Diário de um Crime Delicado Conheço Beto Brant desde a juventude. Praticamente começamos juntos, na escola do Wolney de Assis, no começo dos anos 80. Depois que fui para a Itália, tivemos em Milão um breve encontrom, quando soube que ele tinha virado diretor de cinema. Reencontramo-nos quando o Atelier de Manufactura Suspeita encenou um espetáculo no Sarajevo, excelente antro da Rua Augusta. Ele me disse que deveria fazer um filme sobre Teatro e que talvez precisasse de um intelectual, apaixonado pelo teatro e que não fosse careta ao mesmo tempo - Ele ainda acha que sou intelectual, mas sabe entender o despojamento formal do que penso. Finalmente, disse que a coisa era séria. Dei uma grande gargalhada. Depois de um linfoma, nada mais poderia ser sério. No mês seguinte, fui apresentado a Marco Ricca. Estava formado o “Sinédrio” (posterior explicação). Dei uma olhada no que havia de roteiro. Achei tudo estranho, critiquei severamente o que li. Eles achavam que eu era um ranzinza, mas souberam ouvir e entender o que disse. Foi tudo harmônico, respeitoso, todos nós reconhecíamos as qualidades uns dos outros. Eram qualidades complementares. Quanto aos defeitos, eram os de todo bando de homens (nãofascistas) juntos: monotonamente compensatórios e iguais. Depois, revi o Marçal, que já tinha conhecido no meu espetáculo. Admiração recíproca. Ao fim de uma autocrítica, farejei as enormes qualidades do que havia tanto criticado. Havia milhares de possibilidades, mas não cheguei a perceber o essencial, o que realmente motivava todo mundo a fazer um filme sobre o Teatro. Foi quando o Beto quis a Lílian que tudo ficou claro para mim. De repente, fiquei horrorizado, vislumbrava somente dificuldades. Sentia um medo desesperado, desses de quem tem fobia de elevador. Instantes depois, pensei melhor. Fiquei com mais medo ainda: de mim mesmo. Havia feito um espetáculo, anos antes, onde pedaços de pernas e mãos eram içados por cabos para o topo de uma torre no Castelo Sforzesco, em Milão. No final, os atores se livravam das personagens através disso. Era um espetáculo sobre a linguagem do sofrimento que não se consegue contar. E o primeiro espetáculo do Manufactura Suspeita começava com os atores que dançavam com pernas e mãos de manequins, depois de mortos numa explosão. A coincidência era uma verdadeira fantasmagoria. Pensei: esse cara (o Beto) faz no cinema o que sempre fiz no teatro. Pior, provoca um choque disso com o mundo real.