Revista Sotaques Brasil Portugal Nº 30

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abril /maio 2021 Nº30|Gratuito


Colaboradores Portugal: André Marques, António Almeida Santos, António Proença , Arlequim Bernardini , Bárbara Bernardini , Cristina Bernardini , Diogo Reis ,Jon Bagt e Vitor Hugo.

Colaboradores Brasil: Alex Gomes , Diego Demetrius Fontenele , Hebert Júnior , Hernany Fedasi , Laercio Lacerda , Marlus Alvarenga , Pablo B.P. Santos e Wenderson Machado Pinto.

Revista On-line Sotaques Brasil Portugal Propriedade: Atlas Violeta Associação Cultural ISSN: 2183-3028 - Tel. 351 917 852 955 antonio.sotaques@gmail.com - www.sotaques.pt


22 de abril de 1500. Pedro Álvares Cabral, com a sua esquadra composta por 14 naus portuguesas, chega à Ilha de Vera Cruz. Naquele momento, o navegador não imaginara quais seriam os rumos que tal terra iria seguir nos próximos séculos. O encontro amigável entre portugueses e tupiniquins, durante 10 dias, foi único na história dos Descobrimentos, pois tratou-se de uma “invasão” pacífica e amigável, como relatado pelo ilustre cronista, Pero Vaz de Caminha. Numa das suas cartas enviadas ao rei de Portugal, faz um elogio às diferenças encontradas e à tolerância vivenciada... Pena que tenha durado apenas dez dias. Passaram 521 anos desde da chegada dos colonizadores ao Brasil, o que equivale a cinco séculos. Por vários nomes - Ilha de Vera Cruz , Terra de Vera Cruz, Terra do Brasil - foi conhecida a terra que, em 1527, passou a denominar-se Brasil, contudo, a verdade é que ainda não sabemos quem somos nem para onde vamos. O Pau Brasil, a Cana de Açúcar, o Café, o Ouro - riquezas da nossa terra que nos tornaram famosos e visados no Velho e Novo Mundo foram também o que causou tantas feridas, abertas até hoje. No entanto, tais feridas

necessitam cicatrizar. Sim, fomos explorados, forçosamente catequisados, escravizados...mas a nossa missão é olhar para o futuro. É óbvio que não devemos apagar e esquecer o passado, porém devemos compreendê-lo e retirar as lições mais relevantes, de forma a não permitir que se cometam os mesmos erros. Tivemos que viver entre a cruz e espada; vivemos sob o domínio do domínio; criamos o império do Brasil; conquistamos a nossa Independência; proclamamos a nossa República; sobrevivemos a uma ditadura; lutamos para reconquistar a nossa liberdade. Com isto, um padrão pode ser detetado: foram cinco séculos de luta, sobrevivência, persistência, resiliência, miscigenação e globalização. Isto não pode ser esquecido. É o momento do Brasil relembrar a sua identidade, pois o Brasil não reconhece o Brasil. O Brasil está a matar o Brasil. S.O.S. Brasil.

“Somos aquilo que produzimos ! “ Arlequim Bernardini

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521 ANOS DE CORDIALIDADE

O VERDE TORNOU-SE CINZAS

O VER (D)A TERRA NA TELA:REDESCOBRINDO O BRASIL ATRAVÉS DO CINEMA NACIONAL

URGE

08 DOSSIÊ LÍNGUA PORTUGUESA

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A REDESCOBERTA DO BRASIL: MANIFESTOS MODERNISTASÀ BRASILIDADE

“E HOJE EM DIA, COMO É QUE SE DIZ EU TE AMO?”

18 BRASIL, OUTROS 521?

34 XU BING E UM MODO DE COMUNICAÇÃO CONTEMPORÂNEA

46 “TENHO VERGONHA MIM, POVO BRASILEIRO” 50 MINAS GERAIS

54 O CINEMA QUE FAZ SUA IMAGEM NO PALCO:MOLÉSTIA, O CINETEATRO DE MARCÉU PIERROTTI

70 LUZ 3


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521 anos de cordialidade Renata Humann

(https://www.istoedinheiro.com.br/edicao/edicao-1059/)

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Uma sociedade que esquece o passado não sabe qual sua identidade e não consegue ver de onde veio, quais acontecimentos pretéritos lhe constituíram, o que lhe marcou. Um presente sem passado é um mundo sem história, um mundo sem história é um mundo doente. Cordial aos 521 anos de idade, o Brasil está adoecido. Um país no qual as pessoas amam odiar. Odeiam por esporte. Odeiam porque estão entediadas. Odeiam porque odeiam. No Brasil cordial, não são poucas as notícias com as quais nos deparamos diariamente envolvendo ódio. No mundo real o brasileiro tem ódio – é o que dizem as dezenas de milhares de homicídios ao ano. É Hobbes no século XXI. As taxas de violência remetem ao estado de natureza de Hobbes. Para ele, a situação dos homens deixados a si próprios é de anarquia, geradora de insegurança, angústia e medo. Os interesses egoístas predominam e o homem se torna o lobo do próprio homem (“homo homini lúpus”). As disputas geram a guerra de todos contra todos (“bellum omnium contra omnes”) e as consequências desse estado de coisas é o prejuízo para a economia e conforto dos homens. Muitos filósofos se ocuparam com a origem do Estado, com a validade da ordem social e política, a base legal. Em algum momento, o ser humano abandona o estado de natureza para se submeter ao Estado instituído por um pacto, um contrato. Mais segurança para todos, propriedade privada e coisa e tal. A sensação é que, no Brasil, o pacto social se rompeu. Quando o Estado se omite e não atua, tem-se a insegurança, todos contra todos. Brasileiros não podem mais ir e vir, essa é a verdade. A gente se acostumou ao absurdo, a não ter liberdade. Naturalizamos o absurdo. O Brasil é um país brutal e a gente teima em carnavalizar tudo, em sorrir nas redes sociais. Essa brutalidade permeia todas as camadas sociais e faz com que a mentalidade da maioria nem considere a violência como tal. É normal.

Criou-se um mito de país amistoso que se choca com a realidade. Enquanto o mito persiste, faz-se de conta que o Brasil é um país sem níveis de violência alarmantes. Fingimos normalidade em meio ao caos. Dezenas de milhares de mortes violentas ao ano, todos os anos. As taxas de violência contra mulheres, LGBTs e minorias em geral estão entre as maiores do mundo. Também somos líderes nas violências contra as maiorias, convém lembrar.

( Quem morre e como morre Carolina Horita Dados: Grupo Gay da Bahia/MdeMulher)

Seguimos fingindo que não é conosco. De onde vem a corrupção, a violência, a agressividade e a discriminação racial que emergem na cultura nacional? As estatísticas apontam na direção de um país violento, hostil, transbordante da cordialidade nociva que gerou guerras silenciosas e construiu muros. A conta não bate. Entorpecidos enquanto sociedade, não assumimos nossa parcela de responsabilidade no problema. O desrespeito aos direitos humanos faz parte da história do Brasil e segue firme e forte em 2021. Estado e instituições seguem inaptos. Salve-se quem puder. Farofa pouca, meu pirão primeiro. Esse jeitinho nos leva cada vez mais rumo ao abismo. Ensaio sobre a cegueira ao vivo e a cores. Futebolização da política e de assuntos complexos, somada ao déficit educacional, dá nisso. O país amistoso é uma alegoria que não corresponde aos números, ao cotidiano. Que país é esse? Somos uma sociedade violenta, pobre e profundamente ignorante. Quanto antes admitirmos isso e encararmos o que nos trouxe até aqui, melhor. Enquanto continuarmos adiando discussões sérias, continuaremos cavando o fundo do poço até cairmos num poço sem fundo. O processo histórico que gerou essa identidade nacional violenta começou há mais de 500 anos, no impulso trazido pela colonização ibérica. A influência colonial é elemento decisivo para entender o Brasil contemporâneo. Não é o mesmo paternalismo, de raízes coloniais e barrocas, que forma, ainda hoje, abertamente ou não, o núcleo de quase toda atividade política no Brasil? Em sociedades de origens personalistas como a brasileira, os vínculos pessoais foram sempre os mais decisivos. A ordem social brasileira se nutre de personalismos e preferências pessoais mais do que da neutralidade jurídica indispensável para a adoção de qualquer regime democrático. A identidade nacional se adapta melhor à obediência a poderes autoritários, e não ao cumprimento de regras impessoais, baseadas em princípios abstratos. O Brasil é predisposto a populismos e autoritarismos, e qualquer organização política é necessariamente precária.

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Desde a colonização, o país vivencia o predomínio de interesses particulares sobre um projeto nacional. Assim nascem e se multiplicam as violências. A cordialidade brasileira não exclui a violência: ao contrário, o brasileiro cordial é dado a atitudes extremas, capaz de agir com extrema aviolência. Extrema porque é uma violência que atua fora dos meios legais de coerção, e extrema porque é a expressão de um comportamento incapaz de se moldar a padrões legais e à ordem pública. A lógica da espiral de ódio que nos trouxe até 2021 é a da esfera privada e seus códigos particulares. A violência que não é a violência monopolizada pelo Estado e, sim, a violência privada, sancionada por códigos particulares. O cidadão de bem, cordial, é o protótipo do não-cidadão, pois o seu perfil não se adequa à esfera pública, simbolizando uma sociedade que prefere obedecer a assumir responsabilidades. Procuramos salvadores da pátria, não é mesmo? Desde a colonização, a lógica do sistema patriarcal é obstáculo à expansão da atividade política. Como consequência, o espaço público se pauta por regras próprias da esfera privada. O relacionamento entre as pessoas se dá numa conduta cordial, sobre bases personalistas, de forma a reconhecer, pessoal e diretamente, cada um com quem mantêm alguma ligação. Sabe com quem está falando? As relações familiares continuam a ser o modelo de composição social. Por isso, as pessoas não conseguem compreender a distinção fundamental entre as instâncias públicas e privadas. O Estado é visto pelos brasileiros como uma espécie de segunda casa, povoada por familiares e amigos, resultando em uma sociedade patrimonialista. E no Estado patrimonialista, a elite se junta para tirar proveitos privados daquilo que é público. Não há lugar para o isento, indivíduo abstrato e neutro: ele é sufocado por relações que sacramentam a hierarquia e a desigualdade. Não há base satisfatória para a construção de um Estado democrático que pressupõe a despersonalização. É por isso que a democracia no Brasil foi sempre um lamentável mal-entendido, para citar Sérgio Buarque de Holanda.

(http://www.elfikurten.com.br/2016/06/sergio-buarque-de-holanda.html)

Portugal não levou em conta o projeto de construir uma civilização e atuou tragado pelos interesses imediatos de uma colonização predatória e pouco ligada a motivações civilizacionais. Como o brasileiro não criou raízes, não buscou criar uma obra duradoura, visou apenas explorar os lucros. A superação da cordialidade violenta só pode se concretizar com a superação do personalismo e do aristocratismo herdados da colonização. Talvez a partir da racionalização da sociedade sejamos capazes de superar a tendência ao populismo e ao autoritarismo que nos trouxe até 2021 e seus arroubos violentos, anti-democráticos. Talvez.

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Terra à vista! (ou em prestações muito caras?) Curadoria de Marlus Alvarenga

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(Foto: arquivo pessoal do curador)

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“O Brasil é o país do futuro O Brasil é o país Em toda e qualquer situação Eu quero tudo pra cima Pra cima Pra cima” (1965 (duas tribos), 1989. Legião Urbana)

Um Brasil, vários braseiros. Há três anos atrás, para esse mesmo periódico, eu usava essa expressão para falar de alimentação em um país que voltava para o quadro mundial da fome. Em 2021, quinhentos e vinte e um anos depois do momento inicial da colonização, a fome e a miséria no país parecem fazer parte de um grande projeto perverso de quem comanda os poderes. Enquanto os homens exercem seus podres poderes entre nós artistas, educadores e pesquisadores viramos a cada dia uma página de um livro que agora é quase um obituário. E nem cantar Caetano Veloso nos salvará. A bandeira virou uma pesada mortalha em verde amarelo. Muitos foram sufocados e silenciados. Esse tecido tem sido diariamente tecido na eterna colcha de retalhos do fracasso na luta contra a pandemia nessa terra brasilis. Esse pano já é vermelho – do sangue de centenas de milhares de mortos pela Covid-19. Terra à vista – dentro das covas, aos milhares por dia, enterrando histórias, amores, desejos, karmas e muitos, muitos sonhos. Ainda escrevo esse texto sob o privilégio de estar vivo. No mês do aniversário do descobrimento se faz urgente uma reconexão com o que realmente nos provoca alívio. Ainda não podemos nos abraçar, beijar, trocar suor e fluidos, mas podemos – e precisamos, de súbito – nos reinventarmos. Aliás, para a classe artística e educadora, essa reinvenção veio como ímpeto de sobrevivência. Tivemos que aprender novas redes sociais, novas mídias, plataformas, meios de comunicação, formas de ministrar e de assistir aulas e ainda assim devemos estar bem, com conteúdos em dia, iluminados, sorridentes, otimistas e pasmem – no mundo inteiro há quem ainda ache que não fazemos nada além da obrigação e que essa aceleração dos processos foi unicamente boa para todos. Cada alma com sua tela, cada ser com seu fone-mundo nos ouvidos reverberando a luz azul da razão midiática. Como canta o rapper queer Rico Dalasam, em seu mais recente álbum intitulado DDGA,

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“Você com fone de ouvido e eu gritei Você com fone de ouvido e eu parti Você com fone de ouvido vem dizer que mudou Mudou? Eu duvido! Mudou? Mudou como? Devo tá com síndrome de Estocolmo...”

(Foto: arquivo pessoal do curador)

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Falando do meu lugar de fala, como brasileiro convicto – mas sem “passar pano” para as problemáticas do meu país – conheço, acompanho e vivencio pessoas que sequer sabiam manusear áudios no aplicativo de conversa. Outras, que mesmo empregadas ou mais antenadas, não tinham conhecimento em edição de imagem, de vídeo e áudio, de transmissão de conteúdo via streaming, onde tudo agora parece fazer casa. Os jovens, nascidos dentro do cânone Google e afins, só entendem a estética do liso, do percurso de imagem cheio de filtros, do conhecimento advindo de youtubers e tiktokers. Segundo o filósofo contemporâneo Byung-Chul Han, “Hoje, não só o belo, mas também o feio, tem se tornado liso”. E são esses conteúdos, que se tornaram nosso novo Pau Brasil, que tem sido sugados ao extremo e padronizados cada vez, nos deixando as vezes, sem escolhas. Nesse espectro, a geração floco de neve se gradua em cada vez ser mais cruel. Parece que Dante Alighieri (será que ele teria um Instagram?) teria que rever seus conceitos de inferno e purgatório na Divina Comédia, que agora seria uma websérie com medo de ser cancelada e, Gustave Flaubert, encararia os questionamentos sobre Madame Bovary no tribunal do Twitter. Tudo isso batido no liquidificador das redes sociais, onde essas pessoas “tão” autodidatas - mas que aprendem tudo no plano superfície das ideias e quase nunca no íntimo da vivência – acham que nós, “das antigas mas nem tanto”, temos que entender o que se expande na era digital na mesma hora e no mesmo tempo. Uma lástima.

Mas o Brasil, ainda imenso e cheio de brilhantes resistentes, tem muitas histórias off-line para serem contadas. Algumas, ainda analógicas e outras, reconvertendo-se e pagando o preço das mídias – digitalizando-se. Nessa edição do Dossiê Língua Portuguesa teremos várias histórias para contar a nossa carta de descoberta, que será a força de reencontrar esses lugares dentro de tantos outros lugares. A primeira parte do percurso, em homenagem aos sessenta e um anos de vida que faria o compositor e cantor Renato Russo em 2021, preparei um faixa a faixa para abrir a caminhada. Para seguir essa sequência, colaboraram com essa curadoria a nossa cativa jornalista Renata “Rê” Humann (agora de termas germânicas) com sua urgência e crueza mais que necessária nos dias em que vivemos. Em sequência, completam nossa navegação o professor de química e entusiasta musical – e digo, uma das pessoas que mais conhecem sobre o assunto que conheço – com um percurso cultural nos sons verdeamarelistas Gustavo Cuia e, fechando com brilhantismo, a pesquisadora e doutoranda em literatura Maria Gabriela, nos reconduzindo a uma descoberta inovadora em um marco artístico no país, no nosso Modernismo. Um deleite para todos vocês que, carinhosamente, nos acompanham nessa resistência, ainda que muitas vezes cansados, nessa mania de amar a nossa língua, em um delírio luso-tropical. Seguimos. Seguiremos. Nossos boletos da vida vencem e quem paga somos sempre nós.

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“E hoje em dia, como é que se diz Eu te amo?”

Legião Urbana navega em uma nau-memória no bucólico O Descobrimento do Brasil Marlus Alvarenga

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(Capa, 1993. Flávio Colker)

Que Legião Urbana é um marco no rock brasileiro é indiscutível. Quer queiram aprovar ou não, muitos roqueiros ortodoxos que ainda demonizam a maior banda de Brasília, capital do país, as canções entoadas e assinadas pelo autointitulado trovador solitário Renato Russo, que completaria 61 anos nesse março de 2021 caso estivesse vivo, são poesias musicadas de amor, memória, temor e dor. O Descobrimento do Brasil, sexto álbum da banda lançado em 1993 marca uma transição forte em relação aos sentimentos pós-punk que irradiavam os cinco discos anteriores. Mesmo V sendo uma epopeia regada de temáticas clássicas e referências literárias, é em O Descobrimento que Renato se debruça na poesia

neoclássica, referências gregas e odes do amor sentido, perdido e com grande ousadia, marcando um retorno bastante midiático da banda, com entrevistas, videoclipes e várias reportagens dando suporte como um grande lançamento da época, vendendo quase um milhão de cópias em pleno anos 90. A faixa single, Perfeição, com batidas eletrônicas e vocal lírico de barítono, traduz bem o novo sentimento, ainda rebelde porém sentimental. Complexo demais para seu tempo e inclusive renegado por muitos, uma obra atemporal da música em língua portuguesa. Cada faixa é uma surpresa diferente, mas todos os caminhos levam à perda e redenção de amores e relações mal acabadas.

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Vinte e Nove A primeira faixa, Renato canta seu retorno de Saturno – momento de transição em que, astrologicamente, tomamos consciência das nossas limitações, limites e perspectivas do futuro e amadurecimento – mostrando o lado exotérico já conhecido do compositor. É uma canção tocada com bateria rufada de espetáculo, da dimensão em que evolui, fala das perdas que também vem com a idade e a efemeridade do tempo.

Perfeição Uma das canções mais importantes do rock brasileiro, até hoje ainda representa muito sobre o que e como vive o brasileiro. Festejar a estupidez humana é o que vivenciamos no poder hoje e por muito tempo, no nosso Brasil 521 anos. “Vamos comemorar como idiotas, a cada fevereiro e feriado, todos os mortos nas estradas e os mortos por falta de hospitais” ainda é o nosso país hoje, no nosso trágico atual cenário.

A Fonte Uma canção que mostra passagens dantescas, com um narrador dialogando com o coro de vozes do vocalista. “Celebro todo dia, minha vida e meus amigos, eu acredito em mim e continuo limpo” soa ao ouvinte como um verso reabilitador, trazendo ao fluxo da música outras questões que nos levam a essa lugar da desintoxicação de corpo e mente.

O passeio da Boa Vista A canção que na gravação só tem instrumental, tem letra no encarte. É como uma música secreta, com ares de trova e cantiga medieval. Renato mostra erudição, mas não canta os versos tristes e platônicos “É só a solidão batendo na janela do meu quarto, estou sozinho já não sei quanto tempo vou suportar, estou sem coragem, não quero chorar”.

Do Espírito Uma das minhas faixas preferidas, a roqueira Do espírito deixa claro que o eu lírico não estava mais querendo relações com as indecisões: buscando o seu novo espaço entre as novas experiências, Renato incinera: “se eu pego o bonde andando, você pegou o bonde errado”.

O Descobrimento do Brasil Nessa faixa, o narrador fala de um lugar da dúvida, do sentimento de constante mudança da vida em todos os aspectos com a delicadeza de alguém que sofre/ já sofreu por amor. Cita a professora “Adélia e a Tia Edilamar”, da infância de Renato Russo, trazendo esse saudosismo marcante no álbum como um todo. Carregada de bucolismo, traduz uma aproximação da música com o Arcadismo, movimento literário brasileiro. “Será que você vai saber o quanto penso em você com o meu coração?”


Os Barcos A forte e temperamental canção Os barcos já nos coloca no lugar do abandono. “E você diz que tudo terminou mas qualquer um pode ver, só terminou pra você” é a dor de todo mundo que já foi, em algum momento da vida, descartado em uma relação tóxica, provavelmente unilateral. Vamos fazer um Filme Faixa-título. Uma canção de amor singela, meiga e quase ingênua, cheia de divagações de alguém que está sentindo algo pueril. É simples, cheia de emotividade e lembra o quanto fugaz é essa sensação. “Viver é foda, morrer é difícil, te ver é uma necessidade... vamos fazer um filme?” Os Anjos Talvez a música mais The Smiths desse álbum, desde as guitarras até a bateria. A letra é uma receita de como fazer um dia comum ser levado até o fim, seja pelo bem ou pelo mal. Ao fim, mais uma ode ao amor ausente. Um dia Perfeito A meu ver, a canção mais densa do álbum, falando de morte e das coisas simples que se começa a sentir falta quando a vida vai passando, inclusive nas relações de amizade e família.

(https://br.pinterest.com/pin/469359592387142104/)

Giz A queridinha dos apaixonados, não é exatamente uma canção de romântica, ao menos não aos moldes do que se espera. Fala da efemeridade do giz como as nossas próprias relações, com um certo otimismo e desejo de retomada: um amor perdido, retomado, perdido... um ciclo de recordação e esquecimento. “És parte ainda do que me faz forte e pra ser honesto só um pouquinho infeliz”. Love in the Afternoon Um nênia. Toda a música fala sobre alguém que partiu cedo e deixou as boas recordações. “Na verdade essa música foi feita para todas as pessoas que vão embora cedo demais e nós vamos nesse momento dar um toque especial, pois a gente acha - que não é porque a pessoa morreu que acabou, né? - o Ayrton Senna, um cara super legal e todas as coisas da vida... e essa se chama Love In The Afternoon e é do novo disco”, disse o poeta em entrevista ao Programa Livre, em 1994. Hoje seria cantada milhares de vezes no Brasil, diariamente. La Nuova Gioventú Um punk rock 70, bem puxado nas guitarras e com a acidez esperada na letra. “Com você por perto eu gostava de mim”. Ainda assim, com a rebeldia nas veias, é uma canção sobre perda, reforçando a temática principal do álbum como um todo e as más relações íntimas do autor. Só por Hoje Enfim, a faixa final do álbum se codifica em uma grande tentativa de redenção. Uma tentativa de sobreviver a tudo e a todos. “Que há algumas pouco vinte e quatro horas quase joguei minha vida inteira fora” mas “posso até ficar triste se eu quiser é só por hoje, ao menos isso eu aprendi”. Se permitir sentir. Viver é uma dádiva fatal.

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Brasil, outros 521? Gustavo Cuia

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(https://www.culturagenial.com/novos-baianos/)

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"Brasil, esquentai vossos pandeiros Iluminai os terreiros Que nós queremos sambar" (Novos Baianos – Brasil Pandeiro) Novos Baianos, em 1972, trouxeram um pouco da alma brasileira não apenas na musicalidade, com instrumentos de percussão: mistura de frevo com samba, com aquela pitada moderna pela guitarra de Pepeu Gomes, mas também pelas letras que lembram as nossas matrizes étnicas que tentam apagar de nossa história e memória. A Bahia, nossa primeira capital enquanto colônia, é um berço esplêndido para iniciarmos essa discussão tão necessária sobre o descobrimento do Brasil e seus desdobramentos. Nos anos 2000, houve um movimento de uma grande empresa de mídia e comunicação nacional para colocar relógios enormes pelo território nacional, fazendo uma contagem regressiva para os 500 anos de "país". Na época, eu ainda era criança, e lembro o movimento "Brasil, outros 500" e sua grande manifestação em Porto Seguro (BA).

(https://napontadaslinguas.wordpress.com/)

Diversas etnias indígenas em conjunto com organizações sociais se reuniram para protestar contra o apagamento da história nacional. Do jeito que se pintou na mídia e nas escolas, pareceu-se que não havia ninguém aqui e, assim, o processo de colonização foi tranquilo e bem gerido. Jogou-se para baixo do tapete o genocídio de nossos povos originários tudo em prol de sair "bem na fita" nacional e internacional. Podem tentar apagar nossa história e nossas lutas, mas a cultura sempre vai nos trazer à tona essas disparidades e irrealidades. Sendo assim, a música é uma forma de não esquecermos e vivenciarmos esse território continental dentre suas muitas nuances e peculiaridades

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"[...] Nde reikwa che aikwaava Será pa remombeuta Reñe'ê ko mbarei Ara ohasa upeicha che aha Ymã ovyapa Ara ohasa upeicha che aha Ymã ovyapa Ymã ovyapa"

"[...]Você sabe que eu sei. Mas será que você vai contar? Vê se não fale à toa. Nunca fale à toa O tempo vai passando e assim vou caminhando. Antigamente era muito mais feliz. Nos dias de hoje ninguém sabe a quantas anda. Manda quem pode, pode quem manda. Nos dias de hoje não sentimos confiança. Salva-se a música e siga a dança. Nos dias de hoje ninguém sabe o que o espera. Se é inverno ou primavera, indiferença ou compaixão. Nos dias de hoje a justiça não impera. A igualdade desespera, é confusa a confusão"

Os versos acima são encontrados na música Koangagua (nos dias de hoje, numa tradução do Guarani para Português) pertencem ao grupo Brô MC's, grupo formado no Mato Grosso do Sul com indígenas das etnias Guarani e Kaiowá que utilizam o Rap para contar como vivem suas comunidades e a realidade ao utilizar sua língua mãe com mistura de português. Continuando nossa viagem histórica, geográfica e fonográfica, para redescobrirmos o Brasil, vamos voltar um pouco no tempo e relembrar a expansão territorial para além do Tratado de Tordesilhas, com as entradas e bandeiras no século XVII e a busca do ouro e minérios nas paragens que hoje são conhecidas como Minas Gerais.

(https://www.letras.mus.br/blog/historia-do-clube-da-esquina/)

Falar sobre Minas Gerais me faz lembrar automaticamente do Clube da Esquina de Lô Borges, Milton Nascimento, Beto Guedes e outros tantos nomes. Grupo formado nos anos 60 do século passado, que pegou a Bossa Nova e a repaginou de uma forma única e ímpar ao trazer um maior experimentalismo na sonoridade. No ano de 1972, mesmo ano de lançamento de "Brasil Pandeiro" dos Novos Baianos, o Clube lança seu disco homônimo que traz diversas reflexões sobre a evolução humana e os impactos da mineração na cultura local.

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(https://radiobatuta.com.br/selecao/musica-para-quem-nao-tem-pressa-clube-da-esquina/)

O começo da música Clube da Esquina No2 traz essa ideia de evolução das fases humanas e das lutas que muitos povos tiveram. Logo no final da primeira estrofe a repetição das quatro últimas letras de "passo" lembra-nos do aço, um dos produtos fim da mineração. Essa liga metálica densa conglomerada de uma infinidade de moléculas, remete à ideia de uma multidão coesa e sólida em busca de seus sonhos, estes, que não podem ser derrubados com gases lacrimogênios e uma brutal repressão estatal. A mineração representou um povoamento do interior do país com criação da Estrada Real para deslocar os espólios de ouro e minérios extraídos e surrupiados pela Métropole. Além disso, a estrada era utilizada para o tráfego e tráfico dos povos africanos escravizados na colônia. Milton Nascimento, tenta resgatar na sua música "Era Rei Eu Sou Escravo" um pouco dessa história de um povo retirado de seu lugar e vilipendiado em terras brasilis.

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"Porque se chamava moço Também se chamava estrada Viagem de ventania Nem lembra se olhou pra trás Ao primeiro passo asso asso Porque se chamavam homens Também se chamavam sonhos E sonhos não envelhecem Em meio a tantos gases lacrimogênios Ficam calmos calmos calmos [...]"

"Era rei e sou escravo Era livre e sou mandado! Onde a minha terra firme, áfrica dos meus amores. Onde a minha casa branca, minha mulher e meus filhos. Me trouxeram para longe, amarrado na madeira, me bateram com chicote, me xingaram, me feriram."

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A cultura negra africana foi absorvida ao longo dos anos, mas também sempre ficou marginalizada e escamoteada pelas elites locais. Pela proibição da capoeira, pela criminalização e estigmatização das religiões de matriz africana. Nesse período de desbravamento do interior, houve a mudança da capital de Salvador para o Rio de Janeiro em 1763, trazendo a burocracia do governo para uma localização mais próxima das minas gerais concomitante ao declínio da cana de açúcar brasileira após uma concorrência derivada da exploração de outras colônias na América e o açúcar extraído da beterraba. O "Rio 40 graus", bastante conhecido mundo afora pelo samba e carnaval, é um grande expoente musical e cultural. Mas cabe ressaltar a música protesto Brasil composta pelo carioca Cazuza durante sua carreira solo no final dos anos 80.

"Não me convidaram Pra esta festa pobre Que os homens armaram Pra me convencer A pagar sem ver Toda essa droga Que já vem malhada Antes de eu nascer [...]"

O rock brasileiro dessa época é marcado pelos arranjos simples, geralmente de quatro acordes, influência do Punk na tentativa de focar nas letras e menos nas firulas e virtuosismos do rock progressivo dos anos 70. Cazuza nos primeiros versos de sua canção traz à tona a herança dos tempos anteriores que temos que aceitar, conviver e banalizar como se fosse algo corriqueiro. Porém ele não mira apenas no passado, mas também no presente. Os versos "Qual é o teu negócio? O nome do teu sócio?" trazem indagações acerca do capital e imperialismo estrangeiro que perpassam toda a nossa história. Vinda da família real fugida de Napoleão, formação do império, Proclamação da República, trouxeram mudanças de formas de organização política, mas a vida sofrida do povo brasileiro continuava a mesma, apesar das leis abolicionistas. No ano de 1891, instituiu-se a Missão Cruls na Constituição Federal da época com o intuito de estudar de forma científica o centro-oeste para instaurar a nova capital da Federação de modo a desenvolver e explorar essa região pouco habitada. Essa missão foi revisitada por Juscelino Kubitschek e utilizada como campanha durante o pleito dos anos 50 e com isso veio a criação e fundação de Brasília – a cidade esperança. Para tal feito megalomaníaco, houve uma dívida grandiosa que ajudou a fervilhar ideias de revolta e indignação.

Tal cenário em conjunto, com 16 anos de Ditadura Militar, culmina na "geração Coca-Cola" dos anos 80 no cenário musical nacional e principalmente da nova capital Federal. Legião Urbana e Capital Inicial capitanearam bem esse processo, porém gostaria de findar este brevíssimo resumo (ou seria um protesto?) desses mais do que 521 anos com a música protesto "Até quando esperar" de uma outra banda de Brasília, a Plebe Rude. Canção de 1986 do álbum O Concreto Já Rachou. (https://www.collectorsroom.com.br/2018/03/a-plebe-e-rude-e-minha-juventude-era.html)

"Não é nossa culpa Nascemos já com uma benção Mas isso não é desculpa Pela má distribuição Com tanta riqueza por aí Onde é que está, cadê sua fração?[...]"

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O verde tornou-se cinzas Pablo B.P. Santos

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Uma vez havia vários de mim fincados na terra Trazendo equilíbrio à sua bolha particular Sublimando sobre todos meu gás vívido O mais belo regente do regime de chuvas

Até que me trocaste por móveis e corantes Para desconhecidos meu vermelho vendeste Alienando meus tupiniquins em cobiça e Objetivando minhas indicações geográficas

Ressoando rumores do acerto de contas Tu precisas extrair o veneno em si Cortando exploradores negacionistas

Antes dela cessar esta dimensão O último ar puro em sua pele, vil, deve Desejar ter voltado 521 anos atrás.

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Desembarque de Pedro Álvares Cabral em Porto Seguro em 1500 (1900), de Oscar Pereira da Silva. Museu Paulista Da Usp)

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A redescoberta do Brasil: Manifestos Modernistas à brasilidade Maria Gabriella Flores Severo Fonseca

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Oswald de Andrade, ao realizar O Manifesto de Poesia PauBrasil, em 1924, defende que a Poesia Pau-Brasil passe a ser produto de exportação, que os traços próprios da brasilidade tornem-se consumo de capital cultural no exterior. Uma proposta de valorizar características próprias da antiga Terra de Vera Cruz. Um olhar de dentro para fora, não de fora para dentro, como era costume. O escritor estava sendo radical. Depois de mais de 100 anos de o Brasil ter abandonado seu estatuto de América Portuguesa (1500-1822), Oswald percebe que, ainda, o Brasil era, culturalmente, receptor passivo da influência europeia. Era urgente a “reação à aparência, reação à cópia”. Proposta que, também, enseja seu Manifesto Antropófago, de 1928, no qual, em tom de denúncia jocosa, propõe que se faça a Revolução Caraíba, um evento maior que a Revolução Francesa. Afinal, a independência do Brasil ainda não tinha chegado. Era preciso fazer reinar por aqui o matriarcado de Pindorama. Era a vez de o Brasil (re)descobrir o Brasil. Deglutir o que

era europeu para adquirir os melhores nutrientes e, a partir disso, produzir literatura com cor e influência locais. Ser antropófago. Hora de deixar de engolir a seco, reproduzindo o de fora. Antropofagia significava “ver com os olhos livres”. Em 1925, no poema Pero Vaz Caminha, Oswald de Andrade apropria-se antropofagicamente do documento de certidão da terra de Vera Cruz, a Carta de Pero Vaz de Caminha, datada de 1 de maio de 1500. A Carta, enviada pelo escrivão de Calecute a El Rei-D. Manuel, expressa as marcas coloniais que se propagaram no ideário da cultura brasileira: “as ideias do nobre selvagem e da terra prometida ou da fartura [...].” (COUTINHO, 1968. p. 23). O poema de Oswald, em tom paródico, é composto por excertos da Carta, transpostos em quatro estrofes. Cada um deles com um título: a descoberta, os selvagens, primeiro chá e as meninas da gare.

Pero Vaz Caminha [Oswald de Andrade]

A DESCOBERTA Seguimos nosso caminho por este mar de longo Até a oitava da Páscoa Topamos aves E houvemos vista de terra OS SELVAGENS Mostraram-lhes uma galinha Quase haviam medo dela E não queriam pôr a mão E depois a tomaram como espantados

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PRIMEIRO CHÁ Depois de dançarem Diego Dias Fez o salto real AS MENINAS DA GARE Eram três ou quatro moças bem moças e bem gentis Com cabelos mui pretos pelas espáduas E suas vergonhas tão altas e tão saradinhas Que de nós as muito bem olharmos Não tínhamos nenhuma vergonha


Pau-Brasil [1925]

(http://plantandoumasementinha.blogspot.com/2017/04/movimento-pau-brasil.html)

Oswald de Andrade traça um percurso cronológico do início da colonização ao momento em que vivia. Nas duas primeiras estrofes, o poeta retoma a descoberta do Brasil e o choque de culturas ocorrido entre os povos ameríndio e europeu. Como se sabe, esse contato entre os portugueses e os nativos, ou, aos olhos do europeu, o encontro com os “selvagens”, no momento inicial, foi pacífico. Porém, logo, tornou-se mortal para os índios, pois os europeus traziam doenças que dizimariam aquelas populações, como a gripe, a tuberculose e a sífilis. Em pouco tempo, foi se estabelecendo a conquista, ou invasão territorial, e a colonização da mente e da cultura indígenas. O poeta, não alheio à ambiguidade que os termos “descoberta” e “selvagens” podem carregar, nesse contexto, podendo tanto se referir à visão do europeu sobre a terra e o nativo, como à visão do índio sobre o homem branco, propõe uma reflexão sobre a colonização do Brasil: Quem foi selvagem, afinal? As duas últimas estrofes finalizam o percurso cronológico, chegando aos costumes citadinos da Paulicéia desvairada da década de 1920. Em primeiro chá, terceira estrofe, o poeta faz referência ao encontro amigável entre os nativos e os europeus. Uma reunião social no padrão do Velho Mundo, um chá da tarde, que trazia consigo a imposição de uma cultura sobre a outra. Diogo Dias dançou com os índios um baile

tipicamente europeu, o salto real. Em as meninas da gare, última estrofe, o poeta associa as vergonhas das índias às prostitutas que trabalhavam nas estações de ferro. A relação objetificante em relação às mulheres, no caso do Brasil, é uma herança colonial. Outrora, na Carta de Caminha, o escrivão impressiona-se pela inocência do povo nativo: “Andam nus, sem cobertura alguma. Não fazem o menor caso de cobrir ou mostrar suas vergonhas, e nisso são tão inocentes como quando mostram o rosto (...).” (CAMINHA, 2014, p. 29) As índias, tão puras que sequer cobriam suas vergonhas (vaginas), tendo-as tão redondinhas e bem-feitas, como relata o escrivão em outro trecho da carta, não podiam mesmo ter vergonha alguma. Não era por isso, é claro. Estarem nuas era a única forma de se verem no mundo. Afinal, parece que o poeta mostra os encontros sociais e as prostitutas das estações de trem nada estavam distantes do passado colonial. Passado e presente encontram-se, imbricamse no matriarcado de Pindorama, na Poesia-Pau Brasil, na Antropofagia oswaldiana. Resultado da “nossa independência que ainda não foi proclamada”.

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(http://tarsiladoamaral.com.br/obra/primeiros-anos-1904-1922/)

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O que Oswald propõe é a redescoberta do Brasil. Era a vez de a Terra de Vera Cruz descobrir a si mesmo. Influenciar os de dentro e os de fora. Por que não aos próprios europeus? Poesia de exportação. Dessa vez, o Brasil trazia consigo não somente alguns séculos de influência europeia, mas a herança dos negros sequestrados e escravizados por aqui, dos nativos, e tudo mais que fosse Pau-Brasil: “O minério. A cozinha. O vatapá, o ouro e a dança”. Instinto Caraíba. Agora, deveria interessar ao Brasil o que era seu. Era a vez de devolver o espelho ao europeu e mostrar que seu reflexo também podia ter um pouco do Brasil.

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(https://news.medill.northwestern.edu/)

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XU BING E UM MODO DE COMUNICAÇÃO

CONTEMPORÂNEA Lucas Cunha

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(https://www.artsy.net/artwork/xu-bing-xu-bing-book-from-the-ground)

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A obra isenta de palavras, “Book From The Ground, from point to point” (2012), é uma criação do artista visual Xu Bing, reconhecido internacionalmente nos circuitos das artes por constantemente trazer a linguagem como temática de grande parte de suas obras. Inspirado nos manuais de sobrevivência de aviões – construídos sob a premissa de facilitarem a compreensão para todo passageiro –, coletou material por anos, e esta coleção se tornou elemento essencial no desenvolvimento de um software experimental que funciona como um canal de comunicação entre duas pessoas, mas mensagem será composta apenas por imagens, mais especificamente iconogramas. Indo além deste programa, também elaborou um livro cuja história, definida por ele mesmo como uma novela, também estaria escrita unicamente com aqueles ícones. Cada capítulo é intitulado com um relógio, partindo das sete horas de uma manhã até a próxima, que por fim compreenderá vinte e quatro horas do dia daquele protagonista. A divisão demarca uma manhã ansiosa, um almoço com uma parceira, uma tarde de complicações no trabalho, e uma noite ativa e insone. E é neste contínuo de tempo que se reconhecem histórias semelhantes a novelas e romances reconhecidos, tais como O Mezanino (1988) de Nicholas Baker, Ulysses (1920) de James Joyce ou Mrs. Dalloway (1925) de Virginia Woolf. Embora composta apenas por imagens, esta novela trata de uma narrativa de certa complexidade, não limitada às instruções aos quais estão fadados os iconogramas, com um protagonista e seus comportamentos, constantes reflexões, desejos e angústias. E talvez no reconhecimento desta complexidade reside o espanto em nos reconhecermos capazes de compreender esta narrativa que apresenta a diagramação de um texto comum em um livro comum, mas que não contém as letras, que parecem tão essenciais para um romance. Encontramo-nos versados no que, dentro desta articulação, aparenta ser uma nova língua, e percebemos aqui que fomos instruídos pela rotina. As imagens que estruturam este texto são apanhadas dos mais diversos lugares de nosso cotidiano, os e-mails de publicidade, as mensagens das redes sociais ou as placas cosmopolitas. E de certa maneira conseguimos inventariar, por meio de emoticons e outros ícones, as mais diversas atividades e relações que estabelecemos. É possível compreender a classe gramatical das imagens, e até mesmo vislumbrar uma sintaxe. Mas a obra de Xu Bing, dentro de uma vastidão de outras que jogam com a linguagem, demonstra nossa atual política na comunicação, como receptores e emissores, assim como a maneira que registramos nossos cotidianos e relatamos nossas histórias. Diferentemente dos textos assêmicos, livres de significados intrínsecos e muitos mais próximos das imagens ditas abstratas, esta escrita baseada em ícones diz respeito muito mais à uma cultura hiperglobal. As possibilidades de composições, nesta paisagem linguística, são ampliadas, e podem ser analisadas em estudos que trazem termos como translinguagem, metrolinguagem, e várias outras terminações que buscam abarcar noções de diversidade e identidade. Mas uma

barreira é erguida contra o aprofundamento de uma expressão mais complexa das ideias, como reconhece o próprio artista em um ensaio sobre sua obra. Estamos diante de uma linguagem que se aproxima da utópica universalidade, mas como regem as regras da utopia, a inevitável impossibilidade de sua concretização como a língua perfeita se materializa na necessidade deste contato quase geracional com a vida contemporânea, de acessos a certas tecnologias e oportunidades negados a muitos de nós. Certamente esta obra poderia encontrar um lugar no livro “Em busca da língua perfeita”, de Umberto Eco, entretanto sua quase-perfeição não residiria na universalidade, mas em seu fraco poder de articular ideias complexas e sua emersão como uma exposição da fragilidade incorporada na maneira que nos comunicamos.

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O ver (d)a terra na tela: Redescobrindo o Brasil através do cinema nacional Marlus Alvarenga

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(Fachada do Bijou Theatre, primeiro cinema na cidade de São Paulo. Foto acervo da cidade de São Paulo)

As artes nacionais, por tempos – e dito isso, me encontro falando anterior à arte brasileira na redescoberta da “inspiradas” com muita proximidade às artes europeias. Estávamos em um ciclo mimético sem muita criativ cinema norte-americano impunha algo comercial, danoso e caricato para a produção feita nos países em dese o Bijou Theatre aparece em São Paulo e em 1914 o português Francisco Santos, com a película “O crime do duração. Um marco. Antes dele, o luso-brasileiro António Leal apresentou o documentário ficcional Os Estr

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a identidade nacional durante o Modernismo, mesmo que traçado inicialmente por uma dada elite de voz – eram vidade, com respaldo aos grandes escritores do cânone brasileiro. No cinema, não foi muito diferente: a plástica do envolvimento. Nossa primeira exibição da arte foi ainda no século XIX, no Rio de Janeiro em 1896. Em seguida, os banhados”, inaugura um longa metragem totalmente produzido em terras brasileiras, com mais de duas horas de ranguladores, em 1908. 40 minutos. O cinema começava a caminhar.

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(Deus e o Diabo na Terra do Sol. Frame do filme)

Essa caminhada foi longa e ainda estamos no processo. Como boa arte, o cinema atual também é muito orgânico e hoje as traduções coletivas – teoria que visa entender um filme como um processo coletivo desde sua execução até a recepção pelo espectador, o que permite múltiplas faces e interpretações nesse espaço (me apropriando das ideias dos GoianoBrasilienses Silva Jr e Gandara) – ganham mais lugar de fala, mais cor local. Esse percurso, desde os tempos do Cinema Novo com Glauber Rocha (1939-1981) e Nelson Pereira dos Santos (1928-2018) ganha nova estética e o mundo volta o olhar para a produção identitária nacional. Com Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964) e O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro (1968) Glauber se fundamenta como um nome a ser citado até hoje nos anais de qualquer trabalho que reverbere o cinema do país. Hoje, diretores como Kléber Mendonça Filho, Juliano Dornelles, Walter Salles, Karim Ainouz e Gabriela Amaral tem propagado o cinema Brasileiro com ainda mais força, sem espaços para um estrangeirismo que não seja o da antropofagia, aos moldes Modernistas. Somos um cinema de vanguarda e o mundo inteiro – até listas de famosos com

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suas indicações de filmes do ano – como a do ex-presidente Barack Obama – carregam o nome de Bacurau (2019). É o sertão novamente, é o western movie brasileiro. Aqui cabem todos os cinemas do mundo. Em uma tentativa de quantificar e nunca de qualificar, a lista que segue é um percurso essencial para aqueles que desejam conhecer, se aprofundar ou apenas refrescar um pouco da arte cinematográfica do Brasil, do Cinema Novo até o mais novo cinema. As sinopses e cartazes dos filmes escolhidos são os oficiais, disponíveis na internet.


Vidas Secas (Nelson Pereira dos Santos, 1963)

Deus e o diabo na Terra do Sol (Glauber Rocha, 1964)

A história de uma família pobre da região seca do Nordeste e sua luta diária por trabalho e comida para sobreviver e superar as dificuldades do ambiente árido em que vive. Baseado em obra homônima de Graciliano Ramos.

Pixote, a lei do mais fraco (Héctor Babenco, 1980)

Manuel é um vaqueiro que se revolta contra a exploração imposta pelo coronel Moraes e acaba matando-o em uma briga. Ele passa a ser perseguido por jagunços e foge com sua esposa Rosa, juntando-se aos seguidores do beato Sebastião, que promete o fim de qualquer sofrimento. Porém ao presenciar a morte de uma criança, Rosa mata o beato. Enquanto isso, Antônio das Mortes, um matador de aluguel que presta serviço à Igreja Católica e aos latifundiários da região, extermina os seguidores do beato.

Cabra marcado para morrer (Eduardo Coltinho, 1984)

Um menor abandonado de 11 anos vive na rua após a fuga de um reformatório, onde aprendeu bastante sobre o crime ao conviver com todos os tipos de delinquentes. Ele sobrevive no Rio de Janeiro atuando como traficante, assassino e, até, cafetão.

Em 1962, o líder da liga camponesa de Sapé (PB), João Pedro Teixeira, é assassinado por ordem de latifundiários. Um filme sobre sua vida começa a ser rodado em 1964, com a reconstituição ficcional da ação política que levou ao assassinato e direção de Eduardo Coutinho. As filmagens são interrompidas pelo Golpe Militar de 1964. Dezessete anos depois, em 1981, Eduardo Coutinho retoma o projeto e procura Elizabeth Teixeira e outros participantes do filme interrompido.

O viajante (Paulo César Sarraceni, 1999)

Rafael chega a uma pequena cidade do interior de Minas Gerais para a festa da padroeira local. Ali, desperta a paixão insana de Don'Ana de Lara, viúva rica e orgulhosa e ainda conquista o coração da jovem e bela Sinha. Um criminoso, o Mestre Juca do Vale, também participa do que será uma relação de amor e morte, a última fronteira da paixão, na qual os sentimentos se tornam desumanos e divinos.

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O Auto da Compadecida (Guel Arraes, 2000)

Abril Despedaçado (Walter Salles, 2001)

O filme mostra as aventuras de João Grilo e Chicó, dois nordestinos pobres que vivem de golpes para sobreviver. Eles estão sempre enganando o povo de um pequeno vilarejo no sertão da Paraíba, inclusive o temido cangaceiro Severino de Aracaju, que os persegue pela região. Somente a aparição da Nossa Senhora poderá salvar esta dupla. Baseado na obra de Ariano Suassuna.

Lavoura Arcaica (Luiz Fernando Carvalho, 2001)

Em 1910, Tonho vive com sua família no sertão brasileiro. O seu pai tenta convencê-lo a vingar a morte do irmão mais velho, assassinado por uma família rival, mas sabe que caso se vingue será perseguido e terá pouco tempo de vida. Angustiado pela perspectiva da morte, Tonho passa a questionar a lógica da violência e da tradição.

O ano em que meus pais saíram de férias (Cao Hamburguer, 2006)

No Brasil da década de 1940, André sai de casa por se sentir sufocado pelos pais. Anos depois, ele cede aos apelos da mãe e retorna. Agora, o rapaz quebra definitivamente os alicerces da família ao se apaixonar por sua bela irmã. Baseado em obra homônima de Raduan Nassar, premiada internacionalmente.

Bacurau (Kléber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, 2019)

Os moradores de Bacurau, um pequeno povoado do sertão brasileiro, descobrem que a comunidade não consta mais em qualquer mapa. Aos poucos, eles percebem algo estranho na região: enquanto drones passeiam pelos céus, estrangeiros chegam à cidade. Quando carros são baleados e cadáveres começam a aparecer, Teresa, Domingas, Acácio, Plínio, Lunga e outros habitantes chegam à conclusão de que estão sendo atacados. Agora, o grupo precisa identificar o inimigo e criar coletivamente um meio de defesa.

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Em 1970, Mauro é um garoto de 12 anos que adora futebol e jogo de botão. Um dia, sua vida muda completamente quando seus pais saem de férias de forma inesperada. Na verdade, os pais de Mauro foram obrigados a fugir por serem militantes de esquerda perseguidos pela ditadura militar. O casal decide deixá-lo com o avô paterno, que falece justamente no mesmo dia em que o garoto chega em São Paulo. Assim, Mauro acaba ficando com Shlomo, um velho judeu solitário que é seu vizinho.


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“TENHO VERGONHA MIM, POVO BRASILEIRO” Wenderson Machado Pinto.

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Brasil, 521 anos, onde andamos? O quanto avançamos enquanto nação? No que tivemos crescimento? Onde a educação, onde a política, onde o povo? Pelo que nós, povo brasileiro, nos reconhecemos e somos reconhecidos? Essas são algumas das muitas perguntas que permeiam a cada dia a vida do nosso povo, da nossa nação e de cada pessoa que realmente se preocupam pelo nosso caminhar e pela nossa história. Diante isso tudo trago para o leitor uma reflexão de um texto que é antigo para a nação, mas se faz novo. Rui Barbosa, grande intelectual brasileiro, fez um poema que retratava a situação de um povo, mas ainda hoje é um texto válido. E caro leitor, sendo sincero, quantas vezes dizemos “ sinto vergonha de mim, povo brasileiro”. Hoje esse texto é tratado como um poema, mas fique claro que se tratava de um discurso realizado no dia 14 de dezembro de 1914 no Senado Federal. Discurso feito pelo grande diplomata e político brasileiro, Ruy Barbosa, ao renunciar sua cadeira no Senado. É necessário analisar o texto e constatar a sua atualidade e infelizmente sentir e gritar desde os nossos postos na sociedade “sinto vergonha de mim”. O escritor, se reconhece, em primeiro lugar, educador de uma sociedade que já não reconhece os valores de uma educação aberta a verdade e ao conhecimento; e pode-se perguntar, quantos de nós, educadores, vemos os nossos esforços vindo abaixo quando não se dá a liberdade de pensamento. Então, como Ruy Barbosa, repetimos: “Sinto vergonha de mim por ter sido educador de parte deste povo, por ter batalhado sempre pela justiça, por compactuar com a honestidade, por primar pela verdade e por ver este povo já chamado varonil enveredar pelo caminho da desonra”. Esse texto, caro leitor, não é um convite ao apreço pelas boas coisas do Brasil, mas sim ato de exame de consciência e de reflexão; um ato não de rebeldia, mas de explosão contra a incoerência reinante. Uma segunda parte do texto vai refletir sobre a democracia. E mais uma vez se vê que a dureza de tal escrito traz toda a realidade da nossa atualidade. A democracia se tornou abominável e cheia de vícios e mentiras, não se tem mais a honra do respeito a decisão de um povo, mas a sua manipulação. Também ver-se-á o descrédito sofrido pela família, que hoje continua a imperar na sociedade. A felicidade é palavra banal e desacredita. A família, não importa o seu modelo, sendo desrespeitada constantemente como célula base da sociedade. Sinto vergonha de mim por cada dia ver tudo isso se repetir e se repetir. “Sinto vergonha de mim por ter feito parte de uma era que lutou pela democracia, pela liberdade de ser e ter que entregar aos meus filhos, simples e abominavelmente, a derrota das virtudes pelos vícios, a ausência da sensatez no julgamento da verdade, a negligência com a família, célula-Mater da sociedade, a demasiada preocupação com o 'eu' feliz a qualquer custo, buscando a tal 'felicidade' em caminhos eivados de desrespeito para com o seu próximo.”

Assim, esse texto de Ruy Barbosa, vai tornando-se algo tão antigo e tão novo; antigo, pois se trata de algo vivido e sofrido no tempo de tão augusto pensador; novo, pois parece que seu caráter “ profético” pode ser visto no cotidiano da sociedade atual. Não é um grito de desespero, mas um golpear à nação, mediante tal vivencia. Faz-se necessário que seja reconstruída a cultura, a verdade, a eduação, a política, a nação. Mas não com propostas que não saem do papel, não sufocando aqueles que lutam por criar cultura, não manipulando a educação; e sim, usando do respeito e da moral, daquilo que sempre se lutou por ter, uma democracia e um sociedade pautada no respeito a sociedade e por conseguinte à educação. O texto em si trará ainda vários outros reflexos reais da sociedade atual, mas faz jus terminar esse texto com as mesmas palavras que encerra o eminente escritor: “Ao lado da vergonha de mim, tenho tanta pena de ti, povo deste mundo! ”. O Brasil comprimindo 521 anos de descobrimento, mas será que realmente essa nação se redescobriu?

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Igreja Matriz de Nossa Senhora da Piedade, em Felixlândia/MG

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minas gerais Hebert Júnior

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Capela de Santana do Paraopeba, Belo Vale/MG.

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Igreja Matriz de Nossa Senhora da Piedade, do distrito de Piedade do Paraopeba, em Brumadinho/MG.

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Vista parcial do distrito de Lobo Leite, em Congonhas/MG.

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Ouro Branco/MG.

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Vista parcial de Diamantina/MG.

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Casarões históricos da Rua Direita, em Santa Luzia/MG.

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Igreja Matriz de Nossa Senhora de Nazareth, do distrito de Morro Vermelho, em Caeté/MG

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Urge Diego Demetrius Fontenele

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Urge o tempo Urgem os ponteiros do relógio Urgem as pessoas na calçada Pela urbe Atravessando a rua Dentro dos carros, Dos coletivos lotados Rugem os veículos apressados E não sobra mais tempo Para se apreciar a vida Curtir a família Cultivar os relacionamentos Só há tempo para o trabalho. Rugem os teclados Dedos velozes a teclar. Urgem os prazos O progresso não pode parar Não deve mesmo parar Apenas, talvez, Diminuir a velocidade Mudar a direção Ajustar o foco.

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(Diretor e ator Marcéu Pierrotti. Foto cedida pelo artista.)

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O cinema que faz sua imagem no palco: Moléstia, o cineteatro de Marcéu Pierrotti Marlus Alvarenga

Inovador por estudo e criação Enquanto coloca o público imerso em quase uma hora nas sequências de tensão e dúvidas, as quais Moléstia (2018/2021) se encarcerava, por vezes é fácil se sentir na posição complicada de um observador que deve julgar, decidir e condenar. Tudo parte de um grande jogo. Um jogo muito bem jogado pelos atores, corpo técnico e dirigido, com excelência, pelo estreante no cinema Marcéu Pierrotti.

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Enquanto peça, Moléstia já era inovadora em mídias quando estreou antes da pandemia mundial de Covid-19. A peça de teatro usava técnicas de filmagem e partes das cenas expostas em telões que, como disse o diretor em entrevista ao podcast CINEMABRASIL em foco (@cinemabrasilemfoco) faziam parte de uma integração maior entre a ação no tablado e o que acontecia nos cantos, nas escadas, nos espaços que não eram visíveis por todos no momento de execução. Marcéu também afirma que, esse encontro de mídias, já era um anseio seu, que entende a necessidade dessa atualização de tecnologias para trazer novas poéticas ao teatro e ao cinema.

Com carreira como ator no teatro e na televisão e uma vasta formação que inclui Stella Adler em Nova Iorque, o diretor do filme não esconde sua paixão pelas artes. Advindo de um ambiente familiar que inspirava artes e estudos da psique humana, o ator e diretor já releu trechos clássicos shakespeareanos no cotidiano real, pelos cômodos do seu apartamento em 2020. Os treze episódios de Shakespeare em Casa estão no Youtube (Shakespeare em casa) e no Instagram (@shakespeareemcasa). No segundo semestre (outubro 2021), no Funchal, interpretará Dom Pedro II (co-protagonista) no espetáculo “Réverie, Rebouças, glória e tragédia de um visionário”, escrito e dirigido por Alexei Waichenberg. O texto conta a história de André Rebouças, um engenheiro negro que se suicidou no Funchal. Em junho de 2022 será o protagonista do espetáculo, “Alma Cigana – da farsa e dos pregos a um realejo de alegria e dor” - texto e direção de Alexei Waichenberg, com apresentações no Teatro da Universidade do Porto e nos jardins do Tropical Hub também no Porto (informações e imagens cedidas gentilmente pela assessoria do diretor). O multiartista é a próprio retrato de um artista quando jovem – citando o título da primeira obra de James Joyce e pensando em como o cotidiano da problemática família, do primeiro filme de Pierrotti, pode nos fazer reverberar que a única exigência que se faz aos meus leitores é que devem dedicar as suas vidas à leitura das minhas obras. E assim, mais que necessariamente, segue-se ecoando a urgência temática de Moléstia, onde ficamos presos por longos tempos em nossas próprias indagações.

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Uma decisão que nos molesta Moléstia como filme parte da tradução do espetáculo para o cinema, que viria direto para as telas do streaming devido ao nosso atual momento mundial. A ideia, na verdade, não afetou os planos de Marcéu: tendo em vista que assim o filme poderia ganhar o mundo todo ao mesmo tempo, pelos meios digitais, o incentivo para seguir com a experiência foi ainda maior. E a experiência do thriller, do suspense embebido de um drama familiar, será o mote para a narrativa. A todo tempo somos colocados à prova de bala – literalmente – pela ótica escolhida pela direção ao focar em pontos específicos da trama que é totalmente filmada no espaço reduzido, fisicamente, do teatro. O diretor optou por não usar outras locações para codificar o espaço do teatro como um espaço fílmico. Em uma primeira aproximação, os amantes do cinema logo lembram do ousado Dogville (Lars Von Trier, 2003) que trouxe às telas um palco marcado por fitas que representavam os espaços delimitados, em uma história que também falava de abusos, marcada pela atuação irretocável de Nicole Kidman. Na película Moléstia, o espaço que serve de esteira para presente e passado dos personagens é o mesmo. A direção nos prende tão intensamente, junto das excelentes atuações de Ciro Sales na pele de Cadu, Camila Moreira e Felipe Dutra dão vida ao casal Mabel e Breno - marcados por uma relação desgastada e pela demanda de Thiago, o filho autista - e Deborah Figueiredo, que faz a Madre Superiora.

(Dogville. 2003, Lars Von Trier. Frame do filme)

O enredo (contém spoilers!) é direto: um casal com uma relação complicada, onde o pai quer vingar o filho abusado e mãe demonstra total desapego ao filho que tem autismo, um amigo de passado duvidoso e a Madre superiora que defende as instituições a todo custo. As acusações estão sempre dialogando com a tensão sexual que cada uma das relações esconde. Cadu é o elo entre todos e também – e isso inclui a relação estreita com Thiago, sendo também professor na escola religiosa onde o “julgamento” está ocorrendo –, de alguma forma, um bode expiatório desses desejos retidos. Tudo nos direciona à vingança do pai que ameaça o amigo de morte, mas tem seus segredos revelados. Nessa tríade, a Madre que deveria ser a voz da razão acaba nos trazendo novas dúvidas. Tudo para deixar os fãs do gênero ainda mais tensos.

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Por ser uma primeira experiência dirigindo cinema, Moléstia vai além de um filme currículo, para o dedicado Marcéu Pierrotti. Foi pensado, executado com maestria de quem é fã dos grandes nomes do cinema mundial – e conduz sem medo a digitalização das artes e inserção das novas tecnologias. A temática urgente e necessária e a estética de vanguarda fazem com o cinema traduza sua imagem a partir do palco e a ausência de outros cenários e objetos cênicos não faz falta, ao contrário, parecem trazer ainda mais segurança a essa narrativa que nos conduz do cineteatro para as telas possíveis ao mundo todo.

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LUZ Laercio Lacerda

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Modelo: Ellen Becker, Make-up: Ellen Becker Fotos e Edição: Laercio Lacerda Studio modellife

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rumo a novos mundos!

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