Finançasinovadoras
Estratégias de investimento com lentes de impacto que estão viabilizando a transformação socioambiental na América Latina
Filantropia e avanço nos ODSs O papel da academia
Caminhos da bioeconomia na Amazônia
Avaliação além dos números: narrativas de impacto
Investir com lentes de gênero
Interseccionalidade e vieses cognitivos
COM OFERECIMENTO DA FUNDAÇÃO JOSÉ LUIZ EGYDIO SETÚBAL | ICE | LATIMPACTO
sumário
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Carta dos patrocinadores
Finanças inovadoras e a transformação socioambiental na América Latina
A Fundação José Luiz Egydio Setúbal (FJLES), o Instituto de Cidadania Empresarial (ICE) e a Latimpacto inauguram, com esta edição patrocinada, uma iniciativapiloto para fomentar conexões entre academia e prática dos investimentos com lentes de impacto na América Latina
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O papel da academia nas inovações
financeiras para impacto
POR SAMIR HAMRA
Construir conhecimento acadêmico no ritmo em que a prática de investimentos com lentes de impacto avança trará inúmeros benefícios, entre os quais fortalecer ambos os campos
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Por que a filantropia importa
POR PIETRO RODRIGUES E FELIPE JUKEMURA
Força complementar na busca por soluções inovadoras e sustentáveis para o financiamento de alguns dos mais complexos desafios dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, o capital filantrópico se mostra cada vez mais relevante na promoção de políticas públicas e no estímulo a negócios sociais e projetos socioambientais
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A colaboração como força coletiva de transformação de territórios e ecossistemas
POR CAMILA ALOI
Um ecossistema alicerçado, robusto e articulado, com relações de confiança e protagonista de sua própria propulsão, é a chave para a transformação territorial
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Caminhos para alavancar os investimentos na bioeconomia da Amazônia
POR JOSÉ AUGUSTO LACERDA FERNANDES E
GRAZIELLA MARIA COMINI
Experiências inspiradoras e novas oportunidades de ação abrem caminhos alternativos para a solução de problemas que persistem nas formas convencionais de investimento. Com uso da tecnologia, inovação e empreendedorismo, carregam o potencial de converter a riqueza natural da floresta em produtos de alto valor agregado e uso em diferentes setores e mercados
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Uma avaliação para além dos números
POR DAIANE MÜLLING NEUTZLING E JOSÉ MILTON DE SOUSA-FILHO
Ao ultrapassar as explicações causais e dados numéricos dos métodos avaliativos vigentes e dar “vida, rosto e nome” aos indicadores quantitativos, as narrativas de impacto surgem como forma inovadora para captar a essência das experiências humanas e para dimensionar o fenômeno fluido que é a transformação social
CONHEÇA A ILUSTRADORA
DESTA EDIÇÃO
Clarice Wenzel, natural de Juiz de Fora, Minas Gerais, é artista visual, ilustradora, arquiteta e urbanista. Clarice encontra seu caminho para o imaginário criativo através das cores fortes, das texturas e das formas geométricas
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ESPECIAL
Filantropia e avanço nos ODSs O papel da academia Caminhos da bioeconomia na Amazônia Avaliação além dos números: narrativas de impacto Investir com lentes de gênero Interseccionalidade e vieses cognitivos Estratégias de investimento com lentes de impacto que estão viabilizando a transformação socioambiental na América Latina COM OFERECIMENTO DA FUNDAÇÃO JOSÉ LUIZ EGYDIO SETÚBAL ICE LATIMPACTO Colaboração (do latim collaborare “trabalhar com”) processo em que duas ou mais pessoas, entidades ou organizações cooperam para completar juntas uma tarefa ou atingir um objetivo. Esta edição especial sobre Finanças inovadoras é resultado de uma iniciativa inédita de organizações filantrópicas com agendas distintas, mas convergentes, que se reuniram para aumentar sensibilização a disseminação da temática da economia de impacto para um maior impulsionamento de ações em diversos campos áreas de atuação para a resolução de desafios cada vez mais complexos. Juntos, a Fundação José Luiz Egydio Setúbal, o Instituto de Cidadania Empresarial (ICE) e Latimpacto esperam contribuir para o diálogo entre a Academia, as finanças, a filantropia, as organizações da sociedade civil e o poder público, aprofundando o debate sobre desafios latino-americanos, bem como sobre o papel da ciência e da filantropia na construção das possíveis soluções. E, quem sabe estimular muitas outras colaborações no ecossistema. EDIÇÃO ESPECIAL STANFORD SOCIAL INNOVATION REVIEW BRASIL COM OFERECIMENTO DA
Finançasinovadoras
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Conectar pessoas, inspirar ação
e reimaginar futuros
KATIANNY GOMES SANTANA ESTIVAL
POR
Histórias reais de impacto podem influenciar a tomada de decisão em investimentos, parcerias e avaliações, ajudando a construir pontes entre investidores e empreendedores sociais
50 A busca pela equidade
POR MAIRA PETRINI E ANA CLARA SOUZA
Combater o viés inconsciente de gênero no acesso ao capital é fundamental para promover a igualdade de oportunidades para mulheres empreendedoras
58 As múltiplas camadas de discriminação
POR MAIRA PETRINI E ANA CLARA SOUZA
Adotar uma abordagem interseccional que englobe gênero, raça e classe e mostre como essas dimensões se mesclam e afetam as oportunidades disponíveis para as mulheres é o caminho para a equidade de gênero
EDIÇÃO PATROCINADA, NÚMERO 2
Especial Finanças inovadoras com oferecimento da Fundação José Luiz Egydio Setúbal, ICE e Latimpacto
Editora de projetos especiais
Revisão
Projeto gráfico e diagramação Ilustrações
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Editora-chefe
Editor-assistente
Estagiária
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Gabriel Cardoso
Graciela Selaimen
Graziella Comini
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Marcos Paulo Lucca Silveira
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Woody Powell, Universidade Stanford
Rob Reich, Universidade Stanford ssir.com.br
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Carta dos patrocinadores
Finanças inovadoras e a transformação socioambiental na América Latina
A América Latina vive uma situação paradoxal em termos de desenvolvimento. Embora a maioria dos países da região seja classificada como de renda média ou alta, quase todos têm Índice de Gini superior a 40, o que os coloca entre os mais desiguais do mundo. O paradoxo permitiu que diversas inovações financeiras para impacto fossem desenvolvidas e implementadas aqui para solucionar inúmeros problemas sociais e ambientais, e que recursos domésticos e internacionais fossem mobilizados e direcionados a mercados mais ou menos estruturados.
Apesar disso, alguns desafios importantes persistem. A começar pela oferta de produtos financeiros com orientação a impacto ainda muito tímida diante da demanda dos investidores, principalmente quando considerados os diferentes perfis de risco e expectativas de retorno ao longo do contínuo de capital. Além disso, o mercado e a academia ainda estão em busca de um marco teórico que permita claramente identificar como o impacto pode ser levado em conta em um portfólio de investimentos que compreenda diferentes classes de ativos. Por fim, a literatura acadêmica sobre o tema apenas começa a acompanhar o ritmo do desenvolvimento de inovações que emergem da prática e com frequência não captura as nuances com precisão.
Ao patrocinar essa edição especial da Stanford Social Innovation Review, a Fundação José Luiz Egydio Setúbal (FJLES), o Instituto de Cidadania Empresarial (ICE) e a Latimpacto inauguram uma iniciativa-piloto que busca endereçar alguns desses desafios. Pretendemos fomentar conexões entre academia e prática dos investimentos com lentes de impacto na América Latina, com três objetivos:
1. Fortalecer a produção de conhecimento acadêmico sobre
investimentos ao longo do contínuo de capital, posicionando a América Latina como referência em inovação e produção de conhecimento nesse tema.
2. Potencializar a contribuição da academia para a prática dos investimentos com lentes de impacto, por meio da disseminação do conhecimento acadêmico em termos acessíveis e de um maior contato entre pesquisadores e profissionais do setor.
3. Conectar centros de pesquisa e redes acadêmicas nacionais, regionais e globais com presença na América Latina e, a partir do estreitamento dos laços regionais, aumentar a contribuição da região para o debate acadêmico global.
Os artigos que compõem foram escritos por um grupo de pesquisadores convidados a participar da Conferência Anual da Latimpacto – Impact Minds: Standing Together, no Rio de Janeiro, em agosto de 2023, e são fruto das inspirações e conexões a que eles foram expostos durante o evento, aliadas a sua experiência e pesquisas prévias.
O foco das reflexões compartilhadas aqui é amplo. Samir Hamra revisita o desenvolvimento das práticas de investimento com lentes de impacto e da literatura acadêmica e mostra como a aproximação desses campos pode beneficiar e fortalecer ambos. Pietro Rodrigues e Felipe Jukemura discutem o papel da filantropia no desenvolvimento dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, destacando a relevância do capital filantrópico na promoção de políticas públicas e no estímulo a negócios sociais e projetos socioambientais. A colaboração como força coletiva de transformação de ecossistemas e territórios é discutida por Camila Aloi. José Augusto Lacerda Fernandes e Graziella Maria Comini colocam luz sobre experiências inspiradoras e novas oportunidades de ação que abrem
caminhos alternativos para alavancar os investimentos na bioeconomia da Amazônia. Daiane Mülling Neutzling e José Milton de Souza Filho mostram a abordagem inovadora das narrativas de impacto e Katianny Gomes Santana Estival apresenta casos de uso de storytelling por empreendedores e investidores sociais no Brasil. A dupla Maira Petrini e Ana Clara Souza discute como o combate aos vieses inconscientes de gênero no acesso ao capital é fundamental para promover a igualdade de oportunidades para mulheres empreendedoras e, em outro artigo, como uma abordagem interseccional que englobe gênero, raça e classe combate a discriminação de gênero.
Esperamos que seja um primeiro produto de uma iniciativa duradoura de conexões regionais e fortalecimento da produção de conhecimento colaborativa, baseada na prática, da América Latina para o debate global.
Promover e disseminar conceitos e aprendizados sobre economia de impacto por meio dessa parceria inédita é também uma forma de aumentar a sensibilização e disseminação da temática para um maior impulsionamento de ações em diversos campos e áreas de atuação. E de contribuir para o diálogo entre a academia, as finanças, a filantropia, organizações da sociedade civil e o poder público, aprofundando o debate sobre desafios latino-americanos, bem como sobre o papel da ciência e filantropia na construção das possíveis soluções.
Muitas delas estão nas próximas páginas. Que sejam motivo de inspiração, reflexão e ação. Boa leitura!
Fundação José Luiz Egydio Setúbal, Instituto de Cidadania Empresarial e Latimpacto
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O papel da academia nas inovações financeiras para impacto
Construir conhecimento acadêmico no ritmo em que a prática de investimentos com lentes de impacto avança trará inúmeros benefícios, entre os quais fortalecer ambos os campos
POR SAMIR HAMRA
Nas últimas duas décadas, diversas inovações surgiram no mercado financeiro para permitir a alocação de recursos de acordo com o crescente interesse dos investidores privados pelo impacto social e ambiental de seus investimentos. No entanto, o fenômeno ocorreu de forma dispersa e independente em diversos países e mercados, tendo como consequência a baixa disseminação dessas inovações e o frágil desenvolvimento conceitual e da literatura acadêmica.
Esse contexto levou a alguns desafios. O primeiro é o fato de a oferta de produtos financeiros com orientação a impacto ainda estar muito aquém da demanda dos investidores, em especial quando considerados os diferentes perfis de risco e as expectativas de retorno ao longo do contínuo de capital. O segundo é que nem o mercado nem a academia conseguiram até o momento desenvolver um marco teórico que permita identificar de forma clara como o impacto pode ser levado em conta em um portfólio de investimentos que compreenda diferentes classes de ativos. Por fim, há um descompasso entre a literatura acadêmica sobre
o tema e o ritmo do desenvolvimento de inovações que emergem da prática nesse campo, impedindo que as nuances sejam capturadas com precisão.
Este artigo apresenta uma breve revisão do desenvolvimento das práticas de investimento com lentes de impacto e da literatura acadêmica sobre o tema e fornece alguns exemplos de como a aproximação entre a pesquisa e a prática pode contribuir para o fortalecimento de ambas.
Investir com impacto
A alocação de recursos com o duplo propósito de gerar retorno financeiro e impacto social e ambiental encontra diversos precedentes históricos, como descrito por Colin Mayer1 e Alex Nicholls, 2 mas a forma como tem sido feita nos últimos 30 anos a torna um fenômeno único. Isso se deve às características dos investidores e das organizações que recebem os recursos, aos montantes investidos e à diversidade de instrumentos financeiros utilizados. A seguir, traçamos o desenvolvi-
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A venture philanthropy tem sido um grande impulsionador das inovações financeiras para impacto, tanto por meio de novas estratégias de investimento quanto de novos instrumentos financeiros
mento de alguns desses movimentos e suas principais características.
ESG
A sigla ESG se refere a investimentos realizados segundo critérios ambientais, sociais e de governança (do inglês Environmental, Social and Governance). O uso do termo é relativamente recente e sua adoção cresceu de maneira significativa no Brasil e em outros países da América Latina a partir do início da pandemia de covid-19 em 2020, abarcando as definições mais antigas de investimentos socialmente responsáveis (SRI, ou socially responsible investing, em inglês) e investimentos sustentáveis.
A prática de SRI remonta à década de 1990, quando investidores europeus buscavam alinhar seus investimentos a seus valores religiosos.3 Com o tempo, disseminou-se entre aqueles que buscavam um maior alinhamento entre seu portfólio e seus valores éticos – não necessariamente ligados a alguma religião.
Os investimentos socialmente responsáveis hoje são mais comumente chamados de ESG com filtro negativo, ou negative screening, e têm como objetivo evitar ou minimizar os danos gerados por um portfólio de investimentos com a exclusão de determinados ativos. A seleção do que sai do portfólio pode se dar com base em setores – por exemplo, o movimento crescente na última década pressionando fundos patrimoniais de grandes universidades nos Estados Unidos a vender seus ativos relacionados aos setores de carvão e petróleo, causadores das mudanças climáticas – ou em práticas empresariais, como a restrição a investimentos em empresas que tenham sido condenadas ou mesmo denunciadas por uso de trabalho forçado ou infantil em suas cadeias de valor.
Os anos 2000 presenciaram a criação da primeira agenda global de desenvolvimento, os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, ratificados por todos os países-membros da Organização das Nações Unidas (ONU) na Declaração do Milênio. O estabelecimento de
uma agenda comum para endereçar alguns dos desafios mais importantes do planeta provocou um movimento de investidores que buscavam alocar seus recursos de forma alinhada a esses objetivos e uma resposta correspondente de empresas de diferentes portes. A essa corrente deu-se o nome de investimentos sustentáveis, por conta de sua afinidade com a definição promovida pela ONU, segundo a qual desenvolvimento sustentável é aquele que “atende às necessidades do presente sem comprometer a possibilidade de as gerações futuras atenderem as suas próprias necessidades”. 4
Os investidores hoje se referem mais comumente a essa prática como ESG com filtro positivo, ou positive screening. Ela consiste em investir em ativos e empresas que geram benefícios para diferentes stakeholders ou partes interessadas. Há diversos movimentos de empresas que buscam ir além da tradicional maximização de retorno aos acionistas e da redução de danos que caracteriza o ESG negativo e que procuram gerar benefícios para os diferentes stakeholders, como funcionários, sua cadeia de valor e o meio ambiente. Esses movimentos servem de baliza para as práticas empresariais e também como sinalização aos investidores que buscam adotar práticas de ESG positivo. Alguns exemplos são o Pacto Global da ONU e a certificação de Empresas B promovida pelo B Lab.
Muitas das empresas que estão buscando se alinhar aos critérios ESG – sejam positivos ou negativos – são grandes corporações listadas em bolsas de valores, e o interesse dos investidores levou a um aumento no número de fundos que adotam o termo ESG para comunicar sua política de investimento. A popularização do termo causou uma ampla variação no rigor com que fundos autodenominados ESG aplicavam o conceito a suas práticas de gestão, o que levou órgãos reguladores dos mercados públicos de ativos a propor regulamentações visando proteger os investidores de informações imprecisas e permitir um melhor alinha-
mento entre os seus interesses e as políticas de investimento dos fundos. União Europeia, Brasil e México são exemplos de mercados em que já existe uma regulamentação desse tipo, que segue evoluindo conforme o mercado amadurece.
Venture Philanthropy
Ao mesmo tempo que, nos anos 1990, inovações na prática de investimentos davam origem ao que viria a ser o ESG, surgia um outro movimento que buscava inovar a alocação de recursos filantrópicos. Batizada de venture philanthropy, a abordagem visa incorporar à filantropia algumas práticas características do mercado de venture capital, com o objetivo de ampliar o impacto dos recursos alocados e tornar duradouras as mudanças promovidas. Estratégias de venture philanthropy incluem a provisão de apoio não financeiro de forma articulada ao apoio financeiro, a medição dos resultados e impactos gerados pela iniciativa apoiada e a tomada de decisões baseada nessas evidências. Além disso, abarcam também a perspectiva de saída do investidor filantrópico, abrindo espaço para que a organização apoiada consiga acessar outras fontes de recursos ou diversificar as suas fontes de receita para não depender exclusivamente de doações.5 Nesta edição especial, o tema de venture philanthropy é abordado em maior profundidade no artigo Por que a filantropia importa, de Pietro Rodrigues e Felipe Jukemura.
Ao aderirem a novas estratégias de financiamento, no entanto, as organizações filantrópicas de venture philanthropy identificaram a necessidade de novos instrumentos financeiros que permitissem um melhor alinhamento de suas intenções aos incentivos dados aos projetos apoiados. Embora as doações sigam sendo chave nas estratégias dessas organizações, esse movimento tem sido um grande impulsionador das inovações financeiras para impacto, tanto por meio de novas estratégias de investimento quanto de novos instrumentos financeiros.
A primeira rede de organizações dedicadas a promover as práticas de venture philan-
SAMIR HAMRA é codiretor de conhecimento na Latimpacto, onde desenvolve e dissemina ferramentas para que recursos direcionados ao impacto sejam alocados de forma mais eficiente na América Latina. Ao longo dos últimos dez anos tem apoiado empresas, empreendedores, investidores e organizações filantrópicas no fortalecimento de suas estratégias de impacto. É pesquisador do Ceats-USP e aluno de mestrado na FEA-USP.
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Investir com lentes de impacto: breve histórico
Emergência do investimento socialmente responsável (SRI) na Europa, com investidores buscando alinhar investimentos a valores religiosos ou éticos. O movimento, que prefigurou a abordagem ESG, visa ajudar a promover resultados sociais e ambientais e gerar retornos positivos. Surge a venture philanthropy, estratégias de investimento e acompanhamento ativo a projetos filantrópicos para maximizar seu impacto social e ambiental.
Canibais com Garfo e Faca, de John Elkington, traz o conceito de “triple bottom line”. Todas as empresas podem e devem ajudar a sociedade a atingir três objetivos que precisam estar interligados: prosperidade econômica, proteção ambiental e igualdade social.
Criação dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM) pela ONU, incentivando investimentos sustentáveis alinhados a objetivos globais. Os ODM serviram como uma agenda global para reduzir a pobreza e melhorar a saúde, educação e o meio ambiente global, o que motivou investidores a alinhar seus recursos com esses objetivos, dando origem ao conceito de investimentos sustentáveis
Formação da Associação Europeia de Venture Philanthropy (EVPA) refletiu o crescimento do interesse em combinar filantropia e investimento para gerar impacto social, promovendo uma rede e plataforma para troca de práticas e conhecimento no setor. Em 2023, a EVPA foi renomeada Impact Europe.
O termo ESG foi cunhado em uma publicação pioneira do Banco Mundial em parceria com o Pacto Global da ONU e instituições financeiras de nove países, chamada Who Cares Wins (Ganha quem se importa).
O Movimento Global de Empresas B é criado com objetivo de redefinir o sucesso na economia: além do êxito financeiro, conta também o bem-estar da sociedade e do planeta.
O termo “investimento de impacto” é usado numa conferência da Rockefeller Foundation para descrever investimentos feitos com a intenção de gerar impacto social ou ambiental positivo, além de retorno financeiro.
Criação da Rede Global de Investimento de Impacto (GIIN, na sigla em inglês) para fortalecer o ecossistema de investimento de impacto, proporcionando uma plataforma para compartilhar recursos, práticas e padrões.
O governo britânico cria a Força Tarefa de Finanças Sociais para promover o crescimento do investimento de impacto, reunindo líderes do setor público, privado e filantrópico para desenvolver infraestruturas de mercado que apoiassem investimentos de impacto. Fundação da Rede Asiática de Venture Philanthropy (AVPN), uma extensão do conceito de venture philanthropy para a Ásia.
Relatório da Força Tarefa de Finanças Sociais do G7 apresenta o conceito de contínuo de capital para mostrar como diferentes formas de capital podem ser utilizadas em um espectro, desde investimentos focados em retorno financeiro até a filantropia convencional, estabelecendo as fronteiras conceituais entre ESG e investimento de impacto.
O Acordo de Paris de 2015 sobre as alterações climáticas e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU para 2030 destacaram um papel significativo para o setor privado no cumprimento de metas ambiciosas e críticas.
A Força Tarefa de Finanças Sociais do G7 se torna uma organização independente, o Global Steering Group on Impact Investing (GSG), que tem como membros os Conselhos Nacionais Assessores (National Advisory Boards ou NABs) dos países-membros do G7.
Criação do ICE, com o objetivo de mobilizar empresários e investidores para promoverem inovação social por meio de sua atuação filantrópica, empresarial e financeira.
Iniciativa pioneira na América Latina e quarto índice de sustentabilidade no mundo, o Índice de Sustentabilidade Empresarial (ISE B3) foi criado pela B3 com financiamento inicial pela IFC, braço financeiro do Banco Mundial.
Na esteira da chegada do movimento de Empresas B na América Latina, surge um ecossistema de apoio a esses negócios, o chamado Sistema B. A inovação depois se disseminou pelas outras regiões em que as B Corps estavam presentes.
Nasce a Força Tarefa de Finanças Sociais no Brasil (FTFS): inspirada pela Força Tarefa de Finanças Sociais do G7, o Brasil inicia sua própria jornada para desenvolver o mercado de investimentos de impacto, estabelecendo a FTFS. Este esforço marcou um compromisso significativo do país em alinhar investimentos com impacto social e ambiental.
Brasil e México se tornam os primeiros países em desenvolvimento a participar do GSG, com a adesão da Força Tarefa de Finanças Sociais como NAB do Brasil e a criação do NAB do México.
Aliança pelos Investimentos e Negócios de Impacto no Brasil: a evolução da Força Tarefa de Finanças Sociais para a Aliança pelos Investimentos e Negócios de Impacto representa a consolidação e o amadurecimento do setor de investimento de impacto no Brasil. Isso reflete um entendimento mais profundo e uma adesão crescente às práticas de investimento focadas em impacto social e ambiental.
Crescimento do ESG no Brasil e na América Latina: a pandemia de covid-19 acelerou a adoção de critérios ESG em investimentos na região. Investidores e empresas começam a reconhecer a importância de abordagens sustentáveis e responsáveis.
Criação da Latimpacto e da Associação Africana de Venture Philanthropy (AVPA). Na América Latina, movimento já nasce com a perspectiva de trabalhar ao longo do contínuo de capital, buscando sinergias entre o ESG, o investimento de impacto e o venture philanthropy
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1990 1999 Mundo América Latina 2015 2014 2004 2000 2006 2007 2009 2005 2012 2018 2020
2013
O contínuo de capital foi proposto inicialmente para demarcar as fronteiras entre as diferentes formas de se alocarem recursos com objetivos paralelos de retorno financeiro e geração de impacto social e ambiental
thropy na Europa surgiu no início dos anos 2000 com o nome de Associação Europeia de Venture Philanthropy (EVPA, na sigla em inglês) e foi rebatizada Impact Europe em 2023. Em 2014, o mesmo grupo de filantropos criou uma organização semelhante na Ásia, a Rede Asiática de Venture Philanthropy (AVPN, na sigla em inglês) e em 2020 surgem as irmãs mais novas dessa família de redes, a Associação Africana de Venture Philanthropy (AVPA) e a Latimpacto, esta cobrindo a América Latina e o Caribe. A organização latino-americana reflete a maior maturidade do mercado no momento de sua criação e desde o início define como seu escopo de trabalho não apenas o conceito de venture philanthropy, mas também todo o contínuo de capital, que será abordado adiante.
Investimentos de impacto
O movimento mais recente daqueles que buscam alinhar seus investimentos à geração de impacto social e ambiental é o dos investimentos de impacto. O termo foi registrado pela primeira vez em um encontro promovido pela Rockefeller Foundation em 2007, com o objetivo de discutir inovação do financiamento ao desenvolvimento,6, 7 e hoje é definido como a alocação de recursos com o objetivo de resolver um problema social e ambiental, ao mesmo tempo que busca retorno financeiro. Aqui, os investidores podem atribuir prioridades diferentes à geração de impacto e à obtenção de resultados financeiros, o que cria duas categorias de investimento de impacto. Os investimentos que buscam retorno financeiro ajustado ao risco compatível com o mercado são conhecidos como finance-first ou com prioridade às finanças. Isso não significa que eles estejam menos comprometidos com a solução de problemas sociais ou ambientais, apenas que sua expectativa é ter um retorno semelhante ao que teriam com ativos comparáveis que não fossem focados em impacto.
Impact-first ou com prioridade ao impacto são os investimentos que aceitam retorno financeiro menor ou maior tomada de risco em troca de mais impacto social e ambiental. Embora esperem retornos financeiros menores, esses investimentos não renunciam totalmente a eles – se o fizessem, seriam uma doação e poderiam ser entendidos como filantropia convencional ou venture philanthropy, a depender das outras características da alocação de recursos.
Desde que o termo foi criado, surgiram diversas instituições que promovem e articulam essa agenda em diferentes instâncias. A mais antiga delas é a Rede Global de Investimento de Impacto (GIIN, na sigla em inglês), criada em 2009 e que segue promovendo conexões entre detentores e gestores de recursos, além de produzir conhecimento relevante sobre o tema.
Alguns anos depois, em 2013, o governo britânico, durante sua presidência do Grupo dos 8 (G8), que reúne oito dos países mais desenvolvidos e influentes do mundo, estabeleceu a Força Tarefa de Finanças Sociais. Liderada por Sir Ronald Cohen, um pioneiro dos mercados de venture capital e private equity nos Estados Unidos e no Reino Unido, a Força Tarefa tinha como objetivo catalisar o desenvolvimento do mercado de investimentos de impacto, a partir da colaboração entre os setores público, privado, financeiro e filantrópico. Para fazê-lo, contava com Conselhos Consultivos Nacionais (NABs, na sigla em inglês), em cada um dos países participantes.
Inspirados por esse movimento, pioneiros do investimento de impacto no Brasil criaram sua própria Força Tarefa de Finanças Sociais em 2014, sob a liderança do Instituto de Cidadania Empresarial (ICE). Em 2015, esse movimento ganha sua independência do G8 e passa a incluir países em desenvolvimento, incorporando a iniciativa brasileira. Sua instância global de articulação passa a ser o Grupo de Articulação Global sobre Investimentos de Impacto (GSG, do inglês Global Steering Group),
que hoje conta com representação de mais de 40 países, sendo 13 da América Latina e do Caribe. Seguindo uma tendência global, em 2018 a Força Tarefa de Finanças Sociais do Brasil é rebatizada Aliança pelos Investimentos e Negócios de Impacto.
Para nos referir aos diferentes movimentos de investidores descritos anteriormente (ESG, investimento de impacto e venture philanthropy) de forma agregada, usamos o termo “investimentos com lentes de impacto”.
O contínuo de capital
O contínuo de capital, também chamado de espectro de capital, apresenta as abordagens de ESG, investimento de impacto e venture philanthropy como matizes entre os investimentos financeiros convencionais, puramente focados em retorno financeiro, e a filantropia convencional, voltada para a geração de impacto social e ambiental. Apresentado pela primeira vez no relatório de 2014 da Força Tarefa de Finanças Sociais do G7, 8 a ferramenta foi reformulada substancialmente no relatório do NAB do Reino Unido de 20179 e, desde então, foi adaptada e modificada sutilmente para se adequar às características e necessidades de diferentes organizações. A versão no quadro da página seguinte é utilizada pela Latimpacto desde 2023.
O contínuo de capital foi proposto inicialmente para demarcar as fronteiras entre as diferentes formas de se alocarem recursos com objetivos paralelos de retorno financeiro e geração de impacto social e ambiental. No entanto, nos últimos anos, tem crescido o entendimento de que investidores podem obter melhores resultados se tiverem seu portfólio distribuído ao longo do contínuo. O contexto em que surge e se desenvolve cada uma de suas categorias faz com que cada uma delas seja mais aderente a classes específicas de ativos. É mais comum, por exemplo, que a nomenclatura ESG seja utilizada por grandes empresas listadas em bolsas de valores e pelos fundos que nelas investem, que os investimentos de impacto tenham uma predominância maior de fundos de venture capital e que estratégias de venture philanthropy sejam utilizadas para investir em negócios em estágios muito iniciais ou naqueles com pouco potencial de retornos exponenciais, como os de base comunitária. Essa relação é conjuntural e não normativa. É saudável que se busque o desenvolvimento
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de produtos financeiros em diversas classes de ativos em cada uma das categorias do contínuo.
Da mesma forma, espera-se que os investidores tenham seus ativos distribuídos ao longo do contínuo, de forma a melhor diversificar seu portfólio. Essa perspectiva tem sido adotada por detentores de recursos (asset owners) de diferentes perfis, incluindo corporações, fundações10 e famílias de alto patrimônio.11
Apesar de sua relevância para a prática dos investimentos com lentes de impacto, o contínuo de capital não tem o mesmo reconhecimento na literatura acadêmica sobre o tema.
A literatura acadêmica
Há duas correntes principais de pesquisa acadêmica sobre os investimentos com lentes de impacto. A primeira nasce no âmbito dos estudos sobre empreendedorismo social e a segunda, do campo das finanças e do investimento socialmente responsável (SRI).
A pesquisa sobre investimentos com lentes de impacto que emerge do estudo do empre-
endedorismo social é de natureza essencialmente empírica. Seus objetivos mais comuns são a definição das fronteiras conceituais do campo,12 com especial atenção ao investimento de impacto, bem como a investigação de diferentes aspectos da relação entre investidores e os negócios sociais em que investem.13 Trabalhos mais teóricos reconhecem que as organizações que atuam nesse tema chegam a ele vindas de diferentes perspectivas, tanto a partir do empreendedorismo como dos investimentos, o que leva a uma disputa pela legitimidade do conceito14 e pela ideologia de campo que guia essa área emergente de pesquisa e de prática.15
A literatura acadêmica sobre investimentos com lentes de impacto no campo do empreendedorismo social tende a referir-se a “investidores de impacto” como os gestores de recursos – em geral, fundos de venture capital – que alocam capital de terceiros em empreendimentos sociais. Isso se justifica pelo fato de que os empreendimentos têm papel central nesse campo de estudo e os fundos desempe-
nham o papel de investidores em sua relação com eles. No entanto, seria mais preciso descrever os fundos como gestores de recursos ou agentes dos investidores, uma vez que os detentores de recursos (asset owners) alocam seu capital nesses fundos e em uma série de outros ativos, que podem ou não ter orientação a impacto. Um fenômeno semelhante ocorre na literatura acadêmica sobre o tema no campo de finanças.
Pesquisadores da área de finanças têm estudado os investimentos com lentes de impacto há algum tempo, principalmente os investimentos socialmente responsáveis (SRI), que mais tarde foram incorporados por profissionais do campo à categoria de investimentos ESG, mas se mantêm como um campo à parte na pesquisa acadêmica. A literatura que parte dessa perspectiva em geral tem como objeto de estudo veículos de investimento ou classes de ativos específicos – por exemplo, buscando diferenças entre os investidores de um fundo orientado a impacto e um fundo tradicional gerido pela mesma empresa.16
O contínuo de capital: as diversas maneiras de alocar recursos com lentes de impacto
O quadro abaixo, utilizado pela Latimpacto desde 2023, mostra as abordagens de ESG, investimento de impacto e venture philanthropy como matizes entre os investimentos financeiros convencionais, puramente focados em retorno financeiro, e a filantropia convencional, que busca a geração de impacto social e ambiental. Essa representação permite que o investidor veja como o portfólio pode estar alocado ao longo desse contínuo para equilibrar diferentes expectativas de retorno e também de impacto que ele tenha com seus investimentos.
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Na última década, diversos artigos acadêmicos buscaram incorporar o impacto em modelos de tomada de decisão de investimentos e até otimizar esses modelos para maximizar o impacto
expectativas de retorno variados, bem como ao desenvolvimento de abordagens transversais que facilitem a alocação de recursos com impacto de forma diversificada, sem abrir mão da comparabilidade entre diferentes classes de ativos. Essas inovações podem ser entendidas de várias maneiras, algumas das quais são exploradas nesta edição especial:
Os poucos estudos nessa vertente que adotam uma perspectiva de portfólio não distinguem as diferentes categorias apresentadas na seção anterior,17 como o fazem profissionais do campo, ou as consideram de maneira indistinta como “preferências e gostos do investidor”.18 Uma exceção notável nesse sentido é o trabalho de Carroux e colegas, que identificaram que indivíduos de alta renda que investem com lentes de impacto atribuem diferentes potenciais de impacto a seus ativos alocados segundo critérios SRI, ESG e de investimentos de impacto.19
Há similitudes importantes entre as abordagens ESG e de investimento de impacto20 que justificam, em alguns casos, seu estudo como um fenômeno indistinto. Ambos podem ser considerados comportamentos pró-sociais, que aumentam a utilidade não pecuniária dos investidores.21 Em alguns casos, parece haver uma confusão genuína dos autores com relação aos termos – por exemplo, no uso da sigla SRI para se referir a investimentos “sustentáveis, responsáveis e de impacto”, 22 o que não é a prática corrente. No entanto, a maioria dos profissionais do campo e alguns acadêmicos consideram os investimentos SRI ou ESG e os investimentos de impacto como fenômenos essencialmente diferentes e percebem qualquer confusão intencional entre eles como purpose-washing, 23 ou seja, uma tentativa de exagerar ou enganar o público no que diz respeito ao propósito dos investimentos.
Nos últimos dez anos, diversos artigos acadêmicos buscaram incorporar o impacto em modelos de tomada de decisão de investimentos e até otimizar esses modelos para maximizar o impacto.24 Ainda assim, há divergências importantes entre esses modelos acadêmicos e a literatura direcionada a profissionais do campo.25 A primeira delas é que a literatura acadêmica, em sua maioria, parte da premissa de fungibilidade do impacto, ou seja, que os investidores não se preocupam com o setor em que estão gerando impacto (se em acesso à moradia ou conservação da biodiversidade,
por exemplo) nem com as estratégias usadas para tal (por exemplo, se a construção de novas moradias, reformas em moradias ou acesso a financiamento habitacional), o que aponta na direção contrária dos estudos realizados por profissionais do campo.
A segunda divergência importante é a premissa assumida em parte considerável da literatura acadêmica de que as estratégias usadas por investidores para gerar impacto a partir do seu portfólio são estáticas, ainda que a própria literatura acadêmica sobre finanças apresente evidências de que as experiências de investidores com um setor influenciam suas decisões de investimento futuro26 e que os investidores aprendem com seus pares e ajustam suas estratégias a partir disso.27
Por sua vez, a literatura profissional poderia se beneficiar de maior interação com a academia, uma vez que suas recomendações nem sempre estão alinhadas às descobertas de estudos acadêmicos rigorosos. Um exemplo disso é a sugestão de que investidores separem uma parte do seu portfólio para ser investida com lentes de impacto,28 uma estratégia conhecida como carve-out. Essa abordagem contraria o achado de um estudo científico que demonstra que os investidores maximizam seus resultados sociais ou ambientais ao adotar lentes de impacto ao longo de todo seu portfólio, em vez de pensar em impacto como uma categoria distinta de ativos.29
O estudo de estratégias de impacto de maneira transversal em um portfólio de investimentos tem aumentado, bem como a adoção dessa perspectiva por profissionais do campo, mas ainda há muito que se fazer nessa direção. O contínuo de capital é um recurso heurístico adotado com frequência cada vez maior para entender essa abordagem transversal, ainda que não tenha sido abordado de maneira explícita pela academia.
A perspectiva de portfólio convida à inovação em produtos financeiros ao longo do contínuo de capital, com perfis de risco e
Quem investe: papel de recursos filantrópicos para o fortalecimento dessa visão e desenvolvimento de instrumentos financeiros inovadores, temas abordados por Pietro Rodrigues e Felipe Jukemura.
Como investe: a mensuração e gestão de impacto ao longo do contínuo de capital e como a academia pode contribuir com essas práticas, discutidas no artigo de Katianny Estival e no de Daiane Neutzling e Milton Souza.
Em que investe: temas que têm atraído recursos de diferentes partes do contínuo de capital e como lidam com isso, como a bioeconomia na Amazônia, desenvolvidos no artigo de José Augusto Lacerda Fernandes e Graziella Comini, e o combate à desigualdade de gênero, exposto nos artigos de Maira Petrini e Ana Clara Souza.
A importância da colaboração
Um tema emergente na prática de investimentos com lentes de impacto é a colaboração entre atores de diferentes partes do contínuo para maximizar o impacto e atender aos objetivos de ambos. Investidores de impacto impact-first e organizações que realizam venture philanthropy têm um papel importante na provisão de recursos flexíveis capazes de atrair investidores de impacto finance-first, fundos ESG e até investidores convencionais para operações que geram um impacto social e ambiental relevante e que, de outra maneira, não conseguiriam acessar esses recursos. Esses aportes combinados podem acontecer dentro de uma estrutura de blended finance ou usando instrumentos de capital catalítico mais simples, como no caso do Portfólio ICE.30 Da mesma forma, recursos filantrópicos convencionais e de venture philanthropy podem ser usados para viabilizar inovações em produtos financeiros de impacto.
A colaboração também é importante para fomentar a produção de conhecimento sobre esse campo em formação: colaboração entre academia e prática, para permitir a construção de conhecimento no ritmo em que a prá-
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tica avança e para garantir a contribuição do conhecimento científico rigoroso nas inovações produzidas pelos profissionais do campo; colaboração entre acadêmicos de diferentes áreas de estudo e de diferentes países, para que possam acessar mais facilmente os recursos teórico-metodológicos necessários para o
NOTAS
entendimento de um campo transdisciplinar; e colaboração entre organizações filantrópicas com agendas distintas, mas convergentes, para viabilizar essas aproximações, como estamos fazendo nessa iniciativa conjunta entre Fundação José Luiz Egydio Setúbal, ICE e Latimpacto. ■
1 Mayer, C. (2019). Prosperity: Better Business Makes the Greater Good (1st edition). Oxford University Press.
2 Nicholls, A. (2010). The institutionalization of social investment: The interplay of investment logics and investor rationalities. Journal of Social Entrepreneurship, 1(1), 70–100. https://doi.org/10.1080/19420671003701257
3 Louche, C., Arenas, D., & van Cranenburgh, K. C. (2012). From Preaching to Investing: Attitudes of Religious Organizations Towards Responsible Investment. Journal of Business Ethics, 110(3), 301–320. https://doi.org/10.1007/s10551-011-1155-8
4 Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (1987). Nosso Futuro Comum. Editora da Fundação Getulio Vargas.
5 Letts, C. W., Ryan, W. P. & Grossman, A. S. (1997). Virtuous Capital: What Foundations Can Learn From Venture Capitalists. Harvard Business Review, March-April 1997.
6 Bugg-Levine, A., & Emerson, J. (2011). Impact Investing: Transforming How We Make Money While Making a Difference (1st edition). Jossey-Bass.
7 Jackson, E. T., & Harji, K. (2012). Accelerating impact: Achievements, challenges and what’s next in building the impact investing industry.
8 SIITF (2014). Impact Investment: the invisible heart of markets. The Social Impact Investment Taskforce.
9 UK NAB. (2017). The Rise of Impact: Five steps towards an inclusive and sustainable economy. In Report of the UK National Advisory Board on Impact Investing
10 Latimpacto (2022). Fundación Mustakis: da filantropia ao investimento ESG, disponível em https://www.ecosistema.latimpacto.org/fundacion-mustakis?lang=pt
11 Grunauer-Brechatti, K., Suárez Visbal, M. C., Buitrago Zuluaga, E., & Herrera, C. (2023). Familias latinoamericanas con visión de impacto: Un estudio exploratorio. UBS & Latimpacto.
12 Höchstädter, A. K., & Scheck, B. (2015). What’s in a Name: An Analysis of Impact Investing Understandings by Academics and Practitioners. Journal of Business Ethics, 132(2), 449–475. https://doi.org/10.1007/s10551-014-2327-0
13 Por exemplo: Agrawal, A., & Hockerts, K. (2019b). Impact investing strategy: Managing conflicts between impact investor and investee social enterprise. Sustainability (Switzerland), 11(15). https://doi.org/10.3390/su11154117
Block, J. H., Hirschmann, M., & Fisch, C. (2021). Which criteria matter when impact investors screen social enterprises? Journal of Corporate Finance, 66(November 2020), 101813. https://doi.org/10.1016/j.jcorpfin.2020.101813
Castellas, E. I. P., Ormiston, J., & Findlay, S. (2018). Financing social entrepreneurship: The role of impact investment in shaping social enterprise in Australia. Social Enterprise Journal, 14(2), 130–155. https://doi.org/10.1108/SEJ-02-2017-0006
Chen, S., & Harrison, R. (2020). Beyond profit vs. purpose: Transactional-relational practices in impact investing. Journal of Business Venturing Insights, 14(November 2019), e00182. https://doi.org/10.1016/j.jbvi.2020.e00182
Leborgne-Bonassié, M., Coletti, M., & Sansone, G. (2019). What do venture philanthropy organisations seek in social enterprises? Business Strategy and Development, 2(4), 349–357. https://doi.org/10.1002/bsd2.66
Ormiston, J., Charlton, K., Donald, M. S., & Seymour, R. G. (2015). Overcoming the Challenges of Impact Investing: Insights from Leading Investors. Journal of Social Entrepreneurship, 6(3), 352–378. https://doi.org/10.1080/19420676.2015.1049285
Roundy, P. T. (2019). Regional differences in impact investment: a theory of impact investing ecosystems. Social Responsibility Journal, 16(4), 467–485. https://doi. org/10.1108/SRJ-11-2018-0302
14 Nicholls, A. (2010a). The Legitimacy of Social Entrepreneurship: Reflexive Isomorphism in a Pre-Paradigmatic Field. Entrepreneurship: Theory and Practice, 611–633. https://doi.org/10.1111/j.1540-6520.2012.00519.x
15 Hehenberger, L., Mair, J., & Metz, A. (2019). The assembly of a field ideology: An idea-centric perspective on systemic power in impact investing. Academy of Management Journal, 62(6), 1672–1704. https://doi.org/10.5465/amj.2017.1402
16 Diouf, D., Hebb, T., & Touré, E. H. (2016). Exploring Factors that Influence Social Retail Investors’ Decisions: Evidence from Desjardins Fund. Journal of Business Ethics, 134(1), 45–67. https://doi.org/10.1007/s10551-014-2307-4
17 Chatzitheodorou, K., Skouloudis, A., Evangelinos, K., & Nikolaou, I. (2019). Exploring socially responsible investment perspectives: A literature mapping and an investor classification. Sustainable Production and Consumption, 19, 117–129. https://doi. org/10.1016/j.spc.2019.03.006
18 Fama, E. F., & French, K. R. (2007). Disagreement, tastes, and asset prices. Journal of Financial Economics, 83(3), 667–689. https://doi.org/10.1016/j.jfineco.2006.01.003
19 Carroux, S. L., Busch, T., & Paetzold, F. (2022). Unlocking the black box of private impact investors. Qualitative Research in Financial Markets, 14(1), 149–168. https:// doi.org/10.1108/QRFM-04-2020-0071
20 Por não ter expectativa de retorno financeiro, o venture philanthropy não é abordado pela literatura em finanças. Uma breve revisão da literatura acadêmica sobre o tema é apresentada no artigo de Pietro Rodrigues e Felipe Jukemura, nesta edição.
21 Artigos que adotam essa abordagem incluem:
Barber, B. M., Morse, A., & Yasuda, A. (2021). Impact Investing. Journal of Financial Economics, 139, 162–185. https://doi.org/https://doi.org/10.1016/j.jfineco.2020.07.008
Bénabou, R., & Tirole, J. (2006). Incentives and prosocial behavior. American Economic Review, 96(5), 1652–1678. https://doi.org/10.1257/aer.96.5.1652
Bénabou, R., & Tirole, J. (2016). Mindful economics: The production, consumption, and value of beliefs. Journal of Economic Perspectives, 30(3), 141–164. https://doi. org/10.1257/jep.30.3.141
22 Por exemplo:
Calvo, C., Ivorra, C., & Liern, V. (2014). Finding socially responsible portfolios close to conventional ones. International Review of Financial Analysis, 40, 52–63. https://doi. org/10.1016/j.irfa.2015.03.014
Cupriak, D., Kuziak, K., & Popczyk, T. (2020). Risk management opportunities between socially responsible investments and selected commodities. Sustainability (Switzerland), 12(5). https://doi.org/10.3390/su12052003
23 Findlay, S., & Moran, M. (2019). Purpose-washing of impact investing funds: motivations, occurrence and prevention. Social Responsibility Journal, 15(7), 853–873. https:// doi.org/10.1108/SRJ-11-2017-0260
24 Por exemplo:
Brandstetter, L., & Lehner, O. M. (2015). Opening the market for impact investments: The need for adapted portfolio tools. Entrepreneurship Research Journal, 5(2), 87–107. https://doi.org/10.1515/erj-2015-0003
Chatzitheodorou, K., Skouloudis, A., Evangelinos, K., & Nikolaou, I. (2019). Exploring socially responsible investment perspectives: A literature mapping and an investor classification. Sustainable Production and Consumption, 19, 117–129. https://doi. org/10.1016/j.spc.2019.03.006
Lee, M., Adbi, A., & Singh, J. (2020). Categorical cognition and outcome efficiency in impact investing decisions. Strategic Management Journal, 41(1), 86–107. https://doi. org/10.1002/smj.3096
Pedersen, L. H., Fitzgibbons, S., & Pomorski, L. (2021). Responsible investing: The ESG-efficient frontier. Journal of Financial Economics, 142(2), 572–597. https://doi. org/10.1016/j.jfineco.2020.11.001
25 Por exemplo: Bonsey, S., Cohen, J., & Noble, A. (2016). Understanding Impact Investing. Grunauer-Brechatti, K., Suárez Visbal, M. C., Buitrago Zuluaga, E., & Herrera, C. (2023) Familias latinoamericanas con visión de impacto: Un estudio exploratorio. UBS & Latimpacto Magalhães, T., & Tong, A. (2020). FORImpact: Um guia para famílias e family offices sobre investimentos de impacto socioambiental (C. Cruz, F. Bombardi, & C. Aranha (orgs.).
26 Huang, X. (2019). Mark Twain’s Cat: Investment experience, categorical thinking, and stock selection. Journal of Financial Economics, 131(2), 404–432. https://doi. org/10.1016/j.jfineco.2018.08.003
27 Escobar, L., & Pedraza, A. (2019). Active Trading and (Poor) Performance: The Social Transmission Channel. In Policy Research Working Paper (No 8767; Número March). Heimer, R. Z., & Simon, D. (2015). Facebook Finance: How Social Interaction Propagates Active Investing (No 15–22). Hirshleifer, D. (2020). Presidential Address: Social Transmission Bias in Economics and Finance. Journal of Finance, 75(4), 1779–1831. https://doi.org/10.1111/jofi.12906
28 Bonsey, S., Cohen, J., & Noble, A. (2016). Understanding Impact Investing.
29 Lee, M., Adbi, A., & Singh, J. (2020). Categorical cognition and outcome efficiency in impact investing decisions. Strategic Management Journal, 41(1), 86–107. https://doi. org/10.1002/smj.3096
30 Latimpacto & Catalytic Capital Consortium (2023) Estudo de caso de capital catalítico – ICE- Brasil, disponível em https://www.ecosistema.latimpacto.org/_files/ugd/5b3c08_76c67292d8cf4b318515e2688a92518b.pdf
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Por que a filantropia importa
Força complementar na busca por soluções inovadoras e sustentáveis para o financiamento de alguns dos mais complexos desafios dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, o capital filantrópico se mostra cada vez mais relevante na promoção de políticas públicas e no estímulo a negócios sociais e projetos socioambientais
POR
PIETRO
RODRIGUES E FELIPE JUKEMURA
Odéficit de recursos para financiar as metas dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODSs) até 2030 em países em desenvolvimento ultrapassa os US$ 4 trilhões.1
Quase duas vezes o Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil, a soma representa um desafio monumental e inatingível para o orçamento público de países emergentes, onde são insuficientes os recursos para as necessidades socioambientais urgentes, como habitação digna, transição para uma economia de baixo carbono, equidade racial, preservação de mananciais, garantia de alimentação em quantidade e qualidade adequadas e acesso à educação e saúde. Diante da magnitude das demandas globais, a contribuição de empresas, filantropos e organizações da sociedade civil passa a desempenhar um papel estratégico.
A desastrosa combinação de recursos escassos dos Estados, de crescimento econômico instável e de distribuição desigual de renda nos países e entre eles gera um cenário de impasse, no qual fontes complementares de financiamento aos projetos de desenvolvimento se tornam essenciais. Somado a recursos de outras origens, o capital filantrópico pode fazer a diferença para viabilizar soluções inovadoras, como negócios de impacto e projetos de inovação social que possam contribuir para a melhora dos indicadores de desenvolvimento sustentável.
Historicamente envolvida na promoção de bens públicos, a filantropia sempre atuou fortemente em setores como saúde e educação, nos quais teve participação decisiva ao construir e manter hospitais e escolas de referência. A ação filantrópica por si só está longe de ser suficiente para suprir a lacuna no financiamento dos 17 ODSs estabelecidos em 2015, e, embora ainda produza serviços sociais de
DO QUE TRATA O ARTIGO
O artigo discute as diferentes formas de colaboração da filantropia no financiamento de iniciativas voltadas para os ODSs e qual a contribuição filantrópica dentro da agenda de impacto. Exploramos três papéis principais: 1) a filantropia como abordagem (como uma cultura de relacionamento entre o financiador filantrópico e organizações sociais – também conhecido como venture philanthropy); 2) a filantropia como estratégia (operando como capital catalítico em projetos que têm impacto sobre os ODS); 3) a filantropia como um ativo financeiro (recursos que permitem a constituição de fundos filantrópicos destinados a causas sociais e autogeridos por agentes da sociedade civil).
POR QUE ISSO IMPORTA
Existe uma confusão bastante grande sobre o que significa termos como capital catalítico, venture philanthropy e fundos filantrópicos. A primeira contribuição do texto é, portanto, esclarecer pelo menos parte dessa confusão. A segunda contribuição é o avanço do entendimento sobre as diferentes formas de contribuição da filantropia com os esforços realizados pelos estados, negócios sociais e OSCs no desempenho de iniciativas vinculadas aos ODS. Por fim, o texto traz exemplos importantes sobre os diferentes papéis da filantropia e como estes podem contribuir para a agenda dos ODSs, no geral, e da agenda de impacto, como a promovida pela Latimpacto.
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O capital filantrópico tem beneficiado projetos conduzidos por organizações da sociedade civil e empreendedores sociais. A filantropia tem atuado como estratégia de investimento por meio do capital catalítico, como viabilizadora de inovações em gestão de ativos financeiros nos fundos filantrópicos e como filosofia de investimento
qualidade em pequena escala, fatores como o crescimento populacional e a persistência de diferentes tipos de desigualdade tornaram mais complexa a situação e mais urgente a necessidade de encontrar soluções escaláveis. A contribuição total da filantropia é difícil de contabilizar. A falta de dados representativos em escala nacional e internacional e a variedade de atores e modos de doação resultam em estimativas sempre parciais.2 Estudo realizado pelo banco Citi em 2021, por exemplo, estima que o volume de doações chegue aos 2 trilhões de dólares anuais, incluídas as horas de voluntariado.3 Já um levantamento realizado em 47 países pela Indiana University Lilly Family School of Philanthropy, que busca avaliar a contribuição filantrópica aos recursos destinados à cooperação internacional da Assistência Oficial ao Desenvolvimento (ODA, na sigla em inglês), aponta que, em 2020, a filantropia contribuiu com US$ 70 bilhões do total de US$ 841 bilhões de ajuda internacional daquele ano. 4 Outra sondagem, realizada pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), avalia que, entre 2016 a 2019,5 apenas US$ 42 bilhões foram mobilizados por fundações filantrópicas nos países da organização, que representa uma média anual de pouco mais de US$ 10 bilhões, e que se concentraram principalmente nos Estados Unidos. Esses valores são certamente subestimados, mas as perspectivas das cifras reais não são animadoras.
No Brasil, os números são tímidos. Em 2022, estimativas do Instituto para o Desenvolvimento do Investimento Social (Idis) indicam que doações individuais totalizaram pouco mais de US$ 2,4 bilhões.6 A avaliação mais otimista é do Instituto Beja, que, a partir dos dados do censo do Grupo de Institutos, Fundações e Empresas (Gife) de 2020 como parâmetro, avalia que a contribuição das fundações filantrópicas em 2020 foi de aproximadamente US$ 4 bilhões.7 A grande variação do cômputo de doações anuais realizadas por entidades
filantrópicas denota não só a dificuldade de estimar o nível das doações no Brasil, mas revela também a ainda pequena contribuição da filantropia corporativa e familiar junto aos investimentos públicos.
Embora a necessidade de financiamento de iniciativas socioambientais esteja além da capacidade de suprimento filantrópico, alternativas financeiras são bem-vindas como fontes complementares aos esforços públicos e à disponibilidade de capital privado. No entanto, a contribuição da filantropia vai além do apoio financeiro, e, ao assumir diferentes papéis, o capital filantrópico tem beneficiado projetos conduzidos por organizações da sociedade civil e empreendedores sociais. A filantropia tem atuado como estratégia de investimento por meio do capital catalítico, como viabilizadora de inovações em gestão de ativos financeiros nos fundos filantrópicos e como filosofia de investimento por meio de abordagens como a venture philanthropy. No geral, esses papéis buscam apoiar negócios e organizações da sociedade civil comprometidas com causas sociais e ambientais, sem perder de vista sua sustentabilidade financeira e fortalecimento institucional.
A chegada da filantropia ao ecossistema de impacto
O campo dos investimentos de impacto reúne atores de diversos setores com a finalidade de estimular projetos com impactos positivos sobre o desenvolvimento.8 Um relatório
da Bain & Company9 produzido para avaliar o crescimento do investimento de impacto na América Latina aponta que os principais impulsionadores desse tipo de investimento eram estrangeiros, sobretudo dos Estados Unidos e da Europa. Investidores locais só assumiram a liderança em relação ao volume de instituições apoiadas depois de 2013. De lá para cá, a região ganhou destaque no cenário internacional. Segundo levantamento da Aspen Network of Development Entrepreneurs com base em informações de mais de 90 investidores, estima-se que o volume de estoque de investimentos na América Latina mobilizado para projetos endereçados para causas socioambientais tenha ultrapassado em 2021 a cifra de US$ 1,96 bilhão.10
No Brasil, a evolução do campo de investimentos de impacto é recente, mas tem crescido de maneira sustentada.11 Os primeiros projetos identificados tiveram início em 2003, com a chegada de investidores sociais internacionais como a OikoCredit, cooperativa holandesa especializada em gerir recursos de microcrédito para projetos com impacto socioambiental em comunidades em todo o mundo, e a LGT Venture Philanthropy, uma fundação financiada pela família real de Liechtenstein. Em 2008, os primeiros investidores nacionais ingressaram nesse mercado, e organizações como Sitawi Finanças do Bem, MOV Investimentos e Vox Capital tornaram-se referência nacional na expansão de capital e soluções financeiras voltadas para o desenvolvimento dos negócios sociais no
PIETRO RODRIGUES é pesquisador principal do Departamento de Pesquisa Filantropia da Fundação José Luiz Egydio Setúbal, professor titular e coordenador do Curso de Relações Internacionais do Ibmec SP. Doutor em relações internacionais pela Universidade de São Paulo (USP) e pelo King’s College London e mestre em Ciência Política pela USP. Foi coordenador de política internacional da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República do Brasil e trabalhou como consultor
de advocacy e relações Internacionais para diversas organizações.
FELIPE JUKEMURA é mestre em desenvolvimento internacional pela SciencesPo de Paris e graduado em relações internacionais pela PUC-SP. Tem experiência em finanças sustentáveis, cooperação e desenvolvimento internacional e atua como pesquisador da Fundação José Luiz Egydio Setúbal e como assessor de finanças verdes no Iclei.
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Brasil. Anos depois, surgiram iniciativas multistakeholder com atuação local como a Aliança pelo Impacto, promovida pelo Instituto de Cidadania Empresarial (ICE) e pela Aliança pelos Investimentos e Negócios de Impacto, que logo se tornaram agentes de destaque na criação de sinergias para o estímulo e difusão de conhecimento sobre os investimentos socialmente orientados. 12
Se, historicamente, a filantropia desempenhou um papel importante na suplementação de bens públicos essenciais, ela também se tornou um ponto de apoio para o desenvolvimento de negócios de impacto e investimentos em infraestrutura pública em períodos recentes. Essa mudança foi crucial, uma vez que passou a abranger projetos e organizações que não eram puramente sem fins lucrativos (em geral apoiados pela filantropia tradicional) nem buscavam apenas o lucro, desconsiderando as questões socioambientais.
O que começou como um movimento modesto cresceu em complexidade, com diversos arranjos financeiros, fontes de capital, instrumentos operacionais e tipos de investidor. Mais recentemente, um conjunto de atores filantrópicos, como fundações e institutos familiares e empresariais, passou a colaborar com outros atores do ecossistema de impacto no financiamento de soluções para problemas de desenvolvimento. Por esse motivo, são cada vez mais frequentes as discussões sobre o potencial colaborativo da participação filantrópica em estruturas de blended finance, arranjos mistos de financiamento de projetos com o potencial de envolvimento de atores de mercado, sociais e bancos públicos e multilaterais de desenvolvimento.13
A filantropia exerce papéis cada vez mais cruciais na promoção do desenvolvimento sustentável em níveis local, regional e global. No entanto, há uma variedade de atribuições e uma confusão entre elas. Avaliamos três das mais relevantes: a filantropia como abordagem da venture philanthropy (VP), a filantropia como
estratégia no capital catalítico e a filantropia como ativo financeiro nos fundos filantrópicos. Essas diferentes formas de pensar e operacionalizar a filantropia destacam que a sustentação do financiamento de projetos de impacto pode ter origens muito diversas das tradicionais. No entanto, alguns desafios permanecem. Como exemplo, pode-se citar que a criatividade na combinação de recursos de diferentes origens é grande e ainda pouco compreendida por potenciais contribuintes, como filantropos, bancos públicos e investidores privados. Também não é claro o impacto desses arranjos financeiros sobre a governança e a natureza das iniciativas de impacto.
Ainda assim, essas abordagens, tipos de capital e formas de financiamento estão desempenhando papéis relevantes na promoção do desenvolvimento sustentável. Elas oferecem uma visão mais holística e integrada para enfrentar os desafios complexos relacionados aos ODSs. Alguns exemplos ajudam a elucidar o potencial da filantropia em contribuir para o financiamento de iniciativas que impactam os indicadores dos ODSs. A seguir, analisamos três das principais formas e refletimos sobre elas à luz da experiência recente brasileira.
A filantropia como abordagem: venture philanthropy
A ideia de venture philanthropy (VP) tem história longa e já em 1969 era enfatizada por John D. Rockefeller III, filantropo e empresário estadunidense.14 Nos Estados Unidos, o envolvimento de grandes industriais com a prática filantrópica favoreceu a aproximação das ideias de mercado à forma como a filantropia era exercida. Desde então, mesmo sem uma definição consensual, o conceito de VP tem carregado consigo a ideia de que os princípios de venture capital podem fortalecer organizações sociais.15 Esses princípios foram sistematizados pela primeira vez em 1984, em publicação realizada pela Peninsula Commu-
nity Foundation.16 Desde então, a abordagem de VP passou a compreender práticas como investimento de longo prazo, parceria robusta entre doador e beneficiário, corresponsabilidade pelos resultados, provisão de recursos financeiros e capacitação à organização beneficiária e elaboração de estratégia e plano de saída do financiador.
Apesar do histórico, o termo ganhou proeminência e legitimidade acadêmica com a publicação de Virtuous Capital: What Foundations Can Learn from Venture Capitalists, na Harvard Business Review, em 1997. 17 O artigo promove um debate sobre a aplicação de práticas de venture capital na filantropia e demonstra como esse tipo de abordagem pode representar uma mudança sensível em relação à filantropia tradicional. Essa aproximação fez com que conceitos e práticas como gestão de risco, devida diligência, mensuração de performance, estratégia de saída, entre outros, se tornassem amplamente reconhecidos no ambiente filantrópico. No entendimento de Letts, Ryan e Grosmann, a novidade trazida pela VP reside no fato de que um dos objetivos dos projetos financiados sob essa abordagem é o de aprimorar e capacitar as organizações financiadas, garantindo maior sustentabilidade organizacional e as competências adequadas para enfrentar desafios sociais em escala mais ampla. Assim, a abordagem da VP se diferenciaria da filantropia tradicional, por muito tempo associada à caridade.
Nos anos 2000, a evolução do conceito de VP expandiu-se globalmente, impulsionada por organizações especializadas em diferentes continentes, como a Latimpacto, na América Latina, a Asian VP Network, a African Venture Philanthropy Association, a European Venture Philanthropy Association (EVPA) –recentemente rebatizada Impact Europe –, e até mesmo a OCDE, que começou a produzir relatórios sobre o tema. No entendimento contemporâneo trazido por essas organizações, o conceito de VP exige, para além dos princí-
A filantropia também se tornou um ponto de apoio para o desenvolvimento de negócios de impacto e investimentos em infraestrutura pública em períodos recentes. Essa mudança foi crucial, uma vez que passou a abranger projetos e organizações que não eram puramente sem fins lucrativos (...) nem buscavam apenas o lucro, desconsiderando as questões socioambientais
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pios clássicos, um compromisso profissional de engajamento da organização financiadora, que deve estar atenta à promoção do investimento customizado, suporte organizacional e mensuração de resultados.
Embora possa haver variações nas definições adotadas, a essência da VP é compartilhada: basicamente, refere-se a organizações que investem em iniciativas socioambientais de terceiros, aplicando esses recursos em diversos setores, com objetivos sempre alinhados com a estratégia da organização doadora. Para viabilizar esses investimentos, as organizações de VP utilizam uma ampla gama de instrumentos financeiros, como doações, dívida, equity e abordagens híbridas. A escolha do instrumento financeiro é adaptada de acordo com as necessidades das organizações beneficiárias e sua maturidade. Já o portfólio das práticas de apoio não financeiras abrange o suporte a áreas como estratégia, operações, governança e treinamento técnico. Independentemente do instrumento e da área apoiada pela abordagem da VP, a mensuração do impacto das ações é uma característica fundamental que permite qualificar o alcance dos objetivos e a eficácia das iniciativas.
A Fundação Arymax no Brasil oferece um exemplo interessante de venture philanthropy. Criada em 1990 por Max Feffer e seu pai, Leon Feffer, a fundação inicialmente buscava organizar a atuação filantrópica da própria família. Após 30 anos de atuação no financiamento de iniciativas sociais, a fundação se tornou referência nacional na prática. Nos últimos anos, a atuação da Arymax tem se concentrado no setor de inclusão produtiva, e suas escolhas têm se baseado em estudos estratégicos que buscam garantir a relevância, a efetividade e o alinhamento dos projetos financiados com os princípios e interesses da organização. Um aspecto distintivo da abordagem de VP da organização é sua ênfase em modelos colaborativos de coinvestimento e mobilização
de recursos junto a stakeholders de diferentes naturezas, como empresas, fundações, entidades governamentais e instituições financeiras. O último relatório bianual18 da Arymax mostra que, apenas entre 2021 e 2022, a fundação conseguiu atuar em mais de 13 estados brasileiros e alavancar cerca de US$ 4,5 milhões em recursos com outros parceiros. Exemplo desse esforço colaborativo é a participação da fundação na Aliança de Inclusão Produtiva (Aipê),19 uma iniciativa multi-stakeholder voltada ao fortalecimento do potencial de geração de renda e emprego de empreendedores e negócios de impacto socioambiental por meio de apoio técnico e financeiro de longo prazo. A Aliança conta com parceiros como o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), o banco Santander, a Fundação Tide Setubal e os institutos Humanize, Heineken e Votorantim.
Além do apoio financeiro de longo prazo, a Arymax também fornece apoio não financeiro, ao construir redes de relacionamento, alavancar recursos e garantir a sustentabilidade operacional das organizações beneficiárias. O impacto potencial do apoio não financeiro pode abrir caminhos para outras formas de colaboração. É o caso das iniciativas Emperifa e Projeto Casulo,20 que entraram em contato com a Arymax em busca de apoio estratégico por meio das mentorias do programa de aceleração Modela – programa de apoio a micro e pequenos empreendedores no setor da moda na Zona Leste de São Paulo. Após o início das mentorias, a Arymax identificou a oportunidade de articulação de novos parceiros para o programa, os quais, por sua vez, puderam contribuir com o refino metodológico das iniciativas. Como consequência, ambas as iniciativas puderam aperfeiçoar seus modelos de gestão para alcançar resultados mais escaláveis, além de se tornar aptas para receber apoio financeiro para as iniciativas mentoradas. De maneira semelhante, mais de 30 outras inicia-
tivas e negócios sociais foram impactados pelo programa da Arymax, sendo que 12 deles foram acelerados e viram o crescimento de mais de 150% em suas receitas.
A Fundação Arymax exemplifica como a abordagem de VP pode ser implementada de maneira estratégica, com a utilização de evidências empíricas para orientar escolhas de investimento e promover impacto social significativo. A sua abordagem, centrada na inclusão produtiva, destaca a importância de uma filosofia de investimento filantrópico com base em resultados, o que contribui para o desenvolvimento de iniciativas com impacto sobre o desenvolvimento sustentável em diferentes regiões do Brasil.
A filantropia como estratégia: capital catalítico
O envolvimento de três das maiores fundações americanas – Rockefeller, MacArthur e Omydiar – na criação do Consórcio de Capital Catalítico (C3) impulsionou um grande debate sobre o papel da filantropia na construção de alternativas ao uso do capital convencional no financiamento de projetos que endereçam os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável com potencial de escala. O consórcio prevê a destinação de recursos para a realização de projetos com impacto social, além de promover a disseminação de estratégias de capital catalítico por meio de doações a organizações que desenvolvem evidências, ferramentas e treinamentos sobre o tema, como a Latimpacto. De acordo com o entendimento do consórcio, o capital catalítico é complementar a outras formas de financiamento e se caracteriza por ser paciente, tolerante ao risco, flexível e orientado à ampliação do impacto socioambiental de projetos.21
O programa de doações do C3 surge como uma resposta concreta à necessidade de liberar mais capital impulsionador de projetos de
O envolvimento de três das maiores fundações americanas – Rockefeller, MacArthur e Omydiar – na criação do Consórcio de Capital Catalítico (C3) impulsionou um grande debate sobre o papel da filantropia na construção de alternativas ao uso do capital convencional no financiamento de projetos que endereçam os ODS com potencial de escala
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O capital catalítico tem se transformado em uma alternativa viável a projetos voltados para soluções de problemas sociais amplos e cujo impacto pode ser sentido em toda comunidade. Trata-se de um modelo colaborativo de financiamento que incorpora as partes interessadas no processo de viabilização das iniciativas e no qual a responsabilidade pelo sucesso é compartilhada
maneira eficiente. Para isso, busca capacitar a comunidade de investidores, ao fornecer conhecimento e realizar avaliações que testam o quadro conceitual e pressuposto dos modelos de intervenções do projeto. O trabalho promovido pela iniciativa conta com framework próprio, em que são estabelecidas diretrizes para a coleta e sistematização de evidências sobre o desempenho socioambiental dos projetos, e estimula o uso racional de recursos e inteligência organizacional para a execução das iniciativas.
Apesar da crescente atenção quanto à novidade do capital catalítico, a adoção do termo remonta ao final dos anos 1990 e início dos anos 2000. Um dos casos precursores da prática foi o apoio da MacArthur Foundation, em 1999, para o início das operações do Sustainable Jobs Fund (SJF), hoje SJF Ventures.22 Pioneiro na prática, o SJF criou um fundo de investimentos pautado em critérios de sustentabilidade, orientado para o fornecimento de capital de crescimento ( growth capital) a empresas com foco em sustentabilidade que gerassem empregos e que conseguissem prover retornos competitivos a seus investidores. O aporte de US$ 1 milhão da MacArthur Foundation serviu de garantia para a mitigação de riscos financeiros dos investimentos realizados pelo fundo. Como consequência, a SJF atraiu investidores e captou cerca de US$ 17 milhões em sua primeira rodada de investimentos. Em 2024, a SJF Ventures conta com um portfólio de mais de 85 empresas comprometidas com a causa socioambiental, tendo gerado mais de 13 mil empregos e mitigando a emissão de mais de 3 milhões de toneladas métricas de CO2 23
A história do C3 24 se entrelaça com os esforços internacionais de reunir investidores de impacto para a realização dos ODSs da Organização das Nações Unidas (ONU).
A iniciativa visa não apenas fornecer financiamento, mas também estimular a aprendizagem sobre o papel do capital catalítico na
comunidade de investimentos de impacto. Em 2023, o conjunto de fundos e organizações selecionadas para receber investimentos totalizou mais de US$ 100 milhões, o que exemplifica a abordagem pragmática, destinada a reduzir riscos, construir históricos e ampliar o número de fundos promissores orientados para o campo social.
O capital catalítico demonstra ter flexibilidade para atender às necessidades dos beneficiários.25 De maneira geral, esse tipo de capital tem se caracterizado por ser remunerado com taxas de retorno abaixo das expectativas de mercado, por auxiliar organizações a obter crédito ao servir como meio de garantias para investidores externos, por fortalecer a capacidade de tomada de crédito, aceitar períodos de retorno mais longos e demonstrar alinhamento com propósitos mais amplos e difusos.
A reputação das instituições envolvidas também parece contar muito para a mobilização de recursos de outros investidores sociais. Organizações bem renomadas reduzem os riscos percebidos por outros investidores, que veem ambiente seguro para a realização de seus próprios desembolsos.
A inovação que salta à visão de avaliadores é a de que o capital catalítico tem se transformado em uma alternativa viável a projetos voltados para soluções de problemas sociais amplos e cujo impacto pode ser sentido em toda comunidade. 26 Trata-se de um modelo colaborativo de financiamento que incorpora as partes interessadas no processo de viabilização das iniciativas e no qual a responsabilidade pelo sucesso é compartilhada.
A filantropia catalítica – capital catalítico de origem filantrópica – destaca a potencialidade desse mecanismo em gerar impactos significativos a partir de inovações que, muitas vezes, não encontram espaço nos setores empresarial e governamental. Como destaca Kramer,27 esse tipo de capital apresenta características específicas que o diferenciam do capital de outras origens:
1
Responsabilidade pelos resultados (take responsibility for achieving results)
A filantropia catalítica assume a responsabilidade para alcançar os resultados desejados não apenas fornecendo financiamento, mas também envolvendo-se ativamente na solução de problemas e na busca de metas claras e práticas.
2 3 4
Mobilização de campanha por mudança (mobilize a campaign for change)
A filantropia catalítica reconhece que muitos problemas sociais são complexos e adaptativos, exigindo o envolvimento ativo das partes interessadas. Isso significa construir alianças e colaborações que criem as condições para soluções compartilhadas, em vez de simplesmente conceder doações a organizações individuais.
Uso de todas as ferramentas disponíveis (use all available tools)
Além do financiamento tradicional, filantropos exploram uma ampla gama de ferramentas externas ao setor sem fins lucrativos para influenciar forças sociais, econômicas e políticas. Isso pode incluir o uso de recursos corporativos, capital de investimento, advocacy, litígios e lobby para promover mudanças sociais.
criação de conhecimento acionável (create actionable knowledge) A filantropia catalítica não se limita a fornecer financiamento, mas busca entender profundamente os problemas que enfrenta e usar esse conhecimento para orientar a ação. Isso envolve a coleta de dados, análises e a criação de informações que não apenas embasam, mas também inspiram a ação.
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As características do capital catalítico de origem filantrópica dão indicativos das afinidades da estratégia com a filosofia do venture philanthropy. 28 Embora as abordagens de VP sejam mais frequentemente adotadas pela filantropia orientada ao suporte financeiro de projetos sociais executados por organizações da sociedade civil, não são raros os casos nos quais a abordagem é associada ao capital catalítico. A primeira e mais evidente das afinidades reside na baixa expectativa de retorno e na perspectiva de longo prazo, o que faz com que esse tipo de capital esteja adaptado para o financiamento de negócios de impacto socioambiental. Parte das ações do consórcio C3, por exemplo, corresponde a doações orientadas para o aprimoramento das competências institucionais das organizações receptoras. Esse aprimoramento é necessário para cumprir os requisitos exigidos por outros financiadores, que muitas vezes atraídos pela legitimidade e intencionalidade dos investidores catalíticos também decidem pela disponibilização de recursos. Essas sinergias refletem o potencial trazido pelo envolvimento filantrópico, independentemente do conceito empregado, para abordar os desafios sociais de maneira colaborativa.
EVOLUÇÃO
A filantropia dos ativos financeiros: os fundos filantrópicos
Desde 2019, a filantropa estadunidense Mackenzie Scott doou mais de US$ 14 bilhões para mais de 1.600 organizações em todo o mundo. 29 No Brasil, 16 organizações sociais foram beneficiadas em rodadas de investimento sem contrapartidas, totalizando mais de US$ 17 milhões.30 Entre as organizações que receberam recursos de Scott estão fundos patrimoniais filantrópicos orientados para atuar em diferentes frentes da defesa dos direitos humanos, como Fundo Baobá, Fundo Brasil de Direitos Humanos, Fundo Casa Socioambiental e Fundo Elas.
Fundos filantrópicos correspondem a um conjunto de ativos financeiros sob gestão de uma organização da sociedade civil e são cada vez mais importantes para o financiamento de causas sociais em todo o mundo. No Brasil, os mais comuns são os Fundos Patrimoniais Filantrópicos, regidos pela Lei nº 13.800 de 2019, que os define como estruturas financeiras criadas com propósito de assegurar a estabilidade financeira de uma entidade sem fins lucrativos e garantir que as doações sejam preservadas de forma contínua, empre-
gando os retornos gerados exclusivamente para sustentar as atividades da organização.31 Também conhecidos como endowments, os fundos filantrópicos tornaram-se instrumentos importantes para o recente florescimento de organizações da sociedade civil capazes de financiar atividades socioambientais, realizar parcerias com a administração pública e atrair investimentos privados para suas causas. A popularização dos fundos filantrópicos fez com que organizações e movimentos sociais passassem a utilizá-los amplamente. Em 2023, mais de cem fundos estiveram ativos no Brasil, representando cerca de US$ 24 bilhões em patrimônio imobilizado.32 Fundos filantrópicos não são novidade. Um exemplo notável é o Fundo Patrimonial da Fundação Bradesco, criado em 1956 e que conta atualmente com mais de US$ 13 bilhões em patrimônio. Outro fundo pioneiro é o da Fundação Antonio e Helena Zerrenner INB, criado em 1936 e que atualmente desenvolve iniciativas voltadas para a promoção da saúde e educação de funcionários da Ambev, empresa da qual é acionista e conveniado.33 Apesar dos exemplos históricos e da grande mobilização de recursos (mesmo que com alguns poucos
CUMULATIVA DOS FUNDOS FILANTRÓPICOS NO BRASIL 1933 a
2023
18 Stanford Social Innovation Review Brasil ESPECIAL 1930 1936 1942 1948 1954 1960 1966 1972 1978 1984 1990 1996 2002 2008 2014 2020 0 25 50 75 100
TOTAL DE FUNDOS CONSTITUÍDOS ANO DE CRIAÇÃO
Fonte: Idis, 2024
Fundos filantrópicos correspondem a um conjunto de ativos financeiros sob gestão de uma organização da sociedade civil e são cada vez mais importantes para o financiamento de causas sociais em todo o mundo. No Brasil, os mais comuns são os Fundos
Patrimoniais Filantrópicos regidos pela Lei nº 13.800 de 2019
fundos representando a maior parte desses recursos), a maioria dos fundos patrimoniais ativos no Brasil é recente e data do início dos anos 2000. O grande salto é ainda mais atual e começou a ser delineado a partir de 2015 (ver quadro na página anterior).
Em um primeiro momento, a criação desse tipo de arranjo foi impulsionada pela constituição de fundos ligados a universidades e orientados para o financiamento de pesquisa, bolsas de estudo e investimentos complementares em infraestrutura dentro dos espaços universitários. A partir da regulamentação em 2019, o crescimento da modalidade de financiamento filantrópico ganhou novo ciclo de vitalidade, chegando a diversas áreas. A inovação trazida pela instituição de fundos patrimoniais é melhor compreendida quando se observa o amplo espectro de subfinanciamento de algumas causas sociais, sobretudo que tratam de direitos de minorias, mas que encontraram na modalidade uma maneira sustentável de garantir os recursos fundamentais para a sobrevivência da organização e, ao mesmo tempo, estimular outros agentes no desenvolvimento de pessoas, negócios e ações sociais.34
O surgimento de fundos criados exclusivamente para o financiamento de projetos e causas raciais, como o Fundo Baobá, estabeleceu exemplos e parâmetros para a constituição de novos projetos. Entre eles está o fundo Casa Chama, orientado para o apoio a projetos socioculturais da população transvestigênere de São Paulo e que conta com o apoio de entidades gestoras profissionais como a Sitawi.35 O Fundo Agbara, por sua vez, tem se destacado na promoção de capacitação para a inclusão socioprodutiva de mulheres negras por meio de aportes financeiros, mentorias, capacitação, produção de conhecimento e promoção de eventos voltados ao fortalecimento e valorização da cultura negra.36 Dez anos atrás, a independência financeira de organizações sociais orientadas para causas públicas como essas dificilmente seria encontrada.
A evolução recente dos números de fundos filantrópicos foi acompanhada pela crescente profissionalização e modernização de organizações dedicadas a seu apoio e gestão. Organizações como Sitawi, Gife, Idis e Latimpacto contribuíram para a popularização de modalidades alternativas de captação e gestão de recursos dentro do contínuo de capital. Compartilhando grande parte dos desafios enfrentados pelas organizações da sociedade civil, os fundos filantrópicos também têm como prioridade a formação de lideranças, a profissionalização dos sistemas de gestão e a disposição de recursos adequados para a manutenção institucional das organizações.37 Um desafio particular para a gestão transparente dos fundos tem sido a criação de mecanismos deliberativos, como conselhos consultivos e de administração, importantes para melhorar os indicadores de governança. A avaliação das contas por meio de auditorias independentes e o estabelecimento de instrumentos de compliance também configuram preocupações cada vez mais importantes para a manutenção da legitimidade da atuação e crescimento dos fundos.
Comparativamente às abordagens de investimento filantrópico como venture philanthropy e capital catalítico, realizadas sobretudo por investidores sociais como fundações e institutos, a instauração de fundos patrimoniais traz complexidade à relação entre financiador e projeto financiado. Fundos orientados para causas, por exemplo, são muitas vezes constituídos por doações de fundações e institutos tradicionais, tornando-se, eles mesmos, organizações filantrópicas. A garantia do respeito a princípios de boa governança é, por esse motivo, um imperativo.38 Isso inclui a ênfase em responsabilidade fiduciária, transparência de gestão e boas práticas de prestação de contas. Por essa razão, a governança desempenha um papel fundamental na garantia da eficácia desses fundos, o que assegura a continuidade e o impacto das iniciativas filantrópicas, ao mesmo tempo que proporciona uma base
sólida para a tomada de decisões. Garantir a profissionalização da gestão mantendo a flexibilidade é o desafio presente e futuro desses novos fundos filantrópicos.
Quando a filantropia importa?
Nos últimos anos, a filantropia emergiu como força complementar na busca por soluções inovadoras e sustentáveis para o financiamento de alguns dos mais complexos desafios dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODSs). A capacidade de mobilização de capital para iniciativas de impacto, a estruturação de diferentes instrumentos financeiros, apoio institucional e capacidade de adaptação à ação em territórios específicos são aspectos que ressaltam a relevância do envolvimento filantrópico na promoção de políticas públicas e no estímulo a negócios sociais e projetos socioambientais de caráter civil ou misto (ver quadro na página seguinte).
A filantropia desempenha um papel suplementar aos Estados e iniciativas privadas no apoio financeiro e institucional para o desenvolvimento de organizações sociais com competências importantes para o alcance dos ODSs. As abordagens, tipo de capital e modelos de gestão filantrópicos atenuam os riscos percebidos pelo capital privado justamente por operar em uma lógica paciente e menos interessada no retorno financeiro.39 As transformações no interior do universo filantrópico estão em sintonia com as mudanças no setor privado e em organizações do terceiro setor e trazem contribuições significativas ao garantir estabilidade para organizações sociais e ao estimular inovações que orientam e inspiram novas atitudes e projetos de interesse público.
Existe uma percepção presente e ainda a ser avaliada no campo social de que, nos últimos anos, os incentivos privados e filantrópicos têm contribuído para o crescimento das organizações e dos negócios de impacto social. Esse fenômeno e o aumento do volume
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OS PAPÉIS DA FILANTROPIA
Papel Abordagem/ Filosofia de investimento Estratégia de investimento Recursos para a formação de conjunto de ativos financeiros
• Investimento de longo prazo
• Parceria robusta entre doador e beneficiário
Características e princípios
• Responsabilidade pelos resultados
• Provisão de recursos financeiros e capacitação à organização beneficiária
• Estratégia e plano de saída
• Abordagem adaptada para projetos sociais
• Auxilia no fortalecimento da sociedade civil
Potencial
Desafios
• Equilíbrio entre vontade do doador e necessidade do beneficiário/ executor
• Baixo potencial de impacto em políticas públicas
de financiadores e recursos mobilizados têm criado pressão pela profissionalização da gestão, o que implica a observação de processos decisórios e gerenciais mais próximos dos realizados no setor privado. 40 A filantropia que apoia a inovação social é uma fonte importante para a popularização e experimentação de projetos que contribuem para o cumprimento dos ODSs. Seja como estratégia, filosofia ou recursos para a constituição de fundos patrimoniais, a filantropia tem auxiliado nesse processo.
A atuação da filantropia na venture philanthropy, no capital catalítico e nos fundos filantrópicos ilustra como é possível integrar estratégias financeiras, operacionais e de impacto para abordar questões sociais de maneira colaborativa. A prática aponta caminhos de como ajustar abordagens de investimento e suporte com base nas necessidades específicas de cada beneficiário, ao reconhecer suas particularidades e os envolver no processo de desenvolvimento e implementação de projetos.
Por outro lado, nota-se que a abordagem da filantropia, tal qual a do capital tradicional, precisa considerar os diversos estágios de maturidade das organizações beneficiárias e se adaptar a eles. Bons exemplos disso são
• Responsabilidade pelos resultados
• Mobilização de campanhas por mudança
• Utilização de todas as ferramentas disponíveis
• Criação de conhecimento acionável
• Perspectiva de longo prazo
• Capital adaptado para negócios de impacto e iniciativas de blended finance
• Alto potencial de impacto em políticas públicas
• Contribuição para o desenvolvimento de novas práticas financeiras
• Insegurança jurídica
• Arcabouço legal
• Limitação de tipos de projetos financiáveis
as práticas adotadas pela abordagem de VP, em que a flexibilidade prevista permite intervenções personalizadas em organizações que variam das mais incipientes às mais consolidadas. Venture philanthropy, capital catalítico e fundos filantrópicos são resultado das transformações que ocorrem no campo filantrópico e do investimento social em todo o mundo. São instrumentos e abordagens complementares a outras fontes de recursos de financiamento de projetos orientados às questões do desenvolvimento sustentável, adaptados a contextos e atores sociais específicos.
Os diferentes mecanismos e casos explorados convergem no entendimento de que a filantropia estratégica não somente fornece recursos financeiros, mas também promove a integração e colaboração com as comunidades e agentes locais. A capacidade de entender as nuances do território e trabalhar em conjunto com organizações locais reforça o impacto positivo e sustentável das iniciativas filantrópicas. Essa não é, no entanto, tarefa para toda e qualquer organização financiadora. Existem movimentos e atores preparados para realizar essas conexões. Como foi visto, a profusão das contribuições da filantropia não ocorreria se
• Orientados por causas bem delimitadas
• Assegura recursos institucionais
• Boas práticas de governança (compliance)
• Capital adequado para assegurar uso apropriado de recursos do financiador
• Modelo adequado para assegurar recursos para fortalecimento institucional
• Independência de movimentos organizados
• Profissionalização de sistema de gestão
• Transparência
• Necessidade de estrutura de governança
não fosse pela existência de intermediários importantes para a popularização e profissionalização do campo. A combinação de estratégias, instrumentos e atores é crucial para garantir a identificação e aceleração de novos modelos e ideias de negócios sociais, a fim de que a escala desejada das soluções para os problemas do desenvolvimento seja alcançada. Nesse sentido, mais pesquisa é necessária. Seja qual for o instrumento ou abordagem filantrópica de financiamento, o desafio da governança está presente. Articular atores com capacidades, maturidades e de contextos distintos não é tarefa trivial. A filantropia tem um longo caminho para compreender seu papel como apoiadora de boas políticas públicas, sejam promovidas pelo Estado ou por meio de outros atores da sociedade civil. Os gestores devem ser mais bem qualificados, o arcabouço legal deve ser mais receptivo e seguro e o diálogo com a comunidade de base e empresarial deve ser mais desenvolvido. O papel esperado da filantropia não é apenas contribuir financeiramente para os ODSs, mas sobretudo moldar um paradigma de desenvolvimento sustentável baseado na colaboração, transparência e impacto positivo duradouro. n
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CAPITAL
VENTURE PHILANTHROPY
CATALÍTICO FUNDOS FILANTRÓPICOS
A filantropia tem um longo caminho para compreender seu papel como apoiadora de boas políticas públicas, sejam promovidas pelo Estado ou por meio de outros atores da sociedade civil. Os gestores devem ser mais bem qualificados, o arcabouço legal deve ser mais receptivo e seguro e o diálogo com a comunidade de base e empresarial deve ser mais desenvolvido
NOTAS
1 ONU. (2023). Países em desenvolvimento necessitam de US$ 500 bilhões anuais para alcançar ODS. Disponível em: https://news.un.org/pt/story/2023/10/1821977
2 OECD. (2023). Private Philanthropy for Sustainable Development, 2018-20: Data and Analysis, OECD Publishing, Paris. Disponível em: www.oecd.org/dac/private-philanthropy-sustainable-development.pdf
3 Citi GPS. (2021). Philanthropy and the global economy. Disponível em: www.citigroup. com/global/insights/GPS/philanthropy-and-the-global-economy-v3-0
4 IUPUI. (2023). 2023 Global Philanthropy Tracker Full Report. Disponível em: https:// scholarworks.iupui.edu/items/427139fd-e626-4436-aff6-ef91638a915e
5 OCDE. (2021). Private Philanthropy for Development – Second Edition: Data for Action, OECD Publishing, Paris, Disponível em: https://doi.org/10.1787/a393777a-en
6 IDIS. (2022). Pesquisa doação individual no Brasil 2022. Disponível em: www.idis. org.br/wp-content/uploads/2023/10/Infografico-Pesquisa-Doacao-Brasil-2022-FINAL. pdf
7 Instituto Beja. (2023). O Futuro da Filantropia no Brasil: Contribuir para a Justiça Social e Ambiental. Disponível em: www.institutobeja.org/wp-content/uploads/2023/04/ Filantropando-O-Futuro-da-Filantropia-no-Brasil.pdf
8 Um aprofundamento sobre os diferentes tipos de investimento de impacto pode ser visto no trabalho da Latimpacto, que faz uma distinção entre investimentos com impacto e para impacto. Ver: www.ecosistema.latimpacto.org/?lang=pt
9 Leme, A., Martins F. e Hornberger, K. (2014). The State of Impact Investing in Latin America. Disponível em: https://media.bain.com/Images/BAIN_REPORT_State_of_ impact_investing_in_Latin_America.pdf
10 Almaguer, F. e Davidson, A. (2023). Impact Investing in Latin America Trends 20202021. Disponível em: https://andeglobal.org/wp-content/uploads/2023/06/latam-report-2023-v8.pdf
11 ANDE. (2023). Investimentos de Impacto no Brasil 2021. Disponível em: https://andeglobal.org/wp-content/uploads/2023/07/ANDE_2023_PT_FINAL.pdf
12 Ver: https://investircomimpacto.org.br/
13 CEBRI. (2023). Public Development Banks and Philanthropies: No Longer Strangers. Disponível em: https://latimpacto.org/wp-content/uploads/2023/09/Whitepaper_PDBs_ ago23_varios_n64f8bcd6277f0.pdf
14 Horvath, A. e Powell, W. (2020). “3. Seeing Like a Philanthropist: From the Business of Benevolence to the Benevolence of Business”. In: W. Powell e P. Bromley (eds.), The Nonprofit Sector: A Research Handbook, 3. ed., p. 81-122. Redwood City: Stanford University Press. Disponível em: https://doi.org/10.1515/9781503611085-006
15 Grossman, A., Appleby, S. e Reimers, C. (2013). “Venture Philanthropy: Its Evolution and its Future”. Harvard Business School, 9, p. 1-25.
16 John, R. (2006). Venture philanthropy: The evolution of high engagement philanthropy in Europe. Disponível em: www.sbs.ox.ac.uk/sites/default/files/2019-10/VenturePhilanthropyinEuropeRobJohnspaper.pdf
17 Letts, C. W., Ryan, W. e Grossman, A. (1997). “Virtuous Capital: What Foundations Can Learn from Venture Capitalists”. Harvard Business Review, 75, p. 36-50.
18 Arymax. (2022). Relatório Bianual Fundação Arymax. Disponível em: https://arymax. org.br/novosite/wp-content/uploads/2022/07/lo-arymax-relatorio-versao-final.pdf
19 AIPÊ. (2024). Quem somos. Disponível em: www.aipe.org.br/
20 Arymax. (2022). Relatório Bianual Fundação Arymax. Disponível em: https://arymax. org.br/novosite/wp-content/uploads/2022/07/lo-arymax-relatorio-versao-final.pdf
21 C3. (2019). Catalytic Capital at Work. Disponível em: www.macfound.org/media/files/ c3_case_studies_-_print_read.pdf
22 C3. (2019). Catalytic Capital at Work. Disponível em: www.macfound.org/media/files/ c3_case_studies_-_print_read.pdf
23 SJF Ventures. (2024). Our Impact. Disponível em: https://sjfventures.com/impact/
24 C3. (2024). Catalytic Capital Consortium. Disponível em: www.macfound.org/programs/field-support/impact-investments/catalytic-capital-consortium/ e C3. (2019). C3. Disponível em: www.macfound.org/media/files/c3_overview_v4_030919.pdf
25 John, D. e Catherine, T. (2019). Catalytic Capital: Unlocking More Investment and Impact. Tideline. Disponível em: https://tideline.com/wp-content/uploads/2020/11/ Tideline_Catalytic-Capital_Unlocking-More-Investment-and-Impact_March-2019.pdf
26 Monday Morning. (2014). Catalytic Philanthropy: More Engagement - Greater Impact. Disponível em: https://growthorientedsustainableentrepreneurship.files.wordpress. com/2018/09/cei-catalytic-philanthropy.pdf
27 Ver: Kramer, M. R. (2009). “Catalytic Philanthropy”. Stanford Social Innovation Review, 7(4), p. 30-35. https://doi.org/10.48558/YKDQ-NS59, e Porter, M.E. e Kramer, M.R. (2019). “Creating Shared Value”. In: Lenssen, G. G. e Smith, N. C. (eds.) Managing Sustainable Business. Springer, Dordrecht. https://doi.org/10.1007/978-94-024-1144-7_16
28 Kramer, M. R. (2009). “Catalytic Philanthropy”. Stanford Social Innovation Review, 7(4), p. 30-35. https://doi.org/10.48558/YKDQ-NS59
29 Buteau, E. et al (2023). “Emerging Impacts: The Effects of Mackenzie Scott’s Large, Unrestricted Gifts”. Disponível em: https://cep.org/report-backpacks/emerging-impacts-the-effects-of-mackenzie-scotts-large-unrestricted-gifts/?section=intro#intro
30 Caseff, G. (2022). “Bilionária americana doa mais de US$ 17 milhões para 16 ONGs brasileiras; veja quais”. Folha de S.Paulo. Disponível em: www1.folha.uol.com.br/ empreendedorsocial/2022/03/bilionaria-americana-doa-mais-de-us-17-milhoes-para-16-ongs-brasileiras-veja-quais.shtml
31 Presidência da República. (2019). Lei nº 13.800, de 4 de janeiro de 2019. Disponível em: vwww.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/L13800.htm
32 IDIS. (2024). Monitor IDIS de Fundos Patrimoniais no Brasil. Disponível em: https://docs. google.com/spreadsheets/d/1Y62R-moOC0-Cey_tMzcLuuBqsdvtR18R9yuiK_CWAkw/ edit#gid=0
33 Fundação Zerrenner. (2024). Conheça nossa História. Disponível em: https://fahz. org.br/historia/
34 Gregory, A. G. e Howard, D. (2009). “The Nonprofit Starvation Cycle”. Stanford Social Innovation Review, 7(4), p. 49-53.
35 SITAWI. (2024). Casa Chama. Disponível em: https://sitawi.net/fundos_patrimoniais/ casa-chama/
36 Fundo Agbara. (2024). O Fundo Agbara. Disponível em: https://fundoagbara.org.br/
37 Gregory, A. G. e Howard, D. (2009). “The Nonprofit Starvation Cycle”. Stanford Social Innovation Review, 7(4), 49–53.
38 Setúbal, J. L. E. e Woods, M. K. (2022). “Governança: elemento-chave para a gestão de fundos patrimoniais”. In: IDIS. Anuário de Desempenho de Fundos Patrimoniais. 2022. p. 130-33. Disponível em: www.idis.org.br/wp-content/uploads/2023/11/Anuario_Desempenho_de_FundosPatrimoniais_2022-1.pdf
39 Kisil, Marcos. (2023). Filantropia de Risco: Do desenvolvimento científico ao desenvolvimento sustentável. São Paulo: Fundação José Luiz Egydio Setúbal. Disponível em: https://fundacaojles.org.br/biblioteca/filantropia-de-risco/
40 Letts, C. W., Ryan, W. e Grossman, A. (1997). “Virtuous Capital: What Foundations Can Learn from Venture Capitalists”. Harvard Business Review, 75, p. 36-50.
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A colaboração como força coletiva de transformação de territórios e ecossistemas
Problemas complexos dependem de soluções em rede. A colaboração se mostra como meio formador e transformador para uma nova economia baseada em equidade social e paradigmas de evolução econômica que incorporem o olhar de impacto socioambiental positivo coletivo
Desde o fim da década de 1990, modelos de negócios que combinam retorno financeiro com propósito de solucionar problemas sociais e ambientais vêm atuando de forma crescente, impulsionando o campo do chamado empreendedorismo de impacto. Com a intenção clara de impacto positivo na concepção de seu produto/serviço e/ou na sua forma de operação, atuam de acordo com a lógica de mercado, buscando retornos financeiros e comprometendo-se a medir o impacto que geram.
O estudo O que são Negócios de Impacto, realizado pela Aliança pelos Investimentos e Negócios de Impacto,1 identificou quatro critérios que configuram um negócio de impacto. São eles:
Intencionalidade de resolução de um problema social e/ou ambiental; Solução de impacto é a atividade principal do negócio; Busca de retorno financeiro, operando pela lógica de mercado; Compromisso com monitoramento do impacto gerado.
Nos últimos dez anos, além do crescimento desses negócios, houve um refinamento em termos de conceitos, abrangência, intencionalidade, temáticas atendidas e ferramentas de suporte à expansão, profissionalização e medição do impacto gerado. No entanto, apenas 30% deles obtiveram sustentabilidade econômica, segundo o 4º Mapa de Negócios de Impacto, 2 produzido pela Pipe Social e pela Quintessa em 2023. Apontada como causa central da fragilidade desses negócios, estaria a falta de infraestrutura e de um ecossistema de organizações e redes que, articuladas e integradas entre si, possam oferecer apoio técnico, financeiro e conexões aos empreendedores ao longo da chamada jornada do empreendedor, atendendo às diferentes demandas em cada etapa de sua implementação e crescimento. Os empreendedores sociais ouvidos apontam a necessidade de maior colaboração entre os atores do campo, trabalhar a partir da descentralização, ter mais transparência e clareza das ações exe-
cutadas, dar maior visibilidade para a proposta de valor e apoiar a criação de investimentos para o início da jornada dos negócios de impacto socioambiental.
Vários pesquisadores e especialistas têm discutido a importância do trabalho colaborativo, sugerindo o fomento de ecossistemas e a promoção de inter-relações que, articuladas entre si, possam fortalecer toda uma economia local, favorecendo o próprio território, seus atores, sua cultura e regionalidade, assim como a construção de um tecido robusto para o bem social de tal região. Problemas complexos dependem de soluções em rede.
Para que isso aconteça, no entanto, é preciso compreender que uma espécie de teia invisível interliga pessoas, lugares e dinâmicas, o que explica a necessidade da colaboração como prática de atuação. Este é um aprendizado amplamente percebido e discutido pelo campo das organizações da sociedade civil há alguns anos.
A metáfora “estamos todos no mesmo barco” ruiu durante a pandemia, quando ficou ainda mais evidente que causas urgentes e desafios complexos exigem atuação conjunta. Sim, estamos todos no mesmo oceano, mas os passageiros de um grande barco terão mais estrutura do que aqueles em uma jangada para enfrentar a mesma tempestade e mar revolto.
Diante desse cenário, a atuação colaborativa se faz fundamental, assim como o uso de tecnologias sociais para facilitar essas conexões e articulações. Esse tem sido o foco do trabalho do Instituto de Cidadania Empresarial (ICE), que há 25 anos busca fomentar
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soluções de inovação social, impacto coletivo e mudanças sistêmicas por uma sociedade mais equânime e que responda às demandas sociais e ambientais necessárias ao bom funcionamento do nosso planeta.
Ao longo desse caminho, ficou evidente que a chave para a transformação territorial que buscamos é a visão de futuro a partir do aprendizado de um ecossistema alicerçado, robusto e articulado, interagindo entre si, com relações de confiança, organizações dinamizadoras conectadas em torno desses ecossistemas e de uma grande rede nacional e local, protagonistas de sua própria propulsão. Este entendimento foi crucial para a concepção do Programa Coalizão pelo Impacto.
A iniciativa é gerida e correalizada pelo ICE com a participação de outras 11 organizações,3 que trabalham em seis cidades4 nas cinco regiões do país, e tem por objetivo fomentar os dinamizadores e sua infraestrutura local por meio de formação, conexão, fomento e disseminação, para que atuem de forma sistêmica e virtuosa na geração de melhores modelos de negócios.
Muitas organizações e empreendedores socioambientais estão atuando de maneira isolada, fragmentada e desarticulada. Eles enfrentam barreiras no financiamento e na sustentabilidade econômica, por exemplo, ou ainda nas parcerias entre setor público e privado e no apoio às inovações. Sem contar que a falta de atuação conjunta dificulta também a busca de impacto socioambiental sistêmico. Isso torna essencial ampliar a abordagem de impacto coletivo, segundo a qual a transformação desejada se alcança de forma estruturada.
John Kania e Mark Kramer, 5 definem impacto coletivo como sendo “o comprometimento de um conjunto de atores importantes de diferentes setores em prol de uma agenda comum, a fim de solucionar um problema social específico”.
Para que ele opere, são necessários uma infraestrutura local, uma equipe dedicada e um processo estruturado que conduza a uma agenda comum, medição partilhada, comunicação contínua e atividades que se reforçam mutuamente entre todos os participantes.
Em 2022, após dez anos acompanhando a aplicação da abordagem, John Kania volta com a mensagem de que a equidade é fundamental para o sucesso do trabalho com impacto coletivo. Sem essa premissa, as desigualdades que estão na base da organização social não irão permitir a virada almejada.
Os estudos da Aliança pelo Impacto 6
Premissas para o bom funcionamento de ecossistemas
colaborativos
I Alinhamento estratégico
VII Políticas públicas
Coordenar pautas e esforços para ações de advocacy (aprovação/ adaptação de po íticas púb icas de fomento e agenda
VI. Monitoramento
Definir indicadores e monitorar o amadurecimento do ecossistema
V Colaboração e Trocas
Focos de atuação
Construir um entendimento sobre desafios e potencialidades para a agenda de negócios de impacto no território
II Sensibilização e atração
Mapear e engajar constantemente lideranças, organizações e redes que deveriam conhecer e atuar com negócios de impacto (aproximar organizações "de fora")
III Governança e papéis
Garantir espaços permanentes (comitê/conselho) para escuta, análise e deliberação de atores diversos que atuam no ecossistema
IV. Financiamento da infraestrutura
Identificar oportunidades de colaborações, sustentar espaços de confiança e manter comunicação contínua entre as organizações locais (diminuir assimetria de informações) Mapear fontes de recursos e orientar fluxos de capital (quem precisa do quê, quando e de quem)
Fonte: Adaptado de “O papel das organizações estruturantes no fortalecimento de ecossistemas locais de investimentos e negócios de impacto”. Aliança pelo Impacto, 2022.
em 2022 dialogam com essa concepção e a ampliam, com um olhar regionalizado, apontando para os princípios fundamentais, responsáveis por garantir sua efetividade:
1. Desenhar e implementar a iniciativa com prioridade na equidade;
2. Incluir membros à comunidade no processo colaborativo;
3. Recrutar e cocriar com parceiros intersetoriais;
4. Usar dados para aprender, adaptar e melhorar continuamente;
5. Cultivar líderes com habilidades únicas de liderança sistêmica;
6. Focar em programas e estratégias sistêmicas;
7. Construir uma cultura que promova relacionamentos, confiança e respeito;
8. Personalizar para o contexto local. Inovadores no campo da sociedade civil, programas de atuação conjunta, que implementam iniciativas a partir de um valor compartilhado, com longo prazo de atuação e visão de futuro compartilhada, têm nas práticas de governança e no protagonismo dos diversos atores a grande virada de chave. O propósito coletivo é o guia, o ponto comum de chegada, e as decisões são tomadas de forma compartilhada.
Muito se fala em escalar as soluções, mas estamos aprendendo que escala é uma jornada de mentalidade. Escalar seria, na verdade, construir a infraestrutura que pode atender a demandas de contextos variados. Não se trata de fazer crescer uma única organização, e sim de escalar a solução do problema que se busca resolver. A jornada que resultará em transformações sistêmicas é longa. E a infraestrutura
está baseada na tessitura social de diversos atores que, conectados como em uma teia, propagam coletivamente soluções sociais que privilegiam o coletivo da população.
São múltiplos atores cooperando entre si para resolver questões complexas que promovem impacto coletivo, favorecem o alinhamento entre setores privados e públicos, o terceiro setor e a filantropia, compartilham lições aprendidas, trabalham em torno de um mesmo objetivo e medem resultados com indicadores comuns. A imagem acima representa a importância de uma abordagem colaborativa em que cada agente atua movido pelo seu propósito e desempenhando sua função essencial. Aqui, a colaboração não é apenas “ferramenta”, mobilizada de modo instrumental por um agente para se obter um “resultado”. Ela é a própria forma de fazer, a partir do reconhecimento do melhor de cada um na rede. ■
NOTAS/REFERÊNCIAS
1 Disponível em: https://aliancapeloimpacto.org.br/ publicacao/o-que-sao-negocios-de-impacto-estudo/ 2 4º Mapa de Negócios de Impacto – Pipe Social e Quintessa, 2023.
3 Instituto de Cidadania Empresarial (ICE), Instituto Helda Gerdau, Somos Um, Cosan, Fundação Educar DPaschoal, Fundação FEAC, Fundação Grupo Boticário, Instituto BEJA, Instituto Humanize, Instituto Sabin e RD Raia Drogasil.
4 Belém (PA), Fortaleza (CE), Brasília (DF), Campinas (SP), Paranaguá (PR) e Porto Alegre (RS).
5 John Kania e Mark Kramer, Impacto Coletivo, Stanford Social Innovation Review Brasil (https://ssir. com.br/biblioteca-essencial/impacto-coletivo)
6 O papel das organizações estruturantes no fortalecimento de ecossistemas locais de investimentos e negócios de impacto; Aliança pelos Investimentos e Negócios de Impacto, ICE, 2022, (livro eletrônico, PDF).
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Caminhos para alavancar os investimentos na bioeconomia da Amazônia
Experiências inspiradoras e novas oportunidades de ação abrem caminhos alternativos para a solução de problemas que persistem nas formas convencionais de investimento. Em todos os cenários, é preciso contemplar o protagonismo dos atores locais como condição fundamental
POR JOSÉ AUGUSTO LACERDA FERNANDES E GRAZIELLA MARIA COMINI
Há muitas décadas sabe-se que a Amazônia é um elemento central para o enfrentamento de grandes desafios da sociedade contemporânea.1 Por meio de diferentes serviços ecossistêmicos, a maior floresta tropical do planeta é determinante para o equilíbrio do regime de chuvas, tanto nos estados e países da própria bacia amazônica, como em outras regiões da América do Sul.2 Enquanto reservatório da maior parcela de biodiversidade existente no planeta Terra, a floresta também oferece ao mundo um leque de oportunidades de difícil mensuração, que abrange desde novos tratamentos para doenças complexas até a criação de superalimentos baseados em seu catálogo crescente de biorrecursos.3 Isso sem falar nos saberes acumulados pelos povos originários e pelas comunidades tradicionais que ocupam a floresta há séculos e foram vitais em sua formação. Por meio de práticas de manejo sustentáveis e de migrações, foram eles que deram vida a esse imenso patrimônio – material e imaterial – chamado Amazônia. 4
Apesar dos alertas feitos ao longo da história (por inúmeros cientistas, ativistas e organizações não governamentais), a importância da Amazônia enquanto bem comum universal parece ter encontrado seu lugar ao sol apenas nos últimos anos. Entre os profissionais que a abraçaram como campo de estudo e militância antes dessa efervescência, a sensação é de vivermos finalmente uma espécie de “virada amazônica”. De fóruns setoriais e webinars apoiados por grandes empresas às cúpulas que engendram a geopolítica internacional, a Amazônia está no centro das atenções. Por mais tardio que seja esse movimento, ele atende à necessidade de conscientizar a sociedade sobre o valor da floresta para o planeta. Além disso, facilita a
DO QUE TRATA O ARTIGO
Apesar de alguns avanços recentes, os mecanismos de investimentos hoje não são suficientes para alavancar o desenvolvimento da bioeconomia na Amazônia. Por meio de relatos obtidos em entrevistas e de dados secundários, discutimos a importância de formas inovadoras de investimentos, dos investimentos feitos em organizações de base e dos investimentos híbridos, alicerçados em uma lógica mais paciente e atenta para as especifidades da região. O artigo mostra a relevância dos atores locais na concepção e na operacionalização desses investimentos, ressaltando a necessidade de dar protagonismo às organizações e comunidades da região nos assuntos que concernem à bioeconomia da floresta.
POR QUE ISSO IMPORTA
A bioeconomia tem sido apontada cada vez mais como a tábua de salvação, mas os empreendimentos e cadeias produtivas engajados com o desenvolvimento dessa economia da floresta em pé encontram uma série de problemas estruturais e contextuais para se desenvolver. Canalizar investimentos que permitam a superação desses problemas é uma condição básica para que a bioeconomia alcance todo o seu potencial. Ao demonstrar como alguns casos têm obtido êxito no aporte/ recebimento/gestão de investimentos, nosso artigo contribui para o avanço da temática, iluminando decisões gerenciais, politicas públicas e debates sobre a bioeconomia da Amazônia em um sentido mais amplo.
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Seja na infraestrutura, educação, saúde, segurança pública, ou mesmo na ciência, tecnologia e inovação, ordenamento territorial e direitos indígenas, há um leque amplo de intervenções tão estratégicas quanto urgentes, sem as quais é muito difícil imaginar uma bioeconomia verdadeiramente forte e inclusiva
aproximação e a colaboração de diferentes atores, contribuindo para o desenho de caminhos alternativos para o desenvolvimento da região, com destaque para o fortalecimento de uma economia pautada no uso sustentável e inovador de sua sociobiodiversidade, a tão alardeada bioeconomia da floresta em pé.5
A exploração da sociobiodiversidade amazônica não é novidade,6 ainda mais para seus habitantes. Porém, é fato que, ao menos no âmbito das narrativas, ela tem emergido não somente com vigor, mas também sob novas facetas. Assentada no uso da tecnologia, na inovação e no empreendedorismo, a bioeconomia que se propaga na atualidade promete converter a riqueza natural da floresta em produtos de alto valor agregado, com potencial de uso em diferentes setores (alimentos, produtos farmacêuticos, cosméticos e joias, entre outros) e mercados (local, nacional e internacional). A isso se soma uma abordagem voltada à transformação social, que a posiciona como um mecanismo poderoso de inclusão e de atendimento às demandas básicas das comunidades locais,7 algo premente no contexto amazônico
Vários produtos e empreendimentos evidenciam a viabilidade e o potencial desse modelo de bioeconomia em inúmeras cadeias produtivas amazônicas – frutas, oleaginosas, fibras, peixes e sementes, entre outras. Contudo, ainda nos resta o desafio nada trivial de viabilizá-lo, em diferentes territórios, e com resultados positivos que não tardem para se efetivar localmente. 8 Sobretudo quando se observa a coletânea de projeções de danos climáticos irreversíveis para a própria Amazônia e para todo o planeta.9
Seja na infraestrutura, educação, saúde, segurança pública, ou mesmo na ciência, tecnologia e inovação, ordenamento territorial e direitos indígenas, há um leque amplo de intervenções tão estratégicas quanto urgentes,
sem as quais é muito difícil imaginar uma bioeconomia verdadeiramente forte e inclusiva.10 Com tantos campos múltiplos e complexos se cruzando, não surpreende lidarmos com um mosaico de antagonismos, tensões e disputas de difícil resolução. Trata-se, afinal, de um “Davi contra Golias”: de um lado, um modelo alternativo de desenvolvimento, calcado nos pilares da sustentabilidade (ambiental, social e financeira) e no uso inovador dos recursos da sociobiodiversidade; do outro, o modelo de (des)envolvimento atual, responsável por mazelas históricas como o desmatamento e a degradação da floresta e, tão logo, pelas projeções que apontam para um tipping point no bioma Amazônia já nos próximos anos.11 Forjar uma ruptura com esse quadro passa, inevitavelmente, pelo fim do financiamento de atividades não sustentáveis12 e também por uma avalanche de investimentos orientados pela lógica do impacto socioambiental positivo: os chamados “investimentos de impacto”. Embora existam várias definições para o termo, ele costuma ser concebido como aquele investimento que “almeja resultado socioambiental mensurável, além de retorno financeiro”.13 A partir dessa modalidade, investidores podem alocar recursos em iniciativas e empreendimentos que geram valor econômico de forma concomitante com benefícios sociais e ambientais à sociedade – algo premente para fazer frente às inúmeras urgências da região amazônica.
A pergunta que se coloca é: os mecanismos e instrumentos financeiros existentes são adequados ao contexto amazônico? A fim de contribuir para o planejamento, coordenação e aprimoramento dos investimentos, várias organizações, não só dos países amazônicos, têm conduzido debates e projetos sobre a temática. Muitos deles são convertidos em publicações interessantes, que oferecem um entendimento mais amplo do estado atual do financiamento para a bioeconomia,14 bem como das abordagens, mecanismos de investimento, tipos de empreendimento e cadeias de valor prioritárias.15 e 16 Além de advogarem, em uníssono, pelo fortalecimento dos investimentos de impacto na bioeconomia da floresta, esses materiais têm proporcionado um conhecimento mais detalhado dos obstáculos e oportunidades presentes nesse campo.
As dores de investidores e empreendedores
Os dados sobre investimentos de impacto na bioeconomia da Amazônia estão dispersos – o que de certo modo é compreensível, diante do caráter abrangente e transversal desse campo. Ainda assim, é fácil perceber que tanto investidores quanto empreendedores vivenciam uma série de dificuldades em suas jornadas de aporte e captação. A primeira delas está relacionada à conciliação de agendas e lógicas institucionais distintas. Empre-
JOSÉ AUGUSTO LACERDA FERNANDES é doutor em desenvolvimento sustentável pelo Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (NAEA). Atua como professor na Universidade Federal do Pará (UFPA), na qual também coordena o Ateliê de Negócios Transformadores da Amazônia (Atenta), liderando projetos de pesquisa, extensão e desenvolvimento tecnológico no campo do empreendedorismo e da inovação social, com foco especial nas cadeias produtivas da sociobiodiversidade da Amazônia.
GRAZIELLA MARIA COMINI é professora associada da Faculdade de Economia, Administração e Atuária da Universidade de São Paulo (FEA-USP). É coordenadora do Centro de Empreendedorismo Social e Administração do Terceiro Setor (Ceats-USP) e vice-coordenadora do Núcleo de Gestão de Projetos da Fundação Instituto de Administração. Representante do Brasil no Social Enterprise Knowledge Network (SEKN). É vice-presidente do Instituto de Pesquisas Ecológicas (Ipê) e coorganizadora do livro Negócios de impacto socioambiental no Brasil
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endimentos calcados na sociobiodiverdade da Amazônia costumam ter menor potencial de retorno, sobretudo por lidarem com custos operacionais e transacionais mais elevados, típicos de estruturas produtivas localizadas longe de grandes centros urbanos. Em muitos casos, esses negócios ainda apresentam um risco maior quando comparados a iniciativas do tipo business-as-usual, pois trabalham com produtos que não possuem mercados bem desenvolvidos. Em conjunto, esses aspectos dificultam a criação de negócios com potencial de crescimento (escalabilidade) em horizontes temporais de curto prazo almejados pelos financiadores, sobretudo quando eles atuam junto a comunidades tradicionais e trabalham com recursos naturais obtidos a partir do extrativismo sustentável.
Os desafios não são só esses. Diálogos com empreendedores e investidores revelam a ausência da estrutura necessária para a execução de recursos em volumes mais expressivos. Como negócios de pequeno porte e/ou com pouco tempo de mercado, a maior parte dos empreendimentos da bioeconomia ainda não conseguiram desenvolver um planejamento financeiro adequado e formar equipes devidamente qualificadas, elementos necessários para uma aplicação eficiente dos investimentos. Em alguns casos, até mesmo empreendedores de destaque expressam inquietação com essa problemática. Ao narrar um encontro com fundos de venture capital, Paulo Reis (sócio das empresas Manioca e Amazonique) conta que já ficou assustado com os valores mencionados pelos investidores. Diante da pergunta se queria R$ 5 milhões ou R$ 10 milhões, o empreendedor admite que nem saberia o que fazer com um investimento desse ou se conseguiria honrar compromissos assumidos. “Na Amazônia, é preciso muita cautela para expandir nossos negócios, pois
o desenvolvimento depende de muitos elementos [...].”
Embora existam diferentes perfis de empreendedores na região, relatos dessa natureza são recorrentes e costumam revelar vários outros desafios vivenciados pelos principais protagonistas do desenvolvimento da bioeconomia na Amazônia. Seja entre aqueles envolvidos com negócios de base comunitária ou entre os estabelecidos nas incubadoras e parques de ciência e tecnologia dos maiores centros urbanos da região, percebe-se o quão difícil é conciliar objetivos sociais e ambientais com a meta de criar um negócio autossustentável e com perspectiva de crescimento e, não obstante, ainda ter que atrair o capital para viabilizá-lo. Formatar um negócio atraente para o investidor ainda depende muito da capacidade de obter retornos competitivos em comparação aos investimentos disponíveis no mercado. Empreendedores socioambientais de outras regiões – do Brasil e do mundo – também se deparam com essa dificuldade, mas é fato que alguns elementos caraterísticos do contexto amazônico adicionam ainda mais complexidade à jornada dos negócios engajados com a bioeconomia da floresta. Os dados referentes à educação, por exemplo, são emblemáticos. Com condições de acesso à educação básica inferiores às das demais regiões do Brasil e outros índices educacionais alarmantes, é natural encontrarmos inúmeras barreiras ao empreendedorismo engajado com a geração de impacto socioambiental positivo na Amazônia. Isso explica porque a própria intenção de empreender e de inovar com foco em desafios socioambientais ainda é tão incipiente na região. No geral, predominam empreendedores bastante privilegiados em termos de grau de escolaridade e renda média, pois tal escolha permanece restrita a uma parcela pequena da população, que consegue imaginar caminhos
diferentes do subemprego, de cargos públicos e de negócios informais, comumente sem compromisso com a sustentabilidade. Aspectos logísticos e infraestruturais característicos da região também estão entre os outros desafios a se considerar. Por mais conhecidas que sejam, essas condições estruturais têm desdobramentos muito complexos para os negócios da bioeconomia, em especial quando precisam assumir um papel ativo no desenvolvimento da cadeia produtiva dos insumos com os quais trabalham. Em rodas de conversa com empreendedores locais, é frequente ouvi-los falar sobre a dificuldade de pensar o desenvolvimento da bioeconomia da Amazônia à luz de outros mercados e enfatizar o fato de que produzir algo na região implica um conjunto de particularidades. Eles comparam, por exemplo, o que acontece quando um empreendedor precisa de insumo em São Paulo, onde há vários fornecedores à disposição e a entrega não raro ocorre no mesmo dia. Na Amazônia, lembram eles, muitas cadeias produtivas ainda precisam ser estruturadas e muitas vezes o empreendedor tem de ajudar no treinamento e fazer todo um acompanhamento até conseguir obter uma regularidade no fornecimento.
Arcar com todos os custos e os esforços envolvidos no desenvolvimento de cadeias produtivas não é necessariamente um obstáculo intransponível. Em determinados casos, isso pode inclusive alavancar os impactos socioambientais positivos gerados pelos empreendimentos da bioeconomia e facilitar o acesso a mercados altamente exigentes. O caso da empresa 100% Amazônia evidencia muito bem esse potencial. Com a missão de traduzir a complexidade e a riqueza do ecossistema amazônico em produtos inovadores, essa empresa B especialista em bioingredientes florestais não madeireiros e renováveis (com mais de
Empreendimentos calcados na sociobiodiversidade da Amazônia costumam ter menor potencial de retorno, sobretudo por lidarem com custos operacionais e transacionais mais elevados. Em muitos casos, esses negócios ainda apresentam um risco maior, pois trabalham com produtos diferenciados e de origem, sem terem necessariamente mercados bem desenvolvidos
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50 itens no portfólio) desenvolve o programa Aryiamuru, focado no desenvolvimento de cadeias de suprimentos sustentáveis em diferentes territórios da região. De acordo com Fernanda Stefani, uma das criadoras e sócias da empresa, o programa tem viabilizado o comércio justo dos insumos produzidos pelas comunidades, aumentando o impacto social e ambiental positivo das cadeias da bioeconomia amazônica.
Conduzir o desenvolvimento de cadeias produtivas representa um esforço hercúleo para a maior parte dos empreendimentos da bioeconomia da Amazônia, em especial quando tratamos de negócios comunitários ou baseados no associativismo. Embora conheçam muito bem as particularidades de seus territórios, bem como dos insumos e dos processos que manejam, esses empreendimentos costumam ter algumas insuficiências em suas estruturas administrativas e enfrentam dificuldades para realizar ações de maior envergadura.
Se, por um lado, os desafios conhecidos não representam o labirinto de elementos que condicionam o aporte e a captação de investimentos nos empreendimentos da bioeconomia da Amazônia, por outro, eles são suficientemente reveladores de alguns caminhos que devemos trilhar para alavancar os investimentos de impacto nessa seara. Para aumentar o volume de recursos e torná-los mais eficientes, consideramos ser necessário:
i) incorporar a lógica do risco-retorno-impacto e fortalecer a oferta de capital paciente;
ii) democratizar o acesso a um número maior de investidores;
iii) fortalecer a atuação dos povos e comunidades tradicionais na agenda de investimentos;
iv) pensar para além dos negócios, realizando investimentos em aspectos estruturan-
tes, como o fim do desmatamento, ciência e tecnologia e educação empreendedora.
Do velho risco-retorno ao capital paciente
Em meio à “virada amazônica” atual, há cada vez mais investidores interessados em aportar recursos nos negócios da bioeconomia da região. A concretização desses investimentos, entretanto, tem como dificultador o reinado da lógica risco-retorno, o que explica, em parte, a escassez de aportes. Organizações ou pessoas físicas que investem precisam entender que, na ampla maioria dos casos, negócios da bioeconomia da floresta dificilmente terão retornos em períodos similares aos de empreendimentos tradicionais ou estabelecidos em outras regiões do país. É preciso destronar essa lógica. Do contrário, muitos investimentos seguirão como estão: nascendo e morrendo como narrativa e intenção.
A fim de identificar e compreender melhor algumas experiências que têm rompido com essa lógica, agregando o impacto socioambiental nessa equação e ofertando um capital mais paciente aos empreendimentos, mapeamos iniciativas como a do Althelia Biodiversity Fund (ABF). Lançado em 2019 e registrado como Fundo de Investimento e Participação (FIP), o ABF é um fundo de investimento de impacto gerido pela Impac Earth, uma spin-off da Mirova Natural Capital. A iniciativa foi concebida em parceria com a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (Usaid/Brasil), Aliança para a Bioversidade/ Ciat e Plataforma de Parceria pela Amazônia (PPA), levando em conta as especificidades dos empreendimentos presentes na região. Com período de vigência de 11 anos, o fundo prevê captar US$ 100 milhões, principalmente em capital privado.17 e 18
Com o propósito de promover a economia da floresta em pé, o ABF tem como principais objetivos: a conservação da biodiversidade, a redução do desmatamento e dos riscos climáticos e a geração de resultados socioeconômicos positivos e de bem-estar para as comunidades locais na Amazônia Legal. Para tanto, o ABF declara que sua noção de êxito está intrinsecamente condicionada à oferta de financiamento catalítico a empresas e projetos com biodiversidade positiva.
Com foco em empresas e projetos sustentáveis que têm um impacto positivo de transformação na Amazônia Legal brasileira e por meio de estruturas de financiamento inovadoras, o ABF oferece soluções financeiras personalizadas, com mecanismos de redução de riscos e, para isso, combina diferentes estratégias e veículos de investimento, como ações, dívida conversível, empréstimos, dívida estruturada e participação nos lucros, de acordo com o Impact Earth. Além disso, a estrutura do fundo também incorpora o que afirma ser “um recurso de mitigação de risco de ‘bloqueio duplo’, o primeiro de seu tipo”. Por meio de uma garantia de crédito da Development Credit Authority, apoiada pela Usaid, o fundo pretende garantir 50% de quaisquer perdas na alocação da dívida da carteira, até o limite de US$ 100 milhões. Segundo os gestores do fundo, isso permite “uma proposta de risco atraente, com baixos custos de desenvolvimento e uma estrutura que pode ser replicada em outras regiões ou países, uma vez que comprovemos sucesso no Brasil”.19
A flexibilidade de um capital paciente
Um dos negócios a se beneficiar desse mecanismo inovador de investimento é a Horta da Organizações ou pessoas físicas que investem precisam entender que, na ampla maioria dos casos, negócios da bioeconomia da floresta dificilmente terão retornos em períodos similares aos de empreendimentos tradicionais ou estabelecidos em outras regiões do país. É preciso destronar essa lógica. Do contrário, muitos investimentos seguirão como estão: nascendo e morrendo como narrativa e intenção
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Viabilizar capital diretamente para organizações dessa natureza é fundamental para o fomento de uma bioeconomia inclusiva, visto que, em muitos casos, elas ainda são tratadas, equivocadamente, como meras fornecedoras de matérias-primas para grandes empresas e não como aquilo que são: as verdadeiras protagonistas da bioeconomia da Amazônia
Terra, produtora de plantas alimentícias não convencionais (as chamadas Pancs) desidratadas. Em 2021, a empresa e a ABF firmaram um contrato de investimento com prazo até 2030, tendo como estrutura de investimento o modelo Revenue-Based Loan (RBL), que opera a partir de um empréstimo com repagamento baseado em receita. Tal modelo é mais flexível do que o financiamento por dívida tradicional, visto que os pagamentos são vinculados a uma percentagem da receita. Andrea Resende, investment manager da Impact Earth, observa não somente o caráter inovativo e flexível da modalidade RBL, mas, sobretudo, a sua aderência ao modelo de negócio do empreendimento, visto que instrumentos self-liquidating possibilitam um alinhamento entre os processos produtivos, a geração de valor e a perspectiva de crescimento da Horta da Terra. Para ela, trata-se de uma filosofia diferente dos fundos de private equity tradicionais. “Quando investimos, investimos no território, na biodiversidade. Para gerar impacto, todos os negócios investidos têm que dar certo! [...] Quando utilizamos de flexibilização e criatividade de instrumentos, é com esse olhar para que os negócios – mesmos na fase early-stage – consigam ter caminhos claros de repagamento.” Para amparar o empreendimento nesse processo, o fundo tem procurado atuar muito próximo da operação, ocupando uma posição no conselho e auxiliando em questões de governança. Isso tem auxiliado a Horta da Terra a lidar com as peculiaridades típicas do seu estágio atual: da estratégia às ações de tração de vendas e validação de seu potencial de mercado. Recentemente, fundo e empresa elaboraram conjuntamente um Plano de Tração de Vendas, com o objetivo de desenvolver o mercado de pequenas e médias empresas do mercado brasileiro, através da estratégia de distribuição por canais indiretos – “microdistribuição” para o varejo. Andrea Resende
destacou que os rápidos resultados obtidos com essa estratégia foram mais do que o esperado, pois, além de validar a demanda pelos produtos, permitiram desafiar os processos operacionais/produtivos do empreendimento.
Em consonância com os dados empíricos obtidos, uma das principais virtudes do modelo RBL reside em “alinhar” mais estreitamente os interesses do investidor com a missão social do empreendedor, em contraponto à desconfiança quanto ao risco-retorno dos investimentos baseados no valor do negócio (equity).20 Ao defender que a RBL é um instrumento que materializa a proposição moral de extrair menos valor, J. Hellman sinaliza que os defensores da RBL esperam que essa estrutura contratual ajude a provocar um novo tipo de sujeito-investidor.
Nesse sentido, consideramos que a flexibilidade proporcionada por esse “capital paciente” e os resultados alcançados pela Horta da Terra podem servir de referência para muitos outros investidores e empreendimentos engajados com a bioeconomia da Amazônia. Em especial, quando se trata de negócios de pequeno porte e/ou recém-criados, visto a escassez de capital de risco disponível e de fácil acesso para empreendedores que não possuem histórico financeiro ou capacidade de montar garantias colaterais e pessoais.21
De poucos com muito para muitos com pouco Levando em conta os empreendimentos socioambientais na Amazônia, consideramos que alavancar o volume e a própria efetividade dos investimentos passa, necessariamente, pela criação de mecanismos e instrumentos inovadores que possibilitem uma gama maior de investidores. Os empréstimos coletivos realizados pela Sitawi Finanças do Bem demonstram bem o potencial desse movimento. Desde
2008, a organização já realizou 14 chamadas e mobilizou mais de R$ 450 milhões para mais de 2.800 iniciativas socioambientais, sendo parte significativa delas na Amazônia.
Entre os negócios da região apoiados pela SITAWI estão: Pará Oil (que atua com a extração de óleos a frio de sementes oleaginosas amazônicas); Tucum (marketplace de artesanato indígena); Na’kau (marca de chocolates produzidos com cacau oriundo de comunidades ribeirinhas agroextrativistas); e Oka (fabricante de sucos de frutas típicas da região amazônica, produzidas a partir de sistemas agroflorestais).
Além disso, também chama a atenção a quantidade de cooperativas que já se beneficiaram dos empréstimos coletivos para desenvolver suas operações. Entre elas estão, por exemplo: Coex Carajás (extração das folhas do jaborandi, matéria-prima para a formulação de produtos cosméticos e farmacêuticos); Coofruta (cooperativa agroindustrial de extrativistas que comercializa produtos da região amazônica); e Semente do Marajó (cooperativa extrativista de açaí). Viabilizar capital diretamente para organizações dessa natureza é fundamental para o fomento de uma bioeconomia inclusiva, visto que, em muitos casos, elas ainda são tratadas, equivocadamente, como meras fornecedoras de matérias-primas para grandes empresas e não como aquilo que são: as verdadeiras protagonistas da bioeconomia da Amazônia.
O fundador e CEO da Sitawi, Leonardo Letelier, explica como funcionam esses empréstimos, destacando que a rentabilidade prevista gira entre 9% e 10% ao ano e que qualquer pessoa pode fazer seu cadastro na plataforma e aplicar valores a partir de R$ 10 nos negócios. Ao aumentar e diversificar a base de investidores engajados com o desenvolvimento dos negócios da sociobiodiversidade, essas chamadas cumprem um papel
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muito estratégico. Primeiramente, no sentido de canalizar mais recursos para os empreendimentos e de elevar as chances de retornos mais positivos para os investidores. Segundo, no sentido de popularizar e democratizar os investimentos de impacto socioambiental positivo na Amazônia. Com um número maior de pessoas entendendo como o dinheiro pode ser usado para melhorar a sociedade, o próprio campo dos investimentos de impacto adquire mais legitimidade e segurança institucional para se consolidar.
Os empréstimos não se limitam a negócios da Amazônia que trabalham com insumos da sociobiodiversidade. Há também uma preocupação em fortalecer empreendimentos que atuam com as demandas básicas da região, como é o caso já mencionado dos déficits na educação. Na chamada de 2019, por exemplo, um dos negócios contemplados foi a startup paraense Interceleri, que trabalha com soluções e ferramentas inovadoras para o ensino de matemática no ensino básico. Por meio dos R$ 215 mil obtidos, a empresa conseguiu ampliar sua operação (iniciada no ano de 2013) e dar escala aos serviços pedagógicos presentes no seu portfólio (jogos virtuais, aplicativos e equipamentos de realidade virtual), chegando a um número ainda maior de alunos (300 mil) e professores (15 mil) – em diferentes regiões do país, mas sobretudo na Amazônia.
Do território para o território
Um contato rápido com comunidades tradicionais e povos indígenas da Amazônia mostra o quão impressionante é a capacidade de organização (planos, documentos, soluções) dos povos originários da floresta. Exemplos como os dos Paiter Surui em Rondônia ou dos Baniwa no Alto Rio Negro evidenciam como eles são virtuosos na utilização do conheci-
mento tradicional para prover uma economia da floresta, seja agindo na base, por meio do monitoramento da biodiversidade local, ou diretamente na criação de marcas, produtos e cadeias produtivas como a do café, cacau e pimenta, por exemplo. Negar voz a essas comunidades e deixá-las de fora das decisões feitas sobre os investimentos nos parece um contrassenso para qualquer projeto que realmente ouse desenvolver a bioeconomia da região.
Consideramos, portanto, que mudar esse panorama requer não somente a conscientização dos atores que, mesmo não sendo da Amazônia, são engajados com a região e com a promoção de sua bioeconomia, mas também apoiar iniciativas conduzidas por esses povos no campo dos investimentos de impacto. Um exemplo contundente de ações dessa natureza pode ser encontrado no Podáali – Fundo Indígena da Amazônia Brasileira. Criado em 2020, após um processo extenso de discussão e amadurecimento, liderado pela Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), o fundo tem como objetivo fortalecer a autonomia dos povos indígenas e de suas organizações, dando a eles um maior protagonismo na gestão das terras indígenas e na defesa de seus direitos.
Por meio dessa iniciativa pioneira, os indígenas dos nove estados da Amazônia Legal (mais de 400 mil ao todo) passaram a dispor de um mecanismo próprio para projetos ligados à sustentabilidade, com destaque para as iniciativas com foco em economia sustentável e soberania alimentar, diretamente ligadas à bioeconomia. Formulado de acordo com as especificidades dos territórios e organizações indígenas, o fundo reflete em sua estrutura de governança as formas de organização e tomada de decisão dos povos originários. Daí, a propósito, a inspiração para o nome Podáali,
que na língua do povo baniwa significa “doar sem querer receber nada em troca”, designando celebração, reciprocidade e promoção da sustentabilidade para o bem viver dos povos indígenas. Em sua primeira chamada, o fundo centrou-se no apoio a pequenos projetos, com valores de até R$ 50 mil por proposta. Desde que em parceria com organizações indígenas formalizadas, até mesmo organizações sem personalidade jurídica (ata, estatuto e CNPJ regular/ativo) puderam inscrever projetos, atentando assim para uma dificuldade histórica e que muitas vezes impede o acesso a recursos e a execução de iniciativas importantes para os territórios indígenas.
Do investimento em negócios para os investimentos no ecossistema da bioeconomia
Estudos têm chamado a atenção para a importância de uma abordagem regional da Amazônia, que seja capaz de integrar os oito países amazônicos em torno das soluções pensadas para o bioma.22 Da mesma forma, consideramos que os investimentos de impacto precisam expandir sua atuação para além dos empreendimentos da bioeconomia. Em uma região caracterizada por inúmeras carências (acesso a energia, saúde, saneamento de qualidade e internet, entre outras), chega até a ser ingenuidade acreditar que investir apenas nos negócios conduzirá à transformação prometida pela bioeconomia.
Entre os muitos desafios na região, três parecem merecer atenção especial: o combate ao desmatamento e o controle de atividades ilegais; o fortalecimento da ciência e da tecnologia; e a expansão e o aprimoramento de programas de educação empreendedora.
O desmatamento da floresta amazônica está associado, predominantemente, a ati-
Estudos têm chamado a atenção para a importância de uma abordagem regional da Amazônia, que seja capaz de integrar os oito países amazônicos em torno das soluções pensadas para o bioma. Da mesma forma, consideramos que os investimentos de impacto precisam expandir sua atuação para além dos empreendimentos da bioeconomia
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Sem
um olhar atento para as especificidades da região e sem um interesse genuíno na transformação da realidade local, esses programas (de
aceleração e de educação empreendedora) raramente atendem as demandas impostas pela bioeconomia. Escolher quem deve executar esses programas se torna,
vidades ilegais e contribui para os conflitos sociais e violência endêmica na região, os quais deterioram o ambiente econômico e inibem investimentos. 23 Além de afetar a reputação internacional dos países da região, reduzir investimentos e prejudicar acordos comerciais, como é o caso do tratado da União Europeia com o Mercosul, o desmatamento contribui para a perda de biodiversidade e para o desequilíbrio das interações que alicerçam a vida da floresta, impactando negativamente o desenvolvimento e a sustentabilidade das cadeias produtivas da sociobiodiversidade. Para muitos empreendedores da Amazônia, “o desmatamento é o principal concorrente de seus empreendimentos”. Portanto, mesmo conhecendo as tensões geradas pelas abordagens de mercado no campo da conservação, 24 consideramos que os investimentos de impacto precisam apoiar mais esforços de combate ao desmatamento.
Dada a sua transversalidade e abrangência, a bioeconomia também necessita de uma ampla gama de conhecimentos para se desenvolver. Ao englobar um conjunto de atividades intensivas em ciência e tecnologia e tendo como base competitiva a inovação, ela costuma demandar levantamentos, estudos e análises sobre temas bastante distintos, que vão desde aspectos geofísicos e químicos até regulatórios e mercadológicos, por exemplo. Sem investimentos robustos em ciência e tecnologia, é difícil avançar até no próprio conhecimento da biodiversidade da região, um ponto-chave para a criação de produtos e serviços inovadores.25
A boa notícia é que a Amazônia já dispõe, há décadas, de várias instituições de ensino e pesquisa de excelência, como a Universidade Federal do Pará (UFPA), o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e o Museu
portanto, uma decisão-chave
Paraense Emílio Goeldi na Amazônia Legal, e uma série de outros centros de referência espalhados pelos demais países amazônicos. Enquanto baluartes do conhecimento científico disponível sobre o bioma, essas e outras instituições de ciência, tecnologia e inovação presentes na região são fundantes para qualquer projeto de desenvolvimento da bioeconomia da Amazônia. A notícia desagradável é que as instituições amazônicas não têm recursos suficientes para desempenhar suas atividades. Tomemos os investimentos disponibilizados para projetos de pesquisa sobre biodiversidade como exemplo. Estudos mostram que elas recebem apenas cerca de 10% do total concedido pelo orçamento federal, que somente 12% dos pesquisadores que trabalham em pós-graduação em biodiversidade no país estão na Amazônia e que 90% das bolsas da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) destinadas à região concentram-se em somente duas cidades, Belém e Manaus.26
Assim como no caso do desmatamento, há, naturalmente, quem advogue que cabe ao Estado realizar investimentos nas instituições de ensino e pesquisa da Amazônia. Contudo, considerando o desafio de apoiar de modo contínuo o adensamento científico local, com investimentos em suas universidades e institutos de pesquisas e tecnológicos, 27 fica evidente a importância de outras fontes de investimento para fazer frente aos desafios existentes. Do contrário, arcaremos todos com os custos dessas insuficiências, sobretudo no que se refere ao desperdício de oportunidades que a região não pode se dar o luxo de permitir, em especial quando se considera a construção de sinergias entre os conhecimentos científicos e os saberes tradicionais das comunidades locais.28
Outro desafio que demanda investimentos de impacto no campo da bioeconomia reside na criação, expansão e institucionalização de programas de educação empreendedora. Ao abranger não somente a disseminação de conteúdos técnicos e o fortalecimento de competências comportamentais, mas também o intercâmbio com outros atores do ecossistema e o acesso a capital semente, esses programas têm sido fundamentais para qualificar jovens empreendedores e dar luz a novos negócios em muitas cidades da Amazônia. Em especial, por atentarem para um conjunto de dificuldades relacionadas às fases de estudo, prototipação e operação inicial dos empreendimentos da bioeconomia.
De acordo com Raphael Medeiros, diretor do Centro de Empreendedorismo da Amazônia, associação sem fins lucrativos que promove negócios com foco na floresta, “destravar o investimento em iniciativas em fase inicial é fundamental para que, num futuro próximo, tenhamos carteira atrativa para os fundos de investimento maiores e mais exigentes. Por isso os programas de aceleração e de educação empreendedora acabam beneficiando não somente os negócios em si, mas também o investidor inicial, com tíquete médio mais baixo, e os próprios fundos de investimento de grande porte, que demandam mais negócios estruturados para direcionar os recursos”.
Além de investir na expansão dessas iniciativas, também é imprescindível fazer algumas escolhas. Após mapear os programas realizados na Amazônia Legal ao longo dos últimos anos, observamos que poucos deles possuem uma forte conexão e conhecimento da realidade social, econômica, ambiental, cultural e institucional da região. Em alguns casos, há inclusive programas que apenas replicam
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Se o grande público não tiver a oportunidade de ouvir sobre a Amazônia a partir dos próprios amazônidas, as políticas e projetos em prol da sua bioeconomia tenderão a reproduzir práticas neocoloniais ou até a gerar efeitos controversos em termos de desenvolvimento sustentável.
Mesmo que sem consciência ou intenção, muitas vozes exógenas carregam as mesmas lógicas que conduziram a Amazônia ao estágio atual
e/ou importam metodologias utilizadas em outros contextos. Em outros, por sua vez, a preocupação gravita muito mais na obtenção de indicadores quantitativos (volume de inscrições, quantidade de mentores, número de projetos desenvolvidos, etc.) do que em resultados substantivos. Não há problema no fato de a educação empreendedora ter se tornado mais um dos mercados aguçados pela bioeconomia da Amazônia. A questão são os problemas notórios que isso tem apresentado em termos de efetividade dos programas. Afinal, sem um olhar atento para as especificidades da região e sem um interesse genuíno na transformação da realidade local, esses programas raramente atendem as demandas impostas pela bioeconomia. Escolher quem deve executar esses programas se torna, portanto, uma decisão-chave.
Até o momento, as experiências mais bem-sucedidas desenvolvidas na região têm sido lideradas por organizações locais. Por meio de parcerias e de recursos provenientes da filantropia, programas como o Amazônia UP e o Floresta 360o têm conseguido impulsionar o empreendedorismo sustentável entre jovens em dezenas de municípios da Amazônia. Iniciativas como essas precisam ser expandidas e institucionalizadas, mas como requerem investimentos que muitas vezes não rendem cases nem têm resultados imediatos, uma postura colaborativa e flexível dos investidores é necessária.
A bússola por trás desses e de outros caminhos
A jornada trilhada a partir de debates, artigos, relatórios, entrevistas e de tantos outros momentos de convívio com empreendedores e investidores engajados com a bioeconomia na Amazônia permite apontar que os inves-
timentos feitos nessa seara devem seguir novos caminhos. Para alcançar um aumento quantitativo e qualitativo dos recursos aportados nos negócios da floresta, é preciso não somente conhecer a fundo as estratégias adotadas por organizações que conseguiram aportar e captar recursos de modo inovador, como também observar criticamente os valores, práticas e mecanismos institucionalizados que, em muitos casos, ainda balizam as relações entre investidores, intermediários e empreendedores.
Por meio deste artigo, demonstramos como alguns desses caminhos têm sido trilhados, evidenciando o potencial deles na superação de desafios característicos da bioeconomia da Amazônia. Se, por um lado, esses caminhos contemplam apenas uma pequena parcela de todas as modalidades de investimento – possíveis ou potenciais – para o avanço da bioeconomia, por outro, eles conseguem trazer à tona um conjunto de experiências inspiradoras e novas oportunidades de ação. Como em um mapa, eles designam rotas alternativas para a solução de problemas que persistem nas formas convencionais de investimento. Ainda que sejam experiências recentes, com resultados a serem monitorados, acreditamos no potencial de cada uma delas.
De todo modo, não nos parece adequado tomar esses caminhos como fórmulas de imediata replicação. Primeiro, porque as diferentes Amazônias nos ensinam, diariamente, o quão particular é cada face desse bioma. Segundo, por sabermos que os negócios, variando em escopo, porte, grau de maturidade e segmento, também demandam abordagens contextualizadas de ação. Se há algo que deve ser retido como condição sine qua non após toda a nossa jornada é que existe uma bússola tão potente quanto desprezada nessa agenda: o protagonismo dos amazônidas na definição dos rumos
e modalidades de investimentos feitos na bioeconomia da Amazônia.
Por mais que a importância global da Amazônia faça com que todos sejamos amazônidas (como defendeu Ignacy Sachs) e que, não raro, seja vital “sair da ilha para ver a ilha” (como nos ensinou José Saramago), urge dar voz e vez àqueles que habitam e trabalham nos territórios amazônicos. Somente com a participação ativa desses atores será possível alcançar uma consciência mais ampla sobre as especificidades da região e, por conseguinte, endereçar investimentos que contribuam para o enfretamento de seus desafios – entre eles, o desenvolvimento de uma bioeconomia sustentável e inclusiva. Em consonância com estudos recentes, 29 apontamos que, sem inclusão, esses debates podem seguir na contramão das demandas, desdobrando-se tanto em análises equivocadas quanto em pautas alheias aos reais problemas da Amazônia.
Um dos desdobramentos mais salientes da ausência desse protagonismo no modo como os investimentos e a própria bioeconomia são concebidos reside na perpetuação de uma visão estereotipada da Amazônia. Ao conceber apenas a existência de uma única Amazônia (aquela presente no imaginário social, a Amazônia floresta), diminui-se o valor de tudo que ocorre na Amazônia, nos grandes centros urbanos da região – justamente onde vive cerca de 76% da população local e onde também se desenvolveram os mercados internos e as trajetórias tecnológicas de muitos recursos da sociobiodiversidade. Isso explica por que alguns projetos pensados para a bioeconomia da região têm dificuldades em perceber o quanto ela já está presente no DNA das cidades amazônicas. Ainda que a história abunde evidências da influência de determinadas culturas na formação desses centros urbanos (como foi o
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caso da economia da borracha em Manaus e Belém), muitas iniciativas teimam em tratar a bioeconomia como a invenção da roda e, não raro, em reivindicar para si os louros por tal “novidade”.
Em suma, se o grande público não tiver a oportunidade de ouvir sobre a Amazônia a partir dos próprios amazônidas, as políticas e projetos em prol da sua bioeconomia tenderão a reproduzir práticas neocoloniais ou até a gerar efeitos bastante controversos em termos de desenvolvimento sustentável. Afinal, mesmo que sem consciência ou intenção, muitas vozes exógenas carregam as mesmas lógicas que conduziram a Amazônia ao estágio atual.
A participação dos amazônidas foi fundamental para a formulação, desenvolvimento e êxito de diferentes formas de investimentos
NOTAS/REFERÊNCIAS
1 Shukla, J., Nobre, C., and Sellers, P. 1990. Amazon deforestation and climate change. Science 247:1322–1325.
de impacto feitos nos negócios da bioeconomia da floresta. Os Fords que passaram pela história da Amazônia já demonstraram o quão importante é garantir centralidade e protagonismo aos amazônidas no desenvolvimento da região. Entretanto, nem esse legado eles parecem ter deixado. Seja entre estrangeiros que nunca pisaram na Amazônia, entre brasileiros que habitam em algum lugar dos outros 49% do país, ou mesmo entre os habitantes da própria região que, por inúmeros motivos, acabam persistindo em olhar mais para fora do que para dentro, ainda há um longo caminho até alcançarmos esse grau generalizado de consciência. Que, antes de pegar o caminho (seja um dos aqui mencionados ou qualquer outro a desbravar), não esqueçamos de nossa tão valiosa bússola.
3 Aragón, L.E. (2018). A dimensão internacional da Amazônia: um aporte para sua interpretação. Revista NERA, 21, n. 42, p.15-33.
4 Clement, C., Denevan, W., Heckenberger, M., Junqueira, A., Neves, E., Teixeira, W., & Woods, W. (2015). The domestication of Amazonia before European conquest. Proc. R. Soc. B282: 20150813.
2 Arraut, J. M., & Satyamurty, P. (2009). Precipitation and water vapor transport in the southern hemisphere with emphasis on the South American region. Journal of Applied Meteorology and Climatology, 48, 1902–1912.
6 Costa, Francisco. A Brief Economic History of Amazon (1720-1970). London: Cambridge Scholars Publishing, 2019.
7 Abramovay, R. (2010). Desenvolvimento sustentável: qual a estratégia para o Brasil? Novos estudos. CEBRAP (87). https://doi.org/10.1590/ S0101-33002010000200006
8 Nobre, C.A. et al. (2023). New Economy for the Brazilian Amazon. São Paulo: WRI Brasil. Report. Available in: www.wribrasil. org.br/ nova-economia-da-amazonia.
9 IPCC, 2023: Summary for Policymakers. In: Climate Change 2023: Synthesis Report. Contribution of Working Groups I, II and III to the Sixth Assessment Report of the Intergovernmental Panel on Climate Change [Core Writing Team, H. Lee and J. Romero (eds.)]. IPCC, Geneva, Switzerland, pp. 1-34, doi: 10.59327/ IPCC/AR6-9789291691647.001.
10 Fernandes, J. A. L., Comini, G. M., Rodrigues, J. (2022). Bioeconomia Inclusiva na Amazônia: como orquestrar a economia da floresta em pé. Stanford Social Innovation Review Brasil, 1(2), 24-31.
11 Lovejoy, T.E., & Nobre, C. (2018). Amazon Tipping Point. Science Advances. 4(2), eaat2340.
12 . McFarland, W., Whitley, S. & Kissinger, G. (2015). Subsidies to key commodities driving forest loss - Implications for private climate finance. Working Paper. 31.
13 Hockerts, K., Hehenberger, L., Schaltegger, S., & Farber, V. (2022). Defining and conceptualizing impact investing: Attractive nuisance or catalyst?. Journal of Business Ethics, 179(4), 937-950.
14 BIOFIN Brasil. (2021). Estado do financiamento para a bioeconomia no Brasil: estado atual e desafios. Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). 63 p.
5 Abramovay, R. et al. (2021). “The New Bioeconomy in the Amazon: Opportunities and Challenges for Healthy, Standing Forests and Flowing Rivers”. In: Science Panel for the Amazon. Amazon Assessment Report. New York/São José dos Campos: Science Panel for the Amazon.
15 Rappaport, D., Portman, M., Lima., Wittkamper, J., Ingersoll, S. (2022). The 2022 Finance Amazonian Report - Want to future-proof the world? Invest in the Amazon’s living system and local custodians. Amazon Investors Coalition. 26 p.
16 Sitawi. (2018). Investimento de impacto na Amazônia: caminhos para o desenvolvimento sustentável. 124 p.
17 ABF. Fact sheet Portuguese in USAID Template, 2020. Disponível em: https:// pcabhub.org/pt-br/midia-1/dados/abf-fundo.pdf/view. Acessado em 1/10/23.
18 Impact Earth. Relatório Anual de Impacto, Amazon Biodiversity Fund (ABF), 2022. Disponível em https://impactearth.co.uk/. Acessado em 20/09/23.
19 Environmental Finance, Fund of the year – multi-asset/other: Althelia Biodiversity Fund Brazil. Impact Awards, 2020. Disponível em https://www. environmental-finance.com/content/awards/impact-awards-2020/fund-of-theyear-multi-asset/other-althelia-biodiversity-fund-brazil.html. Acessado em 1/10/23.
20 Hellman, J. (2020). Feeling Good and Financing Impact: Affective Judgments as a Tool for Social Investing. Historical Social Research, 45(3), 95-116. Disponível em https://doi.org/10.12759/hsr.45.2020.3.95-116. Acessado em 20/10/23.
21 . Michelsen, Kristina. “Revenue Based Financing”. In: The Guide to Financing the Community Supported Farm, University of Vermont, Center for Sustainable Agriculture, 35-37, 2012.
22 Peña-Claros, M., Nobre, C. (2023). A regional approach to save the Amazon. Science. Vol 381, Issue 6664. p. 1261. DOI: 10.1126/science.adk8794.
23 Carvalho W., Mustin, K., Hilário R., Vasconcelos, I., Eilers V., & Fearnside, P. (2019). Deforestation control in the Brazilian Amazon: A conservation struggle being lost as agreements and regulations are subverted and bypassed. Perspect Ecol Conser 17: 122-130.
24 Pokorny, B., & Pacheco, P. (2014). Money from and for forests: A critical reflection on the feasibility of market approaches for the conservation of Amazonian forests. Journal of Rural Studies, 36 441-452.
25 Magnusson, W. (2019). Biodiversity: the chasm between what we know and we need to know. An Acad Bras Cienc 91: e20190079. DOI: 10.1590/0001-3765201920190079.
26 Stegmann, L., Franc, A., & Carvalho, R. et al. (2023). Brazilian public funding for biodiversity research in the Amazon, Perspectives in Ecology and Conservation, https://doi.org/10.1016/j.pecon.2024.01.003.
27 Val, A. L., & Marcovitch, J. (2019). Carta de los Organizadores. Revista De Estudios Brasileños, 6(11), 9–10. https://doi.org/10.14201/reb2019611910.
28 Nobre, C. A. (2019). To save Brazil’s rainforest, boost its science. Nature, 574(7779), 455.
29 Casasnovas, G., & Jones, J. (2022). Who has a seat at the table in impact investing? Addressing inequality by giving voice. Journal of Business Ethics, 179(4), 951-969.
Uma avaliação para além dos números
Ao ultrapassar as explicações causais e dados numéricos dos métodos avaliativos vigentes e dar “vida, rosto e nome” aos indicadores quantitativos, as narrativas de impacto surgem como forma inovadora para captar a essência das experiências humanas e para dimensionar o fenômeno fluido que é a transformação social
POR DAIANE MÜLLING NEUTZLING E JOSÉ MILTON DE SOUSA-FILHO
Acrescente demanda por compreender e comunicar o impacto socioambiental das organizações torna essencial desenvolver avaliações que transcendam as fronteiras numéricas e incorporem perspectivas qualitativas. Ao integrar essas dimensões, as narrativas de impacto emergem como uma abordagem inovadora, contando histórias por trás dos números e proporcionando uma visão mais humana e realista das iniciativas socioambientais.
A economia de impacto que se estabelece no Brasil tem se fortalecido a partir das organizações que dão suporte aos Negócios de Impacto Socioambiental (Nisa) no desenvolvimento de habilidades e competências de gestão combinados à injeção de capital. A necessidade das avaliações de impacto aumenta com a diversificação das formas de financiamento e investimento, uma vez que são os investidores os atores a quem, primordialmente, os resultados da avaliação interessam. Compreender o que esperam de retorno dos seus investimentos é fundamental para traçar uma estratégia de avaliação.
No entanto, a desconexão entre as expectativas dos empreendedores e dos investidores coloca em evidência a necessidade de uma mútua compreensão entre o que é ideal na avaliação de impacto, o que tem sido feito na prática e o que é possível fazer no curto e médio prazos. O espectro da avaliação que vai desde a Teoria da Mudança (TdM), até os métodos randomizados, desenvolvidos sob a lógica do mainstream da avaliação, traz desafios aos empreendedores e àqueles que fazem a interlocução com o campo dos investimentos de impacto.1
Um dos problemas mais usuais relatados é o da comparação entre as medidas de impacto adotadas (métodos, definições e padrões). Para muitos investidores, a saída é adotar medidas comuns em todos os
DO QUE TRATA O ARTIGO
O artigo aborda a importância das narrativas de impacto na avaliação do impacto socioambiental das organizações, propondo uma abordagem que integra métodos quantitativos e qualitativos para uma compreensão mais holística e verdadeira sobre a geração de impacto. Destaca o papel da academia na elaboração dessas narrativas e enfatiza a colaboração entre acadêmicos e profissionais para o desenvolvimento de metodologias que capturem efetivamente o impacto e discute a relevância dos investimentos de impacto e os desafios associados à avaliação em um contexto brasileiro diversificado.
POR QUE ISSO IMPORTA
A relevância do tema reside na necessidade crescente de avaliar e comunicar o impacto socioambiental de forma que transcenda os números e inclua a dimensão humana e histórias reais por trás dos dados. Essa abordagem busca promover uma avaliação de impacto mais holística e representativa, alinhada às expectativas de investidores e à realidade dos negócios de impacto socioambiental, contribuindo para o desenvolvimento de uma economia de impacto mais robusta e eficaz.
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O papel da academia nesse processo é fundamental, já que ela atua como catalisadora na elaboração e refinamento das narrativas de impacto. A pesquisa e a crítica acadêmica podem contribuir de forma significativa para o desenvolvimento de metodologias que capturam a essência do impacto de maneira mais abrangente
seus portfólios de investimento. Ocorre que muitas delas não funcionam bem quando se quer dimensionar o impacto. Nas palavras de Kate Ruff e Sara Olsen, 2 “medidas comuns fazem as perguntas erradas, medem as coisas erradas e ignoram o impacto real”. Medidas padronizadas não conseguem assimilar os diferentes contextos em que as iniciativas socioambientais estão sendo aplicadas. Basta pensar nos muitos “Brasis” que existem no imenso território geográfico desse país, por exemplo, para entender o fundamental papel do contexto.
Os desafios são muitos e estão em parte atrelados à abordagem atual empregada nos processos – quantitativos e exclusivos – de avaliação. Apesar de trazerem certa robustez, tais métodos são complexos e caros, e não resolvem o problema da comparabilidade nemtampouco se encaixam na realidade da grande maioria dos Nisa atuantes. Segundo Ruff e Olsen, “quanto mais confiamos em medidas comuns para resolver o problema da comparação, mais acabamos por comprometer a importância das próprias medidas de impacto social. É por isso que a avaliação, por si só, não pode resolver o problema da comparação”.
O papel da academia nesse processo é fundamental, já que ela atua como catalisadora na elaboração e refinamento das narrativas de impacto. A pesquisa e a crítica acadêmica podem contribuir de forma significativa para o desenvolvimento de metodologias que capturam a essência do impacto de modo mais abrangente. Isso faz da colaboração entre acadêmicos e profissionais do campo dos negócios que geram impacto socioambiental positivo algo essencial para forjar um caminho que valorize dados e histórias e que promova uma visão mais integrada e holística na avaliação de impacto.
Entendemos ser possível agregar metodologias mais qualitativas, que permitam aos empreendedores acessar o impacto gerado
e melhor comunicá-lo aos seus investidores. Neste artigo discutimos as dificuldades enfrentadas ao revisar e inserir novos métodos de avaliação de impacto, propondo uma abordagem inovadora que transcenda a tradicional dicotomia quanti-quali e abarque os três vértices de um triângulo equilátero, simbolizando uma inclusão equitativa dos interesses dos principais stakeholders no processo de avaliação: empreendedores, investidores e beneficiários. Esse caminho busca harmonizar e integrar as perspectivas desses atores fundamentais, promovendo uma avaliação de impacto mais holística e representativa.
Ao defender essa abordagem qualitativa, destacamos como as narrativas de impacto enriquecem o campo dos investimentos sociais, indo além dos indicadores de desempenhochave (KPIs) e incorporando histórias reais de mudança social. Essas histórias são o cerne dos Nisa e o motor de uma economia de impacto emergente globalmente: seu valor vai além das métricas convencionais, refletindo o verdadeiro impacto social alcançado.
Do mainstream a uma lógica qualitativa
Tanto do ponto de vista teórico quanto prático, pode-se afirmar que o processo de avaliação de impacto tem sido o calcanhar de Aquiles para grande parte dos empreendedores sociais, bem como para stakeholders que apoiam tais negócios (investidores, aceleradoras, incubadoras etc.). Na prática comum de avaliação de impacto, a estratégia inicial mais adotada é a
DAIANE MÜLLING NEUTZLING é é professora do Programa de Pós-Graduação em Administração da Universidade de Fortaleza. Líder do Núcleo de pesquisa em Estratégia e Sustentabilidade (Ness). Trabalha com os temas de Ecossistemas de Empreendedorismo Social, Avaliação de impacto e Sustentabilidade em Cadeias de Suprimentos nas áreas da graduação, extensão e pesquisa. É pesquisadora integrante da rede Academia ICE.
elaboração da Teoria da Mudança. O instrumento estabelece uma visão clara do impacto desejado, definindo indicadores de resultado e desempenho, além de mecanismos eficazes para o monitoramento e coleta de dados, e por isso serve como um roteiro detalhado para o planejamento de impacto. Essa perspectiva abrangente que nasce com a TdM conecta as ações implementadas, os objetivos estabelecidos e os resultados esperados, facilitando uma compreensão integrada e estratégica do processo de geração de impacto.
Contudo, quando se trata de avaliar o impacto, etapa após os resultados, há um reconhecimento da precisão dos métodos que permitem a verificação da adicionalidade, ou seja, o isolamento dos fatores resultantes da intervenção social através da análise da diferença entre o que ocorreu com um beneficiário do impacto proposto, com o que teria acontecido com esse mesmo indivíduo caso não fosse beneficiado. Para chegar a esse resultado, os métodos usados envolvem técnicas estatísticas que vão da comparação de resultados dos projetos ou intervenções com dados socioeconômicos locais/regionais/nacionais até os mais específicos, como os ensaios controlados randomizados (RCT – Randomized Controlled Trials).
Se, por um lado, é requerido um método quantitativo robusto e confiável para avaliar o impacto, por outro, são necessários diversos recursos e instrumentos para implementá-los. Em resumo: custa caro! Breno Barlach, um dos executivos da Plano CDE, empresa que presta consultoria de avaliação de impacto para pro-
JOSÉ MILTON DE SOUSA-FILHO é Professor Titular e Vice-Reitor de Pesquisa na Universidade de Fortaleza, onde realiza pesquisas nas áreas de empreendedorismo, inovação e sustentabilidade. Ao longo dos últimos 15 anos tem desenvolvido projetos de empreendedorismo e inovação, inclusive com foco em impacto social, junto a empresas, governos, ONGs, empreendedores e startups. É membro e conselheiro do Programa Academia ICE.
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jetos aplicados principalmente nas populações das classes C, D e E no Brasil, corrobora com essa opinião. Barlach ressalta o desafio do custo da avaliação randomizada e as dificuldades de criar os grupos de beneficiários para participar das amostras. De acordo com ele, “a avaliação mais precisa é a randomização, porém requer planejamento e é caro, o que a torna inviável para muitos(...) além disso, há também o desafio de aleatorizar os beneficiários de forma correta”.
Outras críticas relacionadas aos métodos quantitativos incluem a simplificação excessiva que, combinada à ênfase nos resultados de curto prazo, pode reduzir fenômenos multifacetados a números, estatísticas e recortes temporais. O risco é o de negligenciar nuances importantes e contextos específicos com relação à qualidade de vida e ao empoderamento dos indivíduos, por exemplo. Os resultados das intervenções nem sempre podem ser capturados de imediato. Avaliações muito recentes podem levar a conclusões prematuras sobre a eficácia de uma intervenção social, subestimando seu verdadeiro potencial.
Esses são pontos levantados por Carla Villamar, especialista em mensuração e avaliação de impacto da 60 Decibels, uma spin-off da Acúmen, especializada em realizar avaliações de impacto a iniciativas sociais desenvolvidas na América Latina. Ela é enfática: indicadores não têm alma! Segundo Villamar, o preciosismo dos números pode fazer perder o olhar para outros fatores relevantes. Para medir a experiência é preciso ir além dos números: “mede-se a renda (...) mas e a qualidade de vida?. Muitas vezes a relação entre esses dois elementos não é tão relevante em termos de incremento nominal, mas um pequeno aumento pode ter gerado um considerável impacto na vida das pessoas. Há um problema intersetorial, um problema do ecossistema mesmo, que é buscar medir resultados sociais como se medem resultados ambientais/econômicos”.
Por fim, existem também críticas relacionadas às questões éticas. Ensaios clínicos randomizados e outros métodos experimentais podem suscitar problemas éticos em relação à condução e abordagem utilizadas para a comparação entre grupos diferentes, especialmente se estes pertencerem a populações vulneráveis.
Apesar do seu potencial, percebe-se que a avaliação quantitativa é supervalorizada (parte da robustez e confiança nos resultados está no método, e outra parte, nos números) e está muito longe da realidade da grande maioria dos Nisa. Os dados apresentados pelo Mapeamento de Negócios de Impacto (social+ambiental)4 de 2023 dão pistas sobre o que acontece na prática. Quando se trata de avaliação de impacto, 68% dos negócios explicam o propósito de impacto socioambiental na Missão, Visão e Valores Institucionais e somente 24% o fazem na comunicação institucional. Questionados sobre a definição de indicadores de impacto e o seu monitoramento, 31% afirmaram ter indicadores, porém admitiram que ainda não conseguem medir ou avaliar de maneira formal.
Tais números revelam a dificuldade da prática de avaliação de impacto no universo dos Nisa, apesar da sua relevância. Além disso, nos convidam a refletir sobre como podemos aproximar as expectativas dos investidores às reais evidências de impacto que os Nisa conseguirão entregar no cenário próximo.
É essencial centralizar a discussão em torno dos métodos e tipos de evidências mais eficazes para satisfazer as demandas e expectativas de empreendedores e investidores sociais. Barlach ressalta a importância de explorar alternativas metodológicas, enfatizando que “dependendo da organização e do projeto, outros desenhos são possíveis e até mesmo necessários”, o que sublinha a necessidade de adaptabilidade e inovação na escolha de abordagens para a avaliação de impacto, mas que atendam ao rigor metodológico exigido.
Da perspectiva dos investidores de impacto, esse é um caminho que se mostra possível, conforme afirmam Natália Cipoleta e Juliana Vilhena, do Fundo Vale. “Os fatores mais importantes quando tratamos dos negócios que investimos e como iremos cobrar deles o impacto gerado estão relacionados ao grau de maturidade, tempo e valor Entendemos que os negócios têm um grau de maturidade e isso requer cuidado ao exigir as evidências de impacto (...). Os dois lados precisam ser levados em conta para encontrar o meio termo, ampliar a capacidade de melhoria do processo de coleta dos dados, apoiar a construção do processo da mensuração a partir da maturidade e dos acordos para que não seja uma pressão do outro lado, mas um processo de aprendizagem mútua.”
Uma abordagem mais qualitativa Cada vez mais, os processos de avaliação de impacto precisam ir além das explicações causais e dos recortes estáticos temporais que dão suporte às afirmações sobre eficácia, eficiência, resultados e métricas relevantes a serem usadas pelo mercado. O impacto não deve ser reduzido a uma métrica, ou a um conjunto de métricas em si. Impacto significa mudança, transformação social, e esses fenômenos são fluídos.
A abordagem qualitativa enriquece a análise de impacto social ao complementar os dados quantitativos, introduzindo uma perspectiva dinâmica que esclarece o significado por trás das métricas. A utilização de uma lógica mais qualitativa na avaliação de impacto pode preencher lacunas deixadas pela abordagem quantitativa, especialmente em termos de capturar as questões subjetivas do impacto social como mudanças comportamentais, empoderamento, qualidade de vida, entre outras, capturadas principalmente a partir da percepção dos indivíduos beneficiários do impacto. É justamente
Indicadores não têm alma! Para medir a experiência é preciso ir além dos números: “mede-se a renda [...] mas e a qualidade de vida?
Muitas vezes a relação entre esses dois elementos não é tão relevante em termos de incremento nominal, mas um pequeno aumento pode ter gerado um considerável impacto na vida das pessoas”
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isso o que Barlach defende: “O olhar qualitativo complementa a avaliação, ajuda a explicar os resultados. A pesquisa qualitativa traz inovações para a avaliação, leva a sério sobre como a pessoa foi impactada. Dá razão à percepção do indivíduo sobre o impacto sofrido (...). Uma das coisas essenciais no nosso trabalho é ouvir e também considerar aquilo que a pessoa impactada achaque é importante para ela (...)”.
Para avaliar o impacto de forma qualitativa, destacamos técnicas fundamentais como: i) entrevistas em profundidade que permitem explorar a subjetividade das experiências, percepções e sentimentos dos indivíduos, considerando o contexto em que estão inseridos; ii) observação in loco que possibilita uma imersão no ambiente de intervenção, oferecendo insights sobre dinâmicas sociais e culturais; iii) grupos focais que ajudam a entender percepções coletivas, revelando padrões culturais e relações interpessoais; ou ainda iv) mapeamento de redes sociais que analisa as dinâmicas dos grupos, identificando como as conexões são construídas e compartilhadas e como o capital social é desenvolvido.
Essas técnicas suportam métodos como a etnografia, que imerge na cultura de um grupo, e as histórias de vida, que focam nas experiências e mudanças ao longo do tempo e que são a base das narrativas de impacto que pretendemos explorar logo a seguir. Tais métodos abrem espaço para uma visão holística e profunda do impacto social, especialmente quando se lida com intervenções de longo prazo, permitindo identificar as mudanças tangíveis e, além, as perspectivas de vida que os indivíduos apresentam.
Muitas organizações já fazem pesquisa qualitativa, através da etnografia ou condução de grupos focais para avaliação de impacto. Segundo Barlach, o Plano CDE utiliza o processo de avaliação para captar os insights fundamentais para dar sentido aos resultados
identificados. Métodos qualitativos são usados no planejamento da avaliação, no que Barlach identifica como “a escuta fundamental” para conhecer os indivíduos que participarão da intervenção social. As percepções sobre os seus desejos, suas dores e suas motivações. “Quando definimos os indicadores que serão utilizados na avaliação posterior, precisamos também avaliar a partir dos critérios das pessoas que serão os beneficiários. As dimensões que eles consideram importantes.”
Já na fase final da avaliação, as técnicas qualitativas complementam os dados quantitativos dos projetos. Ainda segundo Barlach: “Para além das perguntas: se conseguiu um emprego, se a renda aumentou; focamos também na autopercepção: se o indivíduo agora sabe montar um currículo, se sente preparado para participar de uma entrevista de emprego, se sente competente ou confiante para tal (no caso de projetos voltados para empregabilidade)”.
A experiência na 60 Decibels também é parecida. Villamar relata que nos questionários de coleta de evidências de impacto não pode faltar uma pergunta central: “Como sua vida mudou?”. Villamar relata ainda que alguns clientes pedem para retirar uma pergunta tão aberta do questionário, porém ela contesta e explica: “Esta pergunta engloba todos os indicadores que estamos coletando (...). Para compreender o impacto real é fundamental a compreensão dos elementos que compõem o contexto da pessoa, sua história de vida, os aspectos culturais que a definem. É a necessidade de dar vida, rosto, nome a tais indicadores (...), existe sim a necessidade de ter dados padronizados (quantitativos), mas não se pode esquecer da necessidade de entender profundamente o contexto da pessoa, sua história de vida, os aspectos culturais que as constituem. O desafio é chegar ao meetpoint”.
Cipoleta e Vilhena também afirmam saber que “a mensuração mais simples é o dado
autorreportado, e aqui há uma preocupação de rigor na coleta dos dados, mas também buscamos outras formas de coletar, como contar com uma terceira parte (empresa contratada). Buscamos desenvolver protocolos com indicadores, e também na coleta dos dados primários, fazemos entrevistas de percepção, feitas através da visita de campo”.
As técnicas e métodos qualitativos são indispensáveis para decifrar os significados por trás das experiências e interações humanas, sejam elas individuais ou coletivas. Como bem ressaltado por Villamar: “É preciso dar vida, rosto e nome aos indicadores”. Na nossa opinião, a avaliação de impacto deveria se fundamentar neste princípio.
Narrativas de impacto: uma nova proposta
O poder da história! Este foi o tema principal do American Evaluation Association (AEA) Meeting no ano de 2023. Este é um dos eventos mais tradicionais em avaliação, que reúne práticos e teóricos do mundo inteiro. O encontro de 2023 se debruçou sobre a relevância das histórias para compreender e comunicar cenários complexos no âmbito da avaliação. Como colocado por Corrie Whitmore, presidente da AEA: “Em cada estágio de uma avaliação, existe espaço para uma história. Elas dimensionam os dados e ajudam na definição de ações tangíveis (...) as histórias podem ser o combustível da avaliação”.
As histórias foram ressaltadas por todos os nossos entrevistados como relevantes para dar sentido aos números e facilitar a compreensão do impacto. Nas palavras de Renata Truzzi, diretora global de aceleração e impacto da NESsT: “A cada dois anos, a equipe vai a campo para entender as transformações que estão ocorrendo a partir das intervenções dos negócios que apoiamos (...). É uma escuta profunda que nós fazemos e, para mim, a melhor
Para avaliar o impacto de forma qualitativa, destacamos técnicas fundamentais como entrevistas em profundidade, observação in loco, grupos focais e mapeamento de redes sociais. Essas técnicas suportam métodos como a etnografia e as histórias de vida, que por sua vez abrem espaço para uma visão holística e profunda do impacto social
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parte de todo o trabalho (...). Essas histórias de impacto dão sentido a tudo o que estamos construindo ao longo desses anos na NESsT”.
Para isso propomos que, no âmbito da economia de impacto, os processos de avaliação integrem, para além dos números, a abordagem qualitativa dos dados, através das narrativas de impacto. As narrativas de impacto apresentam as perspectivas daqueles indivíduos centrais naquilo que é tão buscado pelos Nisa e os seus investidores.
As narrativas são um método utilizado por pesquisadores e profissionais de avaliação ao longo das últimas décadas. As bases teóricas das narrativas se remetem ao método chamado The Most Significant Change (MSC), ou a mudança mais significante, visando colher informações sobre as mudanças essenciais relatadas por indivíduos que foram beneficiados em iniciativas sociais de diferentes naturezas5. Já Kurtz6 propõe o método da Investigação Narrativa Participativa, que combina investigação narrativa com uma abordagem participativa e integra a contação de histórias, a autointerpretação dos contadores de histórias, a análise de dados quantitativos e qualitativos e a avaliação participativa. Kurtz buscou justamente desenvolver uma lógica de métodos mistos, ao combinar a análise de dados (quantitativos) com técnicas narrativas e participativas (qualitativas).
Para melhor compreender como aplicar o método, nos inspiramos na adaptação proposta por Zuchini,7 que o dividiram em cinco fases: planejamento, narração de histórias, catálise, criação de sentido e avaliação participativa. A partir dessas etapas, mesclamos os elementos de Zuchini com outros que consideramos fundamentais, conforme apresentamos no quadro ao lado.
O papel da academia
A academia, como epicentro de conhecimento e inovação, tem um papel pioneiro em muitas áreas. E, ao longo do tempo, tem influenciado o campo da avaliação de impacto de forma relevante. O fato de a lógica quantitativa ser a mais difundida no campo da avaliação de impacto diz respeito a uma influência direta da academia, dos pesquisadores da área e da disseminação do conhecimento gerado por estes. Inclusive nas áreas de administração e economia, que são algumas das disciplinas que mais contribuem e influenciam os temas de
Do planejamento à avaliação participativa: um modelo para desenvolver narrativas
As cinco fases propostas na adaptação de Zuchini conduzem passo a passo à identificação dos efeitos da intervenção social, através de um processo conduzido pelo time responsável pela avaliação e que envolve os beneficiários do impacto almejado e outros stakeholders relevantes (investidores, atores locais ou comunitários e atores públicos e privados envolvidos nas intervenções planejadas). Baseado nessas fases, juntamos os elementos de Zuchini com outros que consideramos fundamentais e os apresentamos a seguir:
Fase 1 | Planejamento: ao aplicar o projeto ou intervenção, compreender o contexto, os indivíduos que fazem parte do contexto, determinar as ações que serão desenvolvidas e já fazer os contatos iniciais dos indivíduos que participarão da avaliação, bem como começar a elaborar os questionários de coleta de dados. O desenho de uma Teoria da Mudança auxilia na definição de uso de diferentes métodos que poderão ser parte da avaliação, complementares à narrativa de impacto.
Fase 2 | Narração das histórias: definição da equipe de campo, coleta das histórias de vida, autointerpretação das histórias pelos contadores, coleta das características dos contadores de histórias (beneficiários) e os dados sobre o objeto de estudo.
Fase 3 | Catálise: nesta fase, há o processo de análise do material coletado. O time examina as histórias e os dados usando técnicas que podem ser tanto quantitativas quanto qualitativas, para descobrir tendências e padrões sobre eventos e experiências das histórias, a autointerpretação dos contadores das histórias e o objeto de estudo, sempre levando em consideração as características dos indivíduos que contam suas histórias. É nesta fase que os insights das histórias de vida são extraídos.
Fase 4 | Sense-making ou criação de sentido: nesta fase se associam as percepções analisadas ao objetivo da avaliação, buscando fazer a relação das tendências e padrões identificados, bem como desenvolvendo os pressupostos para explicar essas relações.
Fase 5 | Avaliação participativa: a equipe de avaliação discute as hipóteses e a TdM com as principais partes interessadas e beneficiários do projeto para, em última análise, identificar o efeito do projeto. Aqui os analistas podem cruzar os dados quantitativos e melhor explicá-los com a personificação das histórias voltadas para os números.
O modelo de desenvolvimento de narrativas aqui apresentado serve como demonstração sobre os aspectos essenciais que devem ser considerados, mas ele não é o único. Há uma vasta literatura no campo da avaliação de políticas públicas e projetos sociais que oferece ricas fontes de conhecimento para serem exploradas pela economia de impacto. Neste sentido, a academia surge como um ator essencial na interlocução do entendimento e aplicação dos métodos e técnicas de pesquisa para o contexto da economia do impacto e os seus atores essenciais.
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À medida que a demanda por uma compreensão mais profunda
do impacto social cresce, as metodologias qualitativas se destacam como essenciais para captar a essência das experiências humanas. A academia, neste processo, assume um papel fundamental, impulsionando inovações e expandindo os horizontes da avaliação de impacto
Nisa, investimentos de impacto e avaliação de impacto, o paradigma dominante utiliza uma lógica quantitativa.
De forma geral, nas ciências sociais, existem duas principais abordagens de coletar e analisar dados: quantitativa e qualitativa. Um fator que concede preferência à lógica quantitativa é a robustez, pois um método robusto traz confiabilidade aos resultados. Contudo, a lógica qualitativa, com seus métodos e técnicas já bastante testados e utilizados nas diversas áreas do conhecimento, também conceder robustez à avaliação de impacto, chegando a resultados igualmente confiáveis.
Assim, a partir das dificuldades práticas dos Nisa em avaliar impacto por uma lógica quantitativa, a academia também pode ajudar na escolha de outros caminhos, que combinarem diferentes abordagens de pesquisa e avaliação de impacto. A academia pode assumir um papel impulsionador da lógica qualitativa na avaliação de impacto, através da adequação e aprimoramento de técnicas qualitativas com foco em melhor avaliar o impacto, bem como no avanço para a criação de técnicas qualitativas inovadoras para esse fim.
A academia pode ajudar a moldar o futuro da avaliação de impacto, através de linhas de atuação, como:
Fomentar pesquisas inovadoras e com rigor: a comunidade acadêmica pode liderar pesquisas que desafiem o status quo, propondo novas metodologias e abordagens para avaliar impacto ou aprimorando as existentes. As pesquisas acadêmicas, por natureza, se desenvolvem na base do rigor e da confiabilidade dos conjuntos de procedimentos usados, independentemente da abordagem: quantitativa ou qualitativa. Aproximar esses parâmetros com a prática da avaliação de impacto é, além de necessária, essencial.
Guiar práticas éticas: usar sua experiência na submissão de projetos de pesquisa ao escrutínio de comitês de ética. A assistência
e a consequente experiência com relação às exigências desses comitês podem auxiliar na orientação de práticas éticas também na avaliação de impacto, assegurando a integridade e a responsabilidade na coleta, análise e interpretação de dados.
Harmonizar conhecimento teórico e prático: a academia pode atuar como ponte entre teoria e prática, dedicando conhecimento aplicado teórico na área da avaliação de impacto em capacitações de profissionais para a avaliação. Além disso, pode usar o campo prático como uma fonte rica de novos insights para propor melhorias nas abordagens de avaliação existentes, ou ainda propor novas, como mencionado no primeiro item.
Em busca da essência
À medida que a demanda por uma compreensão mais profunda do impacto social cresce, as metodologias qualitativas se destacam como essenciais para captar a essência das experiências humanas. A academia, neste processo, assume um papel fundamental, impulsionando inovações e expandindo os horizontes da avaliação de impacto. Esta evolução abre caminho para uma apreciação mais genuína do impacto social, influenciando políticas e práticas de maneira mais eficaz. A transição para abordagens qualitativas, reforçada pela valorização das narrativas de impacto, evidencia os efeitos reais das intervenções sociais. Essas narrativas não só sensibilizam stakeholders, mas também fornecem uma visão integral das transformações sociais, destacando o valor transformador dos investimentos de impacto.
As narrativas de impacto têm a capacidade de dar aos investidores de impacto a real dimensão sobre o poder transformador de seus investimentos, oferecendo novos elementos que poderão influenciar na comparabilidade para investimentos sociais. Como ressalta Barlach: “É inevitável não ter o número, mas
é a história que marca a sua memória. É onde se compreende o impacto, onde se reconhece a importância do projeto (...). É preciso saber falar com o investidor, saber adequar as linguagens ao contexto do beneficiário e do investidor. Como combinar a linguagem? Como adaptar? Talvez as histórias de vida possam fazer essa ponte”.
As narrativas de impacto podem ser a ponte que dá sentido aos números exatos e que interconectam diferentes atores essenciais no desenvolvimento do ecossistema de impacto, cada um com seu papel: empreendedores, investidores, organizações estruturantes, entre outros. A sinergia entre métodos qualitativos e quantitativos, juntamente com a expertise acadêmica, constrói um entendimento mais completo do impacto, conduzindo a uma avaliação mais ética e eficiente no campo da avaliação de impacto. n
REFERÊNCIAS
1. Reynolds, G et al. (2018). A Playbook for Designing Social Impact Measurement. Stanford Social Innovation Review
2. Ruff, K., & Olsen, S. (2016). The next frontier in social impact measurement isn’t measurement at all. Stanford Social Innovation Review.
3. Lazzarini, S. G., Pongeluppe, L. S., Yoong, P. S. Y., & Ito, N. C. (2015). Guia para a avaliação de impacto socioambiental para utilização em investimento de impacto. TAC (Tecnologias de Administração e Contabilidade), 5(2), 106-118.
4. Pipe.Social (2023). 4º Mapa de Negócios de Impacto Social+ Ambiental. Disponível em:https://mapa2023. pipelabo.com/
5. Davies, R., & Dart, J. (2005). The ‘most significant change’(MSC) technique. A guide to its use
6. Kurtz, C. (2014). Working with Stories in Your Community or Organization: Participatory Narrative Inquiry. New York: Kurtz-Fernhout Publishing. 674 p.
7. Zucchini, E., Carbon, M., Bosch, C., & Felloni, F. (2022). Evaluation through narratives: A practical case of Participatory Narrative Inquiry in women empowerment evaluation in Niger. Evaluation, 28(4), 426-445.
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A colaboração é o jeito de fazer do ICE. A Coalizão pelo Impacto é a iniciativa que representa essa essência, articulando 11 parceiros apoiadores e agentes locais do ecossistema de impacto.
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GENTE QUE QUER DURAR
Conectar pessoas, inspirar ação e reimaginar futuros
Histórias reais de impacto podem influenciar a tomada de decisão em investimentos, parcerias e avaliações, ajudando a construir pontes entre investidores e empreendedores sociais
POR KATIANNY GOMES SANTANA ESTIVAL
Histórias reais sobre impacto são ferramentas poderosas, capazes de revelar muito sobre os desafios de pessoas em situações que exigem mudanças transformadoras. Ao mesmo tempo que tornam o investimento orientado para impacto mais tangível e intencional, elas desempenham um papel crucial na comunicação da missão e dos resultados de organizações e projetos. Além disso, narrativas reais sobre impacto mobilizam recursos, constroem reputação, fomentam parcerias e atraem financiamento de forma decisiva.
Apesar da vasta literatura sobre a força das histórias na transmissão de conhecimento e seu poder transformador desde os tempos mais remotos da nossa evolução, no setor do investimento social muitas organizações não tiram proveito desse potencial e continuam compartilhando apenas casos isolados e perfis em vez de narrativas completas. Com isso, perdem a oportunidade de aproveitar os efeitos cognitivos e emocionais profundos que boas histórias (com começo, meio e fim, conflito e resolução, personagens e cenários) podem provocar, alerta a pesquisadora Annie Neimand, que dirige a área de impacto e avaliação da Third Sector, nos Estados Unidos. Ela ressalta que histórias reais de impacto, compreendidas como narrativas autênticas que descrevem as mudanças geradas por projetos ou iniciativas, especialmente no contexto socioambiental, são fundamentais para demonstrar como as intervenções afetam a vida das pessoas e das comunidades e/ou o meio ambiente.
Cultivar uma cultura de storytelling (como é conhecida a prática e técnica de apresentar boas histórias) nas organizações pode significar a diferença entre uma organização com portfólio diversificado e dinâmico de histórias que compartilham seu impacto e outra cuja narra-
DO QUE TRATA O ARTIGO
O artigo aborda o uso de histórias reais sobre impacto social e ambiental como uma ferramenta para conectar investidores de impacto e empreendedores sociais, destacando a importância dessas narrativas na comunicação da missão, dos resultados das organizações e de projetos, e na mobilização de apoio e financiamento. Além disso, enfatiza a autenticidade das histórias e a cultura de storytelling nas organizações como elementos cruciais para a transparência e a sensibilização dos investidores e doadores.
POR QUE ISSO IMPORTA
As histórias reais têm o poder de humanizar e contextualizar os impactos, complementando os indicadores quantitativos e permitindo uma avaliação qualitativa mais rica. Esta abordagem promove uma conexão emocional com investidores, beneficiários e comunidades, mas ao mesmo tempo enfrenta desafios como a garantia de autenticidade, a necessidade de recursos para coleta e apresentação e a preocupação com a exposição ética dos beneficiários. A correlação entre as práticas dos empreendedores e as expectativas dos investidores revela oportunidades e desafios para otimizar o “match” entre esses atores, equilibrando dados quantitativos com a emoção das histórias de impacto.
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Embora sigam critérios específicos,
cada investidor reconhece a importância de combinar dados quantitativos com narrativas autênticas para capturar o verdadeiro impacto de seus investimentos
de organizações que aportam e captam investimentos de impacto para projetos e negócios socioambientais, identificamos práticas no uso das histórias sobre impacto por algumas das maiores pessoas jurídicas no contexto do investimento de impacto brasileiro. São elas: Instituto Phi, Fundação Cargill, Instituto Assaí, Instituto Sabin e Start VC (saiba mais sobre as organizações no quadro da página seguinte).
tiva é única e estagnada. Segundo Julie Dixon, hoje diretora-executiva da Gravity Research, em Washington, Estados Unidos, a construção dessa cultura envolve mudança de mentalidade e investimento em capacitação para que todos na organização tenham histórias impactantes à sua disposição. No contexto de histórias reais sobre impacto, a ênfase deve cair em contar histórias autênticas que ilustram o impacto econômico, social e ambiental de uma maneira que atinja o público dos doadores, financiadores e apoiadores.
Discussões mais transparentes e propositivas são imprescindíveis para construir e utilizar tais narrativas de forma que as expectativas dos empreendedores sociais e dos investidores e/ou doadores sejam compreendidas e atendidas, de modo a evitar a reprodução de situações que colocam os atores, principalmente os empreendedores sociais e os públicos dos projetos e/ou negócios de impacto, como sujeitos passivos ou subordinados nos processos envolvendo desde a concepção até a execução e avaliação de impacto dos projetos.
Tal cenário traz à tona a necessidade de compreender quais são os critérios essenciais nos processos decisórios para investimentos com lentes de impacto, assim como a de analisar e equilibrar a racionalidade dos indicadores de resultados quantitativos e humanizar, tanto quanto possível, o uso de informações qualitativas.
E se estimular o diálogo entre razão e emoção nas decisões de investimento é fundamental, o mesmo vale para fomentar o espaço para questionamentos. Será que a lógica das projeções econômicas e de indicadores quantitativos deve predominar, ou as narrativas reais, com sua carga emocional e capacidade de ilustrar transformações concretas, merecem maior influência? Além de sua função no marketing, como podem as histórias reais de impacto contribuir de maneira genuína
para a divulgação de iniciativas em filantropia, responsabilidade social corporativa e ESG no universo dos empreendedores sociais e públicos dos projetos?
Este artigo convida os leitores a refletir sobre a importância das narrativas no processo de tomada de decisão em investimentos, parcerias e avaliações de impacto e sugere práticas para estreitar as relações entre os diversos atores do setor com base na confiança e transparência.
O olhar dos investidores
Quando analisamos as narrativas convencionais, vemos que, com frequência, apesar de baseadas em fatos, elas apresentam uma visão limitada, focando em apenas um aspecto da realidade dos públicos envolvidos em projetos e negócios de impacto social. Esse enfoque restrito muitas vezes destaca uma única problemática, desconsiderando a complexidade e a riqueza das experiências das comunidades. Além disso, deixa de explorar o fato de que, quando bem construídas, as histórias podem servir como uma poderosa “carta de apresentação” ou um “pitch” para atrair investidores, doadores e parceiros. Esse aspecto é crucial para demonstrar o valor integral do impacto social, indo além das limitações das abordagens convencionais.
Investidores de diferentes perfis estão cada vez mais atentos à relevância das histórias reais de impacto. A partir de relatórios empresariais, indicadores de transparência das doações e/ou investimentos realizados por pessoas jurídicas no Brasil1 e entrevistas diretas junto a gestores
KATIANNY GOMES SANTANA ESTIVAL é professora da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC), em Ilhéus/ Bahia. Pós-doutora em Administração, desde 2015 participa do Programa Academia ICE - Rede de Professores do Instituto de Inovação em Cidadania Empresarial. Atua há 11 anos como coordenadora do Escritório de
O quadro comparativo mostra que diferentes investidores e doadores utilizam histórias reais de impacto para informar suas decisões de investimento de impacto. E revela uma tendência clara de buscarem uma compreensão mais abrangente e humanizada dos projetos e negócios que apoiam, para além dos tradicionais indicadores quantitativos. É possível ver também a valorização de histórias reais com base no uso da técnica de storytelling como uma ferramenta crucial no processo de decisão e avaliação de investimentos de impacto.
Embora sigam critérios específicos, cada investidor reconhece a importância de combinar dados quantitativos com narrativas autênticas para capturar o verdadeiro impacto de seus investimentos. Essa abordagem tende a enfatizar a humanização do impacto social e ambiental, permitindo uma comunicação mais eficaz e uma conexão mais profunda com as partes interessadas e reforçando a necessidade de estratégias de storytelling integradas nas práticas de investimento de impacto.
Histórias coletivas entre setores importam muito para navegar em tempos turbulentos e promover mudanças sistêmicas. Histórias podem iluminar, unir e tecer uma rede de narrativas capaz de transformar sistemas, mostra Ella Saltmarshe em Using Story to Change Systems. Explorando três qualidades da história –como luz, cola e teia –, Saltmarshe discute de que maneiras as histórias podem ser utilizadas por todos os setores para induzir mudanças. Esse enfoque em contar histórias como ferramenta para mudança sistêmica sugere uma abordagem mais integrada e emocional para tratar de questões complexas e coloca em destaque a capacidade das histórias de conectar pessoas, inspirar ação e reimaginar futuros A partir dessa perspectiva é possível reco -
Projetos e Consultoria (@epec-uesc), na elaboração de projetos, prospecção de parcerias, captação de recursos e execução de ações da incubadora e aceleradora de empreendimentos socioambientais da agricultura familiar, alimentação, pesca e restauração florestal no Território Litoral Sul da Bahia.
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CRITÉRIOS E APLICAÇÕES DE HISTÓRIAS REAIS DE IMPACTO COM AS LENTES DOS INVESTIDORES
Conheça os critérios essenciais adotados por cada organização, a importância atribuída às narrativas autênticas no processo de avaliação e seleção de projetos e/ou negócios e as estratégias de aplicação dessas histórias para comunicação e demonstração de impacto.
INVESTIDOR/DOADOR
Instituto Phi
Fundado em 2014, atua como intermediário entre doadores e projetos sociais no Brasil, promovendo a filantropia inteligente. Com foco na audição dos beneficiários, enfatiza o envolvimento humano, além dos dados e resultados quantitativos, buscando significado e transformação social através da doação
Fundação Cargill
Vinculada à empresa Cargill, apoia projetos de desenvolvimento sustentável, com foco em alimentação e nutrição. Utiliza histórias reais para avaliar e comunicar o impacto de seus projetos, solicitando materiais visuais e depoimentos para relatórios de impacto e comunicação organizacional
CRITÉRIOS DE ANÁLISE
Indicadores quantitativos, envolvimento humano, importância das histórias reais
PERCEPÇÃO SOBRE HISTÓRIAS REAIS DE IMPACTOO
Valoriza histórias reais para entender impactos além dos dados
APLICAÇÃO DAS HISTÓRIAS NO PROCESSO
Uso em avaliação e seleção de projetos, foco no impacto humano e envolvimento dos beneficiários
Documentação de histórias reais, registros fotográficos, vídeos
Importância de acompanhar histórias reais para avaliação e comunicação
Instituto Assaí
Atacadista, apoia o empreendedorismo e pequenos negócios no setor de alimentação. Valoriza as histórias reais no acompanhamento e avaliação de projetos, solicitando depoimentos e registros visuais para evidenciar o impacto do apoio
Instituto Sabin
Com 18 anos de atuação, gerencia o investimento social privado do Grupo Sabin, focando na promoção da saúde, fortalecimento de ecossistemas e filantropia. Histórias reais são cruciais para humanizar problemas sociais, influenciar decisões e comunicar impactos de forma concreta e emocional
Depoimentos, acontecimentos importantes, registros fotográficos
Considera histórias reais essenciais no acompanhamento e avaliação
Relatórios semestrais com depoimentos e materiais visuais para comunicação e avaliação de impacto
Start VC
Especializada em investimentos iniciais em startups inovadoras, busca projetos com impacto social, econômico e ambiental. Valoriza narrativas autênticas como validação do sucesso e impacto das soluções apoiadas, utilizando histórias reais como indicadores de potencial e propósito
Complemento qualitativo aos dados quantitativos, percepção, influência no processo decisório
Narrativas autênticas, testemunhos vivos, critérios objetivos na seleção de projetos
Histórias reais cruciais para humanizar problemas e demonstrar impacto
Solicitação de depoimentos e registros visuais para evidenciar impacto; comunicação em redes sociais.
Histórias reais fundamentais na tomada de decisão e validação de impacto
Uso para avaliação de impacto, seleção de projetos e comunicação com stakeholders
Histórias como indicadores de potencial e propósito; comunicação e estabelecimento de confiança
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nhecer que o uso das histórias reais sobre impacto nas lentes dos investidores de impacto proporciona conhecimento e conexão adicional junto aos projetos e negócios apoiados. Ao lado de indicadores quantitativos, as histórias reais agregam valor e humanizam as avaliações de impacto tanto para processos seletivos quanto para avaliação de resultados dos investimentos.
A forma como investidores de impacto no Brasil utilizam as histórias reais nos processos de análises e decisões de investimentos/ doações demonstra que há espaço para a emoção em meio à racionalidade das decisões estratégicas de investimentos em negócios e projetos de impacto. No entanto, ela revela que há também tensões e desafios nas perspectivas dos empreendedores sociais quando solicitados a utilizar histórias de vida nos processos de seleção, negociação, captação de recursos financeiros e outros tipos de fomento/investimento.
A perspectiva dos empreendedores sociais
As práticas de três organizações da sociedade civil e de cinco negócios de impacto social que atuam no Brasil e as histórias reais sobre impacto em suas estratégias de captação, avaliação de impactos e comunicação nos permitem entender melhor como empreendedores sociais usam essas narrativas nos processos de comunicação, prospecção de parcerias, captação de recursos e investimentos de impacto.
Para identificar e analisar tal uso, é essencial compreender as diferenças relacionadas ao propósito, profissionalização, captação de recursos, capital intelectual e recursos humanos entre cada empreendimento social. Isso evita conclusões e propostas de melhorias generalizadas ou simplistas que desconsiderem a diversidade e pluralidade dos projetos e negócios.
Depois de definidos perfil, missão e abrangência de atuação de cada empreendimento social e das entrevistas com gestores e gestoras, foi possível realizar uma análise comparativa focada nas práticas de storytelling. Para cada organização consideramos captação de recursos, comunicação e marketing, prospecção de parcerias e análise de pontos fortes e de pontos fracos.
Como evidenciado pelas práticas da Aliança Empreendedora, do Instituto Povos do Mar e
de outros exemplos no quadro da página 47, os empreendedores sociais empregam histórias reais não só como uma ferramenta de captação de recursos, mas também como um meio de fortalecer a imagem organizacional, promover conscientização sobre o seu impacto e construir parcerias estratégicas. A humanização e a
conexão emocional geradas por essas histórias reais são pontos fortes reconhecidos tanto por empreendedores quanto por investidores, o que facilita a compreensão dos impactos sociais e ambientais de maneira tangível e personalizada. Entre os desafios associados à construção, à exposição e à autenticidade das histórias, des-
EMPREENDIMENTOS SOCIAIS BRASILEIROS ENTREVISTADOS
ORGANIZAÇÃO
Aliança
Empreendedora
DESCRIÇÃO
Promove através de capacitações, assessorias e mentorias o empreendedorismo para desenvolvimento social e econômico no Brasil, focando em microempreendedores de baixa renda e em grupos vulneráveis. Utiliza histórias reais para captação de recursos, comunicação e formação de parcerias.
Instituto Povos do Mar (Ipom)
Associação Agrícola
Frei Vantuy
Viggas Colab
Com sede no Ceará, atua em projetos socioambientais de fomento ao desenvolvimento comunitário com foco em crianças e jovens e utiliza as histórias reais para captação de recursos, comunicação, marketing e formação de parcerias, enfatizando a conexão emocional e o impacto positivo de seus projetos.
Localizada em Ilhéus, Bahia, destaca o empoderamento feminino e a transformação econômica e social através de histórias reais, promovendo autonomia para mulheres em sua comunidade.
Negócio de impacto no Rio Grande do Sul, enfrenta desafios na aceitação de abordagens qualitativas para avaliação de impacto, apesar das oportunidades que vê no storytelling para enriquecer propostas comerciais.
Bruaca
TC Serviços
República
das Arteiras
Negócio de impacto social, promove a cultura dos povos do Pantanal, através do comércio justo dos produtos do artesanato tradicional, utilizando histórias reais para conectar comunidades ao mundo, enfrentando desafios de comunicação e exposição ética.
Microempresa do sul da Bahia que presta serviços para instituições de impacto social e ambiental, com foco na consultoria para o desenvolvimento da produção rural e sustentável, valorizando o uso de histórias reais para sensibilização e influência, com desafios na comunicação eficaz.
Fashion tech social de Campo Grande, Mato Grosso do Sul, que conecta costureiras a consumidores, utilizando histórias reais para empoderamento e promoção da autonomia feminina, com atenção à exposição sensível das participantes.
Move Social
Organização dedicada à pesquisa e avaliação de iniciativas de impacto, valoriza histórias reais para humanizar projetos e fortalecer conexões entre organizações, investidores e causas apoiadas.
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tacam-se a necessidade de recursos financeiros, humanos e tecnológicos, o desenvolvimento de capacidades para a coleta e apresentação eficaz dessas narrativas e as preocupações compartilhadas entre os empreendedores sociais analisados. As narrativas colocam em evidência a necessidade de abordagens éticas e sensíveis na utilização de histórias reais, além de sublinharem a importância de recursos adequados para assegurar que as narrativas sejam capturadas e comunicadas de maneira profissional, verdadeira e impactante.
O “match” entre investidores e empreendedores
A utilização de histórias reais no contexto dos investimentos de impacto no Brasil revela um
campo potencial para a análise da interação entre empreendedores sociais e investidores. As narrativas autênticas descrevem mudanças significativas geradas por projetos ou negócios, principalmente no cenário socioambiental, e são fundamentais para demonstrar os impactos tangíveis das intervenções na vida das pessoas e das comunidades e no meio ambiente. Essas histórias servem não apenas para mobilizar apoio, parcerias e financiamento, mas também para humanizar e dar personalidade aos impactos alcançados.
Análises de relatórios empresariais e entrevistas realizadas com investidores e empreendedores sociais mostram que investidores e doadores valorizam as histórias de impacto real como meio de compreender melhor as transformações sociais e ambien-
tais promovidas.
Organizações como o Instituto Phi, Fundação Cargill e Instituto Assaí reiteram a importância de documentar e acompanhar as histórias reais em suas estratégias de avaliação de impacto e comunicação. A abordagem qualitativa complementa os indicadores quantitativos tradicionais, o que gera uma visão mais completa sobre o impacto gerado.
Os empreendedores sociais, organizações e negócios de impacto social, como a Aliança Empreendedora e a Bruaca (negócio de impacto social) empregam histórias reais em suas estratégias de captação de recursos, comunicação e avaliação de impacto. Nas lentes dos empreendedores sociais, o uso das histórias reais não só fortalece a imagem dessas organizações, como também promove a consciência sobre seu
USO DAS HISTÓRIAS REAIS SOBRE IMPACTO NO CONTEXTO DOS EMPREENDIMENTOS SOCIAIS
PONTOS FORTES
Disseminação da causa social
Aumento da visibilidade e confiança
Empoderamento feminino e transformação social
CAPTAÇÃO DE RECURSOS
Histórias como ferramentas de sensibilização
Conexão emocional com doadores
Aliança Empreendedora
Instituto Povos do Mar (Ipom)
Associação Agrícola Frei Vantuy
Viggas Colab
Bruaca
TC Serviços
República das Arteiras
COMUNICAÇÃO E MARKETING
Fortalecimento da imagem organizacional
Narrativa envolvente e humanizada
PROSPECÇÃO DE PARCERIAS
Facilita conexões com novos colaboradores
Demonstração de valor e impacto
Atração de parceiros significativos
Enriquecimento de propostas comerciais
Expansão do uso em redes sociais
Histórias reais para marketing
Rede de apoio e identificação
Move Social Fortalecimento de conexões
PONTOS FRACOS
Demanda de recursos para documentação
Desafio de manter a autenticidade
Aceitação de abordagens qualitativas
Comunicação e exposição ética
Comunicação eficaz
Exposição respeitosa das costureiras
Autenticidade e comparação histórica
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ORGANIZAÇÃO
Entre os desafios associados à construção, exposição e a autenticidade das histórias, destacam-se a necessidade de recursos financeiros, humanos e tecnológicos e o desenvolvimento de capacidades para a coleta e apresentação eficaz dessas narrativas
impacto, facilitando a conexão com potenciais colaboradores e financiadores.
O “match” entre investidores e empreendedores sociais no uso de histórias reais sobre impacto revela um alinhamento em vários aspectos. Ambos reconhecem o potencial dessas narrativas de humanizar as iniciativas e de estabelecer uma conexão emocional com investidores, beneficiários e comunidades. As histórias reais também oferecem um meio para contextualizar os resultados alcançados, complementando os dados quantitativos e permitindo uma avaliação qualitativa mais rica do impacto.
Apesar das oportunidades e dos impactos positivos no uso das histórias reais sobre impacto para acesso aos investimentos, existem desafios a serem enfrentados e superados. A preocupação com a exposição e potencial estigmatização dos beneficiários das histórias é
um aspecto crítico que requer uma abordagem ética e sensível. Garantir a autenticidade das histórias e evitar manipulações representa um desafio constante para investidores e empreendedores. Além disso, a coleta, a documentação e a apresentação eficazes de histórias reais demandam recursos financeiros, humanos e tecnológicos consideráveis, o que pode ser um obstáculo, especialmente para organizações menores e com recursos limitados.
Olhando para esses achados, é possível categorizar alguns pontos importantes para considerar na análise comparativa: Humanização e conexão emocional: tanto investidores quanto empreendedores reconhecem que as histórias reais humanizam as iniciativas e estabelecem uma conexão emocional com investidores, beneficiários e comunidades. Exemplos incluem o Instituto Phi e a República das Arteiras, que usam essas narrativas para
PONTOS FORTES E FRACOS NO USO DE HISTÓRIAS REAIS SOBRE IMPACTO
Humanização
Contextualização
Avaliação qualitativa
Riscos de exposição
Autenticidade
Recursos e Capacidades
Estabelecem conexão emocional
Aprofundam resultados quantitativos
Complementam análises quantitativas
Preocupação com a ética
Desafio de evitar manipulações
Necessidade de recursos para coleta
ilustrar as experiências vividas pelas pessoas beneficiadas.
Contextualização dos resultados: histórias reais proporcionam um entendimento profundo dos impactos, complementando dados quantitativos. A Move Social, por exemplo, utiliza essas histórias para aprofundar os resultados das avaliações de impacto.
Avaliação qualitativa de impacto: empreendedores como a TC Serviços e a Bruaca (negócio de impacto social) usam histórias reais para capturar impactos qualitativos e transformações sociais, que muitas vezes não são mensuráveis apenas por indicadores quantitativos.
Pontos fracos:
Riscos de exposição e estigmatização: há uma preocupação em não expor ou vulnerabilizar as pessoas cujas histórias são compartilhadas. Empreendedores como Ivani Marques da Costa Grance, da República das Arteiras, enfatizam a importância de abordar essas histórias com ética e sensibilidade.
Desafios de autenticidade e manipulação: garantir a autenticidade e evitar exageros ou manipulações é um desafio crítico. Organizações como a Move Social destacam a necessidade de transparência e ética na coleta e utilização dessas histórias.
Recursos e capacidades: a coleta e apresentação efetiva de histórias reais exigem recursos financeiros, humanos e tecnológicos significativos,
Fortalecem a conexão com a causa
Ilustram transformações sociais
Capturam impactos não mensuráveis
Evitam estigmatizar beneficiários
Garantem veracidade das narrativas
Desafios operacionais e financeiros
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PRIVADOS EMPREENDEDORES
ASPECTO INVESTIDORES SOCIAIS
SOCIAIS
como ressaltado por Tatiane Botelho da Cruz, da TC Serviços.
Mais diversidade e mais impacto
O uso de histórias reais sobre impacto por investidores de impacto e empreendedores sociais representa um cenário promissor para a realização de investimentos de impacto com maior diversidade, mais humanizados e conectados com as realidades vivenciadas pelas comunidades beneficiadas nas diversas regiões do Brasil.
Sem uma abordagem que equilibre a emoção e a razão, incorporando tanto os dados quantitativos quanto as narrativas qualitativas de maneira ética, confiável e transparente, não é possível maximizar esse potencial.
Embora histórias reais ofereçam uma poderosa ferramenta para ilustrar o impacto e mobilizar recursos, elas exigem cuidado na coleta, na autenticidade e na apresentação para garantir que representem verdadeiramente as transformações sociais e ambientais promovidas.
As recomendações práticas a seguir podem ajudar investidores de impacto e empreendedores sociais a buscar o equilíbrio entre dados quantitativos e informações qualitativas ao usarem histórias reais sobre impacto e storytelling.
Para empreendedores sociais:
• Desenvolva capacidade de storytelling: invista em treinamentos e workshops de storytelling para a equipe, focando em como contar histórias que capturam tanto o impacto quantitativo quanto as mudanças qualitativas na vida das pessoas.
• Documente histórias de impacto autênticas: registre continuamente histórias reais de impacto, utilizando diferentes mídias (texto, vídeo, áudio) para capturar a essência das transformações vivenciadas pelos beneficiários de seus projetos.
• Integre dados e narrativas: na comunicação de impacto, combine estatísticas e dados com histórias reais que ilustram esses números, criando uma narrativa mais rica e convincente.
• Seja transparente e autêntico: garanta que as histórias compartilhadas sejam legítimas e representem fielmente os resultados alcançados, evitando superestimar ou simplificar demais o impacto.
Histórias coletivas entre setores importam muito para navegar em tempos turbulentos e promover mudanças sistêmicas. Histórias podem iluminar, unir e tecer uma rede de narrativas capaz de transformar sistemas
Para investidores de impacto:
• Valorize o poder das histórias: além de analisar relatórios e dados quantitativos, dedique tempo para ouvir e compreender as histórias reais de impacto apresentadas pelos empreendedores, reconhecendo-as como parte importante do processo de seleção e avaliação de projetos e negócios.
• Promova uma cultura de aprendizado: encoraje uma cultura de aprendizado e adaptação, em que histórias reais servem como feedback para melhorar práticas de investimento e apoio a projetos.
• Use critérios de avaliação diversificados: incorpore critérios desde a seleção de projetos e/ou negócios até a avaliação de impacto, que valorizem tanto dados quantitativos quanto qualitativos na avaliação de projetos, reconhecendo a importância de ambos para uma avaliação e compreensão completa do impacto.
• Faça parcerias estratégicas para storytelling: trabalhe em parceria com empreendedores sociais para construir, desenvolver e disseminar histórias de impacto, utilizando plataformas e eventos para ampliar o alcance dessas narrativas.
Para ambos:
• Faça workshops e treinamentos conjuntos: organize sessões conjuntas de capacitação em storytelling e interpretação de dados, visando fortalecer a comunicação e compreensão mútua.
• Desenvolva plataformas compartilhadas: crie plataformas digitais em que empreendedores e investidores possam compartilhar e acessar histórias de impacto e dados de desempenho, promovendo transparência e colaboração.
• Promova encontros de storytelling: realize eventos regulares nos quais empreendedores possam apresentar suas histórias de impacto
diretamente aos investidores, facilitando um diálogo direto e construtivo.
• Foque na sustentabilidade do impacto em curto, médio e longo prazos: alinhe as expectativas em torno da sustentabilidade e escalabilidade do impacto, utilizando histórias reais para demonstrar potenciais de crescimento e replicabilidade.
Por mais desafiadores que esses cenários possam parecer, pensar nas histórias como luz, cola e teia, como sugere Saltmarshe, pode ser uma inspiração. Afinal, histórias ajudam a iluminar o passado, o presente e o futuro, clareando assim os caminhos da mudança; histórias permitem que as pessoas se conectem através das diferenças e gerem narrativas que unem grupos, organizações e movimentos; e, por fim, histórias podem nos ajudar a reescrever a teia de narrativas em que vivemos, mudando as narrativas pessoais que temos sobre nossa vida, as narrativas culturais que dão forma às questões que defendemos e as narrativas míticas que influenciam nossa visão de mundo. n
REFERÊNCIAS
Dixon, J. Building a Storytelling Culture. Stanford Social Innovation Review. [S.l.], 2014. Disponível em: https:// ssir.org/articles/entry/building_a_storytelling_culture. Acesso em 3 março de 2024.
Neimand, A. (2023). Como contar histórias reais sobre impacto. Stanford Social Innovation Review Brasil. Disponível em: https://ssir.com.br/advocacy-2/como-contar-historias-reais-sobre-impacto. Acesso em 4 de março de 2024.
Saltmarshe, E. Using Story to Change Systems. Stanford Social Innovation Review. Disponível em: https://ssir. org/articles/entry/using_story_to_change_systems. Acesso em 4 de março de 2024.
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GENTE QUE QUER DURAR
A busca pela equidade
Combater o viés inconsciente de gênero no acesso ao capital é fundamental para promover a igualdade de oportunidades para mulheres empreendedoras
POR MAIRA PETRINI E ANA CLARA SOUZA
As crenças de que somos excessivamente sensíveis, frágeis, inaptas para negócios, propensas a gastos excessivos e deficientes em tomar decisões estratégicas são estereótipos persistentes que moldam a percepção e o tratamento das mulheres na sociedade. Essas noções preconcebidas questionam a competência das mulheres para ocupar posições como engenheiras, investidoras, presidentes de multinacionais, gerentes financeiras, motoristas de caminhão, mecânicas de automóveis, pilotos de avião ou cirurgiãs cardíacas. Tais estereótipos não só coexistem com outras percepções equivocadas como também influenciam profundamente os papéis e posições historicamente designados às mulheres. A construção social do papel feminino tem sido fator determinante na perpetuação da disparidade entre a presença de homens e mulheres em diversos campos profissionais, o que mantém a representação feminina em espaços de poder significativamente mais baixa.
Números divulgados em 20231 confirmam esse cenário. Apenas um em cada quatro líderes de alto escalão é mulher. Enquanto cem homens são promovidos do nível inicial a gerente, 87 mulheres têm a mesma sorte. Como resultado desse “degrau quebrado”, elas ficam para trás e não conseguem alcançá-los. Devido à disparidade de gênero nas primeiras promoções, os homens acabam por ocupar 60% dos cargos de gestão em uma empresa padrão, ante 40% de mulheres. Dado que o número de homens é significativamente maior, há menos mulheres para promover a quadros superiores e os níveis subsequentes têm menor presença feminina.
Observado com evidente facilidade no cotidiano, e dadas as disfuncionalidades e disparidades que causa, o problema é também
DO QUE TRATA O ARTIGO
O texto aborda os vieses de gênero presentes no mercado de trabalho e na tomada de decisões, destacando estereótipos arraigados sobre as capacidades das mulheres e os vieses cognitivos que reforçam essas disparidades. Desde a dificuldade de ascensão profissional devido à maternidade, a falta de representatividade em cargos de liderança até o acesso a capital restrito para mulheres empreendedoras, as mulheres enfrentam obstáculos que perpetuam a desigualdade. Contribuições acadêmicas destacam a necessidade de reconhecer e desafiar as normas de gênero que moldam os ambientes de trabalho e as práticas de investimento. A discussão se estende para a importância de reconhecer e confrontar esses vieses, tanto no âmbito individual quanto institucional.
POR QUE ISSO IMPORTA
Combater o viés inconsciente de gênero no acesso ao capital é fundamental para promover a igualdade de oportunidades para mulheres empreendedoras. Os fundos de investimento de mulheres para mulheres desempenham um papel crucial nesse esforço, promovendo a diversidade, reconhecendo o potencial feminino e aumentando a conscientização sobre questões de gênero nos negócios. Novas estratégias são essenciais para mitigar preconceitos sutis e garantir decisões baseadas em critérios equitativos. Estabelecer políticas transparentes para a seleção de empreendedores, baseadas no mérito e na qualidade do negócio, também é fundamental para garantir uma abordagem justa no acesso ao capital.
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Ninguém está livre de pensamentos e ações enviesados
No entanto, para que as mudanças ocorram em prol de uma sociedade mais justa e igualitária, é necessário que cada vez mais pessoas aceitem o convite para fazer diferente
objeto de pesquisa. Contribuições acadêmicas destacam a necessidade de reconhecer e desafiar as normas de gênero que moldam os ambientes de trabalho. E como lembram Karen Dale e Gibson Burrel,2 homens cis são historicamente associados a comportamentos racionais, sóbrios, firmes, seguros e propositivos, ao passo que mulheres tendem a ser vistas sob aspectos contrários, como se fosse a “natureza feminina”.
A definição de práticas laborais e até mesmo os discursos para a ocupação de postos não são definidos necessariamente pelo tipo de trabalho exercido, mas alicerçados sobre questões de gênero, ressaltam Charlotte Gascoigne, Emma Parry e David Buchanan.3 Os pesquisadores observam que, a priori, um trabalhador é considerado produtivo quando pode atuar em longas jornadas de trabalho sem que seja acionado por outras demandas da vida privada, como cuidar da casa e de filhos. Dessa forma, está preestabelecido um perfil de quem apresenta mais condições de assumir um posto, o que resguarda a desigualdade na estrutura dessas definições. Tem-se, assim, o reforço de uma configuração de ambientes e postos de trabalho predefinidos por existências masculinas privilegiadas em corpos e papéis sociais. 4
O conceito de “organizações genderificadas” ( gendered organizations) foi desenvolvido por Joan Acker para compreender de que maneira o gênero molda as estruturas, práticas e dinâmicas organizacionais. O seu trabalho explora como os espaços organizacionais contribuem para a reprodução das desigualdades de gênero. Acker cunhou o termo referindo-se a ele como “a vantagem e desvantagem, exploração e controle, ação e emoção, significado e identidade de homens e mulheres” dentro desses espaços. As reflexões de Acker têm sido utilizadas para analisar as razões pelas quais as mulheres tentam adaptar-se a um modelo de local de trabalho que foi codificado em dispo-
sições e regras apoiadas pela suposição de que o trabalho era separado do resto da vida e que tinha prioridade sobre o trabalhador. Para a autora, além de atributo individual, o gênero é um aspecto fundamental das estruturas sociais – um elemento estruturante das relações – e está incorporado em práticas organizacionais como um princípio organizador essencial que molda como o trabalho é estruturado e valorizado. Esse é um ponto-chave para compreender o viés inconsciente de gênero. Viés diz respeito à tendência para uma distorção de julgamento, de caráter irracional, que poderá incorrer em um julgamento favorável ou desfavorável para alguém, um grupo ou situação, aponta Acker. O viés opera no âmbito do inconsciente. Ninguém está livre de pensamentos e ações enviesados, já que os comportamentos humanos também são fruto dos processos de socialização. Graças às transformações geracionais, o que num dado momento da história pareceu o mais correto e inquestionável mostra-se passível de mudança. No entanto, para que as mudanças ocorram em prol de uma sociedade mais justa e igualitária, é necessário que cada vez mais pessoas aceitem o convite para fazer diferente.
O que condiciona as escolhas, afinal?
Como condicionantes de pensamento e comportamento, os vieses se colocam na estrutura das relações sociais, o que nos possibilita considerar seu reflexo em todos os espaços. Os vieses de gênero estão presentes no mercado de trabalho em diversas dimensões, das oportunidades de emprego, promoção, à destinação
MAIRA PETRINI é professora adjunta na Escola de Negócios da PUC-RS e professora visitante na HEC Montreal – Canadá (2017). Doutora em administração pela FGV- EAESP, é líder do modo de Impacto e do Farol Hub Social do Tecnopuc (Parque Cientifico e Tecnológico da PUCRS).
de investimentos, por exemplo. Isso torna ainda mais evidente a relevância de pensar sobre como os fundos de investimento em negócios podem ser mais inovadores ao considerar que vieses de gênero condicionam a tomada de decisões internas. Um relatório da International Finance Corporation5 aponta que apenas 15% das equipes de investimento são equilibradas em termos de gênero, enquanto quase 70% são exclusivamente compostas de homens. Na América Latina, as gestoras de venture capital e private equity que têm uma mulher na liderança não ultrapassam 8%. Assim, a maioria das decisões relacionadas a investimentos e alocação de capital é tomada por equipes predominantemente masculinas.
Em uma pesquisa6 que analisou a carreira de mulheres em organizações do setor financeiro no Brasil foi identificada uma série de desafios. A lista inclui a dificuldade de credibilidade, como necessidade de trabalhar arduamente para a aprovação de colegas homens; autocobrança, sentimento de inferioridade e consequente dedicação intensa à carreira para superação; conciliação de papéis que envolvem o dilema vida versus carreira; penalidade pela maternidade, em que se discorre sobre adiar (ou até evitar) a gravidez em prol da carreira; e comparação com homens, referente a atitudes e papéis “esperados” dentro da divisão sexual do trabalho. Esses resultados tornam evidente que o setor financeiro também se caracteriza pela genderificação. Em uma análise sobre investimentos de impacto no Brasil,7 47% dos investidores afirmam ter políticas de equidade de gênero e raça nos processos de contratação. Entretanto, 58% não têm política de equidade de gênero e raça ao escolherem as empresas
ANA CLARA SOUZA tem pós-doutorado pela Escola de Negócios da PUC-RS (2019-2022) e pela HEC Montréal –Canadá (2024). É doutora em administração pela UFRGS. Foi professora visitante no IFRS, onde também coordenou a Incubadora Social e Tecnológica de Canoas (SocialTec).
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a serem investidas. Em um espaço ocupado predominantemente por tomadores de decisão homens brancos e heterossexuais, há de se questionar quais vieses estão implicados em suas decisões e que condicionam escolhas.
O viés inconsciente
Com o propósito de aprofundar a discussão e trazer uma abordagem científica relevante para sustentar o argumento aqui tecido, é essencial destacar que, em Judgment under Uncertainty: Heuristics and Biases, 8 Amos Tversky e Daniel Kahneman (notável intelectual, falecido em 2024) exploram de que forma atalhos mentais para julgamentos de probabilidade, chamados heurística, facilitam a tomada de decisões em contextos de incerteza. Embora em geral úteis, esses atalhos ocasionalmente levam a erros graves: ao simplificar decisões complexas, podem também induzir a equívocos sistemáticos, ou vieses cognitivos. Enraizados no subconsciente por meio da socialização, tais vieses condicionam pensamentos e atitudes e afetam a tomada de decisão tanto na vida pessoal quanto na profissional. Ou seja, os vieses cognitivos são padrões sistemáticos de desvios do raciocínio lógico que influenciam nossas decisões e julgamentos de maneira muitas vezes não percebida.
Os vieses derivam de processos diversos, desde atalhos no processamento de informação até influência social. Os principais atalhos são a heurística da ancoragem, a heurística da disponibilidade e a heurística da representatividade. Enquanto a primeira descreve a tendência das pessoas em manter seus julgamentos iniciais, até mesmo quando novas informações são apresentadas, a heurística da disponibilidade indica que as pessoas tendem a fazer julgamentos com base na facilidade com que exemplos ou informações vêm à mente.
Já a heurística da representatividade envolve julgar a probabilidade de algo com base na similaridade com um estereótipo conhecido. Esses atalhos mentais podem levar a diversos vieses cognitivos.
Quando as pessoas tendem a ser influenciadas por informações apresentadas antes da tomada de decisão, falamos de viés de ancoragem. O indivíduo tem propensão a depender excessivamente da primeira informação recebida, chamada de “âncora”, o que pode distorcer a avaliação de informações subsequentes. Por exemplo, numa negociação salarial, um recrutador pode oferecer um salário inicial inferior a uma candidata, influenciado por padrões de gênero que sugerem que mulheres aceitam ofertas menores. Esse valor inicial estabelece uma “âncora” que prejudica a candidata na busca por uma compensação justa.
O viés da disponibilidade refere-se à tendência de fazer julgamentos com base em informações que podem ser facilmente recuperadas da memória, o que as faz superestimar a probabilidade de eventos mais facilmente recordados. Num contexto de recrutamento, esse viés pode influenciar a percepção de competência e favorecer candidatos retratados com mais frequência em determinadas profissões. Por exemplo, para posições em tecnologia, às quais homens são frequentemente associados, os entrevistadores podem tender a perceber os candidatos masculinos como mais competentes, o que dificulta oportunidades para mulheres, até mesmo quando suas habilidades são equivalentes.
O viés de confirmação ocorre quando as pessoas tendem a buscar, interpretar e lembrar informações que confirmam suas crenças preexistentes. Em processos seletivos para cargos de liderança, por exemplo, se os entrevistadores têm preconceitos sobre características de
liderança associadas a estereótipos de gênero, eles podem ser influenciados por essas crenças e afetar suas avaliações sobre competências. Da mesma forma, em avaliações de desempenho, gestores valorizam ou desvalorizam comportamentos com base em estereótipos de gênero, como associar emoções femininas a fraqueza, o que resulta numa avaliação injusta do desempenho de mulheres.
O viés de afinidade é uma tendência comum de preferir pessoas com as quais há identificação em termos de ideologia, atitudes, aparência, religião, entre outros. No contexto empresarial, isso muitas vezes leva gestores à escolha de colaboradores com base na identificação pessoal, o que prejudica avaliações objetivas de desempenho para promoções ou benefícios.
O viés do estereótipo é um prejulgamento de pessoas com base em grupos distintos, não em atributos específicos, como no viés de afinidade. Por exemplo, as mulheres frequentemente enfrentam estereótipos que questionam suas competências e habilidades com base no gênero. Os erros de uma mulher podem ser atribuídos à suposta falta de competência, ao passo que os erros de um homem podem ser explicados de forma mais benevolente. Esses julgamentos refletem estereótipos historicamente enraizados que limitaram as oportunidades das mulheres. Critérios de seleção e promoção muitas vezes carregam viés inconsciente de gênero.
Quando um julgamento é baseado nos aspectos físicos de uma pessoa, em que padrões de beleza historicamente repetidos muitas vezes são usados para determinar a adequação de alguém para uma função profissional ou social, falamos de viés da aparência. Comentários sobre aparência física, como cabelo e vestimentas, são comuns, e o termo “boa aparência” já foi amplamente utilizado em
Enraizados no subconsciente por meio da socialização, (os vieses cognitivos) condicionam pensamentos e atitudes e afetam a tomada de decisão tanto na vida pessoal quanto na profissional. São padrões sistemáticos de desvios do raciocínio lógico que influenciam nossas decisões e julgamentos de maneira muitas vezes não percebida
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descrições de vagas de trabalho. Um exemplo desse viés pode ser observado em entrevistas de emprego nas quais um candidato bem vestido e apresentável pode ser inconscientemente percebido como mais qualificado pelo entrevistador.
O viés da maternidade é um fenômeno em que mulheres, especialmente em idade fértil, enfrentam preconceitos ou discriminação no ambiente de trabalho devido à expectativa social de que elas vão assumir responsabilidades relacionadas à maternidade. Isso em geral resulta em demissões após o retorno da licença-maternidade e na exclusão de mulheres de promoções e aumentos salariais. Cerca de metade das mulheres que tiram licença-maternidade está fora do mercado de trabalho após 24 meses e essa tendência persiste ainda após 47 meses. Esse viés se manifesta em diversos aspectos, de preconceitos na contratação e promoção ao receio de investir em treinamento, com medo de que as mulheres deixem o emprego para cuidar dos filhos. Muitas mulheres recorrem ao empreendedorismo como uma forma de conciliar trabalho e maternidade sem enfrentar discriminação. Nenhuma pessoa está livre da prática de olhares e comportamentos “enviesados”. Os vieses inconscientes reforçam preconceitos e comportamentos tóxicos que excluem pessoas e impossibilitam a transformação de padrões historicamente reforçados.
Viés inconsciente, desigualdade de gênero e acesso a capital Em 2019 a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE)9 publicou uma pesquisa referente ao futuro do trabalho na qual aponta que as mulheres têm maior probabilidade do que os homens de trabalhar em empregos mal-remunerados e menor pro-
Nosso cérebro enviesadoo Projeto implícito
Com foco na investigação das preferências e preconceitos que estão escondidos no inconsciente humano, três cientistas nos Estados Unidos (Mazharin Banaji, da Universidade Harvard; Tony Greenwald, da Universidade de Washington; e Brian Nosek, daUniversidade da Virginia) fundaram a organização sem fins lucrativos Projeto Implícito, com a qual colaboram pesquisadores de diferentes culturas e países interessados na pauta. Entre os testes de associação implícita (TAIs) oferecidos gratuitamente, é possível responder a questões direcionadas sobre raça, gênero,11 orientação sexual, idade, peso, etnia, entre outros. Cada um leva cerca de dez minutos. Os testes partem de respostas dos respondentes sobre si mesmos, para então explorar suas visões quanto a aspectos específicos a respeito da percepção do mundo e das relações estabelecidas e identificar os vieses inconscientes. O projeto oferece uma base potente para reflexão e discussão a respeito dos mecanismos subjacentes e subconscientes às condutas humanas, que podem ser uma referência segura para indivíduos quanto a suas percepções e para organizações que passem a considerar como esses vieses se apresentam em suas dinâmicas institucionais.
babilidade de trabalhar em empregos bem-remunerados. A publicação dá ênfase ao fato de que a falta de resposta a essas disparidades vai produzir um futuro do trabalho com divisões sociais mais profundas, o que poderá resultar em ramificações negativas para a produtividade, o crescimento, o bem-estar e a coesão social. Cientes de que há diversos fatores que podem ser considerados quando se trata das diferenças impostas a homens e mulheres, o destaque dado neste texto relaciona-se aos vieses permeados por questões de gênero.
A ONU Mulheres,10 em parceria com a PWC, Insper e +Mulher 360 (movimento empresarial pelo desenvolvimento econômico da mulher), publicou um guia com as lições da oficina Vieses Inconscientes, Equidade de Gênero e Mundo Corporativo. A publicação contextualiza que o fato de os espaços públicos terem sido
ocupados por homens ao longo de muitos séculos, enquanto as mulheres estavam na esfera da vida privada, serve como pano de fundo para muitas das preferências e percepções que ainda permanecem. Fatores como educação, família, país, idade, gênero, orientação sexual, religião, entre outros, baseiam essas crenças e preferências de forma automática e inconsciente na maior parte das situações (ver quadro acima).
Os vieses se manifestam de formas surpreendentes. Investidores e financiadores talvez prefiram investir em empreendedores com os quais se identificam ou que se encaixam nos estereótipos tradicionais de sucesso (viés de afinidade e estereótipo). Isso pode resultar na subvalorização dos negócios liderados por mulheres, já que os investidores podem ter uma afinidade inconsciente com empreendedores do sexo masculino ou uma visão
Na busca por decisões deliberadas e intencionais que visam à diversidade no portfólio de investimentos para melhorar resultados sociais e de negócios, os fundos de mulheres para mulheres podem ajudar a compreender quais os preconceitos inconscientes que influenciam nas decisões de investimentos e ser um caminho rumo a mudanças necessárias
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Os fundos de investimento dedicados a empreendimentos liderados por mulheres desempenham papel crucial na redução das disparidades de gênero no empreendedorismo, incentivam a inovação e contribuem para um ecossistema econômico mais inclusivo e equitativo
estereotipada de que as mulheres não são tão capazes de liderar negócios.
Por outro lado, a percepção de “boa aparência” pode influenciar o financiamento de empresas lideradas por mulheres (viés da aparência). Se uma empreendedora não se encaixa nos padrões tradicionais de beleza ou se sua aparência não é considerada “profissional”, ela pode enfrentar dificuldades para obter financiamento.
Dessa maneira, todos os vieses discutidos podem influenciar as decisões de investimento à medida que o mercado financeiro ainda é considerado um setor predominantemente masculino.12 Uma vez que as equipes gestoras de fundos de investimentos são pouco diversas, isso, potencialmente, leva a um vazio de diversidade na alocação dos investimentos. Diante da baixa diversidade, os gestores de fundos tendem a preferir investir em empresas lideradas por pessoas do mesmo gênero, devido a uma percepção inconsciente influenciada pelo viés de proximidade.
Na busca por decisões deliberadas e intencionais que visam à diversidade no portfólio de investimentos para melhorar resultados sociais e de negócios, os fundos de mulheres para mulheres podem ajudar a compreender quais os preconceitos inconscientes que influenciam nas decisões de investimentos e ser um caminho rumo a mudanças necessárias, já que é sabido que diversidade e equidade dentro dos fundos resultam em portfólios mais diversos e justos.
De mulheres para mulheres
Ao buscar financiamento para seus empreendimentos, as mulheres ainda enfrentam desafios adicionais devido a preconceitos de gênero. Fundos dedicados ajudam a combater esses vieses e quando liderados por mulheres têm sua representatividade potencializada. Os fundos convencionais não levam
em conta questões fundamentais devido aos vieses inconscientes não observados, apenas reproduzidos. Nesse sentido, para que haja um movimento de transição que combata esses vieses com ênfase, serão necessários tempo e metodologias desenhadas e aplicadas com esse objetivo. Não somente que considerem os desafios técnicos do método, mas quem os conduz.
A importância desses fundos vai além do combate aos vieses de gênero e da redução de barreiras financeiras, para proporcionar acesso ao capital a mulheres que podem ter dificuldades em obter investimentos de fontes mais tradicionais. Ao direcionar recursos para negócios liderados por mulheres, esses fundos contribuem para criar um ambiente mais inclusivo e equitativo, o que ajuda na promoção da diversidade no ecossistema.
Além do financiamento, muitos fundos voltados para mulheres oferecem suporte adicional, como mentoria e desenvolvimento de redes profissionais. Formações que trabalhem e estimulem a autoestima feminina na condução de negócios também são essenciais, como conteúdo fundamental na construção de lideranças fortes. Estudos mostram que o investimento em empresas lideradas por mulheres pode ter impactos positivos na economia, ao criar empregos, estimular a inovação e contribuir para o crescimento econômico de forma mais ampla. A empresa de consultoria McKinsey prevê uma oportunidade de crescimento anual do Produto Interno Bruto (PIB) de US$ 2,6 trilhões para a América Latina em 2025, em um mundo no qual as mulheres participam da economia de mercado em uma extensão idêntica à dos homens.13 Em resumo, os fundos de investimento dedicados a empreendimentos liderados por mulheres desempenham papel crucial na redução das disparidades de gênero no empreendedorismo, incentivam a inovação e contribuem para um ecossistema econômico mais inclusivo e equitativo.
A falta de acesso ao capital é percebida
como a principal razão para o fracasso de empresas lideradas por mulheres, e na América Latina registra-se a segunda maior taxa de falência de empresas de propriedade de mulheres em todo o mundo. A lacuna de crédito na América Latina é significativa, atinge US$ 5 bilhões para microempresas de propriedade de mulheres e US$ 93 bilhões para pequenas e médias empresas (PMEs) lideradas por mulheres. Empreendedoras mulheres com negócios inovadores, escaláveis e de alto crescimento não estão recebendo financiamento suficiente em termos de dívida ou participação acionária. O setor de investimento de impacto na América Latina investiu apenas 10% do capital em empresas lideradas por mulheres.14 O que se argumenta é que tais fundos estão mais livres (embora não totalmente) no que diz respeito à reprodução de vieses inconscientes típicos de espaços predominantemente geridos por homens, brancos, heterossexuais.
Os fundos de mulheres para mulheres têm potencial de maior sensibilidade à questão da maternidade e da necessidade que muitas mulheres têm de migrar para o empreendedorismo e a vê-las como algo não determinante da capacidade e merecimento das mulheres mães para o recebimento de suporte financeiro. É importante destacar que a presença de mulheres na liderança de fundos de investimento não garante sensibilidade automática em relação à maternidade e a outras questões aqui abordadas. Algumas mulheres podem adotar os mesmos padrões de comportamento associados aos homens como forma de se integrar a um ambiente em que a presença masculina é dominante. Soma-se a isso a existência de movimentos organizacionais que colocam mulheres em cargos de decisão como forma de evitar críticas e melhorar seus indicadores de diversidade de gênero.
No Brasil, o Fundo Agbara,15 nascido em 2020, durante a pandemia de covid-19, foi criado e é gerido por um grupo de mulheres
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Os fundos de financiamento que partem de mulheres e são voltados a empreendimentos de mulheres, num entendimento de “nós para nós” que é financeiro, mas também afetivo, são uma alternativa para que a desigualdade no campo de investimentos deixe de ser normalizada
negras.16 O empreendimento tem como missão o estabelecimento de um fundo filantrópico com vistas à sustentação e ao fortalecimento de direitos econômicos e inclusão socioprodutiva de mulheres negras. Por meio dos programas oferecidos, o fundo busca promover uma jornada formativa que inclui capacitações técnicas, políticas cidadãs com mentorias e aporte financeiro e proporcionar a autonomia dessas mulheres em três frentes: econômica, intelectual e emocional. Os aportes financeiros variam entre R$ 1.250,00 e R$ 5.000,00 ao longo de três anos e já foram impactadas mais de 2.500 mulheres negras no país. O Fundo Agbara foi reconhecido com o Prêmio Empreendedor Social 2023 na categoria “Soluções que inspiram”, promovido pelo jornal Folha de S.Paulo e pela Fundação Schwab. Um ponto nevrálgico desse fundo é a consideração da interseccionalidade de gênero, raça e classe no trabalho realizado, se alinhando, nesse sentido, ao combate às discriminações que ocorrem, também, em decorrência da presença dos vieses sociais ressaltados.
A Fundação WWB Colômbia17 é um exemplo de projeto latino-americano que busca gerar iniciativas e programas para fortalecer capacidades pessoais e empresariais de mulheres empreendedoras, especialmente aquelas que vivem em situações socioeconômicas de vulnerabilidade. A WWB Colômbia tem seu conselho administrativo formado, predominantemente, por mulheres e atua em duas frentes fundamentais: promover a geração de conhecimento e fazer investimentos de impacto social. O pilar de investimento fomenta o investimento de impacto social com uma perspectiva de gênero, ou seja, negócios e iniciativas sustentáveis que incorporem políticas de igualdade de gênero ou ainda que objetivem originar a liderança das mulheres. Observa-se, nessa premissa, um modelo que enfrenta desigualdades de gênero possíveis, também
combatendo efeitos de vieses preexistentes. Adicionalmente, há a promoção da participação ativa dessas mulheres, ao desenvolver soluções para suas necessidades. Os investimentos de impacto social realizados pela WWB Colômbia seguem os Princípios de Investimento Responsável (PRI), por meio dos quais são estabelecidas altas exigências para a gestão de riscos e a geração de retornos sustentáveis a longo prazo para todas as pessoas beneficiadas pelas iniciativas da fundação.
No papel de investidor de impacto social adotado pela Fundação WWB Colômbia busca-se contribuir para a mudança social e diversificar as receitas, com o objetivo de continuar implementando iniciativas por meio de três mecanismos: a promoção de iniciativas que contribuam para preencher lacunas enfrentadas pelas mulheres, realizar investimentos que promovam a igualdade de gênero nas organizações e fortalecer negócios que oferecem produtos ou serviços voltados para as necessidades das mulheres ou que estimulem sua participação em alguma parte da cadeia de valor.
Os investimentos de impacto social da fundação incluem recursos não reembolsáveis e recursos de capital paciente destinados a startups em fase de crescimento ou a fundos de investimento de impacto social. A organização atua como investidora de impacto social com perspectiva de gênero por meio de fundos e títulos, entre os quais o Limited Capital Partners Fund, da Rede WWB, do qual a organização faz parte desde 2014. O objetivo desse fundo é contribuir para a inclusão financeira com perspectiva de gênero em diferentes países do mundo.
A fundação também oferece um curso de formação virtual com base na personagem Ofelia,18 no qual aborda estereótipos e papéis de gênero atribuídos socialmente a homens e mulheres pautado em seu sexo biológico e que têm constituído, ao longo da história,
vantagens e oportunidades diferentes que criam desigualdades e estabelecem as bases da violência.
Os fundos de financiamento que partem de mulheres e são voltados a empreendimentos de mulheres, num entendimento de “nós para nós” que é financeiro, mas também afetivo, são uma alternativa para que a desigualdade no campo de investimentos deixe de ser normalizada. Não se está definindo os fundos de mulheres para mulheres como uma solução, mas se reconhece que seu papel é fundamental na construção de caminhos que diminuam essa desigualdade. No Brasil, startups fundadas só por mulheres receberam apenas 0,04% do total aportado em 2020. Não somente o volume é inexpressivo como também concentrado em investidor-anjo e capital semente.19
Compreender a presença de vieses e identificar as situações em que eles são mais prevalentes possibilita detectar e prevenir conclusões e tomadas de decisão enviesadas. Ao reconhecer e identificar o pensamento automático, torna-se mais provável libertar-se do estado hipnótico causado pelas “convicções” que ele pode induzir. Esses vieses cognitivos não operam isoladamente e muitas vezes se entrelaçam, criando padrões complexos de discriminação inconsciente.
O combate aos vieses inconscientes necessita, inicialmente, de vontade para que sejam percebidos e para que haja mudanças. São necessárias pesquisas para identificar como esses vieses se manifestam e estão presentes na conduta da organização financiadora. Convocar um conselho de mulheres que investem em mulheres com o propósito de escutar quais são as nuances veladas pelos vieses, e confrontar com as práticas dos fundos de investimentos, pode servir de base para estratégia de atenção e combate aos vieses, com indicadores e avaliações periódicas quanto aos resultados de sua implementação.
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Os fundos de mulheres podem ser vistos como espaços nos quais se busca uma atenuação dos vieses replicados em fundos usualmente geridos por homens. Esses espaços são essenciais para que tais vieses sejam observados e contornados, em direção a outras possibilidades que possam ser mais amplamente igualitárias. Comumente, os critérios para as decisões de investimento – quem recebe e quem fica de fora – não são claros e, potencialmente, carregados de vieses.
Combatendo o viés inconsciente
Uma das contribuições centrais de Tversky e Kahneman, que desde os anos 1970 deram impulso ao tema dos vieses e heurística, é dar clareza sobre a natureza arraigada dos vieses inconscientes, sobretudo devido à forma como nossa mente processa e armazena informações. Os fundos de investimento de mulheres para mulheres desempenham papel importante no combate aos vieses inconscientes, ao promover a diversidade, reconhecer o potencial feminino, fornecer modelos positivos e estimular a conscientização sobre questões de gênero no mundo dos negócios. Ao focar em investimentos específicos em empresas lideradas por mulheres, esses fundos aumentam a conscientização sobre a existência de vieses de gênero no mundo dos negócios. Isso ajuda a superar esses vieses e destaca a importância de promover a inclusão nos círculos de investimento e networking. Nesse sentido, para promover a diversidade e a inclusão em fundos de investimento que não de mulheres para mulheres, uma prática já adotada em alguns fundos é estabelecer metas claras e mensuráveis para aumentar a diversidade em suas equipes de gestão.
Estratégias como o uso de testes de associação implícita são sugeridas como maneiras de mitigar o impacto desses preconceitos. Testes de associação implícita (TAI) são uma ferramenta psicológica desenvolvida para medir a força das associações mentais de forma implícita e indireta. Esses testes são frequentemente usados para examinar atitudes, preconceitos, estereótipos e crenças inconscientes. Nos TAI, os participantes são solicitados a categorizar rapidamente estímulos visuais ou verbais em grupos específicos. A rapidez na categorização sugere associações mentais fortes entre os conceitos. Os resultados são interpretados com base na diferença de tempo de reação
entre as categorias, mas é importante considerar fatores como cultura e características individuais ao interpretá-los.
Outra prática é fornecer treinamentos regulares e obrigatórios sobre vieses inconscientes para investidores, empreendedores e profissionais de agências de recrutamento e seleção. Esses treinamentos podem ampliar a conscientização sobre preconceitos sutis e ajudar a garantir que as decisões de investimento e recrutamento tenham como base critérios objetivos e equitativos.
Adicionalmente, é importante estabelecer políticas claras e transparentes para a seleção de empreendedores para financiamento. Isso pressupõe introduzir a adoção de critérios de seleção fundamentados no mérito e na qualidade do negócio, em vez de fatores subjetivos como proximidade pessoal ou afi-
NOTAS
nidade. Associado a isso, pode-se incluir a divulgação regular de dados sobre o portfólio de investimentos.
Por fim, essa problemática social, teórica e prática requer atenção e mudanças efetivas a partir das nuances mais sutis que são parâmetro na definição de como são coordenados os espaços que historicamente privilegiam alguns grupos em detrimento de outros. A questão central trata de entender como crucial a valorização da presença de mulheres em ambos os lados da equação: como receptoras de recursos e como tomadoras de decisão nos investimentos direcionados a esse público. Desfazer esses vieses estruturais, subconscientes e produtos da cultura requer esforço consciente, o que inclui educação, exposição a perspectivas diversas e autorreflexão. n
1 Women in the Workplace 2023. Disponível em: <www.mckinsey.com/featured-insights/diversity-and-inclusion/womenin-the-workplace>. Acesso em: 11 abr. 2024.
2 Karen Dale e Gibson Burrell, “What Shape Are We In? Organization Theory and the Organized Body”. In: John Hassard, Hugh Willmott e Ruth Holliday (eds.), Body and Organization. London, Sage, 2000, p. 15-30.
3 Charlotte Gascoigne, Emma Parry e David Buchanan, Extreme work, gendered work? How extreme jobs and the discourse of ‘personal choice’ perpetuate gender inequality Organization, vol. 22, n. 4, 2015, p. 457-75.
4 Joan Williams, Unbending gender: Why family and work conflict and what to do about it. Oxford University Press, 2001.
5 Moving toward in private equity and venture capital gender balance. Disponível em: <www.ifc.org/content/dam/ifc/ doc/mgrt/exec-summary-moving-toward-gender-balance-final.pdf>. Acesso em: 11 abr. 2024.
6 Mariana Mattar Raabe et al. Mulheres na Área Financeira: Um Olhar para os Desafios de Gênero e Sustentabilidade das Carreiras. SemeAd, 2023. Disponível em: <https://login.semead.com.br/26semead/anais/arquivos/555.pdf?>. Acesso em: 11 abr. 2024.
7 Investimentos de Impacto no Brasil 2021. Disponível em: <https://andeglobal.org/publication/investimentos-deimpacto-no-brasil-2021/>. Acesso em: 11 abr. 2024.
8 Disponível em: <www.science.org/doi/10.1126/science.185.4157.1124>. Acesso em: 11 abr. 2024.
9 The Future of Work: OECD Employment Outlook 2019. Disponível em: <https://web-archive.oecd.org/2019-05-07/516911Employment-Outlook-2019-Highlight-EN.pdf>. Acesso em: 11 abr. 2024.
10 Disponível em: <www.onumulheres.org.br/wp-content/uploads/2016/04/Vieses_inconscientes_16_digital.pdf>. Acesso em: 11 abr. 2024.
11 Project Implicit. Disponível em: <https://implicit.harvard.edu/implicit/takeatest.html>. Acesso em: 11 abr. 2024.
12 Desigualdade de Gênero no Mercado Financeiro: Uma Verdade Inconveniente. Disponível em: <https://periodicos.fgv. br/gvexecutivo/article/view/89646>. Acesso em: 11 abr. 2024.
13 The Power of Parity: How Advancing Women’s Equality Can Add $12 Trillion to Global Growth. Disponível em: <www.mckinsey.com/~/media/mckinsey/industries/public%20and%20social%20sector/our%20insights/how%20 advancing%20womens%20equality%20can%20add%2012%20trillion%20to%20global%20growth/mgi%20power%20 of%20parity_full%20report_september%202015.pdf>. Acesso em: 11 abr. 2024.
14 Gender Lens Investing: How Finance Can Accelerate Gender Equality in Latin America and the Caribbean. Disponível em: <https://andeglobal.org/publication/gender-lens-investing-how-finance-can-accelerate-gender-equality-in-latinamerica-and-the-caribbean/>. Acesso em: 11 abr. 2024.
15 Disponível em: <https://fundoagbara.org.br/>. Acesso em: 11 abr. 2024.
16 Mulheres criam fundo filantrópico para ajudar empreendedoras negras. Disponível em: <https://globoplay.globo. com/v/10057860/>. Acesso em: 11 abr. 2024.
17 Disponível em: <www.fundacionwwbcolombia.org/>. Acesso em: 11 abr. 2024.
18 Ofelia no está sola. Disponível em: <www.fundacionwwbcolombia.org/ofelia-no-esta-sola/>. Acesso em: 11 abr. 2024.
19 Female Founders Report. Disponível em: <https://f.hubspotusercontent30.net/hubfs/7735036/female_report_ v9.pdf?utm_medium=email&_hsmi=224267158&_hsenc=p2ANqtz--eH3xjN-O-0btUh8nppstp6XuBX3HIbD1MuKpWrlC7CqHp9u3uBCY16X-FDl7EOiENy_WwelxtIFi6-XMnTZM99AX-Q&utm_content=224267158&utm_source=hs_ automation>. Acesso em: 11 abr. 2024.
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As múltiplas camadas de discriminação
Adotar uma abordagem interseccional que englobe gênero, raça e classe e mostre como essas dimensões se mesclam e afetam as oportunidades disponíveis para as mulheres é o caminho para a equidade de gênero
POR MAIRA PETRINI E ANA CLARA SOUZA
Ela trabalhou por quase 17 anos no mundo corporativo e sofreu discriminação por ser mulher, nordestina e negra. Oitava de uma família de dez filhos e natural de Igreja Nova, sertão de Alagoas, migrou com a família para Diadema, município da Região Metropolitana de São Paulo, na década de 1970. Começou a trabalhar ainda criança para ajudar em casa, conseguiu cursar a faculdade a muito custo e, depois de formada, ingressou em uma grande corporação. Três questionamentos foram recorrentes em sua trajetória: estudou em boa escola?, fala inglês?, fez uma faculdade de primeira linha?. Com o passar do tempo, contornadas essas barreiras do padrão exigido pelo mercado, foi conquistando cargos. Construiu carreira, mesmo com todas as dificuldades, mas vivenciou e continua vivenciando episódios das mais variadas formas de discriminação imagináveis. Certa ocasião, em entrevista buscando uma promoção, ouviu de um diretor que seu currículo era perfeito, assim como seu desempenho e sua história. No entanto, era uma pena ser mulher. Ele queria um homem para a vaga.1
O caso de Ana Fontes2 está longe de ser exceção. Ao ser uma das poucas selecionadas para o Programa 10.000 Mulheres, uma parceria entre a FGV e a Goldman Sachs (35 mulheres aprovadas entre mil inscritas), Ana descobriu-se entre um misto de felicidade e incômodo. O desconforto fez com que começasse a escrever e compartilhar em um blog aquilo que aprendia. Ao final de um ano, cem mil mulheres engajaram-se com a temática, acompanhando as postagens. Era o início da Rede Mulher Empreendedora (RME),3 primeira e maior rede de apoio a empreendedoras do Brasil. Em 2017, fundou o Instituto RME4 para capacitar mulheres em vulnerabilidade social, com foco
DO QUE TRATA O ARTIGO
O texto explora a intricada natureza das desigualdades de gênero, evidenciando a interseccionalidade entre diversos marcadores sociais que moldam as experiências individuais. Além disso, mostra importância da equidade de gênero, reconhecendo a necessidade premente de confrontar e remediar as disparidades enraizadas em normas culturais e estruturas sociais. No contexto do empreendedorismo feminino, explora os desafios que as mulheres enfrentam, especialmente no que diz respeito ao acesso a recursos financeiros. São destacadas iniciativas como a Pro Mujer e a BlackWin, que buscam promover a igualdade de gênero ao fornecer financiamento e apoio a empreendedoras, reconhecendo a importância de considerar as diversas identidades e vivências das mulheres.
POR QUE ISSO IMPORTA
Atender às necessidades específicas das mulheres empreendedoras é importante na busca de inovação nos produtos financeiros ao conceber modelos de financiamento mais inclusivos e sensíveis às diferentes realidades. Exemplos de produtos financeiros inovadores, como o CRA Sustentável na Mata Atlântica, são apresentados como soluções que visam fortalecer a agricultura familiar, especialmente entre mulheres produtoras de cacau. Também são fundamentais o engajamento e a colaboração em rede de diversos atores, incluindo organizações de mulheres, para enfrentar as desigualdades de gênero e impulsionar mudanças significativas.
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em empreendedoras negras, trans, que moram em comunidades ou com mais de 50 anos. Seu propósito segue o mesmo: fomentar o protagonismo feminino no empreendedorismo, auxiliar quem quer empreender e quem deseja se inserir no mercado de trabalho.
O movimento iniciado por Ana Fontes ilustra a questão central deste artigo: a necessidade de combater a discriminação de gênero, uma realidade naturalizada e recorrente.
Para enfrentar esse desafio, propomos a exploração de mecanismos e de finanças inovadoras que priorizem a equidade na distribuição de recursos, visando a um impacto social significativo contra a discriminação de gênero. Por meio de exemplos concretos, debatemos não apenas a discriminação e a desigualdade de gênero, mas também o empreendedorismo feminino e sua interação com as finanças.
Nossa reflexão enfatiza a necessidade de adotar uma abordagem interseccional que englobe gênero, raça e classe e mostre como essas dimensões se mesclam e afetam as oportunidades disponíveis para as mulheres.
Por fim, destacamos a importância das redes de apoio e colaboração no aprendizado e em avanços significativos na abordagem da problemática lançada.
Discriminação e desigualdade de gênero
A discriminação de gênero se manifesta quando indivíduos recebem tratamento desigual ou desvantajoso devido a seu gênero,5 um problema que se fundamenta em estereótipos e concepções errôneas sobre as expectativas relacionadas a gênero. Esse fenômeno transcende a mera discriminação sexual, englobando preconceitos contra a identidade de gênero ou a maneira como alguém expressa seu gênero. Tal discriminação muitas vezes confunde gênero com sexo biológico, impondo expectativas baseadas em características físicas. Contudo, como destaca o SHARE, entidade da Stanford University dedicada a combater o assédio e a violência sexual na comunidade acadêmica, é inaceitável discriminar alguém com base em percepções de gênero.
Em 2021, a pesquisa Por Ser Menina ouviu 2.589 meninas e meninos de 14 a 19 anos, de dez cidades das cinco regiões brasileiras. Lançada pela Plan International6 e executada pela Tewá 225, a investigação destacou que 69,4% do público feminino ouvido sente seus direitos
desrespeitados por serem meninas/mulheres. Além disso, 67,2% relataram realizar o dobro de trabalho doméstico em relação aos meninos. Essa diferença precoce é base para que outras discrepâncias de gênero aconteçam ao longo da vida.
O potencial negativo da discriminação de gênero tem impacto até mesmo no combate às crises climáticas, conforme o Relatório Global SIGI 2023 “Igualdade de Gênero em Tempos de Crise”,7 divulgado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). O documento aponta que, nas catástrofes, em geral as mulheres e crianças têm 14 vezes mais probabilidade de morrer do que os homens. Quando se trata de acesso desigual ao uso e à propriedade da terra, por exemplo, as mulheres acabam impedidas de envolvimento pleno em um modelo de agricultura resiliente às mudanças climáticas, de redução do risco de catástrofes e uso de energias renováveis.
Os dados enfatizam ainda que, faltando pouco mais de seis anos para o cumprimento dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODSs), previsto para 2030, os avanços rumo à igualdade de gênero são ainda frágeis, demasiado lentos e heterogêneos. Em números globais, 40% das mulheres vivem em países onde a discriminação por gênero é elevada ou muito elevada. Em termos de atuação em empresas, o relatório revela que apenas 15% das companhias em todo o mundo são dirigidas por mulheres e somente 25% dos cargos de gestão são ocupados por elas.
Dessa forma, apesar dos avanços, a discriminação e a desigualdade de gênero são ainda bastante persistentes.8 A edição de 2023 do Global Gender Gap Report9 (Relatório Global de Desigualdade de Gênero, publicado pelo Fórum Econômico Mundial) revelou que houve melhora no Brasil e o país subiu para a 57.ª posição entre 146 nações (em 2022 estava em 94.º). O documento destaca que entre 2022 e 2023 aumentou a participação econômica das mulheres, bem como as conquistas na paridade de gênero no que diz respeito a postos de liderança não apenas nos negócios, mas também no governo. Dialogando com esse registro, ressalta-se que no primeiro escalão do governo
federal, em 2023, 11 mulheres assumiram os postos de ministras. Ainda assim, o cenário para a América Latina e o Caribe preocupa. Conforme indicam os dados, no atual ritmo de progresso, a região levará 53 anos para atingir a plena igualdade de gênero. A paridade na participação econômica e nas oportunidades é de 65,2%, o que coloca a região com a terceira pontuação regional mais baixa, à frente apenas do Sul da Ásia e do Oriente Médio e Norte da África.
Quanto à diversidade de gênero em conselhos de empresas privadas, o estudo 2023 Him For Her And Crunchbase 2022 Study Of Gender Diversity On Private Company Boards, divulgado pela Crunchbase News, dá conta de que as empresas mais jovens têm maior probabilidade de ter mulheres diretoras, indicando uma mudança de perspectiva em relação às empresas mais antigas. Isso tem levado, também, à diminuição de salas de reuniões com a presença de uma única mulher. Esses dados deixam um indicativo do quanto esforços privados e públicos, em conjunto, são necessários na busca por equidade. Adicionalmente, mantém-se um ponto de atenção fundamental, o entendimento de que, ao tratar de algo na esfera da discussão de gênero, é necessário considerar a multiplicidade de perspectivas e abordagens possíveis, dado que os universos de existências sociais são plurais. Assim, cada abordagem e cada pesquisa abrem novas camadas que vão desenhando a complexidade do que precisa ser considerado em cada momento.
A pluralidade do empreendedorismo feminino
Uma questão fundamental sobre a temática do empreendedorismo feminino, que ajuda a compreender os dados e a complexidade por trás deles, reside na discussão sobre o que é ser mulher. Este trecho do discurso histórico de 1851 da abolicionista afro-americana Sojourner Truth lança luz exatamente sobre ela: Aqueles homens ali dizem que as mulheres precisam de ajuda para subir em carruagens, e devem ser carregadas para atravessar valas, e que merecem o melhor lugar onde quer que estejam. Ninguém
MAIRA PETRINI é professora adjunta na Escola de Negócios da PUC-RS e professora visitante na HEC Montréal – Canadá (2017). Doutora em administração pela FGV- EAESP, é líder do modo de Impacto e do Farol Hub Social do Tecnopuc (Parque Cientifico e Tecnológico da PUCRS).
ANA CLARA SOUZA em pós-doutorado pela Escola de Negócios da PUC-RS (2019-2022) e pela HEC Montréal –Canadá (2024). É doutora em administração pela UFRGS. Foi professora visitante no IFRS, onde também coordenou a Incubadora Social e Tecnológica de Canoas (SocialTec).
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jamais me ajudou a subir em carruagens, ou a saltar sobre poças de lama, e nunca me ofereceram melhor lugar algum! E não sou uma mulher? Olhem para mim? Olhem para meus braços! Eu arei e plantei, e juntei a colheita nos celeiros, e homem algum poderia estar à minha frente. E não sou uma mulher? Eu poderia trabalhar tanto e comer tanto quanto qualquer homem – desde que eu tivesse oportunidade para isso – e suportar o açoite também! E não sou uma mulher? Eu pari treze filhos e vi a maioria deles ser vendida para a escravidão, e quando eu clamei com a minha dor de mãe, ninguém, a não ser Jesus, me ouviu! E não sou uma mulher?10
Ser mulher não é uma coisa só, mas algo constituído de múltiplas camadas. Desde questões de discriminação racial, que as colocam no suposto melhor lugar que mereceriam, passando pelo tipo de trabalho, onde se estabelece o que pode ser o trabalho para mulheres, até a maternidade e os cuidados da casa, um ofício velado e não reconhecido nem remunerado.
Ao analisarem uma década de aplicação da abordagem de impacto coletivo para lidar com problemas sociais, John Kania e colegas11 apontam a equidade como um componente fundamental nesse processo. Partindo da definição de equidade como “a imparcialidade e a justiça alcançadas por meio da avaliação sistemática das disparidades em oportunidades, resultados e representações e a reparação [dessas] disparidades por meio de ações direcionadas”, os autores de “Priorizar a Equidade no Impacto Coletivo” lembram que a definição “mostra as necessidades de muitos grupos e populações diversos que atuam diariamente sob restrições estruturais que, há gerações, restringem sua capacidade de prosperar, resultando em marginalização e opressão severas e conjuntas, independentemente do lugar do mundo em que vivem”. E alertam que apenas “quando os esforços de impacto coletivo se dedicarem a compreender quem foi marginalizado e por que e como eles estão vivenciando a marginalização e, após tais investigações, adotarem uma ação direcionada para criar políticas, práticas e instituições que abordem iniquidades atuais e históricas, só então essas comunidades irão se libertar para atingir todo o seu potencial”.
É nesse contexto que se destaca o debate do empreendedorismo feminino em uma perspectiva de equidade de gênero. Como as desigualdades de gênero são profundamente enraizadas em normas culturais, estruturas sociais e políticas, para alcançar uma equidade
A interseccionalidade não se resume a gênero e raça. Ela envolve a multiplicidade de identidades de uma pessoa ao analisar questões sociais, políticas e econômicas, reconhecendo que as formas de discriminação estão interligadas e podem se reforçar
real é necessário abordar e corrigir essas desigualdades implícitas.
Para refletir sobre as múltiplas camadas que fundam as desigualdades de gênero, o conceito de interseccionalidade pode ser utilizado como ferramenta analítica ou como instrumento de resolução de problemas. Para Patrícia Hill Collins e Sirma Bilge, autoras de Interseccionalidade, tal conceito reconhece e analisa as interconexões entre diferentes formas de discriminação e desvantagem social.
A interseccionalidade pode ser entendida como a compreensão de que as identidades individuais e as experiências de uma pessoa não se reduzem a uma única dimensão, como gênero, raça, classe social ou orientação sexual. Pelo contrário, essas identidades se interseccionam e se sobrepõem, influenciando as experiências de discriminação e privilégio de uma pessoa. Por exemplo, as formas de discriminação que uma mulher preta pode enfrentar devido a seu gênero e raça não são passíveis de serem compreendidas nem tampouco se reproduzem quando os aspectos são tratados isoladamente.
Entretanto, a interseccionalidade não se resume a gênero e raça. Ela envolve a multiplicidade de identidades de uma pessoa ao analisar questões sociais, políticas e econômicas, reconhecendo que as formas de discriminação estão interligadas e podem se reforçar mutuamente. As experiências de cada um na sociedade são influenciadas por essas identidades diversas, e para compreender a complexidade das experiências individuais na interação com as estruturas sociais adotamos a expressão marcadores sociais. Trata-se de outras camadas de complexidade que atravessam o gênero e representam essas multiplicidades. Os marcadores sociais são as características socialmente reconhecidas e que podem afetar a maneira como as pessoas são percebidas e tratadas na sociedade. Incluem gênero, raça, classe social, grau de formação, orienta-
mutuamente
ção sexual, religião, idade, deficiência e região geográfica. Existem também marcadores indiretos, como é o caso de mulheres que são denominadas mães atípicas, cuja deficiência não é diretamente nelas, mas no filho com deficiência, implicando efeitos sobre essa mãe. Outro ponto de atenção é a relação entre a região geográfica e a natureza das atividades econômicas: as atividades primárias, principalmente agropecuárias, estão ligadas ao espaço rural enquanto as atividades secundárias (produção) e/ou terciárias (serviços), ao urbano. Os marcadores sociais devem ser considerados em cruzamento, ou seja, na interseccionalidade, pois funcionam como “categorias” pelas quais as pessoas são “classificadas” e influenciam as oportunidades disponíveis para elas.
Os desafios vividos por Ana Fontes e pelas mulheres atendidas pela RME denotam uma crescente complexidade quando diferentes marcadores sociais se entrecruzam. Com seu peso na dinâmica historicamente estruturada da sociedade, cada marcador criará condições de dificuldade para o acesso dessa mulher a melhores condições de vida e trabalho. Dessa forma, uma mulher negra e pobre, microempreendedora individual, que sonha com o seu negócio tornando-se uma rede de franquias, por exemplo, enfrentará barreiras muito maiores do que uma mulher branca, fundadora de uma startup, uma empresa de base tecnológica, com um modelo de negócios escalável. Quanto mais marcadores associarem uma pessoa a grupos historicamente marginalizados, maiores os desafios.
Os marcadores sociais passam a ser determinantes de desvantagens e, em muitos casos, de injustiças. Ser mulher, por exemplo, pode levar ao enfrentamento da misoginia, uma forma de aversão às mulheres que, mesmo quando não explícita, afeta negativamente suas posições nas relações sociais. Quando o gênero é combinado com outros marcadores sociais, surgem preconceitos que influenciam,
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Os marcadores sociais são as características socialmente reconhecidas e que podem afetar a maneira como as pessoas são percebidas e tratadas na sociedade. Incluem gênero, raça, classe social, grau de formação, orientação sexual, religião, idade, deficiência e região geográfica
entre outras coisas, a capacidade e a legitimidade (ou seja, o acesso) das mulheres para ter apoio financeiro para seus negócios. Para compreender as diferentes experiências de discriminação ou de privilégio, não se pode analisar um marcador social isoladamente, mas deve-se considerar a interseccionalidade.
Finanças e empreendedorismo feminino
Entre os inúmeros desafios do empreendedorismo feminino, o acesso a recursos financeiros segue no topo da lista. Paradoxalmente, como destaca o Global Gender Gap Report 2022, considerando dados de alta frequência do LinkedIn para 22 países, houve um aumento nos números relativos ao empreendedorismo feminino e uma queda nos investimentos destinados a eles (considerando todos os tipos de recurso). Em 2019, o percentual do investimento total em empresas exclusivamente femininas foi de 3%, tendo caído 4% em relação a 2018. Em 2020, esse número diminuiu ainda mais, para 2%, e manteve-se nesse patamar em 2021.
Diante da tarefa de selecionar entre várias candidatas com tantas nuances, a maioria dos financiadores faz uma avaliação baseada no potencial de cada negócio para gerar mudanças positivas, exigindo métricas de impacto (muitas vezes inexequíveis para uma pequena empreendedora) e que atendam às estruturas de ativos financeiros amplamente utilizados pelos gestores de fundos. Seguindo o fluxo dos padrões convencionais estabelecidos, os gestores de ativos financeiros tendem a direcionar recursos considerando as camadas mais aparentes, distanciando-se do impacto social e estrutural necessário às transformações reais. Compreender as nuances que envolvem o empreendedorismo feminino traz à tona a necessidade de produtos financeiros mais alinhados aos diferentes tipos de negócio protagonizados por mulheres.
Como iniciativas consolidadas nesse sentido, merece destaque a atuação de organizações como a Pro Mujer,12 uma empresa social que há mais de três décadas trabalha para promover a igualdade de gênero na América Latina e que já impactou mais de 2,5 milhões de mulheres. O objetivo da organização é permitir que mulheres alcancem seu pleno potencial por meio da melhora de suas condições de vida e se tornem agentes de mudança em suas comunidades. São três as áreas estratégicas em que imprimem seus esforços: saúde e bem-estar, inclusão financeira e oportunidades de qualificação.
Com vistas à inclusão financeira de mulheres na América Latina, a Pro Mujer cria produtos e mecanismos financeiros inovadores para fornecer o capital de que necessitam para crescer e investir em seus negócios. A organização trabalha com três conjuntos de serviços: microfinanças, plataforma de financiamento digital e iniciativas inovadoras de investimento na perspectiva do gênero.
Por meio do serviço de microfinanciamento, milhares de mulheres desfavorecidas e excluídas do sistema financeiro tradicional têm acesso ao crédito, o que lhes permite desenvolver seus negócios e trabalhar em conjunto para obter receita e pagar os empréstimos. Entre as possibilidades de crédito, são oferecidos capital de investimento, empréstimos para habitação, empréstimo pessoal, seguro e capital de giro.
No segundo produto, uma plataforma digital, um algoritmo de pontuação alternativo, inteligência artificial e integração de API (interface de programação de aplicativos) são utilizados para agilizar o processo de solicitação de empréstimo, recebimento e pagamento. O serviço traz como facilidades uma carteira móvel, integração digital e a plataforma de serviços financeiros digitais multicanais.
Como iniciativas inovadoras de investimento na perspectiva de gênero, a Pro Mujer atua com gender bonds (“títulos de gênero”),
por meio dos quais foi criado o primeiro título 100% focado em gênero na Argentina. De início, a organização emitiu 200 milhões de pesos argentinos em títulos, o que permitiu ajudar mais de 1.400 microempreendedoras no país a promover seus negócios e projetos. Também como inovação, a Pro Mujer lançou o ILU Women’s Empowerment Fund em parceria com a Deetken Impact. Esse fundo de impacto com perspectiva de gênero apoia empresas de alto impacto que buscam aprimorar a igualdade de gênero em toda a cadeia de valor. Além disso, criou o GLI Forum LatAm, o primeiro evento na América Latina direcionado à promoção do investimento na perspectiva de gênero como uma forma eficaz de impulsionar tanto a igualdade de gênero quanto o desenvolvimento econômico na região.
Durante os 33 anos de operações, a Pro Mujer com suas articulações desembolsou US$ 4,4 bilhões em empréstimos de microfinanciamento. Em 2022, a iniciativa viabilizou acessos a crédito a 250 mil mulheres, US$ 324 milhões em empréstimos e registro de crescimento de 33% na carteira de clientes ano a ano.
Como exemplo entre as mulheres apoiadas pela Pro Mujer, Fernanda Navarro13 compartilha publicamente seu depoimento. Jovem, de 23 anos, ascendência indígena, mãe solo, baixa renda, Fernanda deixou a casa dos pais aos 18 anos, carregando apenas uma sacola com algumas roupas, sem saber o que fazer. Foi então que conheceu a Pro Mujer e foi acolhida. A empreendedora relata que a organização foi a ajuda financeira que não teve da família e o acompanhamento que não acessou em outras instituições. O seu empreendimento chama-se Agus Vintach, uma revenda de roupas vintage enviadas para todo o país. Está situado em San Pedrito, San Salvador de Jujuy, na Argentina. A empreendedora mostra-se muito satisfeita por poder chegar a outras mulheres por meio das redes sociais, contando sua história e divulgando seu negócio. Diversos marcadores sociais pesaram sobre sua trajetória e dificultaram seu acesso a crédito (mulher não branca, mãe solo, baixa renda e desempregada), interseccionando três categorias sociais de extrema complexidade: gênero, raça e classe.
Outra iniciativa que atua na mesma direção é a BlackWin, a primeira plataforma brasileira dedicada a auxiliar mulheres negras a ingressar como investidoras-anjo, estabelecendo conexões com o ecossistema de inovação e oportunidades de investimento em negócios liderados
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por pessoas negras. A plataforma tem por missão viabilizar o protagonismo de mulheres negras no fomento da equidade racial como investidoras-anjo, promovendo, de um lado, oportunidade de geração de riqueza pessoal e, de outro, uma fonte alternativa de capital inteligente para as empresas lideradas por pessoas negras que trazem oportunidades de negócios inovadoras e de impacto para o mercado. As mulheres membros da BlackWin atuam em diferentes áreas, como jurídico e due diligence, contábil, finanças corporativas, empreendedorismo, consultoria empresarial, compliance, administração de fundos, investimentos de impacto, entre outras, trazendo diversidade também nas áreas de conhecimento.
Tanto a Pro Mujer quanto a BlackWin compartilham uma abordagem centrada nas mulheres e visam criar oportunidades para o crescimento econômico, o empoderamento e a melhoria das condições de vida das mulheres na América Latina. As suas atividades incluem não apenas serviços financeiros, mas também programas de educação e saúde, pois entendem a pluralidade que envolve a questão de gênero. Entretanto, além da existência de mais organizações que tenham investimentos de gênero como ponto central em sua missão, um outro avanço fundamental é no debate também junto a gestores de investimentos em busca de modelos inovadores e alternativos.
Finanças inovadoras em gênero
Definir um tipo de produto financeiro para cada perfil considerando marcadores sociais e a interseccionalidade entre eles não é uma opção, dada a complexidade da experiências humana. Mas podemos, sim, colocar em discussão os modelos de captação e financiamento vigentes. É urgente que produtos financeiros possam financiar mais iniciativas que promovam a igualdade de gênero ou que beneficiem especificamente mulheres e reconheçam as nuances que as atravessam. A expressão produtos financeiros é usada aqui para se referir aos mecanismos através dos quais os recursos são mobilizados em larga escala para diferentes empreendimentos, independentemente da classe de ativos em que se inserem. Além disso, um mesmo grupo interseccionalizado pode precisar acessar recursos de diferentes classes de ativos ao longo de sua jornada empreendedora. Nossa reflexão neste artigo passa pela busca de novos modelos de captação e finan-
ciamento que possam ser tão plurais quanto são os negócios de mulheres. E para aqueles que se perguntam se uma proposta plural teria como efeito dissipar os investimentos, um alerta: é a homogeneização do empreendedorismo feminino que leva à perda de melhor direcionamento dos produtos financeiros, não a consideração quanto a suas amplas possibilidades de constituição.
Para que as finanças para impacto possam ser inovadoras no que diz respeito à dimensão de gênero, é fundamental não olhar apenas para esse fator isoladamente, mas também para os marcadores que o atravessam. Considerar o potencial transformador das articulações em rede abre espaço para a inovação buscada a partir dessa perspectiva. Daí o convite para pensar interseccionalidade, articulação em rede e finanças inovadoras para impacto.
O caso de uma iniciativa do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) é um bom exemplo. Rodrigo Ferreira, responsável pelo relacionamento no Grupo Gaia, nos contou em entrevista sobre as adaptações realizadas para viabilizar um CRA (Certificado de Recebimento do Agronegócio) de Cooperativas do MST,14 iniciado em 2021 com duração de cinco anos, no Sul e Sudeste do Brasil. Apesar de não ter sido feito um recorte específico de gênero nessa iniciativa, o objetivo foi compreender os desafios enfrentados para adaptar uma sistemática e dinâmica de financiamento convencional a algo que exigia atenção e esforço bastante particulares. Se, por um lado, muitos produtos financeiros só estão disponíveis para investidores qualificados, por outro, a captação de recursos é tradicionalmente voltada para grandes empresas. Isso significa que esses instrumentos financeiros excluem tanto investidores quanto tomadores, limitando quem pode participar da oferta nas duas pontas. Ou seja: são produtos em que ricos investem em ricos. O CRA do MST
democratiza o acesso, uma vez que a captação de recursos não restringe quem investe ao mesmo tempo que direciona os recursos para os pequenos agricultores associados da cooperativa.
Dados da pesquisa 15 Empreendedoras e Seus Negócios 2023, do Instituto Rede Mulher Empreendedora, que ouviu 4.180 pessoas de todas as regiões do país, indicam que a maioria das empreendedoras brasileiras fatura até R$ 2.500,00 por mês.16 A mesma pesquisa revela que, entre os motivos que levaram algumas delas a fechar suas empresas, a principal razão apontada foram os problemas financeiros, seja a falta de crédito para investir e pagar as despesas, dificuldades de arcar com os custos de estrutura e transporte seja problemas para manter uma renda fixa mensal. No universo das empresárias brasileiras, o perfil é de baixo faturamento, 82% são mulheres negras das classes D e E (98%) e com negócios abertos por necessidade (83%). Nesse cenário, democratizar o acesso a recursos torna-se uma premissa. E essa democratização também passa pelo letramento das mulheres sobre produtos financeiros.
Entre os detalhes partilhados por Rodrigo Ferreira, fica evidente o papel da articulação em rede que foi necessária na concepção dos produtos financeiros para esse caso. Não basta um time interno forte em uma organização financeira articuladora de investimentos; é preciso observar, para além de seus muros, que outras organizações já estão atuando em frentes que constituem a base daquilo que se pretende conceber. São essas organizações, mais próximas de quem se beneficia com o recurso, que conseguem compreender as pluralidades e conceber uma tese de impacto robusta. Uma tese de impacto bem elaborada ajuda a orientar os investidores sociais na alocação de recursos e a mensurar o sucesso de suas intervenções, potencializando a captação de recursos.
Tanto a Pro Mujer quanto a BlackWin compartilham uma abordagem centrada nas mulheres e visam criar oportunidades para o crescimento econômico, o empoderamento e a melhoria das condições de vida das mulheres na América Latina
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Ampliando o envolvimento e a atuação em rede
Os dinamizadores de impacto são organizações especializadas que facilitam, conectam e apoiam a parceria entre oferta e demanda de capital, assim como monitoram, avaliam e qualificam a construção do ecossistema de impacto. Podem ser incubadoras, aceleradoras, consultorias, redes de mentores, universidades ou outros agentes de serviços especializados, como escritórios de advocacia. É nesse grupo de atores que os gestores de ativos podem apoiar-se na busca de produtos financeiros inovadores.
O CRA Sustentável na Mata Atlântica17 é um exemplo de um modelo inovador de financiamento que conta com recursos de investidores de mercado e de organizações filantrópicas (blended finance, ou capital misto) para fortalecimento da agricultura familiar. Trata-se de um produto financeiro, com potencial de se tornar escalável, constituído na Comissão de Valores Mobiliários (CVM), com retorno prefixado para os investidores de 5% ao ano. Em sua primeira emissão, o CRA contou com uma cota sênior de R$ 750 mil, formada por investidores de mercado, e cota subordinada de R$ 300 mil, com recursos da Tabôa. Tal configuração reduz o risco da operação para os investidores, uma vez que a cota subordinada seria a primeira a ser acionada em caso de perdas. Além disso, o Instituto Arapyaú e o Instituto humanize aportaram recursos para cobrir os custos de concessão de crédito da Tabôa. Todos esses atores uniram-se na construção de uma solução sustentável de crédito para famílias agricultoras – com potencial de ser escalável e replicável –, especialmente produtoras mulheres de cacau cabruca. Historicamente elas têm enfrentado muitos desafios no acesso a recursos. O CRA Sustentável adota a metodologia de concessão de microcrédito desenvolvida e implementada pela Tabôa desde 2015. Ela se diferencia por possuir processos mais simplificados e por ofertar financiamento (na modalidade de empréstimo) associado ao acompanhamento técnico especializado sem custos para o agricultor, contribuindo para o fortalecimento das capacidades individuais e coletivas no campo e para a manutenção de baixas taxas de inadimplência.
Nesse contexto, é essencial, por exemplo, ao pensar finanças inovadoras de impacto em gênero, dialogar com organizações de mulheres que possam indicar quais são os maiores desafios observados em termos de marcadores sociais que limitam o acesso a crédito. Da
mesma forma, interagir com atores que dominem e possam conceber teorias de mudança que permitam captar nuances de empreendimentos femininos, considerando questões interseccionalizadas.
O Instituto Rede Mulher Empreendedora oferece um mapa do ecossistema de apoio às mulheres brasileiras18 com diversas categorias de apoio: aceleração de startup e investimentos; advocacy; combate à violência contra mulheres; compras inclusivas; empreendedorismo feminino; empregabilidade feminina; finanças para mulheres; impacto social e mulheres em vulnerabilidade; iniciativas de apoio a mães; iniciativas para meninas; inteligência da informação, pesquisa e dados; liderança feminina corporativa; mulheres 50+; reeducandas do sistema prisional; LGBTQIAPN+; mulheres refugiadas e imigrantes; indígenas e quilombolas; mulheres do agronegócio; mulheres em conselho; mulheres na política; mulheres negras; saúde e bem-estar da mulher; STEM/tecnologia, entre outras. Sabe-se que as transformações quanto à discriminação e às desigualdades de gênero demandam atuação em rede, o que também implica ampla atuação das políticas públicas. Nesse sentido, o Relatório Glo-
NOTAS
bal SIGI 202319 faz recomendações políticas concretas para intervenientes públicos, privados, filantrópicos e da sociedade civil. O documento da OCDE reforça a necessidade da promoção de uma melhor coleta de dados e indicadores desagregados por gênero, relevantes para o gênero e interseccionalidades.
Considerando a complexidade que marcadores sociais alcançam à medida que se interseccionam, responder a esse desafio requer lançar mão da mesma multiplicidade que envolve tais marcadores. Promover a colaboração entre diferentes organizações com interesses comuns e competências complementares promove um olhar mais atento para os diferentes marcadores que atravessam o empreendedorismo feminino. Essas trocas de experiências entre várias organizações orientam investimentos sociais mais inclusivos e com maior potencial transformador, e são um mecanismo muito importante no combate às desigualdades de gênero e seus atravessamentos.
Retomando a fala de Ana Fontes: “As mulheres estão brigando pelo direito à vida, pela justiça e pelos direitos humanos. Se a gente não pode brigar junto, a gente pode apoiar, é o mínimo. Muitas pessoas me ajudaram a construir a minha história”. n
1 TEDx Pajuçara – Ana Fontes “menos eu, mais nós”: https://www.youtube.com/watch?v=e1w8CjjR2AI
2 Ana Fontes autorizou a menção de seu nome e compartilhou a sua experiência para construção deste texto.
3 https://rme.net.br/
4 https://institutorme.org.br/
5 https://share.stanford.edu/education-and-outreach/learn-topics/gender-discrimination#:~:text=What%20is%20 gender%20discrimination%3F,gender%20identity%2C%20or%20gender%20expression
6 https://plan.org.br/noticias/lancamento-pesquisa-por-ser-menina-no-brasil/
7 https://www.oecd.org/newsroom/gender-discrimination-inhibits-global-efforts-tackle-climate-crisis-sigi.htm
8 https://www.bbc.com/portuguese/articles/c4nljwjq0nno (O artigo apresenta dados que evidenciam a queda do Brasil em rankings de desigualdade de gênero, mas reforça que, por ser este um problema estrutural muito complexo, nenhum país conseguiu resolvê-lo. A desigualdade já se apresenta desde cedo na vida das meninas, reverberando por toda a trajetória e refletindo na baixa participação política na fase adulta.)
9 https://www3.weforum.org/docs/WEF_GGGR_2023.pdf
10 Geledés – Instituto da Mulher Negra: https://www.geledes.org.br/e-nao-sou-uma-mulher-sojourner-truth/?gclid=CjwKCAjwr_CnBhA0EiwAci5sis2QOL7H35AjC1Oj4dTA04CYQxbwLQ9wC__OGSUvFVUWopoRtt-agBoCdPAQAvD_BwE
11 https://ssir.com.br/colaboracao-2/priorizar-a-equidade-no-impacto-coletivo
12 https://promujer.org/portal/
13 https://www.youtube.com/watch?v=47bJfUCvcmY
14 https://grupogaia.com.br/cra-cooperativas-mst/
15 https://materiais.rme.net.br/pesquisa2023
16 https://www.meioemensagem.com.br/womentowatch/ empreendedoras-brasileiras-faturam-ate-2-500-por-mes-mostra-pesquisa
17 https://www.taboa.org.br/images/Relatorio_CRASustentavel_Digital_Compacto.pdf
18 https://institutorme.org.br/mapa-do-ecossistema/
19 Compõe o índice de gênero e instituições sociais da OCDE, propõe ações transformadoras de gênero a nível internacional, regional e nacional.
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EDIÇÃO ESPECIAL STANFORD SOCIAL INNOVATION REVIEW BRASIL COM OFERECIMENTO DA
Colaboração (do latim collaborare , “trabalhar com”) é o processo em que duas ou mais pessoas, entidades ou organizações cooperam para completar juntas uma tarefa ou atingir um objetivo.
Esta edição especial sobre Finanças inovadoras é resultado de uma iniciativa inédita de organizações filantrópicas com agendas distintas, mas convergentes, que se reuniram para aumentar a sensibilização e a disseminação da temática da economia de impacto para um maior impulsionamento de ações em diversos campos e áreas de atuação para a resolução de desafios cada vez mais complexos.
Juntos, a Fundação José Luiz Egydio Setúbal, o Instituto de Cidadania Empresarial (ICE) e a Latimpacto esperam contribuir para o diálogo entre a academia, as finanças, a filantropia, as organizações da sociedade civil e o poder público, aprofundando o debate sobre desafios latino-americanos, bem como sobre o papel da ciência e da filantropia na construção das possíveis soluções. E, quem sabe, estimular muitas outras colaborações no ecossistema.