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E xpediente SUMÁRIO

EDITORIAL

creria em Deus que 03 Só soubesse dançar - De como a acid house

Quando surgiu a idéia de fazer uma capa do Pernambuco com Machado de Assis, a primeira inquietação aqui na redação foi: como resolver graficamente essa pauta, dentro da proposta do jornal de sempre tratar ironicamente seus temas? A solução foi (mais uma vez) brincar com o tema tratado. O alvo escolhido foi o romance “Dom Casmurro”, uma das obras mais polêmicas do escritor que, no próximo ano, será lembrado pelo seu centenário de morte.

mudou a cultura dos clubes noturnos

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Voilá: exílio - Luiz Arraes divide suas memórias familiares em livro

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A capa e as páginas internas do suplemento retomam a cena inicial do romance, com a apresentação do personagem Bentinho, passada numa estação de trem, de onde saiu a excelente constatação “que eu conheço de vista e de chapéu”, sacada ferina contra os códigos de convivência da sociedade da época. Ou seja: nada mais “machadiano”.

Femme fatale - As provocações da musa Tereza Tenório

fim evidente era atar as duas pontas 06 Odameu vida - Uma crítica da crítica machadiana

Alexandre Belém

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Machado de Assis é tratado pelo Pernambuco às avessas: no lugar de focarmos a obra do escritor, o crítico literário Anco Marcio Tenório Vieira preferiu se debruçar na crítica que o autor recebeu ao longo dos anos. Se Machado é hoje um mito de praça pública no imaginário brasileiro, nem sempre foi assim. O sempre confuso (e preconceituoso) crítico Silvio Romero chegou a escrever que Machado “gagueja no estilo, na palavra escrita, como fazem outros na palavra falada”. O tema machadiano continua no Saber +, com uma entrevista “imaginária” do autor. Destaque para o artigo de Maria da Paz Ribeiro.

Ainda no território literário, o Pernambuco traz uma entrevista com a escritora Mariana Ianelli, que promete ser um dos grandes nomes da literatura brasileira. O tema da conversa é o seu novo livro de poemas, “Almádena”, quinto de uma trajetória iniciada em 1999.

Ao ler o Pernambuco, muita gente deve estranhar que a página da crônica de Adelaide Ivanova não tem título, nem “cabeça”, nem número de página ou qualquer outro recurso de identificação. Nem mesmo na chamada do sumário ao lado ela é identificada. Isso não é erro, mas um recurso proposital da nossa editora de arte Jaíne Cintra.

Afinal, o tema da crônica é despedida, vazio. O “buraco” que a autora sente, ao escrever seu texto, continua pela própria forma como o texto aparece na página.

A crônica de Adelaide Ivanova serve também para que o Pernambuco preste homenagem ao escritor e jornalista Orismar Rodrigues, falecido mês passado, mas que deixou uma série de lembranças pelo seu bom humor, sua forma peculiar de encarar a vida, que nós nunca iremos esquecer. Fica então o “buraco”, o “vazio” de nossa página para marcar sua “saída de cena”.

Hoje é o seu dia, que dia mais feliz - Por que essa estreita relação do jornalismo cultural com o passado?

Na parte de Inéditos, o retorno de Flávia de Gusmão. Desta vez, pedimos que ela divagasse sobre os 25 anos de carreira de Madonna. O foco da pauta não seria a sua música, e sim a importância que a cantora norte-americana teve para a história de libertação feminina. Ao topar a parada, Flávia chegou a uma constatação curiosa: havia sido enganada por Madonna.

Ainda falando de música, Haymone Neto repensa os 20 anos em que a acid house surgiu, desmontando a forma como as pessoas lidam com o hábito de sair à noite para dançar. Se até meados dos anos 80, boate era sinônimo de carão, de sair para “catar gente”, com a acid house a dança pela dança começou a ser valorizada.

10 preciso sofrer a vastidão - Entrevista com a 11 Époeta Mariana Ianelli

E se você está achando que esse Pernambuco está com muitas efemérides, não deixe de conferir a crítica que Carolina Leão escreveu sobre essa obsessão do jornalismo em comemorar os 20 anos disso e/ou centenário daquilo. Por que o passado tem sido tão santificado? Uma pergunta que a doutoranda em sociologia procura responder.

No mais, é isso, até a próxima!

- Flávia de Gusmão dá a “real” nos 12 Inédito 25 anos de carreira de Madonna

Schneider Carpeggiani, Editor Executivo (carpeggiani@gmail.com)

Entre na briga - O Pernambuco abre espaço para os leitores. Escreva dez linhas sobre Clarice Lispector. Você participará do debate com nossos colaboradores. Veja e-mail no editorial.

EXPEDIENTE GOVERNADOR DO ESTADO Eduardo Campos PRESIDENTE Flávio Chaves

VICE-GOVERNADOR João Lyra Neto

SECRETÁRIO DA CASA CIVIL Ricardo Leitão

DIRETOR DE GESTÃO DIRETOR INDUSTRIAL Bráulio Mendonça Meneses Reginaldo Bezerra Duarte

GESTOR GRÁFICO Júlio Gonçalves

EQUIPE DE PRODUÇÃO Débora Lobo, Eliseu Barbosa, Joselma Firmino, Lígia Régis, Roberto Bandeira e Aluísio Ricardo

Circulação quinzenal.

Parte integrante do Diário Oficial do Estado de Pernambuco.

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Distribuído exclusivamente pela Rua Coelho Leite, 530, Fone: (81) 3217.2500 Companhia Editora de Pernam- Santo Amaro FAX: (81) 3222.5126 buco - CEPE CEP 50100-140

EDITOR Raimundo Carrero

EDITOR EXECUTIVO Schneider Carpeggiani

EDIÇÃO DE ARTE Jaíne Cintra

REVISÃO Gilson Oliveira

TRATAMENTO DE IMAGEM Sebastião Corrêa

SECRETÁRIO GRÁFICO Militão Marques

CONSELHO EDITORIAL Flávio Chaves (presidente), Jaci Bezerra, Paulo Bruscky, Nivaldo Araújo, Ivanildo Sampaio, João Monteiro e Lucila Nogueira

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Alexandre Belém

M úsica

Haymone Neto

Há 20 anos, a acid house mudou os mandamentos das pistas de dança

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stamos em meados do ano de 1967. É o Verão do Amor. Milhares de jovens se reúnem nos arredores de São Francisco, nos Estados Unidos, para celebrar o amor livre, a paz e a ideologia hippie, ao som do rock lisérgico da época e sob o efeito de maconha e ácido. Pára. Adianta para 1988. Milhares de jovens estão de novo reunidos. Vinte anos depois, é o segundo Verão do Amor. Mas o lugar é outro, as drogas são outras e, principalmente, a música é outra. Estamos falando da ilha mediterrânea de Ibiza. Estamos falando do ecstasy. Estamos falando da acid house.

Ao invés de guitarras, sintetizadores e batidas eletrônicas. No lugar de hinos de amor e canções de protesto, vozes sussurradas transmitem mensagens subliminares ao som de bases repetitivas, cíclicas e hipnóticas. Assim era a música que arrastou milhares de jovens para o famoso balneário espanhol em busca de diversão no final dos anos 80. Os impactos dela, contudo, estão presentes até hoje.

Foi ao som da acid house que surgiu no Reino Unido o que nós hoje chamamos de rave – aquelas festas, geralmente em locais inusitados, que tocam música eletrônica sem parar até o amanhecer. E foi a acid house quem venceu a revanche da guerra que a discoteca havia perdido, para usar as palavras do DJ norte-americano Frankie Knuckles, e fez as pessoas voltarem a sair de casa com a intenção de ouvir uma música cuja função primordial é fazer dançar. “A acid house é a destilação mais pura da house, o limite extremo da sua lógica de funcionalismo inumano”, definiu o crítico musical Simon Reynolds no começo dos anos 90.

Tudo começou com um aparelhinho aparentemente inútil chamado TB-303, fabricado pela japonesa Roland. Esta máquina, um seqüenciador lançado comercialmente no começo dos anos 80, tinha supostamente a função de executar linhas de baixo para acompanhar os guitarristas enquanto estes estivessem praticando seus instrumentos sozinhos em casa. No final dos anos 80, as TB-303 começaram a aparecer no mercado de segunda mão, e foram adquiridas por uma geração de músicos e DJs sedentos por novidades acessíveis para utilizar em seus experimentos sonoros. Uma delas foi comprada pelo DJ Pierre, desconhecido até então. Sem querer, ele programou aquela que seria a base do primeiro e mais importante disco da acid house: “Acid trax”, lançado pelo Phuture, grupo composto por ele e mais dois integrantes. O compacto tem mais de 12 minutos preenchidos por uma batida four-to-the-floor (um compasso 4/4 marcado quatro vezes pela batida do bumbo), além da TB-303, que é utilizada de uma maneira nunca antes ouvida. Ao invés de funcionar como instrumento de acompanhamento, o seqüenciador é quem conduz toda a música.

A acid house pavimentou o caminho que mais tarde seria percorrido por outros subgêneros da música eletrônica, como o techno e o trance. Mas sua influência não se dá apenas no plano sonoro. Uma nova forma de atitude estava no bojo dessa nova forma musical. O glamour da discoteca havia sido reprimido por um movimento de fundo racista e sexista auto-intitulado “disco sucks”, que surgiu nos Estados Unidos no final

dos anos 70. Seu objetivo era literalmente matar o gênero, que tinha como motes a liberdade sexual e o orgulho de ser negro, dentre outros, e fazer prevalecer o rock branco e macho, que perdia espaço nas paradas. Era a época dos Embalos de Sábado à Noite e da Studio 54.

Mas a acid house não tinha nada a ver com glamour, com ostentação, ou com qualquer causa específica. Todos os seus comandos visavam causar um transe através da dança e daquela música eletrônica, pulsante e repetitiva que virava a noite. “Se a disco deveria ser escapismo, a acid house era o não-escapismo”, afirmou Reynolds à época.

Talvez por isso tenha agregado tanta gente. Nos últimos anos da década de 80, aquele que se tornou o símbolo da acid house, o smiley, a carinha amarela sorrindo, estava em todos os lugares. Mas 1987 passou, a acid ficou velha e os seus descendentes diretos, embora continuem agregando muita gente, se tornaram mais do mesmo. Já se passaram 20 anos; está na hora dessa geração fazer o seu próprio Verão do Amor. yy

Cinco faixas para entender a Acid House: PHUTURE – ACID TRAX (1987). ONDE TUDO COMEÇOU. PRODUZIDA POR UM DOS PAPAS DA HOUSE, MARDJ PIERRE, FOI UMA DAS PRIMEIRAS A SER TODA BASEADA NUMA LINHA DE BAIXO EXECUTADA PELO SINTETIZADOR E SEQÜENCIADOR ROLAND TB-303. A LENDA DIZ QUE O DJ RON HARDY FOI O PRIMEIRO A TOCÁ-LA, EM 1987. EXECUTOU O DISCO QUATRO VEZES NA MESMA NOITE, INDO DO TOTAL ESTRANHAMENTO DO PÚBLICO AO TRANSE ABSOLUTO. SHALL JEFFERSON, E EXECUTADA PELO

TYREE – ACID CRASH (1987). AQUI, A ÊNFASE É MAIS NA PARTE PERCUSSIVA – EXECUTADA POR UMA BATERIA ELETRÔNICA ROLAND TR-909 - DO QUE NA LINHA DE BAIXO, QUE SE RESTRINGE A UMA ÚNICA NOTA PULSANTE. ACID CRASH MOSTRA QUE A ACID HOUSE TAMBÉM ABRIU CAMINHO PARA OUTRAS VERTENTES DA DANCE MUSIC, COMO O TECHNO E, MAIS RECENTEMENTE, O ELECTROCLASH. ADONIS - NO

(1988). NESTA FAIXA, UMA ACID HOUSE AINDA EM FORMAÇÃO FLERTA COM UMA LINHA DE BAIXO SIMPLES FAZ A BASE PARA FRASES COMO “LIBERTE SUA MENTE” OU “PERDI O CONTROLE”. TUDO A VER COM A FEBRE QUE VIRIA A SEGUIR. WAY BACK

O ELECTRO E ATÉ COM OS VOCAIS.

LIL LOUIS – VIDEO CLASH (1988). UM DOS COMPACTOS MAIS ESTRANHOS DA ACID HOUSE, LANÇADO POR UM DOS NOMES IMPORTANTES DA HOUSE DE CHICAGO, RESPONSÁVEL PELO HIT FRENCH KISS. AQUI NÃO HÁ BAIXO OU QUALQUER OUTRO SOM FAMILIAR. SÓ PERCUSSÃO ELETRÔNICA E RUÍDOS SINTÉTICOS. LARRY HEARD – THE SUN CAN’T COMPARE (2006). O DJ LARRY HEARD, QUE SOB O PSEUDÔNIMO MR. FINGERS FOI RESPONSÁVEL POR ALGUNS DOS DISCOS MAIS IMPORTANTES DA HOUSE, MOSTRA QUE A INFLUÊNCIA DA ACID ESTÁ MAIS DO QUE PRESENTE NESTE COMPACTO LANÇADO NO ANO PASSADO. LÁ ESTÁ A LINHA DE BAIXO EXECUTADA PELA ROLAND TB-303, SÓ QUE DESSA VEZ SOB O VOCAL SOUL DO DESCONHECIDO MR. WHITE.

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sujeito ter no sobrenome um “Arraes de Alencar” não deve ser muito fácil, especialmente se for um dos muitos filhos do mito, o Miguel. Coube ao Luiz Arraes, o oitavo, num total de dez filhos, se debruçar no passado, soprar poeiras, lembranças, confundir geografia com tempo, olhar o menino que foi e o homem que é, para escrever “Tempo: o de dentro e o de fora”, que acaba de ser lançado pela CEPE. “O propósito desta narrativa era sobrevoar levemente a vida no exílio, o entrosamento de várias nacionalidades. A vida fora e tantas outras coisas”, diz o filho, que conseguiu realizar a tarefa, certamente dura. Nas entrelinhas, percebe-se uma tentativa de botar para fora aquele tempo de dentro, o “lembrar com nitidez” certas coisas que ficariam melhor adormecidas ou aquietadas. Nas entrelinhas menores, a confissão em uma frase, a tentativa de mandar uma carta para o homem que se tornou mito, mas antes disso, foi seu pai.

“Falo de meu pai. Preciso falar dele na impossibilidade de falar com ele”.

Não é todo escritor que pode descreve a cena do pai, antes de ser preso e mandado para o exílio. “A porta do gabinete estava aberta e ele escrevia concentrado, quando notou a minha presença e me fez entrar. Sentou-me em seu colo e continuou a escrever”.

Banal, corriqueira, a cena parece nada, mas é a virtude do livro. As lembranças não estão preocupadas com o heroísmo, com acertos de conta, ajustes com o passado. Recife, Paris, Argel, caminhos e descaminhos geográficos vão e voltam, misturando tempos, lugares, sentimentos. “Argel é uma cidade linda. Custei a acreditar nisso, tamanho era meu ódio de estar longe do Recife”. Voilá.

Conhecemos personagens deliciosos, como a Tia Odete (imaginem uma tia que, ao morrer, acaba precocemente com a infância de um garoto), Tia Hilda, Tia Violeta e outros parentes que entram e saem da narrativa, misturando vivos e mortos, como as lembranças, que nunca morrem. Gente como o Coronel Jefferson, da Guerrilha de Caparaó, um triunfante militar que queria somente “dois milhões de homens armados” para iniciar a revolução. Ou Juquinha, “um sósia de Ho ChiMin” e grande contador de histórias. Gregório Bezerra, que chegou de repente, depois de cinco anos exilado em Moscou.

Um filho de Miguel Arraes escrever um livro falando sobre exilados, refugiados políticos, ditaduras e ditadores, poderia provocar discussões acaloradas sobre a violência do regime militar no Brasil, questões de memória histórica, enfim. Mas não é por aí que a lembrança toca. A corda é mais simples. No fim, é o livro de uma saudade, que lateja ainda hoje, e não parece doer mais. Talvez uma reverência contida, que poderia ter ido mais longe.

Não é por acaso que a última frase seja uma das mais simples e mais fortes da língua portuguesa: “Obrigado, meu pai”. yy

Voilá: exílio Luiz Arraes lida com o peso de lembranças familiares vividas longe de casa Samarone Lima

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Musa da poesia pernambucana, Tereza Tenório vem com novo livro em que provoca e é provocada Marcella Souza

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usa. No dicionário, a palavra significa inspiração. Em português e espanhol, a mesma grafia, o mesmo sentido.

Ao lançar seu nono livro, o primeiro em edição bilíngüe, Terêza Tenório, poetisa das mais importantes e respeitadas da geração de 65 pernambucana, é figura que provoca e é provocada. As imagens descritas em sua poesia dialogam com a melancolia, mas, ao mesmo tempo, deixam no ar um certo sentimento de esperança, ou talvez, melhor dizendo, de clareza da fruição do tempo, da certeza de que só podemos contar com a existência do momento. Para que a angústia, então? No entanto, a condição humana não permite que ela (a angústia) vá embora. Terêza enxerga e traduz a essência da nossa tragédia diária, presente na dúvida entre permanecer na zona de conforto ou saltar no escuro.

“A musa roubada” reúne poemas inéditos da autora, cuja organização ficou sob a responsabilidade de Lucila Nogueira e Wellington de Melo. “Os textos estavam guardados numa caixa. Eram manuscritos originais, e através deles pudemos conhecer também mais sobre o próprio processo de criação de Tereza, que descobrimos ter muito de cabralino”, explica Lucila. Quando reuniram os textos para selecioná-los, os organizadores se depararam com diversas versões para vários poemas da autora. “Foi um desafio muito grande. Para não determinar ou fechar a compreensão da poesia dela, optamos por publicar as versões”, diz.

A professora Lucila ressalta que participa de um grupo de estudos que não acredita que a persona do autor se desvencilhe de sua obra. “Não achamos que isso seja possível”. Por isso, diz, optou por escrever na orelha do livro em um tom mais pessoal, ela, que é amiga de Tereza há vários anos: “O que dizer da poesia daquela que uniu o sonho e a vida, da que nunca teve medo, da grande advogada, da funcionária modelo, da filha e irmã amorosa, da ativista cultural, da que se entregou ao instante como à eternidade? Dizer sim, muitíssimo: do seu verso lapidado, de suas imagens visionárias, do refinamento da linguagem, da extrema dedicação à sua arte”. Enquanto acadêmica, Lucila diz que uma de suas funções é revelar a arte poética, trazê-la ao conhecimento das pessoas, não deixar que ela fique presa intramuros. “Esperar é o mesmo que morrer”, escreve Tereza em uma das versões do poema “O necessário”.

O tempo e sua passagem, para o bem e para o mal, é um dos temas recorrentes do livro. A autora celebra sua existência, porque lhe permite a vida, enquanto lamenta a certeza da finitude das coisas. “O dias negros partem e retornam a ti / a mim / ao self (...) Ó senhores dos tempos / vêm e vão e vão e vão”. A musa Tereza sempre esteve segura dos movimentos naturais da vida, e nem por isso se deixou tragar por eles. Segundo Lucila, uma das principais características da sua poesia é o rigor formal e o flerte com a vanguarda. Pode parecer contraditório, dito assim, de pronto, mas é o reflexo de uma condição de humanidade, da qual às vezes a gente tenta escapulir. Sem sucesso, é bom que se diga.

Editado pela Companhia Editora de Pernambuco – CEPE, “A musa roubada” foi lançado na última Bienal do Livro de Pernambuco, em outubro. Segundo a professora Lucila, será relançado durante o Colóquio de Estudos Literários Contemporâneos, que acontecerá na Universidade Federal de Pernambuco de 17 a 19 de dezembro. O evento homenageará Jomard Muniz de Brito e Débora Brennand, que completam este ano, respectivamente, 70 e 80 anos de vida, além da própria Tereza Tenório, inspiração para toda uma geração de artistas que se recusaram a viver de marolas. yy

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estes dois meses que antecedem o ano em que o mundo literário irá assinalar o centenário da morte de Machado de Assis (1839-1908), algumas controvérsias críticas sobre sua obra serão recolocadas na ordem do dia. Controvérsias que tiveram início já no século XIX e que refletem a própria história da crítica brasileira nos últimos 150 anos: seus limites, avanços, preconceitos, seus engajamentos ideológicos.

A primeira grande dificuldade que a crítica oitocentista encontrou ao analisar a obra de Machado foi a de se munir com as ferramentas teóricas adequadas. Dois exemplos são paradigmáticos. O primeiro vem de Capistrano de Abreu. Em artigo de 1881, ele colocou em suspensão o caráter romanesco de “Memórias póstumas de Brás Cubas”, pois, para ele, “o romance aqui é simples acidente”. A replica a Capistrano veio no prefácio à terceira edição de “Memórias póstumas”. Sem perder a pena da galhofa, Machado responde-lhe que seu livro “era romance para uns e não o era para outros”. Ou seja, não era sua obra que, enquanto gênero, era “inadequada”, e sim o método crítico é que se revelava tacanho.

O segundo exemplo encontramos naquele que foi o mais importante crítico do seu tempo: Sílvio Romero. Filho da chamada Escola do Recife, Romero aborda a literatura a partir dos pressupostos cientificistas: evolucionismo social, determinismo e positivismo. É a partir desses pressupostos — que classificava os homens em “raças” superiores e inferiores e tinha o “clima” como um fator determinante para o florescimento ou não de uma civilização — que Romero vai defender a tese de que em geral a “raça” brasileira é “incapaz de [...] produzir espontaneamente” o humor, posto que este só pode frutificar nos povos de clima temperado. Logo, o humor em Machado “não é natural e espontâneo [...], é um capricho, uma afetação, uma coisa feita segundo certas receitas e manipulações”. Atacar o humor machadiano não só feria um dos pilares formais que organizam sua obra, mas ainda fornecia subsídios a Romero para denunciar o estilo de Machado — tido por ele como reflexo da sua condição de mulato, gago e epilético — como “a fotografia exata do seu espírito, de sua índole psicológica indecisa. [...] Ele gagueja no estilo, na palavra escrita, como fazem outros na palavra falada”.

Os críticos acima tinham em comum dois pontos. Primeiro, a incapacidade de entender a obra literária como uma linguagem que tem suas próprias regras de funcionamento, indiferente do tema desenvolvido pelo escritor. Segundo, valorizar obras que contribuam para a construção das identidades nacional ou cultural. O resultado era a tendência a privilegiar o romance de costume ou de fundação (a exemplo de “Iracema” e “O Guarani”) em detrimento do psicológico; assim como versos que cantem a exuberância da cor local (elementos da nossa alteridade) em prejuízo dos que se voltavam para a construção das suas próprias imagens e alegorias (como a poesia Parnasiana e Simbolista).

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Dentro desses critérios, a obra de Machado encerrava ainda um agravante: a de não se alinhar às escolas estéticas que lhe eram contemporâneas: o Romantismo e o Realismo/Naturalismo. Não alinhamento que implicava num “duplo pecado”: o de caminhar à margem dos grandes temas nacionais evocados pelos românticos e o de desdenhar o cientificismo como panacéia para a cura dos males que impediam o Brasil de civilizar-se. Num país onde a reflexão e a análise — no campo estético ou no político — sempre cedeu caminho à retórica fácil, o projeto machadiano — recusando a “nacionalidade de vocabulário”, defendendo o “sentimento íntimo” como alicerce do “instinto de nacionalidade”, e a construção de uma literatura em que a temática se submetesse à forma — desnorteava a crítica cientificista e impressionista do seu tempo.

Mas o fato é que Machado não passou ileso aos princípios estéticos do seu tempo.

Pelo contrário. É conhecida a sua sentença, publicada em 1873, de que “Escrever como Azurara ou Fernão Mendes seria hoje um anacronismo insuportável. Cada tempo tem o seu estilo. Mas estudar-lhes as formas mais apuradas da linguagem, desentranhar deles mil riquezas, que, à força de velhas se fazem novas — não me parece que se deva desprezar. Nem tudo tinham os antigos, nem tudo têm os modernos; com os haveres de uns e outros é que se enriquece o pecúlio comum”. Ou seja, Machado evoca a tradição para lembrar que construir uma obra literária não passa apenas pela ruptura de gênero ou de escola estética, e sim pelo árduo caminho da reflexão crítica.

Sendo assim, nenhuma escola literária encerraria os princípios da beleza e da verdade, muito menos detinha o método correto de mimetizar em linguagem a realidade. Em suma: a presença das escolas literárias (contemporâneas ou antigas) na sua obra ficcional e crítica dá-se por subtração, não pelo acatamento puro e simples.

Pensar a literatura como um sistema que, ao longo dos séculos, num processo de intertextualidade, vem construído um universo imagético próprio, é sinalizar para a construção de uma literatura que traga a linguagem para o primeiro plano, deixando o tema numa posição secundária. Daí a dificuldade de Capistrano e de Romero de entenderem como um autor brasileiro (ainda por cima mulato, gago e epilético) podia escrever um romance em que o princípio que o organiza formalmente é a sátira, o humor; dentro de um processo crítico de intertextualidade com obras que o antecederam — Luciano, Rabelais, Sterne, Diderot, Garrett —, em aparente detrimento das escolas que lhe são contemporâneas. Machado, como mostra dois dos mais importantes e definidores estudos sobre sua obra — “O calundu e a panacéia”, de Eniylton de Sá Rego, e “Riso e melancolia”, de Sérgio Paulo Rouanet — se vale da tradição, ao tempo que dialoga com a sua contemporaneidade, e “com os haveres de uns e outros” constrói uma novidade não somente na literatura brasileira, mas na literatura de língua portuguesa: ambas prisioneiras das modas estéticas do seu tempo.

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Anco Márcio Tenório Vieira

Outro tema que retém a atenção da crítica nesses últimos 150 anos, é o da chamada duas fases de Machado. Quem primeiro contestou essa divisão foi Tristão de Alencar Araripe Júnior, em artigo de 1892, em “Crítica a Quincas Borba” (1891). Neste artigo, o crítico enumera as características da trajetória ficcionista de Machado, e conclui afirmando que ele “[...] fortaleceu-se na idéia e aprimorou-se na forma; mas hoje, como homem, como em 1870, posso afirmá-lo, não mudou uma linha do seu primitivo eixo.

Subiu, subiu muito alto; porém a linha ou as linhas que prendem o seu papagaio multicor, são as mesmas com que ele o empinava quando menino, isto é, na época em que surgiam os seus primeiros livros”. O próprio Machado, em carta de 1898 ao crítico José Veríssimo, assinala, em comentário ao que este escrevera sobre sua obra — “Alguns livros de 1895 a 1898” —, que “O que você chama a minha segunda maneira naturalmente me é mais aceita e cabal que a anterior, mas é doce achar quem se lembre desta, quem a penetre e desculpe, e até chegue a catar nela algumas raízes dos meus arbustros de hoje”. Já nos Anos 70, Silviano Santiago lembra que “Já é tempo de se começar a compreender a obra de Machado de Assis como um todo coerentemente organizado, percebendo que certas estruturas primárias e primeiras se desarticulam e se rearticulam sob forma de estruturas diferentes, mais complexas e mais sofisticadas, à medida que seus textos se sucedem cronologicamente”.

Controvérsia que parece não encontrar o seu término. Em 2005, seu biógrafo — Daniel Piza — afirma, em obra que prometia uma montanha e terminou parindo um rato, que a passagem do primeiro para o segundo Machado é uma junção das doenças que o acometeram entre 1878 e 1879 e a crise do Império (as campanhas abolicionistas e a ascensão das idéias republicanas). Tese pouco fundamentada, como revelam os parcos dados arregimentados pelo biógrafo, e que recorre a uma explicação transcendentalista: homens que depois de vivenciarem uma situação dolorosa (em geral mortificante) recebem a graça da “iluminação”.

Mas é ainda em cima da tese de ver a obra de Machado como um sistema coerente, que Augusto Meyer (1902-1970) busca explicações no campo da psicologia. Em ensaio de 1958, defenderá que “[...] se de um lado não se concebem as ‘Memórias póstumas’ senão como produto de uma longa gestação, nem por isso é menos imprevista, de outro lado, a impressão que provoca em nós o seu desabrochamento brusco”. Desabrochamento que o crítico gaúcho, na trilha aberta pelos críticos Lúcia Miguel Pereira (1936) e José Barreto Filho (1947), vai detectar na presença cada vez mais constante e crescente com que Machado persegue as construções psicológicas nas urdiduras dos seus personagens. Esse mesmo caminho foi retomado em 1969 por Silviano Santiago,

ao lembrar-nos que a preocupação de Machado com os caracteres dos personagens é o ponto central de “Ressurreição” (1872). Ou seja, é exatamente o que era desdenhado por parte da crítica oitocentista — o romance psicológico — que fora um dos alentos para Machado problematizar e verticalizar o gênero que abraçara em 1872, e dar o salto qualitativo na literatura de língua portuguesa.

Mas não são apenas os aspectos psicológicos e estruturais que a crítica assinala na obra de Machado. Os estudos de Roberto Schwarz — “Ao vencedor as batatas” (1977) e “Um mestre na periferia do capitalismo” (1990) — trilham, dentro de um caminho aberto por Antonio Candido nos anos 50, a dialética entre a forma literária ou estética (o que é interno à obra) e o processo histórico-social brasileiro (o que lhe é externo, seu referente). Suas análises mostram como a partir dessa dialética entre o “interno” e o “externo” se dá a passagem entre o “primeiro” e o “segundo” Machado. Estudos que não deixam de também visitar, embora timidamente, a construção psicológica dos personagens machadianos.

Um pouco nesse caminho, mas por vereda diversa, de buscar no referente históricosocial-político a explicação para as mudanças ensejadas na trajetória literária de Machado, temos em John Gledson, particularmente em sua “Ficção e história” (1986), uma análise das reflexões de Machado “[..] em torno da natureza da sociedade brasileira, [da] sua história e sua política [...]”. Por esse método, Gledson toma a obra de Machado como uma alegoria do Brasil oitocentista. É trilhando essa reflexão, que o crítico inglês explica o “desabrochamento brusco” assinalado por Meyer.

No entanto, ao contrário das análises psicológicas, que tentam encontrar na própria urdidura da obra machadiana sua explicação, as teses de Schwarz e Gledson ainda perseguem, assim como no século XIX, o critério da nacionalidade como valor de relevância ou não de uma obra. Valendo-se de elementos externos à obra, seus ensaios ficam em permanente dívida com as interpretações históricas, sociais e políticas que lhes subsidiam. Muitas, inclusive, já contestadas por novas análises que surgiram nos últimos 20 anos. O futuro dos estudos de Schwarz e Gledson parece ser o mesmo das análises cientificistas do século XIX: o de ser historicamente datado. No entanto, o prestígio dos seus textos termina, hoje, por obliterar as já citadas análises de Enylton de Sá Rego e Sérgio Paulo Rouanet. Ambas, cada uma ao seu modo, sofisticadas interpretações que mostram como Machado leu a tradição e a contemporaneidade, e “com os haveres de uns e outros” construiu uma obra que já sinaliza para as grandes questões do romance do século XX. Superando não só a posição periférica em que se encontrava a literatura de língua portuguesa, mas se inscrevendo como mestre na literatura ocidental. yy

Às vésperas do centenário de morte de Machado de Assis, uma análise do legado crítico que o autor recebeu

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Desde o início da sua carreira, Machado de Assis tem na busca pela identidade uma de suas maiores preocupações

Eduardo Melo França

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crítica, de forma geral, vem ao longo dos anos ignorando a importância de um olhar mais atento sobre os primeiros contos de Machado de Assis. Porém, ao ignorar esses contos, e entre eles “O machete”, publicado em 1878, essa mesma crítica deixa de perceber que uma das idéias mais importantes da obra madura de Machado já estava presente nesse primeiro (e negligenciado) momento de sua produção.

Um dos problemas mais importantes e que mais se destaca entre seus contos, é o da busca por uma identidade. Em “O espelho”, partindo da teoria das duas almas, Machado nos mostra que essa busca por uma identidade inevitavelmente passa pelo discurso e pelo olhar do outro. Aparentemente, o modo refinado com o qual o tema da identidade é tratado n’”O espelho”, lhe permite ocupar um status de primeiro escalão entre os problemas abordados por Machado em seus contos. Mas o que nem mesmo o cuidadoso Antonio Candido menciona em seu clássico ensaio “O esquema de Machado de Assis”, é que a busca pela identidade apresentada pela primeira vez n’”O espelho” – na forma da “teoria das duas almas” – não é uma teoria em si, ou nuclear, mas sim um dos possíveis desdobramentos de um modo de pensar, apresentado pela primeira vez em “O machete”. Explico melhor. Não foi na estória de Jacobina, mas na de Inácio Ramos que Machado pela primeira vez tratou sobre a inevitabilidade do discurso do outro na determinação relativa da formação e valoração das coisas e da identidade.

Indo ainda mais longe na tarefa de entender o desenvolvimento do pensamento de Machado acerca do papel do “outro” na valoração das coisas, podemos até mesmo conceber os contos “O segredo do Bonzo”, “O espelho”, “Teoria do medalhão” e “O machete”, como inseridos em um projeto, no qual Machado exerceria uma espécie de “metodologia”. Isto é, aplicando a mesma idéia em diferentes fenômenos, ele verificaria que a presença do efeito de relatividade do discurso do outro sobre a ilusão de autonomia que os homens nutrem sobre si mesmos e suas coisas, está no centro das contradições existentes entre a aparência e a essência, contigencialidade e permanência, verdade e discurso.

Em cada um desses contos há uma possibilidade diferente de articulação entre a alma exterior (discurso, aparência ou máscara) e interior (verdade, essência ou desejos íntimos pretensiosamente autônomos em relação aos efeitos externos). “O espelho”, sendo um desdobramento dessas idéias no campo da personalidade, apresenta uma posição central na articulação entre as duas almas. O drama psicológico de Jacobina se situa exatamente no meio de uma linha, na qual em uma das extremidades está a alma interior e na outra a exterior. O que temos em “Teoria do medalhão”, por sua vez, é um desdobramento das conseqüências da presença opressora e artificial do discurso do outro no campo da ética. Neste caso, a teoria consistiria basicamente em esmagar quase que por completo a alma interior em prol de uma outra exterior e absolutamente condicionada pela aceitação pública. Ou seja, a aparência sobre a essência, a aceitação pública sobre a sinceridade íntima.

Enquanto que “A teoria do medalhão”, em uma das pontas, é a imagem de um projeto que consiste em negligenciar completamente a alma interior e íntima em prol do predomínio da alma exterior, da aparência e da máscara; no outro extremo, temos “O machete”, que é o retrato do desesperado Inácio que iludido com a possibilidade da felicidade fundamentada unicamente na satisfação íntima e autônoma, negligencia sua alma exterior em prol da interior. Ele perde, como diz o narrador d’”O espelho”, sua outra metade da laranja, ou melhor, no seu caso, o reconhecimento público. Inácio Ramos pecou no que a teoria das duas almas tange à sua existência enquanto músico: ele não encontra, diferente de Jacobina, o equilíbrio entre de um lado a auto-satisfação e do desejo íntimo e verdadeiro e do outro a expectativa da atenção pública. Nos três casos apresentados, o que está em questão é a força com a qual o discurso do outro intervém na relação entre os desejos verdadeiros (alma interior) e os superficiais e apenas aparentes (alma exterior). Um último caso, no qual Machado aplica sua teoria, é “O segredo do Bonzo”.

Nele, percebemos que qualquer discurso só alcança o status de verdade, quando diante de alguém que lhe atribua esse sentido.

Nenhuma palavra em si nasce com a marca da verdade. Toda suposta certeza, seja científica, religiosa ou ideológica, necessita de um outro que a legitime. Como diria Rorty, verdade é um elogio que se faz a uma teoria bem construída.

Enfim, excluir “O machete” de uma análise integral dos contos de Machado, apenas por ele ter sido escrito antes da sua dita “segunda fase”, implica em não perceber que ele, não somente retratou todas as possibilidades de combinação entre “alma exterior” e “interior’, como também, nos impede de localizar exatamente quando Machado começou a fomentar uma de suas yy principais idéias e qual foi seu percurso completo.

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M ídia Carolina Leão

O abuso de efemérides nas publicações mostra como o jornalismo cultural santificou o passado

Hoje é o seu dia, que dia mais feliz U

ries de reportagem, edições especiais recheiam as páginas dos suplementos que, ao prestarem esta “homenagem” aos fatos, atos e homem imortais da História, acabam caindo na mesma contradição do universo artístico. O culto a esse passado não escapa da lógica de consumo da indústria cultural. As editoras, por exemplo, investem em novos prefácios, comentários, traduções, capas e design gráfico para atrair o consumidor, ao qual o jornalismo cultural vai se direcionar; dando à efeméride um caráter de “novidade”.

Não é menos verdade que a partir dessas datas efêmeras possa-se realmente pensar o passado em perspectivas diversas; e aí reside a historicidade do jornalismo cultural contemporâneo, quando ele deixa a hagiografia de lado e estimula o leitor a refletir sobre um determinado assunto de uma forma ousada. Há sim a possibilidade de apresentar novas interpretações sobre um clássico literário ou um cânone do pensamento ocidental na celebração das efemérides.O grande problema é que o passado tem sido sempre santo, com poucas testemunhas de acusação. O mais incômodo é que paralelo ao culto do passado desenvolve-se uma dificuldade de interpretação do próprio período em que vivemos, criamos e experimentamos formas de expressão e comunicação diversas. De um outro lado, temos o cotidiano apresentado em cápsulas de informação para serem digeridas com rapidez: a agenda cultural. Nesta, uma das principais características do jornalismo cultural, a subjetividade, é obliterada. A conseqüência mais óbvia dessa prática é exatamente a ausência de interpretação de novos temas e a neutralização da crítica, pontuada pela autoridade da subjetividade. Sobre o “novo” há muitas incertezas. Pensar a existência corrente requer um esforço intelectual autêntico. E não dá para fazê-lo num paradigma de agenda cultural. O passado, já processado/reprocessado, sai na frente e vira o ninho aconchegante da tradição. Para ela, as efemérides – papel guardado nas gavetas empoeiradas. E assim o jornalismo cultural se institucionaliza como um templo das musas. Para o dia-a-dia, o trivial. Mas como profetizou Baudelaire: “Não temos o direito de desprezar ou prescindir desse elemento transitório, fugidio, cujas metamorfoses são tão freqüentes”. O transitório revela as dimensões do real do qual o jornalismo cultural tende a se afastar em renunciar esse pensamento presente. A problemática é análoga ao campo da arte que, numa espiral, espelha as ambivalências da nossa cultura presente. Desse tempo fugidio escapamos e anunciamos a morte prematura do posicionamento crítico diante da novidade – papel yy de embrulhar peixe.

Alexandre Belém

ma das teses mais controversas de críticos e teóricos do contemporâneo mina o campo artístico em sua capacidade de produzir novos códigos e linguagens estéticas. Numa cultura contraditória – cuja velocidade de criação de bens de consumo leva à exaustão cada vez mais rápida dos seus significados simbólicos – o “novo” é posto em xeque. A voz máxima da dificuldade do contemporâneo de criar representações para o presente corrente é do teórico adorniano Fredric Jameson. Sua hipótese de que vivemos sob o signo da nostalgia, e recorremos ao passado como recriação esquizofrênica, é levada adiante por diversos críticos do pós-modernismo e não deixa de ser materializada nas expressões artísticas dos últimos vinte anos. Fenômenos como as bandas cover, as releituras de sucessos musicais sob um verniz high-tech, os remakes cinematográficos, a volta de grupos de sucesso num passado remoto, o culto dos anos 80 pela moda e pela cultura pop são exemplos dessa dinâmica. A cultura pop está de fato saturada de tendências e modismos que demonstram as “reciclagens” de estilos passados como o punk, a new wave e o heavy metal que após caírem num certo esquecimento por seu próprio esgotamento midiático retornam à indústria cultural sob novos modelos de identificação sonora e comportamental.

O novo será sempre um paradigma de análise da obra de arte. Isso deve ser levado em conta a partir do momento no qual o signo estético permite nos fazer ler ou reler a história a partir de uma subjetividade que reflete e é refletida por ela. O problema encontrado agora, no entanto, vai além da autoridade ou assinatura do artista e de sua “missão heróica” de pensar a realidade. Nos últimos anos, o jornalismo cultural vem mostrando uma similitude ao campo da representação artística com a valorização das efemérides pelos cadernos culturais Brasil afora. Publicações literárias, lançamentos de discos, aniversários de morte ou nascimento de um artista, comemoração de um evento histórico com apelo popular. Geralmente, a data precisa ser “redonda”. São celebrados os 25 ou 50 anos de um determinado fenômeno; que aos 23 e aos 48 sequer tinha alguma relevância social. As efemérides normalmente são buscadas na memória e começam a ser pensadas um ano antes da anunciação de sua comemoração. A partir daí, a indústria de bens culturais, principalmente a literatura, música e TV, elabora estratégias de marketing que inclui reedição de obras clássicas ou lançamentos de produtos com bônus promocionais – reforçando os cânones e contribuindo para a própria aceleração do comércio nessas áreas. E o jornalismo cultural corre atrás. Cadernos requintados, sé-

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Adelaide Ivanova

É

irônico: eu sou tão perdida, mas não sei falar de perdas. O ego inflado e auto-piedoso sempre me faz achar que dor pior que a minha não tem, não. E já que tenho esse defeito e me absolvo, vou falar de outra coisa. Vou falar dos ganhos.

O comeback de verdade veio, não somente para mim, mas também para Britney. Acho até que estou feliz, muito embora pareça impossível que possa estar: em três meses, a despedida definitiva de três amigos, 4kg a menos e, de novo, um leve pavor da humanidade.

Devo logo adiantar que qualquer vazio ou culpa que eu sinta em relação aos três é de minha responsabilidade: é em vida que se cuida de quem se ama, e isso é um exercício diário e que tem que ser lembrado para sempre. Falando grosseiramente, não adianta chorar o leite derramado.

Passei a vida me despedindo – acompanhando minha mãe para cima e para baixo, nas mudanças em que a vida acadêmica dela pedia, assim como pediam os abalos financeiros sofridos por ela, que é professora. E aí perdi a conta de quantas vezes mudei de colégio, de casa, de bairro, de cidade. Então de despedidas eu entendo – mas quem disse que a gente se adapta?

Sempre tive que fazer acordos com o tempo. Faço até hoje. Eu sei o quanto dói fazer as malas. É um mecanismo preciso, repetitivo e previsível. (Leia devagar para entender) Se é hora de voltar para os meus, eu faço a contagem regressiva, para aproximar o momento da chegada (aí tudo desacelera e tem o efeito contrário; eu sou tão ansiosa). Depois, quando é chegado o tempo de dizer adeus, eu faço a hora se alongar, só para ver se adio o tchau. Mas passa num instante e quando vejo já estamos, eu e minha cara de confusão, num aeroporto qualquer. É quem escolhe ir embora (no caso, eu) que tem que arcar com as conseqüências (que, se fossem listadas numa bula, teriam os nomes de “solidão endêmica”, “isolamento contínuo”, “chatice matinal” e “neurose de mulherzinha”). Então hoje entendo: até que dói ir embora, mas não tem agonia maior do que ver partir, enquanto é você quem fica. Nada para impedir, não tem isso de amarrar a pessoa no pé da mesa, nem adianta suplicar, nem pedir, nem mesmo fazer charminho.

A vida é dura, benzinho, e eu duvido que alguém já tenha lhe dito o contrário. E, além de dura, é curta. Este ano eu tive que lidar com essa coisa improvável que é a morte. Uma delas, brusca como cera quente no bigode. As outras duas, lentas e silenciosas, como gillette canelas acima.

Eu não consigo escrever sobre as lembranças. Não aprendi a falar de ninguém no passado (até a Leandro, com quem fui casada, continuo chamando de marido). Não me soa lógico falar algo como “O Rafa (também conhecido como Pirulito) foi meu amigo por anos”. A mim me parece que ele ainda é. Ele ainda é. Ele, Orismar e Gustavo. É como sentir que a qualquer momento ele vai aparecer aqui de surpresa, perguntando se pode tomar um banho. E vai usar minha escova de dentes sem pedir, vai me indicar um bocado de livros de filosofia e vai, por fim (quem o conhece sabe), entupir minha privada. Depois a gente vai para o show encher a cara juntos.

Tem um disco que eu ouço tanto nessa minha vida, um de Caetano (não ria!), que fala muito sobre o tempo. Esse negócio que passa, desacelera, o tempo que nos corrói e, ao mesmo tempo, cura. O Caê faz a Pollyana, um jogo do contente desgraçado, quando diz: “o melhor o tempo esconde, longe, mas bem dentro, aqui”. É aquela velha história: carregue dentro de si quem você ama. É a isso que me refiro quando digo que não sei falar deles no passado.

Lembranças boas não são lembranças boas se deixarem a gente triste. E lembrança ruim a gente nem precisa pensar – só pensa se quiser, certo?

Eu sou doente mental, né, e dia desses fui procurar a etimologia da palavra “pirulito”. Descobri, entre outras coisas, que pirulito tem raiz em “pirolito”, que é uma bebida gasosa servida em Portugal. Mas o melhor não é isso: segundo o Houaiss, um dos sinônimos de pirulito é “bilola”. Agora, vem cá: eu não conheço nenhum lugar do mundo fora Pernambuco em que se use a palavra bilola, e a gente sabe muito bem o que ela significa! Eu ri tanto quando descobri isso: são coisas que só o Rafa pode continuar proporcionando.

Ninguém está garantido na sua vida. Tem que cultivar e cuidar, tem que saber pedir desculpa, porque uma hora as pessoas cansam de cuidarem sozinhas de você. Eu tento manter quentinhos e cuidar daqueles que amo. De repente, como foi comigo, você vai ver alguém partir e vai ficar com uma cara de catupiry da porra: sem poder se desculpar, sem poder se despedir, sem poder nada.

E se eu morrer (“se” não, quando) eu quero um enterro bem cheio, animado, que eu sou carente e não sei lidar com rejeição – então tem que tratar o povo direito. Ás vezes é o tempo, lento, que parece ser o inimigo maior. Aí a gente conta para trás e se angustia lembrando das delícias que estão longe. Quando chega essa prova eu me nino, e me aqueço com as idéias – eu e Platão, bem alesados, a fogueira, a cadeira, o primeiro porre juntos... Enquanto isso, o tempo passa e eu vou cantando um bocado de músicas pop esperançosas, no meu mp3 player imaginário. E rezo pro tempo passar logo, ou lento, de acordo com meu desejo de rever. Mas a sensação é, sempre, de que faltam ainda tantos minutos “até que”...

Outra coisa que ajuda bastante (além do novo de Britney, como já falei, que prova que às vezes a gente pode aprender a fazer algo que preste antes mesmo de aprender a aceitar a derrota) é ouvir Bon Jovi. Bon Jovi é um expert na arte da despedida (ou da negação dela). É como se fosse eu em “Never say goodbye”: fazendo cara de devastada com meu Marlboro numa sala enfumaçada, minhas únicas amigas são as garrafas e eu, bem definitiva, canto junto: “Nunca vou dizer adeus, nem para você, nem para meus velhos amigos”. yy

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E ntrevista

M

ariana Ianelli acaba de lançar seu mais novo livro – “Almádena”. Quinto de uma trajetória que lhe confere, a partir de “Passagens” (2003) e “Fazer silêncio” (2005), lugar especial no panorama atual da poesia brasileira. Nesses dois livros, posteriores a “Trajetória de antes” (1999) e “Duas chagas” (2001), uma voz madura nos oferece a força de uma poesia discursiva que, sem qualquer constrangimento, alia o sentimento do tempo e a aspiração contemplativa. Poesia de contracorrente, desviando-se dos fáceis lugares marcados pelos lances gastos, seu clima é o do adensamento existencial através da sondagem das sensações e do poder que a palavra poética teria de envolver as coisas e experiências numa aura especial”. Com “Almádena” ela confirma suas conquistas e dá-se em sacrifício, numa tarefa ingrata e ameaçada pelas reduções corriqueiras de uma mentalidade que só aprova o que pode gastar.

Seu primeiro livro – “Trajetória de antes”, 1999 – traz textos bem diversos do ponto de vista formal, quando comparado a “Passagens” (2003) e “Fazer silêncio” (2005). Quando ele foi publicado, você tinha apenas 20 anos. Há algum arrependimento em relação a ele ou você acha que é bom os leitores terem contato com todas as etapas que marcam o amadurecimento de um poeta?

“Trajetória de antes” é, de fato, um livro irregular. “Duas chagas” também tem lá suas dissonâncias, também expõe o lastro de um processo. São como duas frutas ainda verdes. Mas eu digo isso sem angústia, admitindo todos os desacertos, porque foi esse o ponto de partida que me levou ao “Passagens”, um livro que, a rigor, poderia ser considerado o meu primeiro. Não se trata de arrependimento. Trata-se de assumir as conseqüências de uma entrega, de uma vivência tão verdadeira que chega a ser desconcertante, porque não se furta ao risco do erro ou do difícil.

Existe hoje uma pequena celeuma entre cariocas e paulistas, sua poesia parece transcender essas questões, o que lhe confere estranheza e maior independência estética. A que tipo de autores e obras gostaria de estar associada?

Não sei qual é esta celeuma, mas, seja ela qual for, só tenho a lamentar, porque em casos assim a poesia nunca está em primeiro plano. Se estivesse, a responsabilidade última para com a própria escrita acabaria valendo mais que qualquer “afirmação partidária”. Na minha opinião, a polêmica nada acrescenta à poesia, ao contrário, rouba tempo ao trabalho, alimenta a vaidade. Vejo a literatura como o lugar do afeto, do pensamento aberto às diferenças e, portanto, do autêntico diálogo, não como uma trincheira ou um círculo fechado. Não há os proprietários da poesia. Gosto muito da definição que Elias Canetti dá para o poeta: “O guardião das metamorfoses”. Ou seja, alguém capaz de se transmudar em um outro, de se dispor ao anonimato. Esta virtude da metamorfose supõe uma quebra de limites só compatível com a aceitação do desconhecido e a coragem de amar. É a esse tipo de despojamento que eu me associo, a esse amor.

Sua poesia está longe dos experimentalismos radicais, mas sem abrir mão de uma constante renovação de si mesma, como prova “Almádena”. Entre “invenção” e “renovação”, você fica com a segunda opção?

Sem dúvida. Uma renovação orgânica, que tem na poesia um modo de sentir e de pensar. Interessa-me este cruzamento entre a vida e a palavra, uma incursão pelo imaginário no qual lavramos as terras da memória. Existe aí um movimento de renovação que faz convergir no poema o que é presença ao que é vestígio, um componente inflamável, digamos assim, na poesia, tanto capaz de luz como de pó.

É nesta zona de legado e travessia, dentro do rio de Heráclito, que, a meu ver, se dá a vivência literária no vínculo fundamental do poeta com a linguagem e do leitor com o poema, como se, no fim das contas, um e outro se visitassem em segredo – e realmente eles se visitam, juntos se transformam e dão corpo à palavra. Interessame o “mistério do encontro” – como diria Paul Celan – e, nesse encontro, a vida reconquistada para a linguagem, seja na sua possibilidade de luz ou de pó.

“Almádena” parece se construir em torno de uma mística vital, como os versos do poema título expressam: “Não há rumor nas coisas, / Elas são o que são, / Não desejam explicar-se. / A porcelana, a cambraia, a murta / E a falta de uma asa”. Esse sentimento quase religioso, frente aos objetos e experiências, que é um sentimento inaugural, a despeito da caducidade de tudo nesses tempos pós-utópicos, é necessário à poesia contemporânea?

Acho indispensável não apenas à poesia, mas à vida de um modo geral, nos nossos dias, essa redescoberta do essencial, essa reconciliação com a densidade do tempo e o merecimento das coisas. Há uma passagem do “Sermão de quarta-feira de cinza”, de Antonio Vieira, justamente na abertura do poema título, que diz: “Vive assim como quiseras ter vivido quando morras”. O que quer dizer, em outros termos, viver para além de todo e qualquer subterfúgio. Verdade é que não precisamos estar à beira da morte para participar desse sentimento, nem precisamos cunhá-lo de religioso. Basta estarmos aqui e agora, basta sermos quem somos.

Neste livro você nos oferece poemas de maior fôlego que os anteriores.

Capazes, porém, de prender o leitor pela “alta voltagem metafórica”, como assinalou Antonio Carlos Secchin, e pelo ritmo maravilhosamente trabalhado, medido e luminoso. É uma resposta aos cansados minimalismos contemporâneos?

Não que eu pretendesse um maior fôlego, senão que o livro aconteceu nessa duração. Foi o pressentimento de uma ordem interna, de uma circularidade, o fluxo dos poemas que pediu sua própria forma, não uma imposição vinda de fora. Pode ser que, por conseqüência disso, o livro seja, sim, uma resposta, mas não que tenha tido essa sua finalidade. Sobre os minimalismos, particularmente, eu diria que é preciso ter muito cuidado para não fazer do silêncio um recurso, porque nenhum espaço em branco por si mesmo enobrece um poema que não esteja ao alcance desse estado de abertura.

Acha possível falar numa “função” da poesia em nosso mundo contemporâneo que parece tê-la condenado às margens mais distantes de nosso repertório mental?

Podemos falar em uma função da poesia na ordem do pensamento sensível, de uma consciência totalizadora, justamente porque hoje sofremos dessa falta. O poeta deveria relevar não só o que há de mais específico ao seu processo de criação, mas o que há de mais abrangente no contato da poesia com as demais órbitas do pensamento, seja ele filosófico, místico, mítico, científico, enfim, uma espécie de cosmovisão. Algo semelhante ao que propunha o poeta Mário Faustino no final dos anos 50, com o seu projeto de revitalização da linguagem, um projeto ao mesmo tempo formador, sob o ponto de vista cultural e lingüístico, e transformador, sob o ponto de vista existencial e humano. Estamos falando de uma função da poesia que vai além de questões estéticas, que está ligada ao homem, no que nele há de imponderável. “É preciso sofrer a vastidão”, diz um poema de Marco Lucchesi. yy

Fábio Andrade

SXC/Cortesia

É preciso sofrer a vastidão

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I nédito

Flávia de Gusmão

Fotos: Alexandre Belém

Posso dizer que Madonna me enganou. Mesmo que pareça exatamente o contrário, mesmo que a cronologia aponte ser ela a inocente e eu, a culpada, tenho a meu favor um argumento ad terrorem - tão terrível em sua construção que se torna irrespondível. Madonna iconizou-se e, como tal, ela tinha a obrigação de deixar intactas as suas promessas, anos após anos viabilizadas em forma de música e signos visuais compostos. Ícones têm dois caminhos a seguir, e somente dois: ou tornam-se eternos pelo cumprimento da promessa de nos entregar um cadáver jovem e bonito (como fez Marilyn) ou se autoimplodem e desaparecem depois que nós lemos a mensagem (como está fazendo Britney). É isso o que eu espero, é isso o que todos nós, consumidores da cultura pop, esperamos. E qualquer efeito adverso será passível de protesto, acusação e retaliação. Madonna não fez nada disso.

Quando a Madge lançou seu primeiro hit, “Everybody”, era o ano de 1982, outubro. Tinha ela, então, 24 anos. Algumas de nós, aos 23, já éramos mães e assistíamos, como que traídas, àquela explosão loura de raízes pretas, vestida com lingerie aparente, grandes laçarotes de renda, uma moda improvável para uma época ainda menos provável. Uma jovem mulher que passou toda a década que se seguiu desesperadamente procurando Susan, ou, numa livre interpretação, passou todos os anos 80 procurando por nós, recém-casadas suburbanas, presas na armadilha que colocaram embaixo da moita para nos pegar de supetão: a de que, naquela idade, era mais do que hora de começar a cumprir o destino comum a todas as outras que nos precederam. Não sabemos o que teria acontecido a uma geração de mulheres se Madonna tivesse antecipado sua estréia em pelo menos uns cinco anos, mas gosto de acreditar que não teríamos nos rendido ao formato desperate housewives antes de derramar muito sangue. Cairíamos lutando. E é até fácil entender nossa rendição sem peleja.

Antes de Madonna só havia Cyndi Lauper, perfeitamente trocável por um marido, um apartamento de dois quartos e um filho pendurado no peito. Madonna tentou nos salvar, mas nós estávamos além da salvação. Já havíamos assinado papéis, trocado compromissos verbais e fluidos corporais comprometedores. Restava-nos esperar e

confiar que Madonna iria nos esperar, aguardar até o momento quando, finalmente, nos considerássemos prontas a acompanhá-la naquela revolução, não importando que isso acontecesse uma, duas ou três décadas mais tarde. Madonna faria jus ao nome e, tal qual uma colorida santa mexicana, desceria ao nosso lar insípido, bateria no nosso ombro e diria: “Vai, larga essa chatice e vambora”.

Não foi fácil a espera. A indústria nacional de entretenimento nos fabricou outra loura, essa compatível com as opções que havíamos feito: Xuxa. Um dos momentos mais memoráveis da televisão brasileira, aliás, foi o encontro desses dois universos paralaelos, quando Maria da Graça Meneghel entrevistou Madonna Louise Ciccone. Uma espécie de pororoca midiática. E lá ficamos nós, pelos anos 80 a dentro, sentadas numa cadeira de balanço, as janelas fechadas para não ouvir conjurações blasfemas como Like a prayer; Ilariê abafando Material girl; impossibilitadas de repetir o refrão de “Like a virgin” porque isso não é coisa que se diga para marido. As letras das canções da M nos pertenciam e, ironicamente, não podíamos bradá-las sem o risco de parecermos incoerentes, inconsistentes, insanas. O tempo seria, mais uma vez o senhor da razão, pensávamos. E quando tudo isso tiver passado, recorreremos outra vez à Madonna e ela, como deusa congelada no Olimpo, estaria ali, desde sempre, para nos reassegurar.

Os anos 2000 nos encontrou quarentonas e libertas como Madonna, mas encontraram Madonna seguindo no caminho contrário: uma dona de casa como um dia nós fomos. Dois filhos engraçadinhos e trabalhosos, um marido rabugento e uma necessidade aparente de não levantar mais bandeiras do que as necessárias para ganhar o sustento. Alguma espécie de piada cósmica ou, simplesmente, uma inversão de datas?

Vemos uma Madonna aparentemente a mesma, com seu corpo malhado à perfeição, sua aura poderosa, seu irresistível senso fashion. No entanto, algo parece não mais morar ali. Num particular jogo de espelhos inversos, também nós, em algum momento, nos vimos com a casca de uma esposa conformada e o núcleo de uma impiedosa dominatrix de “Erotika”. Talvez seja a hora de nós salvarmos Madonna, numa forma de agradecer por tudo o que ela fez por nós. Até porque ela mesma nos segredou que nenhuma pretensão é inadmissível. Vamos baixar por lá, na fazenda inglesa onde ela cultiva rosas e escreve histórias para crianças, e exigir que ela volte para nós em forma de ícone, e não em forma de gente, porque isso nós já somos.

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