNS, realizada em 2019, IBGE (2020a), enfrenta diversos problemas. Entre estes problemas estão: a falta de médicos, agravada nas regiões Norte e Nordeste, o longo tempo de espera para consultas e tratamentos, estrutura precária, tudo isso

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ocasionado por um sistema mau gerenciado e financiamento insuficiente para atender toda a população; problemas que certamente foram agravados diante da necessidade de maior utilização do sistema de saúde durante a pandemia. Outra realidade que se apresenta são as condições inapropriadas de habitação e de saneamento básico que, de acordo com pesquisa dos indicadores sociais do IBGE (2020b), com dados a partir da PNAD contínua, mostram a marcada concentração de renda observada no Brasil, bem como as significativas desigualdades regionais e raciais, que se refletem nas condições de moradia da população e no acesso ao saneamento básico, que demonstra as situações de precariedade e vulnerabilidades em maior proporção a população que enfrenta situação de pobreza monetária. A pesquisa ainda mostra que uma proporção de 21,6% da população brasileira residia, em 2019, em domicílios nos quais havia ao menos uma inadequação domiciliar – isso significa que ao menos 45,2 milhões de pessoas, residentes em 14,2 milhões de domicílios, enfrentavam algum tipo de restrição ao direito à moradia adequada, em seus elementos de acessibilidade econômica, habitabilidade ou segurança da posse. Em 2019, 2,6% da população brasileira (5,4 milhões de pessoas) vivia em domicílios sem banheiro de uso exclusivo, tal desigualdade se agrava em certas regiões brasileiras, por exemplo, em estados da região Norte, os quais mostram que


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apenas duas em cada dez residências têm rede geral de esgoto ou fossa séptica e banheiro exclusivo. As questões de saneamento são vitais em relação à saúde da população e tais discrepâncias no acesso aos serviços públicos e também de renda no país, entre outros fatores, demonstram a falta de condições, em lidar com uma doença tão letal. De acordo com o Banco Mundial (WORLD BANK, 2020), o Brasil figura como o 9º país mais desigual entre 164 países pesquisados. Sendo assim, a maximização da precariedade recai nas populações mais pobres, que ficam expostas à fome, à violência do Estado e ao sofrimento, correndo maior risco de doenças. Isso porque os mais expostos à situação de vulnerabilidade são os mais desprovidos de proteção e suas vidas não têm valor efetivo (SOUSA, 2020). Entretanto, esse momento também está nos proporcionando criar uma nova compreensão do que estamos a fazer ao nosso país, ao planeta e a nós mesmos. Existe muita especulação sobre como será o futuro, que na realidade não passam de apostas na retomada do nosso modo de vida anterior. Neste sentido, podemos dizer que a pandemia nos abre a oportunidade de refletir sobre temas importantes como: Estado, poder, dimensões sociais e políticas de combate a pobreza, desenvolvimento de políticas de saúde pública e também ambiental, instigando sobre a necessidade de novos caminhos a serem percorridos.

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Apesar da doença epidêmica ser um evento biológico, se torna importante o diálogo entre as ciências sociais e biomédicas para ampliar o foco sobre o assunto, pois constitui-se, segundo Souza (2005) também, em um evento social, permitindo que o processo “saúde-enfermidade” seja estudado não só como um problema em si, mas também como uma ferramenta para discutir as intricadas relações sociais e de poder, os valores sociais, as concepções culturais e as práticas institucionais de nossa sociedade. Sendo assim, o texto tem o objetivo de retomar algumas discussões e instigar novas reflexões sobre o papel desempenhado pelo Estado, principalmente em momentos de crise, além de trazer para o debate a necessidade de um mundo mais sustentável, passando pela remodelação do sistema econômico atual para a diminuição das desigualdades existentes, e assim, para um melhor enfrentamento de doenças epidêmicas como a Covid-19 e tantas outras mazelas que assolam a humanidade.

UM OLHAR NO PASSADO E OUTRO NO PRESENTE Apesar da quantidade de anos que separam uma pandemia da outra é necessário que os debates e reflexões de como chegamos até aqui e como podemos sair melhores de tudo isso, se aprofundem.


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Por isso iremos resgatar um pouco sobre a conhecida “Gripe Espanhola” de 1918, um vírus influenza que se espalhou pelo mundo e causou milhares de mortes, além de muita dor e pânico, inclusive no Brasil, alterando as vidas de milhões de pessoas por todo o planeta, abalando economias e escancarando desigualdades. Um século depois estamos diante de uma nova pandemia, a chamada “Covid-19”, que igualmente causa mortes, apreensão e a necessidade de enfrentamento por parte da sociedade, principalmente dos governantes e da ciência, e que mais uma vez faz com que a humanidade possa repensar seu modo de vida e o que estamos fazendo e querendo para o planeta. Segundo Ranger e Slack (1995) a interpretação que se dá a uma doença ou às formas de lidar com ela liga-se às maneiras como ela foi vista no passado e como tais maneiras possibilitaram a comprovação ou a remodelação de suposições políticas, morais, sociais e médicas que existiam sobre ela. Sendo assim, mesmo em contextos completamente diferentes, é necessário compreender e comparar os momentos políticos, econômicos e sociais atuais com o de mais de 100 anos atrás, para avançarmos no sentido de encontrar soluções concretas e viáveis. De acordo com os historiadores Frederico Tomé e Deusdedith Rocha (JORNAL DE BRASÍLIA, 2020), entre as semelhanças das epidemias temos a falta de informações ou a difusão de informações distorcidas e/ou

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falsas, os problemas no sistema de saúde e o agravante da insalubridade que afeta principalmente quem mora em favelas ou em áreas urbanas mais pobres que sofrem com a falta de saneamento e de infraestrutura adequada, que são pontos que se repetem, além de se tornarem aceleradores para ambas as doenças. Durante a gripe espanhola, o discurso das autoridades em todo o mundo era o de minimizar o poder da doença (TORRES, 2007), por isso, houve uma demora das autoridades para tomar providências, pois acreditava-se que o vírus não era tão letal e passaria rapidamente, julgando desnecessário tomar qualquer ação preventiva, mesmo com a quantidade de óbitos subindo a cada dia e como enfatiza Torres (2007), apesar da clara dificuldade dos sistemas de saúde na capacidade de atendimento aos doentes. No caso do Brasil, somente após a situação se tornar crítica, a população e os jornais passaram a reivindicar medidas mais duras, porém as autoridades insistiram que isolamento social não era possível e nem necessário naquele momento. Em contrapartida, o governo sentindo-se pressionado censurou a mídia, proibindo a divulgação dos números de mortos e infectados por acreditar que ela causava pânico na população e ameaçava a preservação da ordem pública (BERTOLLI FILHO, 2003).


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Hoje, um século depois, apesar da amplitude dos meios de comunicação e da velocidade que a informação chega aos cidadãos através da TV, rádio, internet, com informações diárias sobre a ampla disseminação do vírus e seus efeitos sobre a saúde individual e coletiva, além da alta taxa de mortalidade quando comparada a outras doenças, foi recebida por muitos, incluindo governantes, como uma simples gripe. A negação ou minimização de seus efeitos, inclusive, pelo Presidente brasileiro Jair Bolsonaro, que mesmo diante da enorme crise sanitária resolveu adotar a gestão do caos como estratégia política, relativizando os impactos da doença e promovendo uma cruzada contra o distanciamento social, por meio da campanha “O Brasil não pode parar”, apelando para o retorno das atividades econômicas (SOUSA, 2020). Mesmo diante de tal posicionamento do chefe de Estado brasileiro, os médicos, cientistas e outros profissionais da área de saúde desde o início da pandemia procuraram esclarecer a população sobre a importância do isolamento ou distanciamento social, o uso adequado de máscaras, bem como a atenção a hábitos de higiene simples, como lavar as mãos para conter o ritmo de contágio do vírus. Tais medidas têm a finalidade não só preventiva, como também a de evitar sobrecarregar os sistemas de saúde, que não comportam um aumento repentino no número de pacientes que precisarão de cuidados médicos. Tal deficiência no

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atendimento de saúde escancara as desigualdades sociais, uma vez que, a vulnerabilidade dos mais pobres e dos mais fragilizados se torna um agravante para a mortalidade. Apesar do crescente aumento no número de mortes e infectados, as autoridades, e digo aqui, principalmente, o poder executivo federal, assim como há um século atrás, falham no atendimento a população, além de se eximirem da responsabilidade de tomar providências mais eficazes no combate da disseminação da gripe, deixando, no caso brasileiro, a responsabilidade aos Estados e Municípios a tarefa de controle da doença. No momento em que escrevo este texto, o Ministério da Saúde, através do PainelCoronavírus, que acompanha os casos no país, registra 172.561 mortes pela doença e contabiliza a triste marca de 6,3 milhões de casos de pessoas infectadas no país. O Brasil, desde o primeiro caso notificado em 29 de fevereiro de 2020, já chegou a incrível marca de 1.595 vidas perdidas em um único dia. Contudo, já estamos no final de novembro de 2020 e em meio a um debate que se apresenta de uma segunda onda de contaminação pelo Covid-19, ou como outros preferem, um repique da primeira onda que nem acabou, onde constata-se um número crescente de pacientes internados com doenças respiratórias graves em vários estados brasileiros, incluindo 10 capitais, entre elas, São Paulo, Porto Alegre, Rio de


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Janeiro e São Luís, de acordo com levantamento da Fundação Oswaldo Cruz – FIOCRUZ, ligada ao Ministério da Saúde, a partir de registros oficiais de casos de síndrome respiratória aguda grave (SRAG), incluindo a Covid-19. Há também relatos e dados oficiais de hospitais públicos e privados com leitos de unidades de terapia intensiva – UTI’s começando a operar novamente em alta chegando próximo ao seu limite de capacidade, principalmente em Estados como São Paulo, Rio de Janeiro, Ceará, Minas Gerais e Pernambuco, que estão entre os estados com o maior número absoluto de vítimas fatais desde o início da pandemia, além do Amazonas que tem o maior coeficiente de mortalidade no país (BBCNEWS, 2020). Como estamos em meio a pandemia os dados sobre a doença mudam em passo acelerado, de um dia para o outro em todo o país, mas o que se tornou uma constante são ações pouco eficazes em seu combate, uma vez que as medidas adotadas por estados e municípios de liberação e flexibilização das atividades econômicas, têm causado novamente um aumento dos casos de contaminação e mortes em todo o país Podemos notar, então, que há uma espécie de dramaturgia comum a ambas epidemias que, de modo geral, apresentam dilemas semelhantes sobre seu enfrentamento que parece se repetir ao longo da história (SOUZA, 2005). Infelizmente agora, como anteriormente, vemos um número crescente de vidas sendo ceifadas diariamente, sem

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que os governantes tomem medidas eficazes no seu combate ou controle. Sendo assim, apesar do tempo, da evolução na tecnologia e da facilidade de comunicação que poderia de alguma forma minimizar a transmissão, até que se encontre uma cura definitiva, vemos que as autoridades que podem e devem tomar providências não mudaram em quase nada seu modus operandi em relação a ambas epidemias, tratando a população mais vulnerável com desprezo e descaso, levando milhares a óbito. Por isso, é necessário avançar e discutir sobre o papel do Estado, e das políticas públicas necessárias, não somente dos governantes em nossa sociedade, pois somente assim poderemos encontrar soluções viáveis a longo prazo, pois governantes passam, mas o Estado continua, e precisamos cobrar que o Estado cumpra seu papel com responsabilidade, assegurando dignidade, principalmente aos mais vulneráveis e desprotegidos.

A NECESSIDADE DA RETOMADA DO PAPEL DO ESTADO Os impactos sociais e políticos que a pandemia tem causado no mundo e no Brasil retoma esse debate antigo que é o “Papel do Estado” e de que forma o Estado deve e precisa agir nesses momentos. Como coloca Dowbor (2020) a pandemia está recolocando na mesa a discussão, não do tamanho, mas sim da retomada do papel do


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Estado em áreas fundamentais de políticas sociais, de infraestruturas, e da descentralização radical dos recursos. Contudo, nos encontramos num momento crucial diante do que se acredita ser o papel do Estado nesse momento, afinal as economias, inclusive a brasileira, desde o século passado, vem implantando e defendendo políticas neoliberais cada vez mais austeras, que consiste em um Estado mínimo, tendo por fundamento a justificativa de que o mercado por si só consiste em um mecanismo de recursos econômicos autossuficientes e que é capaz de sozinho satisfazer as necessidades dos indivíduos (ANDERSON, 1995). Tal fundamentação teórica do pensamento neoliberal foi difundida primeiramente pela obra de Friedrich Hayek "O caminho da servidão" (1944), na qual o autor condena toda e qualquer limitação dos mecanismos de mercado por parte do Estado e considera o intervencionismo uma ameaça à liberdade, tanto à economia, quanto à política” (PINTO, 1988, p. 26). Nesse imaginário, o mercado é matriz da riqueza, da eficiência e da justiça (MORAES, 2002, p.15). Tais ideias, segundo a pesquisadora canadense Naomi Klein escritora do livro Los Años de Reparación (2020), foram disseminadas no continente latino-americano, inspiradas principalmente por Hayek, Milton Friedman e a Escola de Chicago usando a “doutrina do choque”, com políticas que impediram a participação cidadã, com a instalação de ditaduras cívicomilitares, processos de desindustrialização e

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altos índices de desemprego. Klein coloca que a Covid-19 tem aprofundado essa crise implementada pelas políticas neoliberais e a globalização, acentuando um crescimento exponencial do desemprego, precariedade do trabalho, pobreza e falta de moradia, além de acentuar o crescimento (também exponencial) da concentração e polarização da riqueza a limites insustentáveis, enquanto os 20% mais ricos da população mundial concentram 96% da riqueza, 80% (6,5 bilhões de pessoas), detêm apenas 4% dela. Sendo assim, a autora enfatiza que a Covid-19 revelou o que ela chama de “um mundo rompido”, onde o neoliberalismo causou uma imensa massa de excedente populacional descartável, vítimas da dinâmica econômica imposta pelos grupos dominantes, que agora estão diante de uma massa que não consegue mais servi-los, nem como mão de obra barata, pois foram substituídos por tecnologias, nem como consumidores, pois não possuem renda para tal, devido a seus níveis de pobreza e indigência (OUTRAS PALAVRAS, 2020). Assim, nos deparamos com a demonstração de precariedade do sistema neoliberal, na ausência de estrutura, na garantia de qualidade de vida da população, na garantia dos direitos básicos que deveriam pautar qualquer Estado de Direito (MACHADO e CASANOVA, 2020). Sendo assim, o resultado produzido pela miséria, que será causada pelo efeito cumulativo da pandemia e das medidas tomadas pelos países, sobre a


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projeção de uma vertente neoliberal, pode ter um resultado desastroso no desenvolvimento da sociedade. Partindo desse ponto vista, podemos dizer que os países se encontram em um dos maiores impasses desse século, pois estamos diante de uma pandemia que atinge a milhões de pessoas no mundo e necessitamos suprir as necessidades da sociedade, principalmente dos mais vulneráveis e desprotegidos. A grande questão que se apresenta é? Quem irá suprir estas necessidades, senão, o Estado? Por isso, precisamos de um Estado que rompa com décadas de desmonte de políticas sociais(1), contudo, mais do que definir Estado e suas funções, sem a pretensão de tratar a temática com a profundidade que merece, pois entendemos que a questão de abordagem das concepções metodológicas implicam pressupostos, sistematizações intelectuais, conceitos, posturas teóricas, proposições políticas, enfim, concepções de mundo e sociedade diferentes, mas apenas nos colocando nos limites deste texto, o intuito é focalizar, como o Estado pode e deveria interferir, além de se posicionar nos momentos de crise através de políticas (públicas) sociais que consigam comtemplar as demandas urgentes da sociedade, principalmente em um momento de

(2) Entende-se aqui por políticas sociais as ações que determinam o padrão de proteção social implementado pelo Estado, voltadas, em princípio, para a redistribuição dos benefícios sociais visando a diminuição

das

desigualdades

estruturais

produzidas

desenvolvimento socioeconômico (HOFLING, 2001, p 31).

pelo

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aprofundamento exponencial de uma crise que já estava em andamento. Assim, de acordo com tal posicionamento, a economista e pesquisadora Laura Carvalho, autora do livro “Curto-circuito: o vírus e a volta do Estado” (2020), defende a necessidade de se repensar as funções do Estado diante de uma crise que tem exigido gastos públicos em níveis sem precedentes em todo o mundo. A volta do Estado como indutor do crescimento e garantidor de um ambiente de bem-estar social. Contudo, a economista destaca que o elevado nível de endividamento global, inclusive do Brasil, pode gerar uma reação semelhante àquela vista após a crise de 2008-2009, que foi seguida por uma onda de austeridade fiscal e desmonte de políticas públicas em outros países. Para a autora existem duas questões urgentes a serem tomadas, sendo uma delas a questão da proteção e da renda básica universal, fundamental e necessária a uma boa parcela da população que se encontra sem emprego e sem renda; a outra é a necessidade de recursos para a área de saúde aliados a uma gestão mais eficiente. Para o pós-pandemia, Laura aponta que para uma recuperação mais rápida da economia, o Estado deve aparecer como investidor em infraestrutura dando sua contribuição para dinamizar a economia e, ao mesmo tempo, para superar algumas lacunas históricas que ficaram mais aparentes. Sendo assim, uma administração pública, numa concepção crítica de Estado, que considere sua função em atender a


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sociedade como um todo, não privilegiando os interesses dos grupos detentores do poder econômico, deve estabelecer como prioritários, nesse momento, programas de ação universalizantes que possibilitem a incorporação de conquistas sociais pelos grupos e setores desfavorecidos, visando à reversão do desequilíbrio social. Como coloca Hofling (2001) [...] “mais do que oferecer serviços sociais, as ações públicas, articuladas com as demandas da sociedade, devem se voltar para a construção de direitos sociais, ainda mais numa sociedade extremamente desigual e heterogênea como a brasileira”.

IMPACTOS SOCIAIS NO CASO BRASILEIRO Pensando nos efeitos da pandemia, especificamente no caso brasileiro, é necessário um olhar atento as demandas de nossa sociedade e o verdadeiro papel do Estado, tanto no combate a pobreza, na preservação do meio ambiente e do equilíbrio econômico para crescermos de forma sustentável e mais equilibrada. Um dado simplesmente alarmante para um país como o nosso e que precisa acender a luz vermelha para tal situação, ver que as coisas não estão seguindo no rumo certo e que apesar do baixo nível de produção brasileiro nos últimos anos. De acordo com a revista norte-americana Forbes, cerca de 206 bilionários brasileiros aumentaram suas fortunas em 230 bilhões de reais em apenas

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um ano entre 2018-2019, em contrapartida, no final de 2019 foi registrado cerca de 61 milhões de adultos no Brasil “negativados”, em bancarrota pessoal por excesso de pagamento de juros, além de mais de 6 milhões de empresas de acordo com o Serasa Experian, o que indica que as crises alimentam as grandes corporações e investidores, sugando do restante da sociedade. O Brasil está mergulhado numa crise econômica e política desde 2015, e vivemos desde então uma estagnação econômica que, segundo Dowbor (2020), se deve não ao Estado grande demais, mas fundamentalmente ao dreno generalizado de recursos, principalmente por parte das instituições financeiras, que através do endividamento das famílias, empresas e do Estado, drenam a capacidade de consumo, investimentos e de políticas sociais e de infraestrutura necessárias ao desenvolvimento do país. Tal situação faz com que a economia fique estagnada, aumentando o desemprego que no período entre 2014 a 2019, apresentou um aumento de 87,7%, culminando no 3º trimestre de 2020 com o índice de 14,1% (13,1 milhões de desempregados), de acordo com dados da PNAD Contínua (IBGE, 2020c) A partir de 2015 houve uma queda expressiva do número de ocupações formais, dando lugar a um aumento de ocupações informais, conforme dados do PNAD (2012-2019), com um número alarmante de 38 milhões de brasileiros em


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trabalhos informais, são homens e mulheres sem nenhum tipo de seguridade social ou proteção por parte do Estado. De acordo com o Observatório das Desigualdades (2020), o agravamento dessa situação se dá pela crise econômica e política vivenciada pelo país a partir de 2014, pela reforma trabalhista que possibilitou novas formas de contratação com menos garantias ao trabalhador, que perdeu os mecanismos de proteção social vinculados à formalização, como, direito a aposentadoria, licença remunerada (licença-maternidade, ou licença-saúde), ou até mesmo uma remuneração mínima, vinculada ao salário mínimo. Também houve um agravamento do fenômeno denominado “uberização” do trabalho, expressão que surgiu com a propagação dos aplicativos de entrega e de transporte de passageiros. Ainda se destaca que a precarização do trabalho não é aleatória em nossa sociedade, onde existem grupos sociais mais afetados pela informalidade, por exemplo, a população preta/parda que apresenta um índice de 47,4%, contra 34,5% da população branca, a média do país é de 41,6%, no período. Isso evidencia que existe no país, um crescimento da informalidade nos grupos historicamente excluídos socialmente, o que implica em menores rendimentos, direitos, segurança aos trabalhadores, e se distancia das ideias modernas de autonomia do trabalhador e aproxima-se da precarização do trabalho, com um resultado nefasto no

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aprofundamento das desigualdades. Essa é a condição de milhões de brasileiros invisíveis ou ignorados até então, que foi percebida após ficar exposta, por horas, nas filas imensas das agências da Caixa Econômica Federal – CEF para tentar receber o auxílio emergencial, aprovado pelo legislativo, através da Lei n. 13.982 de 02 de abril de 2020, que apesar de todo o empenho contrário do poder executivo federal, alegando falta de verba para seu cumprimento, autorizou, o auxílio de forma emergencial, para pessoas de baixa renda, trabalhadores autônomos, desempregados, trabalhadores informais e intermitentes, uma ajuda financeira inicialmente no valor de 600 a 1.200 reais com prazo de 3 meses, estendido para mais 3 meses, que de certa forma tem socorrido parte das famílias mais pobres, principalmente aquelas que tiveram sua renda diminuída ou cessada por conta da pandemia. Segundo a Caixa Econômica Federal – CEF e o governo federal (BRASIL, 2020b) até junho de 2020, cerca de 63,5 milhões de brasileiros já haviam recebido o auxílio emergencial. Contudo, foram processados 106,3 milhões e apenas 64,1 milhões estão entre os considerados elegíveis, isso implica na existência de milhões de pessoas que não se enquadram nos critérios do Governo para receber o auxílio, mas que certamente, necessitam e estão invisíveis aos olhos do Governo Federal, o que acentua o quadro de exclusão dessa população.


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O momento exige políticas públicas capazes de amparar a população e cuidar dela; entretanto, no caso brasileiro, o atual Presidente Jair Bolsonaro, ao invés de tomar medidas no sentido de respaldar essa imensa parcela de nossa sociedade que se encontra vulnerável e desprotegida, que necessita de ajuda, principalmente financeira, como a ampliação do auxílio emergencial por um tempo maior, apenas insiste no fim da ajuda e também do distanciamento social para a retomada mágica da atividade econômica. Contudo, essa postura só promove uma sucessão de crises políticas e desloca a atenção do combate à pandemia e de suas consequências para a incompetência administrativa e política dos seus ministérios e secretarias (SOUSA, 2020), sem que haja de fato medidas eficazes. Todas essas questões e dados levantados são importantes para compreendermos como o o Brasil, em meio a uma pandemia, está reagindo e lidando com as imensas e latentes desigualdades geradas por um sistema neoliberal que se mostra incapaz de servir a todos de maneira justa, intensificado por um projeto político que se elegeu com uma agenda econômica de diminuição da presença do Estado na economia e por isso conquistou a maior de parte das elites econômicas. Contudo, e apesar do momento político que vivenciamos, é necessário que discutamos os caminhos que podem ser tomados pelo Brasil.

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Nesse caminho da busca de soluções viáveis não só a curto, mas a longo prazo, surge nos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, dentro da Agenda 2030 com seus 17 objetivos e 169 metas a materialização de uma agenda que visa um novo equilíbrio entre o econômico, o social e o ambiental, que vem ganhando adesão de diversos governos, empresas e entidades a nível mundial que é a chamada “triple bottom-line”, ou seja, o tripé da sustentabilidade, que apesar de parecer pouco provável a adesão de economias mais desenvolvidas, grandes corporações, entidades e institutos, é impressionante a declaração assinada por 181 das maiores corporações americanas, comprometendose com o social e o meio-ambiente, validando as mudanças profundas e necessárias no sistema econômico atual em consonância com as propostas de inúmeros institutos de pesquisa de primeira linha mundial, como o Roosevelt Institute, nos Estados Unidos, o New Economics Foundation, na Inglaterra, e tantos outros (DOWBOR, 2019). Esse documento nos faz acreditar que podemos convergir sim, para um novo sistema, pois nele surgem palavras como “diversidade e inclusão, dignidade e respeito” – o que gera expectativas para quem acompanha como é trabalhar nessas grandes corporações, por exemplo, Walmart, Amazon, ou ainda nas linhas de montagem da Apple na China.


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necessidade de encararmos as economias de uma forma mais sustentável, farão com que os países consigam tirar milhões de pessoas da miséria que se encontram, para caminhar rumo a um planeta mais sustentável e menos desigual para seus habitantes.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Historicamente, as epidemias desencadeiam distúrbios sociais e políticos, sendo assim, é interessante perceber como coloca Goulart (2005) que a doença, como evento social, gera o estabelecimento de um repertório de discursos que fazem emergir o aparecimento de conflitos sociais e de resistência, que na maioria das vezes potencializam demandas legítimas por políticas públicas, que revitalizam os valores sociais. Portanto, surge a oportunidade para que através de ações efetivas, possamos mudar os rumos que a humanidade vem tomando e questionar o modelo de vida atual, e o modelo de vida que queremos no futuro. Como um dos pontos principais, entre tantos outros, para mudarmos esses rumos, Marjorie Kelly, pesquisadora e vicepresidente executiva de The Democracy Collaborative, cita em seu artigo “O fim da corporação como paradigma capitalista”, que precisamos passar para um novo tipo de sistema econômico que seja mais eficiente e sustentável do ponto de vista político e ecológico e acrescenta que necessitamos

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com urgência de uma economia política moral e democrática desenhada para o bemestar de todas as pessoas. Ou seja, precisamos de uma economia a serviço do bem comum, que implica que seja economicamente viável, mas também socialmente justa e ambientalmente sustentável. No conjunto, trata-se de repensar a função e o propósito da economia na sociedade. Afinal, a economia em princípio deve servir para vivermos melhor, e não para que estejamos a seu serviço, pois como coloca Dowbor (2020) [...] o problema do mundo não é econômico, é político. Não é de produção, é de distribuição e sustentabilidade. Desta forma, podemos aproveitar o momento terrível, neste cenário de catástrofe que a humanidade passa, para encararmos esta pandemia como uma construção de uma nova história, com o potencial muito importante para o desenvolvimento social, acreditando que a percepção da doença passa por uma intensa e complexa negociação social, modelada por diversas analogias e na interação entre ideias, que não ocorre apenas em uma única direção, seja de mudanças de ordem biológica, ou de respostas intelectuais ou políticas, mas sim caminha em várias direções e mudanças de processos e atitudes, que deve incorporar e refletir os valores e as relações de status dentro da sociedade.


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Foto: Covid-Latam/Ale Cegarra. El cruce peatonal El Chaparral entre México y Estados Unidos, en Tijuana, siempre tiene un par de horas de espera, pero ahora por el cierre de la frontera para viajes de placer la espera se redujo a unos pocos minutos. Tijuana, México.


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PASSAGENS DA ARTE MODERNA À PÓS-MODERNA RAFAEL MARINO (1)

Resumo

Abstract

Procurar-se-á, neste ensaio, delimitar algumas posições quanto à chamada arte contemporânea ou pós-moderna. Para tal, pretende-se seguir os seguintes passos: fazer, primeiramente, uma breve análise bibliográfica a respeito do modernismo e sua passagem para a chamada arte contemporânea e, em seguida, entender as particularidades das posições de diversos autores e as discussões sobre as relações entre arte moderna e arte contemporânea, dando ênfase às reflexões de Andréas Huyssen. A metodologia que guia o texto é a da leitura estrutural e a comparação de textos importantes para construção deste campo de debates a respeito das similitudes, diferenças, continuidades e rupturas entre a arte moderna e a arte contemporânea.

Palavras-chave: arte moderna; arte contemporânea; estética; filosofia da arte.

(1)

Doutorando

FFLCH

-

USP,

e

mestre

graduado

(2019) em

em

Ciências

Ciência Sociais

Política pela

pela

mesma

instituição, tem experiência na área de Ciência Política, com ênfase

em

Pensamento

político

brasileiro,

Teoria

Política,

Teoria crítica e marxismo. Desde 2013 participa do Grupo de Pesquisa participa

"Pensamento do

Grupo

e

Política

no

"Sequências

Brasil"

e

desde

Brasileiras";

2014

ambos

vinculados ao Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania (CENEDIC

-

USP).

Atualmente

cultural no SESC-SP.

é

técnico

de

programação

This essay aims to delimitate some specificities of the position on the so-called contemporary art or post modern art. To achieve this endeavour, the following steps will be taken: i) a brief bibliographical analysis of modernism and its transition to the so-called contemporary art; ii) understand the particularities of the positions of different authors and the discussions about the relationship between modern art contemporary art, emphasizing the reflections of Andréas Huyssen.. The methodology that guides the text is that of structural reading and the comparison of important texts for the construction of this field of debates regarding the similarities, differences, continuities and ruptures between modern and contemporary art.

Keywords: modern art; contemporary art; aesthetics; philosophy of art.


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FLUXO CONTÍNUO

1.Passagens entre modernismo e pósmodernismo Mesmo que de maneira bastante taxonômica e generalista é possível dizer que o período que compreende o modernismo artístico vai dos anos de 1860 até os anos de 1960, desde a abertura para pesquisas formais modernas por meio da superação das poéticas clássica e romântica propiciada pelos Impressionistas (ARGAN, 1992), como Monet e Cézanne, e uma poética do gesto dos dândis ingleses e franceses, feito Brummel e Baudelaire (GALARD, 2008)[2] até as vanguardas tardias, notadamente estadunidenses, como o expressionismo abstrato de Jackson Pollock e Mark Rothko, a Pop art de Andy Warhol e Roy Lichtenstein e as performances de Allan Kaprow[3]. Em meio a estes dois polos históricos, assistiu-se à proliferação de uma miríade de movimentos, estilos e vanguardas artísticas, que podem ser divididas, segundo argumenta Fabbrini (2012, p. 32), em duas linhagens distintas: de um lado, uma linhagem composta por vanguardas positivas e construtivas e, de outro, uma linhagem negativa e pulsional. A primeira liga-se fortemente ao desenvolvimento das forças produtivas de modo industrial, [2] Poética dos gestos que visava transformar de maneira utópica a vida e a sociedade ao aplicar a função poética à conduta, desmantelando o sentido supostamente pragmático dos movimentos. [3] As inovações vanguardistas se faziam presentes em todos esses movimentos tardios, mesmo que a vinculação entre arte e reconfiguração radical da realidade estivesse fora de questão ou por demais enfraquecida.

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ao aperfeiçoamento técnico e à fé construtiva nas máquinas, vistas como, em certo sentido, modelos para a reorganização racionalizada e progressista da sociedade. Deste modo, a produção massiva baseada em protótipos formais construídos pelos artistas levaria, via design, à disseminação da arte no cotidiano e ao desenho da vida, agora também tornada arte. Isto pode ser identificado no construtivismo russo e até mesmo no futurismo e que fica bastante claro no manifesto da Bauhaus de 1919, escrito por Walter Gropius (2018), que conclamava os artistas para a atividade construtiva: "O objetivo final de toda atividade plástica é a construção! Ornamentá-la era, outrora, a tarefa mais nobre das artes plásticas, componentes inseparáveis da grande arquitetura. Hoje elas se encontram em singularidade autossuficiente, da qual só poderão ser libertadas um dia através da consciente atuação conjunta e coordenada de todos os profissionais. Arquitetos, pintores e escultores devem conhecer e compreender de novo a estrutura multiforme da construção em seu todo e em suas partes; então suas obras se preencherão outra vez do espírito arquitetônico que se perdeu na arte de salão. [...] Desejemos, imaginemos, criemos juntos a nova construção do futuro, que juntará tudo numa única forma: arquitetura, escultura e pintura que, feita por milhões de mãos de artesãos, se elevará um dia aos céus como símbolo cristalino de uma nova fé vindoura" (GROPIUS, [1919] 2018)[4], [4] Outro exemplo bastante instigante nesse sentido seriam os vanguardistas russos dos anos iniciais da Revolução Russa, para quem os artistas deveriam, em meio ao esforço de construção de uma sociedade comunista, tornar-se produtores de objetos e não mais de ideias e representações (ALBERA, 2002, p. 173). Nesse bojo, as artes industriais, como aparece em “O manifesto de Outubro (1928)”, seriam essenciais, já que produziriam um efeito durável na sociedade, concentrando-se especialmente na construção planejada, na formalização artística dos objetos de consumo de massas produzidos em escala industrial e dos centros coletivos (clubes, cantinas, etc.) e na educação artística (apud ALBERA, 2002, p. 191).


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A segunda, por seu turno, apostava no esguiçar do maquinário industrial, efetuando uma crítica radical à racionalidade instrumental e técnica que andava de mãos dadas com o desenvolvimento tecnológico. Deste modo, queria justamente produzir um embaralhamento, por meio da poetização dos gestos e de objetos antes vistos como corriqueiros, entre arte e vida social. Assim, pretendia-se, ao contrário da fé na democratização de acesso aos bens de consumo produzidos em larga escala por parte das vanguardas positivas, forjar uma crítica radical à lógica mercantil e à mercadoria. Tal posição pode ser identificada na seguinte passagem da “Conferência sobre o Dada”, de Tristan Tzara (1924): Já tivemos o bastante em matéria de movimentos inteligentes que estenderam além do que era possível imaginar a nossa fé nos benefícios da ciência. O que queremos agora é a espontaneidade. Não porque seja melhor ou mais bela do que qualquer outra coisa. Mas porque tudo o que nasce livremente de nós mesmos, sem a intervenção das ideias especulativas, tudo isso nos representa. Devemos intensificar a quantidade de vida que se gasta facilmente em cada trimestre. A arte não é a manifestação mais preciosa da vida. A arte não tem o valor celestial e universal que as pessoas gostam de lhe atribuir. A vida é muito mais interessante. O Dada conhece o valor exato que deve ser dado à arte: com métodos sutis, pérfidos, o Dada a introduz na vida cotidiana e viceversa. Na arte, o Dada reduz tudo a uma simplicidade inicial, tornando-se cada vez mais relativo. Mistura seus caprichos com o vento caótico da criação e das danças bárbaras das tribos selvagens (TZARA, 1996 [1924], p. 391).

À vista disto, é possível notar diferenças importantes entre essas linhagens

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vanguardistas, não obstante compartilhavam um objetivo comum: embaralhar arte e vida, termos comumente apreendidos de maneira estanque, na tentativa de desenhar/estetizar poeticamente o real. Em outras palavras, mais precisamente tiradas de Peter Bürger: Os movimentos europeus de vanguarda podem ser definidos como um ataque ao status da arte na sociedade burguesa. É negada não uma forma anterior de manifestação da arte (um estilo), mas a instituição arte como instituição descolada da práxis vital das pessoas. Quando os vanguardistas colocam a exigência de que a arte novamente devesse se tornar prática, tal exigência não diz que o conteúdo das obras de arte devesse ser socialmente significativo. Articulando-se num outro plano que não o dos conteúdos das obras individuais, ela se direciona para o modo de função da arte dentro da sociedade, que determina o efeito das obras da mesma forma como faz o conteúdo particular. [...] Para os vanguardistas, a característica dominante da arte na sociedade burguesa é o seu descolamento da práxis vital. Os vanguardistas tencionam portanto, uma superação [aufhebung] da arte – no sentido hegeliano da palavra: a arte não deve simplesmente ser destruída, mas transportada para a práxis vital, onde, ainda que metamorfoseada, ela seria preservada. [...] A práxis vital a qual – ao negá-la – o esteticismo se refere, é a vida cotidiana do burguês ordenada segundo a racionalidade voltada para os fins. Não é o objetivo dos vanguardistas integrar a arte a essa práxis vital; ao contrário, eles compartilham da rejeição a um mundo ordenado pela racionalidade-voltada-para-os-fins, tal como a formularam os esteticistas. O que os distingue deste é a tentativa de organizar, a partir da arte, uma nova práxis vital (BÜRGER, 2012, p. 97)

Cumpre salientar, ainda neste intento de caracterizar brevemente esta modernidade artística, a existência de duas fases históricas distintas, cujo divisor de águas é justamente a 2ª Guerra Mundial e o seu efeito negativo sobre as utopias que visavam a mudança radical da ordem social:


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a primeira é a das vanguardas históricas, travejadas por estas utopias e suas possibilidades, características da primeira metade do século XX; a segunda, por sua vez, é das vanguardas tardias que, constituídas num ambiente de um horizonte de expectativas rebaixadas (Cf. KOSELLECK, 2006), afastou-se dos ideais revolucionários, todavia, manteve a tentativa de revolucionar códigos e linguagens artísticos nas décadas de 1960 e 1970. Ademais, há aí uma mudança geográfica importante, de sorte que o núcleo de artes mais pujante passa de Paris para Nova Iorque (GREENBERG, 2013, p. 240), tendo como marcação decisiva o assim chamado expressionismo abstrato ou a pintura de tipo americano (GREENBERG, 2013, p. 240). A parir desse marco, os EUA passam a ter uma arte moderna autóctone, baseada na superação e flexibilização da regularidade geométrica e da ilusão da profundidade rasa, imposta pelos cubistas à arte abstrata posterior, a partir de movimentos espontâneos e uma aleatoriedade calculada (GREENBERG, 2013, p. 241)[5]. Assim, vê-se, com esse movimento duplo de dissociação entre vanguardismo e utopia e o seu transplante para os Estados Unidos,

[5] Em sentido diverso, Clark (2007, p. 23) diz ser o expressionismo abstrato “a forma de aspiração pequenoburguesa à aristocracia naquele momento decisivo em que a burguesia não tem mais essa aspiração, quando a pequena burguesia tem de assumir o lugar de uma elite burguesa escondida [...]”, que se objetiva em figurações vulgares, pois é a sedimentação da forma necessária da individualidade consentida à pequeno burguesia na sociedade classista dos E.U.A.

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uma institucionalização da arte moderna ou, como argumentou Octavio Paz (2013), configurou-se uma verdadeira tradição da ruptura, marcada pela contradição entre a tradição que nos liga ao passado por meio da transmissão e a ruptura caracterizada pela destruição deste vínculo. Tradição da ruptura que fora movimentada por gerações seguidas de iconoclastas que levaram a cabo essa negação da tradição anterior (homogênea) em prol de uma outra tradição moderna (plural, heterogênea e radical). Já nos anos de 1970, alguns críticos, notando o afastamento decidido entre vanguarda e revolução, rechaçando a função prospectiva que apontava para um futuro esperançoso, passaram a teorizar uma ruptura importante: a passagem da arte moderna para a chamada arte contemporânea. E aqui configura-se um campo de força e discussão de suma importância para a estética e áreas correlatas até hoje, contando com interpretações das mais variadas matizes e direcionamentos políticos. Neste âmbito, o já citado Peter Bürger afigura-se como um personagem de destaque para compreensão das artes nas décadas finais do século XX. Em seu A teoria da vanguarda ([1974] 2012), o crítico alemão diagnostica que os ataques vanguardistas à instituição artística fracassaram em sua intenção de revolucionar a práxis vital a partir da arte.


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De acordo com Bürger, isto teria ficado muito claro no decorrer das décadas de 1960 e 1970 em que as neovanguardas, até pela sistemática perda do efeito de choque vanguardista ao longo das décadas, adquiriram rapidamente o estatuto de obra de arte autônoma, fazendo com que ocorresse a institucionalização da vanguarda como arte legítima e recusando a sua negatividade e sua recondução à práxis vital. Desta feita, o crítico alemão argumenta que, politicamente, os intentos vanguardistas não chegaram a bom termo, dado que a instituição “arte” resistiu aos seus ataques e continua dissociada da práxis vital, contudo a mudança estética e de nível artístico ali ocorrida não poderia ser ignorada. Isto é, malgrado seus intentos revolucionários, as vanguardas produziram uma ampliação do conceito de obra de arte e uma disponibilização inédita dos mais variados procedimentos e materiais artísticos, o que resultaria no fato de que, com as vanguardas, a sucessão histórica de estilos e procedimentos teria sido transformada numa contemporaneidade do radicalmente diverso. Ou seja, a simultaneidade de técnicas, procedimentos e, principalmente, movimentos artísticos os quais não poderiam mais se colocar como os mais avançados dentro do campo artístico e que conformariam um estado de total disponibilidade de materiais e formas para o trabalho nas artes. Desta forma, deixa de lado uma noção unilinear e progressiva de estilos artísticos.

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Hal Foster (2017), posteriormente, proporá, a partir de retificação da dialética e das teses de Bürger que, a bem da verdade, as neovanguardas é que teriam colocado o projeto modernista de crítica à instituição “arte” na ordem do dia – e de modo teoricamente infindável e não retoricamente revolucionário como nas primeiras vanguardas. Isso porque, para Foster, a instituição da arte pode enquadrar convenções estéticas, e não as constituir, já que as convenções per se não se incorporam totalmente a instituição. Destarte, a vanguarda histórica, como nos exemplos da Fonte de Duchamp e o tríptico de cores puras de Ródtchenko, enfocavam e criticavam explicitamente as convenções artísticas e não a instituição, como fora feito pelo minimalismo de Morris e Serra, por exemplo. Outro autor de destaque nesse mesmo período fora o crítico marxista Frédric Jameson. Segundo o crítico estadunidense, poder-se-ia chamar esse período histórico e cultural de pós-modernismo. No entanto, este conceito não pode ser confundido com um termo de descrição de um estilo particular, e sim um “conceito de periodização cuja principal função é correlacionar a emergência de novos traços formais na vida cultural com a emergência de um novo tipo de vida social e de uma nova ordem econômica” (JAMESON, 1985, p.17).


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Essa nova vida social e econômica seria caracterizada eufemisticamente de sociedade pós-industrial, marcada pelas mídias eletrônicas, pela informatização e pela chamada Revolução Verde, e dotada de uma nova ordem internacional calcada no neocolonialismo e nas lutas terceiromundistas de libertação nacional. Quanto à vida cultural, Jameson enxerga uma perda das energias utópicas e revolucionárias do que chama de alto modernismo, agora tornado ideologia para justificação da ordem pós-moderna, tentando apagar uma distinção crucial entre eles: [...] o alto modernismo, seja qual for seu conteúdo político patente, era de oposição e marginal dentro de uma cultura burguesa vitoriana, filistéia ou dos anos dourados. Embora o pós-modernismo seja igualmente ofensivo sob todos os aspectos enumerados (pensemos no rock punk ou na pornografia), já não é, de maneira alguma, “de oposição” no mesmo sentido; de fato, constitui a própria estética dominante ou hegemônica da sociedade de consumo e serve, significativamente, como um laboratório de novas formas e modas, à produção de mercadorias empreendidas por esta. A defesa de uma concepção do pós-modernismo como categoria de periodização baseiase, pois, no pressuposto de que, mesmo que todas as características formais enumeradas já estivesse presentes no alto modernismo que o precedeu, o próprio significado dessas características se transformam quando elas se tornam um dominante cultural, com uma funcionalidade socioeconômica precisa (JAMESON, 1991, p. 107).

Em resumo, para Jameson, essa nova fase cultural traria em si a morte de uma concepção de arte como contrária ao status quo e utópica, levando a sua adesão à forma mercadoria. Quanto aos traços formais propriamente ditos, o crítico estadunidense vê as obras deste período como destituídas

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de poder de negatividade crítica e fundamentadas na aleatório de signos, apresentados de maneira flutuante e autorreferentes. Desta forma, significante e significado teriam deixado de se referir, nomear e figurar o referente, entendido por Jameson como o mundo material e histórico (JAMESON, 2006). E mais: esse processo de “libertação” dos signos dos referentes radicalizou-se, penetrando o próprio signo e liberando o próprio significante do significado, levando a um jogo eventual de significantes puros e literais (JAMESON, 1991, p.113-114). Tal isolamento do significante é descritivamente nomeado por Jameson, a partir de algumas lições de Jacques Lacan, como esquizofrênico[6], visto que passa a se tornar cada vez mais “material” e envolto numa experiência de tempo presente assoberbada e possessiva, transformandose mesmo em imagem descolada do mundo material (JAMESON, 1985, p. 23). [6] Por esquizofrenia, Lacan, de acordo com Jameson (1985, p. 22, grifos feitos posteriormente e não pelo autor), entenderia o seguinte: “Tudo isso nos coloca em condições de compreender a esquizofrenia como um distúrbio do relacionamento entre significantes. Para Lacan, a experiência da temporalidade, da temporalidade humana (passado, presente e memória), a persistência da identidade pessoal através de meses e anos — a própria sensação vivida e existencial do tempo — são também um efeito de linguagem. Porque a linguagem possui um passado e um futuro, porque a frase se instala no tempo, é que nós podemos adquirir aquilo que nos dá a impressão de uma experiência vivida e concreta do tempo. Mas já o esquizofrênico não chega a conhecer dessa maneira a articulação da linguagem, nem consegue ter a nossa experiência de continuidade temporal tampouco, estando condenado, portanto, a viver em um presente perpétuo, com o qual os diversos momentos de seu passado apresentam pouca conexão e no qual não se vislumbra nenhum futuro no horizonte. Em outras palavras, a experiência esquizofrênica é uma experiência


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Outra característica formalmente importante citada pelo crítico é o pastiche[7], entendido como imitação nostálgica de estilos mortos, já que a novidade vanguardista estaria falida, de acordo com a ótica pós-moderna. Ainda aqui se faz necessário explorar rapidamente outro autor, a saber: Jünger Habermas. Para o filósofo alemão, o projeto de modernidade, gestado desde a filosofia iluminista do século XVIII, intentava desenvolver autonomamente as esferas específicas da moral, do direito e da arte autônoma, ao mesmo tempo em que tentava aproveitar, na prática, via configuração racional e emancipada das relações sociais, os potenciais cognitivos acumulados nessas elevadas esferas herméticas (HABERMAS, 1992b, p. 110). No caso das artes, mais especificamente, isso se daria por meio de uma reconciliação entre arte e vida (HABERMAS, 1992b, p.127), como o desenvolvimento de um funcionalismo estrito na arquitetura - isto é, voltado para o que é funcional no mundo da vida dos

(...) [6] da materialidade significante isolada, desconectada e descontínua, que não consegue encadear-se em uma seqüência coerente. O esquizofrênico não consegue desse modo reconhecer sua identidade pessoal no referido sentido, visto que o sentimento de identidade depende de nossa sensação da persistência do "eu" e de "mim" através do tempo”. Tal caracterização da esquizofrenia feita por Lacan será aproximada, por Jameson, ao estado da arte pósmoderna, uma vez que teriam similitudes formais e de composição. [7] Pastiche visto em contraposição à paródia, cuja função era produzir uma sátira dos maneirismos estilísticos modernos, que eram contrapostos a uma norma de linguagem socialmente aceita e existente.

sujeitos e não para os imperativos sistêmicos da economia (HABERMAS, 1992b, p. 143) - em consonância com o viés estético do construtivismo (HABERMAS, 1992b, p. 148). Habermas pontua que a frustração deste projeto não indicaria o seu fracasso e necessária superação e sim a sua incompletude, posto que este teria falhado não pelo seu desenvolvimento mesmo, mas sim tanto pela sobrecarga de problemas por ela não resolvidas e pelos quais se deixou embaraçar (HABERMAS, 1992b, p. 142), quanto pela invasão de imperativos sistêmicos sobre o mundo da vida. Consequentemente, qualquer tentativa de passar o modernismo e o moderno para trás traria em si uma vocação conservadora e escapista, a qual tenta dizer adeus à modernidade e ao seu potencial racional (HABERMAS, 1992b, p. 148; 1992b, p.121123)[8]. [8] Dentre as críticas feitas por Otília e Paulo Arantes aos ensaios de Habermas sobre modernismo e arquitetura moderna, é interessante aqui prestarmos atenção numa delas. Ambos filósofos dizem que a divisão habermasiana de funcionalismo estrito e sistêmico não se verificaria de modo imanente nos materiais artísticos modernos. Lembrando as lições de Adorno sobre a racionalização musical da música nova – a saber, que o choque do Novo não fora neutralizado porque os tempos mudaram, mas porque cumpriram o prometido e que, portanto, a tendência histórica do próprio material, desde as suas primeiras manifestações, apontava a sua funcionalização total -, argumentam que o construtivismo e a arquitetura modernista trilhariam o mesmo caminho fetichista de racionalização, isto é: “à medida que se generalizava a forma-mercadoria – e, no caso da arte de massa, que é sobretudo o da arquitetura contemporânea, se estende até a forma-publicidade - a sujeição da funcionalidade estrita à funcionalidade ‘sistêmica’ (tal como ocorria com o princípio da composição integral na Música Nova), além de inelutável, é o princípio dado do problema, de nenhum modo acréscimo extrínseco” (ARANTES; ARANTES, 1992,


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2 . Huyssen e o pós-moderno: mapeamentos e modos de usar Até aqui foram mostrados alguns pontos, implicações e teses a respeito da discussão em torno da passagem da arte moderna para arte contemporânea. À vista do que fora sedimentado, procurar-se-á agora explorar a posição do crítico alemão Andréas Huyssen sobre o assunto a partir de seus ensaios “Mapeando o pós-moderno” ([1984]1991) e “Guilhermo Kuitica: pintor do espaço” (2014). Em seu texto “Mapeando o pós-moderno”, Huyssenn identifica que, ao menos desde 1960, há efetiva transformação cultural “que emergiu lentamente nas sociedades ocidentais, [com] uma mudança de sensibilidade para a qual o termo ‘pósmoderno’ é realmente, pelo menos por enquanto, inteiramente adequado” (HUYSSEN, 1991, p. 20). Entretanto, este

(...) [8] p. 70). Assim, a utopia de reforma total que estava na origem da arquitetura moderna é inseparável do processo capitalista de modernização e não um desvio ou sobrecarga a posteriori. Movimento material que ficaria muito claro no Brasil, ou, para falar como Otília Arantes (1997, p. 129), na franja colonial do sistema, dado que, à primeira vista, a Nova Construção seria inviável em um país de progresso técnico fortemente retardatário, porém o contrário se deu: a arquitetura moderna “deu certo” no Brasil, onde, por princípio, não poderia jamais. O resultado de tudo isso foi o fato da Nova Construção Brasileira ter posto a nu as verdades da Nova Arquitetura, levando-a “a confessar na periferia o que escamoteara no centro (pelo menos nos tempos heroicos das demonstrações isoladas), a saber (por pouco que se atinasse com a lógica produtiva industrial), que tudo poderia muito bem não passar de um jogo abstrato de formas” (ARANTES, 1997, p. 129). Confissão que dava mostras da falência mundial da ideologia arquitetônica universalista, transmutada, por essas bandas, numa ideologia de segundo grau de consagração das virtudes nacionais.

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diagnóstico do crítico alemão, apesar da aparente semelhança, diverge decisivamente daquele feito por Jameson em, ao menos, dois sentidos. Em primeiro lugar, Huyssen não propõe que haja uma total modificação nas ordens sociais, econômicas e sociais, chegando mesmo, em rodapé, a qualificar a identificação proposta por Jameson entre o novo estágio da lógica de desenvolvimento do capital e o pós-modernismo como exagerada (HUYSSEN, 1991, p. 20). O que sim propõe é que ocorreram mudanças notáveis nas formações discursivas e de sensibilidade nas décadas de 1960 e 1970. Em segundo lugar, para Huyssen, a arte produzida entre as décadas de 1960 e 1970 não poderiam ser identificadas simplesmente com a forma mercadoria e suas decorrências fetichistas. Na verdade, o alemão até enxerga uma cooptação mercantil e de uma potente indústria cultural em relação à arte pop. No entanto, vê também a manutenção de “uma certa agudeza por sua aproximação com a cultura de contestação dos anos 60” (HUYSSEN, 1991, p. 39), até porque os ataques contra a arte institucional, nos mais variados períodos, sempre foram também ataques às instituições sociais hegemônicas. Quanto aos argumentos de Bürger, pode-se notar certa aproximação de Huyssen em dois sentidos, ainda que com pressupostos e resultados diferentes (Cf. HUYSSEN, 1991, p. 36-39). Para Huyssen, os anos 1970 também foi uma marcação decisiva de passagem do que chama de arte moderna


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para a arte pós-moderna (HUYSSEN, 1991, p. 42), movimento que Bürguer nomeou como passagem da arte de vanguarda para a arte pós-vanguardista, como vimos anteriormente. Outra aproximação interessante entre ambos é a consideração do que Bürger havia identificado como contemporaneidade do radicalmente diverso na arte contemporânea e que Huyssen chamará de dispersão e disseminação cada vez mais amplas de práticas artísticas (HUYSSEN, 1991, p. 43). À vista destas comparações, é possível agora passar para considerações mais próximas aos textos de Huyssen. Em seu ensaio sobre o pós-modernismo, Huyssen deixa claro desde o início que a sua preocupação não é definir e categorizar o que seria moderno e pós-moderno e sim, a partir da natureza relacional de ambos os conceitos, tentar partir do modo como eles tem dado forma a variados discursos desde a década de 1960 (HUYSSEN, 1991, p. 23). Armado deste ponto de vista, o crítico alemão, a um só tempo, evitaria uma visão nostálgica da arte produzida antes da década de 1960 - isto é, antes do que alguns consideram a década do declínio artístico fatal – e conseguiria fazer uma análise mais detida e pormenorizada das mudanças ocorridas entre o modernismo e o pósmodernismo e as transformações das décadas de 1960 e 1970 no âmbito das artes. Segundo Huyssen, haveria mudanças e continuidades importantes entre as décadas supracitadas. O que as iguala é a tentativa

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de rejeitar ou criticar certa versão do modernismo, mais especificamente, aquele codificado como alto modernismo. Porém, a resposta de ambos havia sido diversa. No pós-modernismo de 1960 tentou-se revitalizar a herança das vanguardas europeias e dar-lhes uma forma americana, forjando o eixo Duchamp-Cage-Warhol. Todavia, já nos anos 1970, esse projeto dos anos 1960 de um pós-modernismo vanguardista já havia esgotado as suas possibilidades, embora manifestações dele ainda tivessem sobrevivido, de modo que a novidade era o surgimento de duas linhas do pós-modernismo, a saber: uma linha fortemente eclética e afirmativa, deixando de lado qualquer reivindicação de crítica e transgressão; outro lineamento, por sua vez, redefiniu em termos não vanguardistas conceitos como o de crítica, resistência e negação do establishment, adequando-os aos avanços da cultura contemporânea (HUYSSEN, 1991, p. 31). Nesse bojo, o crítico alemão verá a pop-art, os happenings e o living theatre, localizadas nos anos 60, como as últimas vanguardas internacionais que ainda teriam as características contestatórias do vanguardismo modernista. Nele, quatro seriam as características que o aproximariam do modernismo: a) uma imaginação temporal com forte sentido de futuro; b) ataques iconoclásticos à chamada arte institucional; c) otimismo tecnológico e d) valorização ruidosa, mesmo que, por vezes, acrítica, da cultura popular em desafio aos cânones tradicionais e até mesmo modernos.


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Ainda na década de 60, era possível discutir a arte numa “sequência lógica de estilos (pop, op, cinético, minimalista, conceitual) ou em termos igualmente modernistas de arte versus antiarte ou não-arte” (HUYSSEN, 1991, p. 43). Nos anos 70 esses termos perderam o sentido que possuíam antes e mais: "A situação nos anos 70 parece caracterizar-se por uma dispersão e disseminação cada vez mais amplas das práticas artísticas, todas operando a partir das ruínas do edifício modernista, investindo contra ele na busca de ideias, saqueando seu vocabulário e suplementando-o com imagens e temas escolhidos aleatoriamente nas culturas pré-modernas e não-modernas bem como na cultura de massas contemporânea. Os estilos modernistas não foram abolidos, mas, como observou recentemente um crítico, continua, “desfrutando uma espécie de semivida na cultura de massas” [...]. Outra maneira de colocar isso seria dizer que todas as técnicas, formas e imagens modernistas e vanguardistas estão agora armazenadas para recuperação imediata nos bancos de memória computadorizada de nossa cultura. Mas esta memória também armazena tudo da arte pré-modernista, bem como os universos de gêneros, códigos e imagens das culturas populares e da moderna cultura de massas. [...] uma coisa parece clara: a grande divisão que separava o alto modernismo da cultura de massas, codificada nas várias explicações e análises clássicas do modernismo, já não parece relevante para as sensibilidades artísticas e críticas pós-modernas." (HUYSSEN, 1991, p. 43-44).

Essa profusão de obras múltiplas e diversas passaram a questionar objetivamente artistas e historiadores que se pautavam na progressão quase que unilinear de estilos e, por consequência, a própria noção de vanguarda. Dado que, conforme já dito, essa miríade de formas e produções cuja temporalidade é tensamente diversa, deixavam em suspenso ou balançavam noções de progressão e desenvolvimento gradativo do fazer artístico.

Desta feita, para Huyssen, as artes contemporâneas e/ou pós-modernas já não poderiam ser vistas como uma nova fase na sequência dos movimentos vanguardistas niciados em Paris em 1860, que eram investidos de um ideário revolucionário e utópico de transformação radical da sociedade, e que “mantiveram vivo um ethos de progresso cultural e vanguardista até a década de 1960” (HUYSSEN, 1991, p. 73-74), visto que a sensibilidade pós-moderna era distinta do modernismo e do vanguardismo, porque “coloca a questão da tradição e da conservação cultural como tema estético e político fundamental, ainda que nem sempre tenha êxito” (HUYSSEN, 1991, p. 74). Não obstante, o que o crítico alemão acreditava ser essencialmente peculiar ao pósmodernismo era o fato dele operar num campo de tensão entre tradição e inovação, conservação e renovação, cultura de massas e grande arte, em que os segundos termos já não são automaticamente privilegiados em relação aos primeiros; um campo de tensão que já não pode ser compreendido mediante categorias como progresso versus reação, direita versus esquerda, presente versus passado, modernismo versus realismo, abstração versus representação, vanguarda versus kitsch (Ibid.).

Deste modo, essa variedade de formalizações e procedimentos, cujos olhos voltavam-se para as ruínas das edificações modernistas e pré-modernistas, e não mais para um presente e um futuro carregados de energias utópicas, não deveriam ser avaliadas como conservadores e regressivas, como gostaria, por exemplo, Habermas (1992). Este diagnóstico


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contraria, em boa medida (HABERMAS, 1992, p. 47-58), o desenvolvido por Huyssen, para quem: o pós-modernismo em seu nível mais profundo não representa apenas outra crise no contínuo ciclo de altos e baixos, exaustão e renovação, que tem caracterizado a trajetória da cultura modernista. Mais do que isso, ele representa um novo tipo de crise dessa cultura modernista. [...] Somente nos anos 70 ficaram nítidos os limites históricos do modernismo, da modernidade e da modernização. O sentimento de que não estamos destinados a completar o projeto da modernidade (a frase é de Habermas) e de que nem por isso necessitamos cair na irracionalidade ou no frenesi apocalíptico e o sentimento de que a arte não persegue exclusivamente um telos de abstração, não-representação e sublimidade têm aberto um leque de possibilidades para os esforços criativos atuais. De certo modo, isso altera nossa concepção do próprio modernismo. Em vez de ficarmos atados a uma história unilinear da modernidade que a interpreta como desdobramento lógico em direção a um objetivo imaginário, e portanto fundada numa série de exclusões, começamos a explorar suas contradições e contingências, suas tensões e resistências internas a seu próprio movimento “para adiante”. O pós-modernismo está longe de tornar o modernismo obsoleto. Pelo contrário, ele joga uma nova luz sobre o modernismo e se apropria de muitas de suas estratégias e técnicas estéticas, inserindo-as e fazendo-as trabalhar em novas constelações. O que se tem tornado obsoleto, contudo, são as codificações do modernismo no discurso crítico que, embora subliminarmente, se baseiam numa visão teleológica do progresso e da modernização (HUYSSEN, 1991, p. 75).

A prova da vitalidade desta tese na obra de Huyssen e na análise da arte contemporânea seria justamente o comentário por ele feito às obras do artista visual argentino Guillermo Kuitca. De acordo com o crítico alemão, Kuitca seria um modernista posterior ao modernismo e sem ser pós-modernista (HUYSSEN, 2014, p.

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39). Em outras palavras: sem apelar para uma noção unívoca de progressão artística embebida nas utopias voltadas ao futuro das primeiras vanguardas (HUYSSEN, 2014, p. 54), Kuitca confiaria na pintura “como um modo de conhecer o mundo através da forma estética estruturada” (HUYSSEN, 2014, p. 39). Tal postura de Kuitca tem sua base assentada justamente na escolha de se criar artisticamente a partir das ruínas do modernismo (HUYSSEN, 2014, p. 54-55). Ruínas tão bem elaboradas pelo artista argentino, cujas obras “podem ser vistas como uma reflexão contínua e uma exploração ambiciosa da vida pós-morte do modernismo, no nosso mundo globalizante de capitalismo consumistas” (HUYSSEN, 2014, p. 55). Isso tudo sem cair no que o crítico alemão identifica como corrente pósmoderna dominante da contemporaneidade, a qual pode ser aproximada ao que Huyssen chama de linha eclética e positiva do pósmodernismo nos anos 70 (HUYSSEN, 1991, p.31). Resumidamente, a partir das argumentações e autores elencados, há duas grandes formas, ou mesmo dois tipos ideais [9], de se encarar a passagem e a relação entre arte moderna e arte contemporânea.

[9] Tipos ideias, aqui, são entendidos, de forma simplificada como categorias para aproximação e organização do material pesquisa e não categorias classificatórias estanques, as quais diminuem as diferenças e especificidades dos objetos em questão.


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De um lado, por exemplo, Habermas (1992a;1992b) e Jameson (1985;1991;2006) enxergam a arte contemporânea e pósmoderna como dotadas de características regressivas e rebaixadas em comparação às produções vanguardistas modernas. De outro, obras como as de Huyssen (1991; 2014), Foster (2017) e Bürger (2012), trazem, de formas distintas, o ponto de vista de que a arte contemporânea ainda traria um potencial crítico da sociedade e de trabalho artístico decisivo.

3. Considerações finais Tendo em vista o que até aqui fora exposto, é possível notar diferenças importantes entre os teóricos analisados e seus diagnósticos a respeito da arte contemporânea ou, para alguns, pósmoderna. Se para Habermas (1992a;1992b) e Jameson (1985;1991;2006), cada um a seu modo, as obras pós-modernas ou contemporâneas deveriam ser vistas como um espécie de perda regressiva frente ao projeto vanguardista moderno, para Huyssen (1991;2014) a heterogeneidade das obras pós-modernas não permitiria diagnósticos tão fechados. Até porque, em várias delas, o resgate do passado permitiria uma visada crítica em direção ao futuro. Neste sentido, é preciso deixar claro que a posição de Huyssen, contudo, não tem a ver com uma chancela a respeito de toda e qualquer obra na contemporaneidade. Para Huyssen (1991), desde seu texto “Mapeando

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o pós-moderno”, existem distinções fundamentais entre o que podem ser consideras obras afirmativas e ecléticas e aquelas chamadas negativas, as quais, a partir de seu afastamento do projeto moderno, redimensionaram a crítica e negação do status quo. Algo que é clarificado quando aponta o artista Guilhermo Kuitca como um artista que não corresponderia ao pós-modernismo dominante afirmativo e saturado de imagens ecléticas (HUYSSEN, 2014, p. 39). É interessante notar também que a reflexão do alemão, em boa medida, se aproxima daquela desenvolvida por Baudrillard (1991). Para este crítico a busca por imagens e obras complexificadas e dotadas de certo enigma se constituiria como uma postura crítica essencial e contrária à profusão de imagens que denomina “clichês”, ou imagens reduzidas à materialidade de signos, convertidos em um hiper-real que nada oculta ou esconde [10].

[10] Veja-se as seguintes passagens: “Hoje a abstracção já não é a do mapa, do duplo, do espelho ou do conceito. A simulação já não é simulação de um território, de um ser referencial, de uma substância. É a geração dos modelos de um real sem origem nem realidade: hiper-real. O território já não precede o mapa, nem lhe sobrevive. É agora o mapa que precede o território – precessão dos simulacros – é ele que engendra o território cujos fragmentos apodrecem lentamente sobre a extensão do mapa. É o real, e não o mapa, cujos vestígios subsistem aqui e ali, nos desertos que já não são os do Império, mas o nosso. O deserto do próprio real. [...] Já não se trata de imitação, nem de dobragem, nem mesmo de paródia. Trata-se de uma substituição no real dos signos do real, isto é, de uma operação de dissuasão de todo o processo real pelo seu duplo operatório, máquina sinalética metaestável, programática, impecável, que oferece todos os signos do real e lhes curto-circuita todas as peripécias” (BAUDRILLARD, 1991, p. 8-9).


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Outras aproximações interessantes a serem feitas são as relacionadas às obras de Foster (2017) e Bürger (2012), os quais, assim como Huyssen (1991;2014), veem possibilidades críticas e criativas imanentes às produções artísticas contemporâneas. Isto é, as próprias figurações, produções, efeitos e interações das obras de arte contemporâneas poderiam trazer uma possibilidade crítica em relação às instituições, à cultura e à sociedade e, além disso, trariam maneiras novas e criativas de configuração das artes em seus suportes, na sua feitura e até mesmo em sua circulação. Esta posição diferencia, e muito, os autores supracitados das teses de Habermas (1992a;1992b) e Jameson (1985;1991;2006), para os quais, respectivamente, as obras pós-modernas ou seriam aporias distanciadas do mundo da vida ou seriam cooptadas ou mesmo forjadas à imagem e semelhança da forma mercadoria. Assim sendo, o fim da arte moderna não deveria ser visto como o fim da arte e suas possibilidades, mas sim o início de um outro período artístico que, apesar de distanciado da utopia revolucionária dos modernos, traria a modernidade e suas vanguardas em seu seio, todavia, reformuladas e redirecionadas criticamente para um outro campo de possibilidades e formulações.

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4. Referências

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São

HABERMAS, Jünger. Modernidade: um projeto inacabado. In: ARANTES, Otília.; ARANTES, Paulo. Um ponto cego no projeto moderno: arquitetura e dimensão estética depois das vanguardas. São Paulo: Brasiliense, 1992b, p. 99-123.

ARANTES, O. B. F.; ARANTES, P. E. Um ponto cego no projeto moderno: arquitetura e dimensão estética depois das vanguardas. São Paulo: Brasiliense, 1992.

HUYSSEN, Andreas. Guillermo Kuitca: pintor do espaço. In: HUYSSEN, A. Culturas do passado-presente: modernismos, artes visuais, políticas da memória. Rio de Janeiro: Contraponto, 2014, p. 39-57.

ALBERA, F. Eisenstein e o construtivismo russo. Paulo: Cosac Naify, 2002.

ARANTES, O.B.F. Lúcio Costa e a “boa causa” da arquitetura moderna. In: ARANTES, O. B. F.; ARANTES, P. E. Sentido da formação: três estudos sobre Antonio Candido, Gilda de Mello e Souza e Lúcio Costa. São Paulo: Paz e Terra, 1997, p. 113-133. BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e simulação. Lisboa: Relógio d’Água, 1991. BÜRGER, Peter. Teoria da vanguarda. São Paulo: Cosac Naify, 2012. CHIPP, Hercschel. Teorias da arte moderna. São Paulo: Martins Fontes, 1996. CLARK, Timothy. Modernismos. São Paulo: Cosac Naify, 2007. FOSTER, Hall. O retorno do real. São Paulo: Ubu, 2017. GALARD, Jean. A beleza do gesto: uma estética das condutas. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008. GREENBERG, Clement. Arte e cultura. São Paulo: Cosac Naify, 2013. GROPIUS, Walter. O manifesto Bauhaus de 1919. Disponível em: <https://www.goethe.de/ins/br/pt/kul/fok/bau/21394277. html> (acesso em 15 de junho de2019) HABERMAS, Jünger. Arquitetura moderna e pós-moderna. In: ARANTES, Otília.; ARANTES, Paulo. Um ponto cego no projeto moderno: arquitetura e dimensão estética depois das vanguardas. São Paulo: Brasiliense, 1992a, p.125-149.

HUYSSEN, Andreas. Mapeando o pós-moderno. In: DE HOLLANDA, H. B. (Org.). Pós-modernismos e política. Rio de Janeiro: Rocco, 1991, p. 15-81. JAMESON, Frédric. Pós-modernidade e sociedade de consumo. Novos estudos CEBRAP, v. 2, n. 12, p. 16-26, 1985. JAMESON, Frédric. Periodizando os anos 60. In: DE HOLLANDA, H. B. (Org.). Pós-modernismo e política. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p. 81-127. JAMESON, Frédric. “Fim da arte” ou “fim da história”?. In: JAMESON, F. A virada cultural: reflexões sobre o pósmodernismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006, p.125-155. KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto; Ed. PUC-Rio, 2006. PAZ, Octávio. Os filhos do barro. São Paulo: Cosac Naify, 2013. TZARA, Tristan. Conferência sobre o Dada. In: CHIPP, H.B. Teorias da arte moderna. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 389-394.


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ABORDANDO O RACISMO E A SEGREGAÇÃO ESPACIAL NOS ESTADOS UNIDOS E NO BRASIL:ENTENDER A HISTÓRIA DOS ESPAÇOS PARA TRANSFORMAR O FUTURO DAS CIDADES AMERICANAS ANGELICA SANTAMARIA ALVARADO (1)

Resumo

Resumen

A sistematização teórica sobre a desigualdade urbana e fenômenos como segregação na América Latina não contemplaram como eixos principais para discussão ou pesquisa: as questões de género e raça, sendo estandardizado o processo tanto histórico como de desenvolvimento e considerando como única categoria de análise, a classe – tanto socioeconômica como cultural. Nesse sentido, o presente artigo tem por objetivo principal explicar como as questões urbanas de desigualdade e segregação urbanas tem bases suas bases no processo colonizador e nas continuidades racistas pós independência e pós abolição no Brasil e nos Estados Unidos, destacando o papel das políticas públicas e das normativas de costumes (direito costumeiro) na reprodução de tal modelo de desumanização e marginalização que é o racismo. O texto está estruturado em seis partes, iniciando com um breve repasse de conceitos a serem abordados; seguido por uma revisão superficial do processo colonizador nos dois países; em seguida é abordado o abolicionismo no contexto capitalista e nos dois países e as espacializações e desigualdades no processo urbanizador moderno nas cidades dos dois países; por último, as considerações finais a modo de conclusão.

La sistematización teórica sobre la desigualdad urbana y fenómenos como la segregación en América Latina no incluyó como ejes principales de discusión o investigación: cuestiones de género y raza, siendo el estándar tanto el proceso histórico como el de desarrollo y considerando como única categoría de análisis, la clase. –Tanto socioeconómico como cultural. En este sentido, el objetivo principal de este artículo es explicar cómo los temas urbanos de desigualdad y segregación urbanas tienen sus bases en el proceso colonizador y en las continuidades racistas post-independencia y post-abolición en Brasil y Estados Unidos, destacando el papel de las políticas públicas y las normas de las costumbres (derecho consuetudinario) en la reproducción de ese modelo de deshumanización y marginación que es el racismo. El texto está estructurado en seis partes, comenzando con una breve revisión de los conceptos a abordar; seguido de una revisión superficial del proceso colonizador en ambos países; a continuación, se aborda el abolicionismo en el contexto capitalista y en ambos países y la espacialización y desigualdades en el proceso de urbanización moderno en las ciudades de ambos países; finalmente, las observaciones finales como conclusión.

Palavras-chave: Brasi.

Palabras claves: racismo, segregación espacial; Estados Unidos, Brasil.

racismo, segregação espacial; EUA,

[1] Doutoranda em Planejamento e Gestão do Território, da Universidade

Federal

do

ABC

(PGT-UFABC);

É

mestre

em

Integração Contemporânea da América Latina (ICAL-UNILA), com

formação

em

Arquitetura

e

Urbanismo,

ambos

pela

Universidade Federal da Integração Latino-Americana (CAUUNILA).

(..)

Atualmente

é

pesquisadora

do

Laboratório

de

Justiça

Territorial (LabJuta-UFABC), no projeto Mapa Colaborativo do LabLivre

(UFABC)

e

da

Escola

Popular

de

Planejamento

Cidade (EPPC-UNILA). angelica.santamaria.a@gmail.com

da


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Introdução Desde a última metade do século XX até agora, têm surgido na América Latina várias correntes teóricas que procuraram ter uma própria interpretação do desenvolvimento urbano e territorial na região, tentando levar em conta as diferenças e particularidades dos processos históricos na explicação de dito desenvolvimento, e especialmente, tentando dar uma resposta sólida para explicar as problemáticas urbanas comuns nas cidades latino-americanas (JARAMILLO, 1989, p. 3537). Igualmente, as correntes teóricas de planificação urbana e territorial e desenvolvimento do território passaram por críticas internas, em especial aos modelos modernistas e higienistas de cidade e a visão e ideologia tecnocrática sobre o planejamento como campo prático, mas distante das realidades da cidade. Porém, apesar das críticas, ainda hoje a sistematização teórica sobre a desigualdade urbana e fenômenos como segregação na América Latina não contemplaram como eixos principais para discussão ou pesquisa: as questões de gênero e raça, sendo estandardizado o processo tanto histórico como de desenvolvimento e considerando como única categoria de análise, a classe –tanto socioeconômica como cultural — (GUIMARÃES, 1999, p. 103-105). No caso dos Estados Unidos e o seu desenvolvimento teórico sobre as problemáticas urbanas, a questão racial tem uma alta preponderância, compreendendo

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que de fato, no país são as populações racializadas – e étnicas – as que refletem os piores índices de renda, alfabetização, expectativa de vida, etc. (BONACICH, 2010, p. 80-83). Isto explica-se por quanto os Estados Unidos – diferente da América Latina – tiveram políticas segregacionistas e abertamente racistas até há relativamente pouco tempo atrás. Entretanto, neste país houve um processo de inclusão da população afrodescendente dentro da acadêmica, primeiro de forma segregada com instituições exclusivas para estudantes negros, depois, em especial propulsada pelo contexto social e político nacional de luta pelos Diretos Civis, e ao nível global, a rejeição da atuação internacional militar dos Estados Unidos, e claro, as revoluções e independências na África e Ásia (19601970). Neste contexto, são abertas as pesquisas e desenvolvimentos teóricos críticos do sistema capitalista desenvolvimentista, mas também, neocolonialista, no qual os países centrais tinham um papel muito mais ativos no subdesenvolvimento de boa parte do mundo o que fomentou a discussão das questões com maior amplitude, testando diferentes modelos metodológicos e ricos resultados para o campo de pesquisa, em especial, da economia política, a sociologia e a antropologia urbana (GROSFOGUEL, 2006, p. 19-21). Considerando o anterior, permanece a pergunta: se o Brasil, os Estados Unidos são os países com maior número de cidadãos


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afrodescendentes no continente, por que só nos Estados Unidos tem se produzido academicamente discussões sobre as questões racistas-capitalistas nos processos de urbanização moderna? A resposta pode estar precisamente no parágrafo anterior. Após dos processos independentistas na América Latina, e, ainda mais, depois da abolição da escravidão, as discussões em torno do racismo e do sistema de castas colonial foram primeiro, institucionalizadas como ideologia formadora do novo Estado, e depois apagadas da memória coletiva nacional e regional. A ideia de democracia racial de sucesso esteve consolidada – e ainda está – no senso comum nacional. Inclusive, em alguns casos, as raças negras e indígenas foram totalmente apagadas das estatísticas demográficas, só aceitando as categorias de mestiço[2], ou no máximo, pardo e “índio” (HERNÁNDEZ, 2017, p. 32-34). Nesse sentido, o presente artigo tem por objetivo principal explicar como as questões urbanas de desigualdade e segregação espacial no Brasil e nos Estados Unidos, tem suas bases no processo colonizador, e

[2] Mestizo em espanhol. Categoria racial especialmente utilizada na América hispânica para catalogar as populações nascidas da mistura entre branco e indígenas. Esta casta, embora subordinada, seria a menos repelida devido a que as duas raças de origem, com desigualdades entre elas, eram consideradas sim como humanas. Todas as castas raciais que surgiram da mistura com os africanos eram automaticamente consideradas como aptas para a escravidão e inferiores, sem humanidade total ou parcial –dependendo da mistura— (WADE, 1997)

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especialmente, nas continuidades racistas pós independência e pós abolição, relevando o papel das políticas públicas e do direito costumeiro na reprodução de um sistema estruturalmente desigual e desumanizante. Para o melhor analise da hipótese colocada e sua corroboração, o artigo está estruturado em seis partes: repasse de conceitos a serem abordados; revisão do processo colonizador nos dois países; em seguida é abordado o abolicionismo no contexto capitalista e nos dois países, e a conclusão.

Teorias urbanas, segregacionistas e sobre o racismo na literatura latinoamericana Jaramillo (1989) identifica três correntes ideológicas e teóricas sobre o desenvolvimento urbano na região, mas que, segundo ele, ainda carecem de uma visão local sem perder a abrangência dos trânsitos comuns históricos e políticos nessas formações urbanas. A teoria da marginalidade resume as problematizações teóricas das chamadas espacialidade monopolista periférica e o contínuo ruralurbano, nas quais, pese ao crescimento econômico e industrial alcançado pela região, ainda persistia o temido atraso, que no caso detém caraterísticas e costumes rurais, apesar do processo urbanizador e civilizador percorrido até a primeira metade do século XX na América Latina. Esta persistência da ruralidade responderia às


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históricas barreiras culturais que impedem integração destas à modernidade, materializado nas grandes cidades a través dos assentamentos espontâneos e favelas fora da formalidade nos quais replicam se os ciclos de pobreza e miséria, ficando por fora do progresso e suas vantagens. Por conta do seu caráter geralista, esta teoria abrange visões tanto conservadoras como de esquerda, mas que convergem em apontar como necessidades a centralidade do Estado no planejamento e na ordem espacial, e a erradicação de tais assentamentos para a viabilização do projeto nacional (JARAMILLO, 1989, p. 4045). A teoria da Urbanização Dependente (TUD), popularizada na região ao redor de 1960, tem seu foco na discussão das relações de classe no desenvolvimento social e espacial, considerando a urbanização não como resultado da superestrutura, mas sim como entranhado na estrutura social, econômica, política e jurídica na forma de ideologia. Esta linha nega a visão de anacronismos no processo urbanizador e sustenta que os problemas urbanos respondem à uma estrutura de desigualdades, com manifestações variadas, que dependem da forma e o grau de inserção do país no sistema capitalista global, suscitando diferentes modos de urbanização desigual. A TUD da continuidade com a visão negativa e de indesejável da ruralidade na cidade, ou na cultura nacional como um todo, ficando estagnada no campo do planejamento

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territorial na formulação de alternativas ao paradigma de planejamento tecnocrático, seus instrumentos e por tanto, suas contradições (JARAMILLO, 1989, p. 45-51). Temporalmente esta corrente é mais ampla, considerando a colônia como o marco do surgimento das cidades como aglomerações que possibilitam a logística de escoamento dos produtos explorados no interior com destino às metrópoles, que no Sistema-Mundo Moderno capitalista é atualizado e aprimorado este imperativo na função urbana através da fragmentação e desenho de arranjos que garantam as condições de exploração, perpetuando os processos urbanizadores nos países atrasados marcadas pela desigualdade estrutural e a pobreza (TAVARES, 2011, p. 12-13). Na linha da teoria da dependência, porém com críticas sobre a sistematização do “olhar colonial” negativo das expressões populares[3], a Crítica Singeriana[4] não somente rejeita sua suposta “excepcionalidade”, se não como expressões culturais próprias que respondem a um desenvolvimento histórico particular da região (RIBEIRO, 1978, p. 17-35). A principal crítica do Singer à TUD é uma visão monolítica do problema estar [3] Rasgos Latinos como foi denominado por alguns dos pensadores da corrente TUD, o rural ainda contínua sendo visto como algo indesejável e que tem que ser superado para alcançar o progresso, mas especialmente para alcançar o nível dos países “desenvolvidos” de ocidente (JARAMILLO, 1989, p. 3-5). [4] Corrente marxista surgida na década de 1970 a partir do pensamento do economista suíço-brasileiro Paul Singer (1932-2018) (JARAMILLO, 1989, p. 5)


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somente na exploração do capital imperialista, desconsiderando as elites nacionais (JARAMILLO, 1989, p. 51-56). Resultantes da lógica modernistaracionalista da pós guerra (1950), o plano regulador é apresentado como o instrumento mais racional para o “tratamento” do problema da urbanização com a premissa de ordenar e erradicar as anormalidades e quistos das cidades que aspiravam ser modernas (NEGRÓN, 1989, p. 80-84). A ênfase dada no planejamento para a captação de capitais e a optimização do fluxo de circulação das mercadorias, e em face a crise gerada pelo próprio sistema de exclusão cada vez mais profundo, a outrora criminalizada autoconstrução vai ser entendida como o mecanismo mais eficiente na manutenção do sistema de exploração da força de trabalho a baixos preços[5], possibilitando o contínuo crescimento das cidades e aliviando a necessidade de descentralização do capital (HARVEY, 1985, p. 17-58) (SANTOS, 2009, p. 193-198) (CANO, 2011, p. 29-30). Apoiado no anterior, definimos o planejamento espacial modernista como: ordenamento da concentração dos investimentos e aglomerações espaciais,

[5] Wilson Cano (2011, p. 29-30) vai denominar o como Urbanização suportável, próprio dos Estados mais industrializados nos quais os assentamentos informais ainda não estavam tão distantes dos centros de trabalho urbano, já que estes territórios ainda não componham o mercado imobiliário ou banco de terras de interesse de desenvolvimento urbano pelas caraterísticas, geralmente físicas dos terrenos, como o fato de serem alagados, morros, banhados, mangues, etc.

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que em uma concorrência aberta, procuram otimizar as condições de circulação de mercadorias e acumulação do capital excedente, rentabilidade, mediante o uso de métodos e bases desprendidas da visão tecnocrática e desenvolvimentista hegemônica (MATTOS, 1987, p. 3-9). Esta visão também aceita que o desenvolvimento do espaço no capitalismo apresentaram dualismos na própria prática de planejamento, bem como no espaço desigual, e a solucao para a correcao de tais assimetrias estaria na expansão do capital e do mercado, bem como seu acesso livre para consumo, seja este autonomo ou subsidiado pelo Estado (MATTOS, 1987, p. 9). O denominado Social Justice Planning é uma linha mais recente e que tem suas bases nos países periféricos e aos movimentos sociais como principais atores de transformação da realidade, bem como os principais referentes para refletir conceitualmente o desenvolvimento urbano e o planejamento desejado, recolhendo interseccionalidades como a racial-étnico, de gênero e cultural, focado na correção das disparidades estruturais e históricas entre grupos populacionais em desigualdade de poder. Desafortunadamente, seu maior desenvolvimento ou experiências tem se dado no campo das ideias com poucos a nenhuma execução, em grande medida isto deve se ao entorno político hegemônico


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Conceitualizacão de raça e racismo. As questões raciais como algo mais que uma questão identitária É necessário esclarecer as diferenças entre raça e etnia, e entender que o conceito de raça aqui usado não remete ao conceito biologista, mas sim para uma categoria analítica. Estas categorias compartilham o fato de ser identidades coletivas com um lugar e dinâmicas particulares e compartilhadas. A raça pertence à identidade, com as diferenças físicas como base de espoliação. A etnicidade, por sua parte, pertence à questão das identificações, com diversidades culturais relevadas pelo encontro com outro(s) grupos, e sendo fomentadas em especial nos processos de configuração e consolidação dos Estados/Nações. A etnia tem associação com lugares geográficos específicos (SANTAMARÍA ALVARADO, 2020, p. 62-66) (WADE, 1997) (RESTREPO, 2013, p. 249253). A raça é definida, então, como uma construção social que não explica se apenas pelas estruturas sociais e de classe. O racismo determina-se, então, como a construção social – ideologia – fundada nos processos de colonização, sua expansão e consolidação dos Estados-Nações no Sistema-Mundo, nos que se impõe um imaginário civilizatório desde a racialização dos povos. O racismo compõe-se de práticas discursivas estruturais e cotidianas diversas criando, do mesmo modo, diversas

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alteridades deixando as populações racializadas sem autonomia, estereotipadas, sequestradas, sem autodeterminação ou reconhecidas; porém, tendo fixações tanto materiais como imateriais diferentes dependendo do contexto, lugar e atores envolvidos, pelo que apesar de hegemônico, não é homogêneo (FANON, 2009, p. 41-49) (LEAL e ARIAS, 2007, p. 185-187) (CUNIN in RESTREPO, 2013, p. 45-47). Na América Latina, no período pós colonial, as categorias raciais tiveram mudanças com diversos níveis. A categorização e o conceito de raça no país tiveram um desenvolvimento particular que responderam à economia hegemônica. Primeiramente, depois da declaração da abolição, a categoria de raça tem uma conotação biologista, com teorias das ciências medicas sobre a superioridade cientificamente comprovada da raça branca frente à negra –e todas as não brancas—, onde a miscigenação não era uma opção e sim a de marginalização da população negra para sua eventual erradicação da composição demográfica nacional (HERNÁNDEZ, 2017, p. 31-53). Este período, como será discutido depois, tem seu paralelo com a recepção de massivas migrações de europeus para o Brasil, a Argentina e os Estados Unidos principalmente (THEODORO, 2008, p. 15-19). A justificativa para o projeto de embranquecimento da nação recaiu na mudança genética da população nacional em ordem de progressão. Com a crise migratória de mediados da década de 1930,


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o governo encontra em textos, como Casa grande e Senzala, um sustento teórico para promover a unidade nacional enquadrada em uma “nova” raça brasileira como ideal, sendo esta, um produto da união das melhores caraterísticas de cada raça, além de contrariar a ideia hegemônica de racismo, pois ao final “todos somos um pouco de tudo, como ser racista?” (HERNÁNDEZ, 2017, p. 155-160) Nos Estados Unidos o racismo configurouse como um sistema de castas por gota de sangue, acorde a qual a raça ao ser um “fato biológico” representa a imobilidade social e econômica daqueles que estão como subordinados, atuando sobre eles não somente um poder econômico ou político, mas também cultural e de controle social, traduzido em políticas eugênicas, segundo as quais os não-brancos nunca serão considerados cidadãos plenos, aspirando no máximo a uma segunda categoria (OSORIO in THEODORO, 2008, p. 65-80). Estados Unidos está desde 1960 num processo de superação normativa do eugenismo e segregacionismo caraterístico do século XX, sendo visíveis algumas mudanças significativas, em especial, no cultural e de ampliação do mercado, porém, a continuidade das estruturas e as disparidades raciais, continuam sendo bastante vigentes na atualidade, bem como o imaginário do sujeito negro como suspeito a manter como subordinado (GUIMARÃES, 1999) (HERNÁNDEZ, 2017, p. 155-166). Contemporaneamente, tem se somado às

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categorias raciais tradicionais norteamericanas o latino entra como um desafio à unidade de lutas identitárias e por justiça racial, sendo este o representante de uma população diversa em si mesma, com contradições e discriminações internas, mas também como categoria mediadora, ou de fricção pela sua cooptação e respaldo à medidas ou governos abertamente racistas, como foi o caso recente do massivo apoio do voto latino à primeira e segunda campanha do Trump para presidência (POZZI, 2016, p. 7-9) .

Origem do sistema-mundo capitalista e a ordem global racial e urbana nos Estados Unidos e no Brasil

Os Estados Unidos e o Brasil compartilham o fato de terem sido colonizados por mais de um reino europeu nos três séculos de colonização, mas também, os dois países de extensão continental devem a vastidão do seu território a anexações mais recentes, seja pelas guerras com países vizinhos ou pela compra de terrenos, ou mesmo, pelo processo de recolonização dos territórios disputados. No processo colonial, nos Estados Unidos o principal colonizador na região norte especialmente foi a Inglaterra, tendo também presença holandesa e inclusive portuguesa e francesa. No entanto, os territórios que hoje conformam os Estados sulistas estiveram sob a colônia espanhola, e depois passariam a conformar


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brevemente o México até 1850, com o anexo por invasão destes aos Estados Unidos, fato que perfilou o início da corrida imperialista dos Estados Unidos como uma potência. O anterior explica porque o Sul do país apresenta uma estrutura fundiaria, de exploração do solo e do trabalho escravo similar com a das antigas colônias ibéricas no continente. Igualmente, de maneira geral, as hierarquias raciais vão ser impostas em toda a América, e inclusive, exportadas para o restante do globo (BONACICH, 2010, p. 8183) (GUIMARÃES, 1999, p. 105-106). O processo de disputa pelos novíssimos territórios entre as duas principais potencias navais do momento, as coroas da Espanha e de Portugal, resultou no acordo de colonização e conquista do território estipulado no Tratado de Tordesilhas (1494), o qual estipulava que os portugueses teriam domínio sobre a porção de terra que vai desde o Atlântico, desde o delta do Pará até uma pequena faixa ao norte de Santa Catarina, e ao interior, até a metade de Goiás (PRADO, 1979, p. 15-16). A expansão do Brasil até alcançar a delimitação atual, vai estar especialmente em disputa bélicos com países vizinhos, e financiadas pela Franca, Inglaterra e Holanda principalmente, no corrido do século XIX, em especial post independência, sendo a Guerra da Tríplice Aliança a mais memorável de todas[6] (BREZZO, 2009-2010, p. 221-224). [6] As fronteiras entre o Brasil e Argentina, aliados na Guerra da Tríplice Alianza contra o Paraguai, e financiada pela Inglaterra, estiveram em disputas que embora não tenham chegado nas armas, sim causou atritos entre os

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Conforme o anteriormente exposto, surge a inquietude por compreender como a estrutura racista – de herança colonial ibérica – e generalizada e implantada nos territórios nacionais, apesar das diferencias nos caminhos desenvolvimentistas adiantados pelos dois países? A resposta poderia ser encontrada, então, na análise histórica post independências americanas, com a configuração dos novos EstadosNação, o que implica uma amalgama de processos e projetos de Estados nos quais a migração será chave para nosso entendimento da estruturação das desigualdades de riquezas e de direitos no meio ambiente-construído urbano de ambos países. Isto é especialmente expressivo com a abolição da escravidão e o surgimento da figura da propriedade privada, primeiro do solo, depois dos meios produtivos e da riqueza, figura chave para dar o salto qualitativo da industrialização e a civilidademodernidade (WILLIAMS, 2011, p. 165-168).

Abolicionismo e o processo de consolidação capitalista A promessa de liberdade e terra mobilizaram milhares de combatentes racializados e escravizados dentro das filas independentistas, que pouco a pouco seriam dominadas politicamente pelas elites (...) países, tanto é que o chanceler da Argentina Estanislao Zeballos, escreveu no 1895 sobre as intenções e o atuar subimperalista brasileiro, com o ganho da disputa pelas terras de Santa Catarina ganhas pelo Brasil na questão de Palmas (BREZZO, 2009-2010)


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criollas nacionais com o amparo financeiro e de abastecimento de armas por parte das potencias europeias, com exceção do Brasil, cuja independência foi pacifica, e o conflito esteve enfatizado na proibição do tráfico e trabalho escravo, o que influía diretamente nas suas atividades de exploração primaria, e por sua vez, com seus privilégios de casta (HERNÁNDEZ, 2017, p. 31-53). Os três países com maior quantidade de afrodescendentes nos seus territórios foram os últimos a declarar a abolição da escravatura[7], levando em alguns casos mais de um século desde a culminação das independências até a sua implementação definitiva. Realizando um comparativo das datas de abolição – em todos os seus processos – é possível observar movimentações bélicas e normativas em torno ao tema fundiário, antecipando a necessidade de final de entrar no clube dos países “livres” (HERNÁNDEZ, 2017, p. 11-17). O Brasil decreta a Lei de Terras de 1850, assinada no mesmo ano em que é proibido a tráfico de humanos da africanos, coibindo qualquer acesso à terra que não seja por outros meios além da compra-venda ou da herança. No caso dos Estados Unidos, embora a exploração de trabalho escravizado estivesse mais concentrada que no Brasil, os treze estados originais ratificam

[7] Por ordem de número de escravos: Brasil: abolição1888, independência-1822; Estados Unidos: abolição-1865 (XIII emenda constitucional), independência-1776; e, Colômbia abolição-1851, independência-1820.

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a figura legal desta no documento de independência de 1776 (OSORIO in THEODORO, 2008, p. 65-97). A necessidade de ampliação rápida do mercado exigia a pronta implementação da abolição, que nos Estados Unidos configurava-se como o grande estoque comercial que propulsionaria o crescimento industrial necessário para sua consolidação como potência imperial. Porém, o boom do algodão ocasionou uma breve, mas importante fratura no movimento unificado do país da “liberdade. Os Estados do Norte e do Sul entraram em conflito bélico e a vitória do Norte selou a constituição definitiva do novo país em 1865 com a 13ª emenda (HASENBALG, 1979). Para ser efetiva a abolição, assim como no Brasil, teve uma concessão que não é nada irrelevante: “Neither slavery nor involuntary servitude, except as a punishment for crime whereof the party shall have been duly convicted, shall exist within the United States, or any place subject to their jurisdiction” (BONACICH, 2010, p. 88-90). Após da abolição, o debate em torno ao destino dos novos trabalhadores livres esteve vigente por vários anos e foi desde a indenização às populações escravizadas com pagos em terras e dinheiro ou crédito, até repetir a fórmula estado-unidense de comprar terras na África para devolver aos “estranhos” negros para “seu lugar de origem” (HASENBALG, 1979).


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A maioria dos escravizados estavam concentrados no interior rural com condições de trabalho e violências infrahumanas, incluso maiores que as descritas nas colônias norte-americanas. As cifras de mortalidade das populações exploradas explicam o constante tráfico humano ao Brasil com objetivo de manutenção do estoque de mão de obra (THEODORO, 2008, p. 11-45). A substituição pela mão de obra branca e assalariada aconteceu ainda antes da abolição total da escravidão (1864), com a substituição gradual do trabalho nas plantações com brancos serventes migrantes. Entre 1872-1881 chegaram no Brasil aproximadamente 218 mil imigrantes, quase todos foram absorvidos pelo café (HERNÁNDEZ, 2017, p. 53-60) (THEODORO, 2008, p. 15-45). Os novos trabalhadores livres ficaram relegados para a prestação de serviços domésticos e do comercio informal. Desempregados chegavam para se hospedar nas zonas periféricas urbanas ou em cortiços perto dos centros, em todo caso, em condições precárias e sempre informais, sem direitos nem poses (GUIMARÃES, 1999, p. 107-110). Observando o desenvolvimento paralelo da transição, é possível realizar uma diferenciação entre a distribuição e as trajetórias das ondas migratórias dos novos trabalhadores racializados entre os EUA e o Brasil, já que neste último a população foi direcionada direita ou indiretamente aos polos dinâmicos industriais do país, como São Paulo ou Rio de Janeiro,

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no entanto nos Estados Unidos a população foi concentrada na Sul que continuava tenda uma base produtiva ligada à terra (BONACICH, 2010) (HERNÁNDEZ, 2017, p. 155-164). Ao mesmo tempo em que a abolição estava em processo de superação nacional, o governo brasileiro teve uma centralidade fundamental na difusão de imaginários negativos e criminalizantes ao redor do novo trabalhador de cor, sendo um dos meio prediletos as colunas na imprensa nacional escritas por chamados “intelectuais” das elites ligadas à terra, que com capitais excedentes acumulados especialmente do boom cafeeiro e interessados na industrialização e na expansão das fronteiras, viram como inatural que o trabalhador livre, a base da economia nacional, fora de outra cor se não branca. A justificativa esgrimida foi a suposta falta de cultura de trabalho assalariado das populações racializadas que integravam se ao mercado de trabalho formal, o que representaria em si, um obstáculo e um risco grande para a industrialização (THEODORO, 2008, p. 15-45) (HERNÁNDEZ, 2017, p. 7594). A maior contradição desta justificativa, que aliás, ainda está vigente no senso comum brasileiro, é a qualificação superior para o trabalho que traziam os migrantes europeus já expostos à industrialização e outras normativas ocidentais. Porém, pesquisadores como Hernández (2017, p. 53-75) entre outros, vão sustentar que devido à anterior urbanização


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experimentada no pais por conta do traslado da nobreza portuguesa ao Brasil, as taxas de trabalhadores racializados livres e qualificados, era alta, em especial nos ramos de artesanato e construção, não entanto, os migrantes europeus viram principalmente de povoados rurais das regiões menos desenvolvidas industrialmente falando (THEODORO, 2008, p. 15-45). A imigração foi idealizada como uma solução óbvia, com referentes nas políticas de convocatória massiva de trabalhadores europeus como a implementada na vizinha Argentina, e em maior escala, os Estados Unidos. A raça branca assume mais uma vez a simbologia de superioridade frente aos não brancos, mas agora na dimensão antes nunca explorada como o trabalho físicomecânico, que por tanto, a converte na chave para o desenvolvimento e a figura ideal da nova identidade nacional. O “sucesso” da política está nas cifras que demostram que o Brasil importou mais migrantes europeus em 86 anos –4.793.981 imigrantes entre 1851-1937—, do que africanos em três séculos –3.6 milhões entre S. XVI-XIX [8] — (HERNÁNDEZ, 2017, p. 75-97). O financiamento para tal empreitada veio principalmente das unidades federais – o Estado de São Paulo maioritariamente –, mas também dos empresários nacionais e

[8] As nacionalidades com maior predominância na imigração brasileira foram: Alemanha, Itália, Portugal e Espanha, na ordem decrescente (HERNÁNDEZ, 2017, p. 75-97).

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do Estado central. Quando houve um gradativo declínio da chegada de mão trabalhadora imigrante, foi relaxada a política de migração de pessoas não brancas ao país para nacionalidades do oriente asiático, especialmente japoneses, coreanos e em menor grau, chineses (THEODORO, 2008, p. 15-45). Para incentivar a empregabilidade destas populações, foi feita uma campanha partindo a ideia de semelhança a raça amarela à branca na capacidade e trabalho e nos valores, que era muito superior e preferido em relação à “indolência” negra. Como resultado da publicidade negativa e desqualificadora da imprensa nacional, as cifras mostram como no trabalho industrial o 92% era estrangeiro no final do século XIX em São Paulo 1890, o 63% de brancos e 28.6% de negros e pardos. Este estado se converte na linha de embranquecimento do território, sendo que no sul é cada vez mais homogêneo e branco, e no nordeste e norte está assentada a população selvagem não branca e mais empobrecida (THEODORO, 2008, p. 15-45) (HERNÁNDEZ, 2017, p. 75-97). Em contraste com a abundância de dinheiros e políticas para abraçar aos novos cidadãos brasileiros vindos da Europa, as populações nacionais não brancas foram negligenciadas e marginadas de qualquer potencial benefício trazido pelo movimento ao progresso industrial e social. Sem terras, sem emprego formal ou qualificado e sem direto ao voto ou incluso, à propriedade, o sequestro de direitos converteu-se num sistema de perpetuação do espolio original e


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das hierarquias de humanidades atualizado e reforçado por diversos mecanismos ideológicos, espaciais, burocráticos e repressivos, que permitem manter o estado de subordinação desta parcela da população, embora seja maioritária. Isto coincide com a expulsão dos membros negros e pardos das forças oficiais de 19101923 (HERNÁNDEZ, 2017, p. 75-97). Em ambos países sempre foram preferidos abertamente os homens brancos para integrar tal serviço, com anúncios especificando a cor da pele necessária para poder se incorporar na instituição. Nos Estados Unidos também foram impostas proibições de venda ou aluguel de terras ou moradias para pessoas não brancas, depois regidas pelas leis conhecidas como Jim Crow (1876-1965), legislando com amplitude não apenas nos espaços a serem ocupados pelas raças, mas também, no futuro econômico destas, na medida em que juridicamente as pessoas de cor careciam de numerosos direitos em relação aos imigrantes, como emprego formal ou propriedades. Nos dois casos, era alegada a suposta necessidade de manter a separação por motivos culturais, ou mesmo higiênicos (BONACICH, 2010, p. 112-114) (HERNÁNDEZ, 2017, p. 53-74).

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Urbanização ao capitalismo: industrialização, migração e segregação urbana O racismo estruturante nos Estados Unidos é explícito na forma da norma; no caso brasileiro, houve uma construção da identidade nacional baseada no mito da democracia racial, da harmonia entre raças, eliminando assim do imaginário os conflitos de raça, operacionalizando apenas os de classe e camponeses, construindo um racismo velado característico da experiência latino-americana (HERNÁNDEZ, 2017, p. 7597). Apesar da popularidade das medidas em prol imigração europeia ao país, estas foram gradualmente restringidas devido ao expressivo aumento de movimentos sindicais que pressionavam fortemente ao governo por reivindicações exclusivas para o operariado branco (THEODORO, 2008, p. 4565). Isto gera a gradativa entrada de trabalhadores pardos para a indústria, ainda com piores condições de emprego e qualificação em relação aos trabalhadores europeus; e a adoção da ideologia da miscigenação e da raça brasileira como identidade nacional (HERNÁNDEZ, 2017, p. 53-97). A campanha avançou ademais do discurso, nas políticas nacionalistas, como a proibição do ensino e fala corriqueira de línguas estrangeiras, e complementarmente, na alfabetização e inclusão massiva das populações imigrantes ao sistema educativo, preterindo às populações agora


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estigmatizadas pelo colorismo [9] que possa pesar sobre elas. Na prática, os dois sistemas de subordinação e discriminação baseados na diferencia fenotípica atuam de formas similares, com a constante articulação de mecanismos de controle e limitação de alcance, além de imaginários direcionados à conservação da desigualdade da distribuição e acúmulo de vantagens e desvantagens, além de socavar e aprazar o debate destas inequidades, criando fragmentações entre as populações sob, de novo, a promessa de mobilidade social mediante o embranquecimento próprio e da descendência (JACCOUD in THEODORO, 2008, p. 45-64) (HASENBALG, 1979, p. 67-69). As políticas e os aparatos sociais são construídos e mobilizados para atender ao cidadão de bem, branco –ou o mais próximo — e formal. A redistribuição da propriedade do solo rural como urbano vai estar determinadas por este fator, sendo orientadas as políticas de habitação social e de entrega de terras da reforma agraria para obreiros formais e colonos camponeses, e impondo uma série de requisitos burocráticas que não poderão ser atingidos pela maioria das populações não brancas, ficando apenas os barrancos, as nascentes,

[9] Sistema de discriminação baseado na presumida ideia de civilidade, onde a tez branca e seus graus de proximidade representa o topo e o ideal de civilização ocidental, e como representação do atraso estão as cores e rasgos associados com populações originarias afrodescendentes nessa ordem. Este sistema, substitui o de castas raciais puras que vai conservar até a atualidade os Estados Unidos de forma institucional e cultural.

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mangres e banhados como possibilidades para se assentar, até chegar a uma dominância da paisagem urbana o bairro popular de origem informal e autoconstruído (THEODORO, 2008, p. 167-175). Já o controle da segregação dos espaços entre as raças institucionais nos Estados Unidos após das guerras mundiais, é mediado pelo modelo de Security Maps[10]. Este sistema ainda está vigente em diversas cidades do país, e responde a um planejamento do empobrecimento e estagnação socioeconômica das populações racializadas[11]. Os Security Maps são mapas da cidade, com setores discriminados segundo o nível de risco nos investimentos e empréstimos, procurando atrair de forma “eficiente” e canalizada de investimentos privados à cidade. A escala de risco mais baixa está representada com a cor Verde[12]; seguido pela cor Azul[13]; o amarelo[14], e o maior risco está associado

[10] 1934-1968 [11] Originalmente as afrodescendentes e as imigrantes de origem europeia católica (Itália, Irlanda, Polônia, etc.) e asiático (Japão, China, Vietnam e Coreia, entre outras). Atualmente há uma reconfiguração dos zoneamentos, refletindo uma progressiva inclusão das populações brancas católicas e amarelas, abrangendo hoje especialmente os setores com maiores números de moradores latinos, africanos e provenientes de países do meio-oriente asiático (ROTHSTEIN, 2017). [12] Bairros ricos e bairros ricos e brancos predominantemente brancos (13) Funcionários de alto rango, burocratas Blue Collar [14] Classes medias brancas e de origem asiático


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a cor Vermelha[15], setores nos quais usualmente estão assentadas minorias étnicas marginalizadas, a maioria imigrante e populações afrodescendentes nacionais (ROTHSTEIN, 2017) (Race & Redlining. Housing segregation, 2017). Entendendo que o financiamento dos equipamentos e espaços de uso público, bem como a alocação de investimentos em infraestrutura nos Estado Unidos está baseado na correlação de quantia arrecadada em imposto revertidos no mesmo setor, é imaginar o quanto o redlining tem um impacto de empobrecimento de longo prazo destas populações, concentradas nas afrodescendentes. Além disso, o acesso ao sistema financeiro para solicitude de empréstimos está determinantemente pautado por este sistema de classificação de riscos, o que limita as oportunidades de acesso ao crédito formal com fins de empresa ou pessoal – como estudos universitários , ou se fosse aceitada a solicitude, por norma as entidades financeiras podem cobrar taxas de juros acima dos níveis de usura comercial, se impondo a garantia de retorno, sobre a inclusão econômica destes setores da população (Race & Redlining. Housing segregation, 2017) (ROTHSTEIN, 2017). Como mencionado anteriormente, no Brasil, as políticas não tiveram um tinte

[15] Piores localizações, infraestruturas, serviços, risco ambiental alto.

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abertamente racistas ou segregacionistas; ou pelo menos isso pesávamos há apenas umas décadas atrás. Novas pesquisas focadas na construção histórica das desigualdades raciais na América Latina e o Caribe, mostram assim como no caso do Brasil, a construções de instituições e mecanismos paraestatais de controle e repressão como o direito costumeiro, permitem a conservação do Status Quo e coibir contestações e amotinamentos dos subordinados. Esta prática serviu de base para a segregação espacial das populações negras e pardas em zonas públicas como parques, praças, ruas, comércios, e inclusive horários do dia. Na imprensa e no senso comum a figura negra colocou-se como suspeita e criminosa, merecedora de punições e discriminações, conformando cotidianos de violência e exclusão, pobreza e dispersão contínua (HERNÁNDEZ, 2017, p. 15-31). No início do século XX, a necessidade de se afastar geográfica e imaginariamente dos setores populares constituídos na sua enorme maioria pelos não brancos, a nova cidade moderna brasileira deve expurgar os elementos que resultem desagradáveis para a composição da paisagem. Este período estará marcado pela constante urgência das elites e governantes de remodelação e reforma da cidade, de forma tal que esta esteja mais próxima do padrão urbanístico moderno europeu, e brindando mecanismo bruto e arrasador, alegando que, como resultado destas operações urbanas, haverá uma superação do problema do informal,


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desordenado e não branco, expulsando estas populações para as periferias, escondidas, imobilizadas, fracionadas e invisíveis[16] (OSORIO, 2012) (SANTOS, 2009, p. 75-124). Certamente, o panorama na ditadura militar do 1964 não mudou muito (até 1986). O sistema de acesso à moradia financeirizado teve um alcance limitado às classes médias e abastadas, dinamizando e fortalecendo um cada vez mais influente setor da construção civil. A habitação social ainda sob mãos do Estado, teve pouco recursos canalizados para desenvolvimentos de unidades habitacionais multifamiliares, na forma de grandes blocos de apartamentos em bairros periféricos ou incluso, antes terras rurais nas cidades onde houve tais empreendimento (SHIMBO, 2016, p. 123-124). A restrita e precária oferta formal de moradia que não abrange nem o bolso nem as necessidades da maioria da população urbana, somado à crescente migração do interior às grandes cidades – Nordeste como o maior emissor de migrantes, São Paulo como o maior receptor –, e por tanto, o aumento da informalidade laboral, teve seu reflexo no aumento expressivo de assentamentos informais[17], de forma geral, em áreas de

[16] “segregação ao estilo Jim Crow na rua principal, em lojas, passeios públicos, clubes sociais, danceterias e concursos de beleza, que durou até o recente ano de 1985” (TWINE, 1998, p. 120) [17] A grande maioria dos migrantes racializados em São Paulo realizava trabalhos informais no setor de serviços domésticos, aproximadamente um 80% acorde com Cano (2011)

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riscos e de vulnerabilidade ambiental, agravando as condições de moradia e a exclusão destas populações (BACELAR, 1999, p. 12-15). No período compreendido entre 1986 até o 2008, a razão de desigualdade de renda entre brancos e afrodescendentes no Brasil caiu de 2.37 em 1986[18], para 2.06 em 2008[19]. Segundo as estimativas, era esperado alcançar o 1:1 em 2029, dependendo da continuidade e ampliação das políticas de redistribuição de renda, porém, o cenário atual de recortes de políticas sociais ao financiamento da educação e a saúde está se articulando para impossibilitar a conquista da equidade no país, ao menos não em um futuro próximo (THEODORO, 2008, p. 167-175). A propósito das desigualdades raciais, os Estados Unidos estavam experimentando internamente uma série de mobilizações e manifestações sociais críticas ao papel belicista do país do norte por fora, e do racismo e segregacionismo interno, muito próximo da lógica escravista colonial. O acesso à moradia para as populações afrodescendentes no país ainda era escasso e segregado, pressionam para a assinatura do Fair Housing Act em 1968.

[18] Em 1989 alcançou 2.52, a mais alta registrada até o momento (THEODORO, 2008) [19] Essas será a taxa mais baixa e possível reflexo das políticas universais de redistribuição de renda do governo PT, porém, que merecem ser estudadas no seu recorte racial intencional ou como casualidade (THEODORO, 2008) (CANO, 2011).


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Com o Ato pretendia-se garantir a igualdade de tratamento para o acesso à moradia, independentemente da sua cor (BONACICH, 2010). Porém, os Redlining persistiram no sistema de aluguel, que cada vez mais está atrelado ao sistema financeiro, avaliando a possibilidade de acesso aos direitos do consumidor/cidadão segundo o limite da sua capacidade de compra e endividamento (ROTHSTEIN, 2017). O ingresso semanal médio por famílias segundo sua cor em 1986 era: brancos 566, latinos 412 e negros 391 dólares americanos; entre a última há uma brecha de pelo menos 30% respeito ao padrão de ingresso das famílias brancas e é, inclusive, menor que da população latina – a pesar da sua condição de cidadão nato –. Para 1984, 1/3 da população afrodescendente nos Estados Unidos vivia abaixo da linha de pobreza, 2/5 viviam na pobreza; a pobreza na população branca representava apenas o 11% do seu total populacional. Quanto às propriedades ou a Networth, em 1986 as famílias brancas possuíam um patrimônio médio em dólares estado-unidenses de 39 mil; as latinas de 5 mil; e negras de 3 mil (BONACICH, 2010, p. 83-87) (THEODORO, 2008, p. 65-97). Mais recentemente, em 2008, vimos explodir a maior crise ligada ao setor financeiro imobiliário que tenha se visto na história global. É destacável pensar que dita crise está ainda fortemente ligada ao problema do acesso à moradia para uma boa parte da população nos Estados Unidos, que pelas restrições do sistema e as

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desigualdades criadas e recriadas por gerações, expulsa-os fora da formalidade em direção aos alugueis precários e abusivos, ou para entidades de crédito ilegais e sem solvência, que com altíssimos juros, compromete a maioria dos ingressos familiares para a amortização das obrigações financeiras, ou mesmo de reprodução da vida. Vemos, então, a aparição de uma novíssima expressão do despejo original através da capitalização sob a incapacidade e instabilidade financeira dos solicitantes (HARVEY, 2013) (HARVEY, 2012, p. 57-65). As Chamadas subprimes são expressão do refinamento dos mecanismos de empobrecimento para a subordinação das populações marginadas do sistema, que pela construção de barreiras socioeconômicas, culturais e junto à naturalização das violências e discriminações baseadas na raça, tem aos afrodescendentes norte-americanos como os maiores prejudicados na crise, e os mais relegados no processo de superação da mesma (HARVEY, 2012, p. 7-14) (BONACICH, 2010, p. 95-98) (RUTLAND, 2018, p. 204-244). Por último, Guimarães (1999, p. 114-115) nota mudanças graduais nas políticas e no entendimento das questões raciais nos Estados Unidos, expressando similitudes com o padrão de democracia racial latinoamericana. A narrativa do país mestiço enquadra as pressões pela inclusão de populações historicamente marginadas, cooptando as reivindicações de gênero, raça/etnia, identitária, etc.,


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e rearranjando uma narrativa onde estas populações são inseridas num mercado com pequenas concessões de aparência, mas, sem mudanças importantes na estrutura central de explorações dos corpos, ao mesmo tempo em que é mais simples consolidar a ideia de meritocracia no acesso aos direitos, aos recursos e aos serviços, tirando o papel do Estado na configuração de tais desigualdades, assim como a sua responsabilidade na (in)superação destas ao longo prazo (mais de uma geração atingida).

Considerações finais É evidente a necessidade e o compromisso para o futuro do desenvolvimento acadêmico teórico urbano na América Latina, a perda de mitos e dogmas que tergiversam a visão sobre a realidade do território definido como urbano, e mesmo rurais. Os eixos de desenvolvimento devem responder às desigualdades estruturais de poder e dos sujeitos, explicados nas alteridades ainda vigentes como as de gênero e de raça, em especial, como no caso brasileiro, e com um período anterior de conquistas e avanços na diminuição da brecha de desigualdade social, que embora, as políticas nesta matéria tenham sido desenhadas com base na renda, evidentemente, elas também tiveram um atingimento relevante nas desigualdades baseadas em raça e étnica. No caso dos Estados Unidos, o recente aumento das minorias étnicas e racializadas não apenas em quantidade, mas também

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No caso dos Estados Unidos, o recente aumento das minorias étnicas e racializadas não apenas em quantidade, mas também em visibilidade e relevância social, tem visibilizado aos outros corpos, as violências contra estes, as problemáticas e conflitos, que hoje, colocam se nas mídias desse país e de fora, inclusive nas hegemônicas, o que gera um debate, e abre uma expectativa de mudanças de fundo. Porém, em ambos países (em nível mundial atualmente), o movimento contra os direitos civis e humanos encontra se em forte expansão. Com discursos enraizados em ideais fascistas, racistas, machistas, etc., prometem adiar as conquistas na institucionalidade e ameaçam com reverter no senso comum, o debate sobre o racismo e sua estruturalidade na sociedade, na economia, na política, na violência, e claro, nos territórios urbanos e rurais na América, trazendo uma reverberação de tensões e conflitos militares no horizonte de porte mundial. É igualmente importante entender que o racismo não somente se encontra refletido nas atitudes discriminatórias para com uma população “pequena” o “minoritária”. O racismo é um sistema de bases coloniais que impõe alteridades hierarquizadas e fragmentadas pela linha de humanidade, como nos desenha Fanon (2009, p. 41-50), que baseadas nas ideias de raça/etnia/gênero, e outras, concedem humanidade e direitos – privilégios – para uma pequena parcela da população,


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e que anula, cancela, à grande maioria sometida à comoditização dos seus corpos, territórios e culturas. O domínio total sobre as populações vai ser atualizado do colonialismo para a modernidade por meio da pobreza, do policiamento, controle e a dívida como mecanismos de destruição integra do sujeito – material, mental, cultural e juridicamente – (FANON, 2009, p. 111-175) . A legalidade e a moral vão ser as instituições de consolidação e de longo alcance, por quanto a estrutura do Estado e da ideologia operante e hegemônica será formada por princípios contaminados pelo racismo, positivismo e em geral, pelos postulados favorecedores do capitalismo (HERNÁNDEZ, 2017, p. 155-165) Os mecanismos de reprodução da ideologia racista estão na educação, nas mídias e senso comum, mas também nas materialidades dos espaços por quanto estes condicionam o desenvolvimento das dinâmicas econômicas, sociais e relacionais dos sujeitos, e que na medida que a apropriação dos espaços é possível, a democracia é viável, assim como menores as desigualdades sociais (GUIMARÃES, 1999) (HARVEY, 2013). Para isto também e como se apresenta, as forças de repressão fazem parte deste sistema de condicionamento dos corpos no espaço e da execução do direito formal e costumeiro, sendo evidente na ação controlada das UPP, que especialmente no Rio de Janeiro, se apresenta como um pacificador do lugar necessário para sua livre exploração

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imobiliária e da forca de trabalho barato ao redor. Também simboliza a expansão da fronteira de controle do capital, e os muros que cercam a uma população que nas cidades apesar de encontrar sua pobreza, também encontra a unidade pela espoliação e as origens comuns, o que eventualmente se apresenta como a base para as alternativas ao modelo urbano capitalista e desumano (VAINER in MARICATO, 2013, p. 35-41) (VIANNA in HARVEY, 2013, p. 53-59). A estagnação impossibilita a superação dessa condição, entendendo que também dita superação não descansa principalmente numa atuação individual e no “aproveitamento” de oportunidades, mas sim em políticas públicas de estado que reconheçam a dívida histórica para com os povos racializados, e como em todo conflito, deve haver verdade, com a construção teórica e histórica da realidade; justiça, mediante a reformulação das políticas e do Estado em função da equidade e da integração das populações à Nação na forma de cidadãos integrais, e a reparação com mecanismos jurídicos e políticos de controle e poder para estas comunidades em uma paridade proporcional às forças que as mantiveram subordinadas (GUIMARÃES, 1999, p. 114-115) (THEODORO, 2008, p. 167170). Igualmente, fica a pergunta mais importante: como conseguir tudo isto no marco do capitalismo global e financeiro? Certamente as políticas afirmativas são um passo bastante marcante para esse


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caminho, mas que precisam ser ampliadas, principalmente na gestão coletiva do Estado. Pensaríamos que é a outorga de poder de decisão que poderia ser o principal médio pelo qual o processo de exploração racializada pode ser revertido ou pelo menos, igualado nas formas legais (formais) da economia e vida política e social dos países. Isto sugere também em repensar as areias políticas de disputa que atualmente existem, e seu replantio desde um enfoque de género e antirracista o qual, tal vez só na África do Sul tenha alguma experiencia no globo para acompanhar (MARCUSE, 2016). Finalmente, com o norte enfraquecido pela pandemia e a crise anterior que o capitalismo financeiro já enfrentava, a possibilidade de transformação está colocada tanto para os movimentos, militantes, quanto para os acadêmicos, depende de nós ariscar perder as cadeias que ainda nos atam ao colonialismo e a subordinação ao norte, ao branco, ao macho, ao opressor (GROSFOGUEL, 2006, p. 41-43).

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