Topomorphias de Jorge Martins

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Topomorphias de Jorge Martins

Topomorphias de Jorge Martins

organização

J OSÉ A LBERTO F ERREIRA

textos

A DRIANA A NSELMO DE O LIVEIRA

A NTÓNIO G UERREIRO

J OANA B AIÃO

J OSÉ A LBERTO F ERREIRA

J OSÉ G IL

J OSÉ R. S ANTOS

S ÉRGIO M AH

DOCUMENTA
6 conferências sobre Jorge Martins, J OSÉ A LBERTO F ERREIRA ........ 19 A cor do tempo: cronocromias, J OSÉ G IL ...................................... 21 A pintura é um gesto reflexivo, A NTÓNIO G UERREIRO .................. 29 Transcre(ver) Jorge Martins, J OANA B AIÃO .................................. 35 Obras de Jorge Martins no domínio dos revestimentos arquitectónicos, A DRIANA A NSELMO DE O LIVEIRA ............ 45 Morphogenèses. A propósito da exposição Topomorphias J OSÉ R. S ANTOS .............................................................. 61 Geografias da forma, S ÉRGIO M AH .............................................. 91 Notas biográficas .......................................................................... 100

6 conferências sobre Jorge Martins

J OSÉ A LBERTO F ERREIRA

Em Portugal, por muitas e variadas razões, a publicação de textos de reflexão teórica e crítica sobre a criação artística e sobre criadores permanece frequentemente académica e por isso afastada do grande público, quando não ausente do horizonte de interesses de editores e instituições. Se não houvesse outros motivos para publicar os textos destas seis conferências dedicadas ao pintor Jorge Martins, bastaria este para nos congratularmos por a Documenta, em boa hora, acolher este projecto no seu plano editorial.

Reúnem-se neste volume os textos das seis conferências realizadas no contexto da exposição Topomorphias, de Jorge Martins, patente no Centro de Arte e Cultura da Fundação Eugénio de Almeida, em Évora, entre Outubro de 2022 e Abril de 2023. Ao longo da exposição, desafiámos vários especialistas para partilharem as suas leituras do trabalho de Jorge Martins com o artista e com o público. Algumas dessas abordagens tiveram em conta a diversidade do percurso do artista, como aconteceu com Adriana Oliveira, que analisa a obra de revestimento arquitectónico (azulejo, madeira, pedra) que o artista vem realizando ao longo dos anos, porventura uma das facetas menos conhecidas da sua carreira nacional e internacional. Foi também o caso de Joana Baião, responsável pela transcrição dos escritos que o artista lançou em centenas de páginas entre 1964 e 2020, e que os preparou para a edição dos Cadernos | Cuadernos para a Documenta (com edição de Óscar Alonso Molina) e aqui apresenta as evidências do processo. António Guerreiro percorre esses mesmos textos, lendo-os em chave teórica em busca da «ideia de pintura» que atravessa a escrita breve e de tonalidade aforística do artista. José Gil, um dos autores que mais tem escrito sobre Jorge Martins, aproxima-se de Topomorphias

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articulando dois tempos axiais (sincrónico e diacrónico, ou o tempo do movimento e o tempo da alteração) com a dupla geografia que nas pinturas identifica, entre a densidade compacta e a multiplicidade labiríntica, abrindo vias de aproximação ao deslumbramento e ao «inanalisável» segredo com que nos confrontam aquelas obras. José R. Santos, por sua vez, lança uma hipótese pela qual ensaia surpreender as variações topológicas e as forças morfológicas presentes nas pinturas de Topomorphias, caminho que se estende por uma complexa rede teórica em intenso diálogo com as obras e os textos dos Cadernos de Jorge Martins. A fechar o volume, o texto que Sérgio Mah escreveu para o catálogo da exposição, retomando as razões destas «geografias da forma».

Em conjunto, estas seis conferências dedicadas a Jorge Martins convidam o leitor para uma viagem pelas complexas e subtis redes de pensamento que atravessam o seu notável trabalho de pintura, redes que se estendem ao horizonte inquieto da sua escrita e aos trabalhos de escala arquitectónica que acompanham a sua já longa carreira.

Na feliz ocasião de tornar estas seis conferências num livro, quero deixar uma palavra de agradecimento a todos os participantes, pelo empenho e dedicação. Ao Jorge Martins, que acompanhou todas as iniciativas com inexcedível atenção. E ao Manuel Rosa, por nos abrir de novo as portas da Documenta para mais uma aventura, e assim contribuir para que estas conferências cheguem a um público mais amplo e permaneçam um pouco mais além do momento em que aconteceram!

Novembro de 2023

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A cor do tempo: cronocromias

J OSÉ G IL

Sob a aparente imobilidade de grandes blocos de cor, sobre papel e sobre tela crua, ou das configurações de pequenos pontos ou fragmentos de coisas, uma extraordinária dinâmica atravessa todas estas pinturas, sem excepção. Não só agita as linhas e traços de certas telas com títulos musicais (Adagio retiniano, Suite para cordas, Ricercare, Pizzicato, Fuga), mas afecta as imagens mais aparentemente paradas, como as das grandes massas sobre um fundo liso, que se deslocam sem que se veja como. Dentro delas perpassam miríades de movimentos. Em muitos casos, os próprios títulos das telas assinalam a agitação permanente das figuras e cores: Deriva dos Continentes, Broken Island, Ilhas Flutuantes, Mudança de Fase, Flying Disorder, Im Abendrot, Slow Perception, Paisagem Lenta. Na verdade, as topomorphias de Jorge Martins desenvolvem tempos e movimentos que não admitem nem pausas nem paragens.

Concentremo-nos, para começar, nas pinturas em acrílico e em óleo que apresentam vastas superfícies bem delimitadas de cor que coexistem com fragmentos separados por espaços vazios, ou massas isoladas sobre fundo liso. Vamos supor, como nos sugerem vários títulos, que são «ilhas» rodeadas pelo mar (papel branco e tela crua). Não se trata de referentes perceptivos de representações miméticas, mas de associações misteriosas de imagens de que o título é apenas o indicador irónico. A imagem pictural não se refere à ilha real, nem esta àquela. Ambas parecem atrair-se pela semelhança dos contextos, mas dependem, de facto, de nexos desconhecidos, próprios do pintor. Daí a ironia de aquela imagem se chamar «ilha».

Vamos, então, supor que são ilhas no mar. Pangeia, Deriva dos Continentes tendem a confirmá-lo. Teríamos um primeiro grande movimento de divisão e separação a partir de uma unidade terrestre primeira. E todos os quadros não seriam mais do que representações variadas dessa clivagem e dessa deriva originárias. Acontece que

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as imagens que o pintor nos dá da Pangeia, da Gondwana e da deriva dos continentes contrariam a ideia de uma unidade primeira. Longe de mostrar um supercontinente unido e sem falhas, a Pangeia e a Gondwana aparecem esburacadas, com bocados de terra separados e como que estilhaçados por inúmeros braços de mar, lagos, vazios que os afastam, desde o início, uns dos outros. A Deriva dos Continentes apresenta deliberadamente dois pedaços de continente que não encaixam (contrariamente ao que se vê nos mapas da África e da América do Sul), pelo contrário, rejeitam-se com dois contornos em arcos de círculo exteriores um ao outro. Não se vislumbra uma unidade primordial de terra que, ao fragmentar-se, daria origem ao mundo e ao tempo. Ao invés, o movimento dos blocos continentais parece ser determinado pelos intervalos e espaçamentos. O traçado dos intervalos e das fendas seria prévio, ou pelo menos concomitante com a formação dos continentes. Mais do que ao despedaçar de um bloco único, o engendramento das formas seria devido ao que conviria chamar a fragmentação do vazio, do branco do papel, da tela crua. Vai-se do descontínuo ao contínuo (do conjunto das formas e do tempo), mas também, em certas telas, do contínuo ao descontínuo.

Assim, os quadros, na sua maioria, compõem-se de duas partes, uma formada por massas unidas, outra por fragmentos de vazio que delineiam fragmentos dos blocos que se partiram. Formam duas geografias diferentes, uma mais sólida do que líquida, em geral compacta e densa, a outra labiríntica, feita de múltiplos vazios que comunicam com o vazio maior que banha e envolve todas as superfícies terrestres. Duas geografias não só de formas, mas de movimentos que ecoam uns nos outros, produzindo tempos diferentes. Note-se a complexidade da rede de relações entre a forma, a força ou intensidade, o tempo, a cor e a sombra. Ora o exterior dos blocos exibe uma geografia dinâmica de grandes vazios que ressoa com a geografia das cores e sombras no interior dos blocos cromáticos, ora este puxa o olhar para um fundo escuro que contrasta (mas também converge) com o imenso vazio exterior envolvendo as ilhas. Ora o descontínuo das formas quebra o contínuo cromático do tempo das cores, ora o descontínuo das forças se impõe ao contínuo cromático das formas (Deriva dos Continentes). Ora o informe do mar choca com a forma dos continentes. Em todos os casos — em todos os quadros — parece estarmos em presença de uma

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Desde o final da década de cinquenta que Jorge Martins, movido por uma inesgotável e inconformada energia criativa, vem produzindo obras que configuram um mundo singular e incomensurável, onde se observam inúmeros fenómenos, movimentos, avanços, desvios ou regressos, mais acelerados ou subtis, sintomas de uma geofísica estética extraordinariamente idiossincrática. Através de uma mistura peculiar entre espontaneidade, experimentação e erudição, distingue-se uma prática artística que nunca se deixou enredar ou domesticar por conceptualizações prévias ou discursos legitimadores, prevalecendo uma atitude sempre disponível para se surpreender, para descobrir as contingências e as possibilidades de cada gesto, vivencial e pulsional, porque a arte, esta arte, começa e afirma-se nos movimentos generativos que são imanentes à sua produção.

Podemos dizer que é um artista que privilegia o uso do desenho e da pintura, e que a espaços recorreu à escultura e à fotografia. Podemos também constatar que no seu trabalho alterna períodos em que pende para a figuração com outros momentos em que impera uma clara preocupação formal e abstractizante. Apesar da sua coerência estética, a sua obra não permite discernir um desenvolvimento linear, embora se vislumbrem inclinações, obsessões momentâneas ou eixos de indagação que incidem frequentemente sobre as condições de possibilidade do desenho e da pintura. É igualmente possível assinalar um feixe de motivos e opções formais que evoluem de modo descontínuo e fragmentário, dificultando o ensejo de ordenar a sua produção por etapas cronológicas. Neste sentido, é mais profícuo encarar a produção artística de Jorge Martins como um conglomerado de temas, imagens e soluções gráficas, numa sucessão de práticas e assuntos entretecidos no seio de um movimento assistémico, em espiral, mas não necessariamente progressivo. É comum

91 Geografias da forma
S ÉRGIO M AH

o artista retomar ideias e experiências anteriores, sobrepondo temáticas, intersectando referências históricas, estéticas e conceptuais. Existem pinturas que demoram anos a serem concluídas. São colocadas em suspenso e terminadas mais tarde. Exemplos de uma investigação incessante, mas sobretudo de um entendimento que privilegia o tempo intrínseco à natureza única de cada desenho ou pintura. Por outro lado, com frequência nos damos conta de que detalhes de certas obras se tornaram pontos de partida para outras disquisições. Na verdade, a obra de Jorge Martins é reveladora de uma imensa proliferação rizomática, feita de imagens que se reenviam umas às outras, como pontos de origem ou de chegada, que reafirmam linhagens, parentescos e relações, em suma, um sistema conexo de variações e combinações de elementos simples (linha, ponto, figura, cor, luz, sombra, espaço, plano, superfície) que transitam por diferentes modalidades de expressão, não para afirmar as suas diferenças, mas fundamentalmente para estabelecer um campo mais abrangente de potencialidades, processos e pensamentos formativos.

A sua produção artística não se organiza por séries, contudo é possível reunir trabalhos que parecem deflectir de uma mesma ideia, tema ou processo criativo, ou que apresentam aspectos comuns, semelhanças, afinidades. Nestes casos, as diferenças ou variações que se manifestam nessas zonas de convergência permitem designar tentativas, insistências, repetições, sem nenhum fim em concreto que não seja o de experimentar para eventualmente encontrar um nexo, algo de singular. Em suma, é um artista que não segue um método criativo estável, que prefere o ímpeto nómada e perscrutador e não tanto a reiteração de fórmulas estéticas e técnicas já amplamente consolidadas e reconhecidas, privilegiando a incursão por novos territórios, domínios onde é possível seguir uma cadeia de transições e passagens, propiciadora de declinações estéticas e de desvios iconográficos oportunos.

Profundamente ecléctica, a obra de Jorge Martins cruza referências da literatura, da filosofia, da música, do cinema, motivos da realidade quotidiana e, naturalmente, da história da arte. Podemos encontrar aspectos que remetem para momentos fulcrais da história da arte ocidental, como o expressionismo abstracto e a colour field painting, a pop art, o minimalismo e as explorações da Supports/Surfaces, porém, distante de qualquer tipo de militância ou seguidismo, essas referências, que asse-

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veram a amplitude e a heterodoxia dos interesses e inspirações do artista, são frequentemente reformuladas ou subvertidas em muitos dos seus princípios estéticos e conceptuais. Com efeito, a sua impressionante versatilidade torna concebível a ideia de um artista composto por vários artistas, um artista de heterónimos, como chegou a sugerir José Gil. Ao multiplicar e desmultiplicar os motivos e a abrangência dos registos, o artista projecta uma multitude de hipóteses que tanto funcionam como motivação para si próprio, como estímulo lançado ao olhar dos espectadores. * * *

As obras reunidas nesta publicação foram escolhidas pelo artista seguindo um desejo prévio: o de conceber uma exposição a partir da sua produção mais recente em pintura. Algumas obras remontam ao início dos anos 2010, mas a grande maioria foi produzida após 2018, incluindo inúmeras obras realizadas durante o período do surto pandémico. É, pois, revelador que, num tempo de angústia, isolamento social e desencanto anímico, o artista não tenha esmorecido a sua verve criativa. Pelo contrário, o volume e a qualidade das obras patenteiam um fulgor inventivo que, contornando os constrangimentos do mundo exterior, compõem um imaginário pleno de luminosidade e vitalidade estética.

Sendo tão diversa a sua produção artística, é prudente não nos limitarmos a considerações gerais, porque subitamente iremos deparar com algo — uma obra, um tópico, um indício — que nos conduz para uma perspectiva divergente. Importa, pois, concentrarmo-nos nestas obras convocadas pelo artista, averiguar a composição e os encadeamentos plásticos e conceptuais que animaram a sequência e a distribuição das obras pelos espaços expositivos.

Comecemos por uma questão simples e inevitável: a presença do desenho na pintura de Jorge Martins. Existem naturalmente vários níveis de cumplicidade entre a sua produção em desenho e em pintura. Porém, também é certo que em ambas o artista realça as suas características autónomas e distintivas, que derivam do facto de implicarem outras condições na acção do artista com o plano da representação. Mas também é verdade que a sua obra em pintura não pode ser dissociada

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do desenho — como conceito, processo e experiência das formas —, também considerado enquanto presença matricial e equilibrante em qualquer prática de representação e composição gráfica.

Efectivamente, na obra pictórica de Jorge Martins sobressai essa compulsão pela experiência das formas, porém trata-se de um devir-desenho que é articulado com as condições materiais e técnicas da pintura, e com um trabalho que implica um tempo mais dilatado, abrangendo acções sucessivas, por fases ou etapas, incluindo gestos de refutação, retoque e reforço. Nesta selecção de pinturas encontram-se várias obras que partem de uma nítida vontade de ocupar a superfície da tela, de a percorrer num registo mais experimental ou reflectido, visando todas as direcções de forma rápida ou lenta, através da inventariação e de pontuações de cor variada ou através de traços rectos, curvos ou ziguezagueantes. O plano da tela é pensado como uma arena propiciadora de acções, um palco aberto que espera e admite os movimentos de um corpo expressivo. E é na acção contingente, e por vezes incerta e hesitante do corpo, que se encontra a intensidade e o nível de inscrição deste gesto pictórico.

O artista interessa-se pelos problemas imanentes ao fazer-desenho e ao fazer-pintura. Nesse sentido, é um trabalho virado para dentro, de si e do plano de inscrição, do papel, da tela, onde o acto criativo irá acontecer e materializar-se. Intuímos que poderia continuar para lá dos limites do plano, porém prefere sondar o que poderá encontrar no seu interior, onde poderão assomar os sinais e os vínculos de uma ficção imaginária e sensorial, em que as formas se vão desvelando e apagando, seguindo o seu próprio destino, como sintomas da nossa condição transitiva e efémera.

Ao artista interessam-lhe mais as forças generativas de formas do que as formas finais. O seu alento advém do processo, do que ocorre entre a cabeça e o que se faz com as mãos, que por sua vez define o espectro de possibilidades de obras que se fundam na fluidez da espontaneidade, na disponibilidade lúdica e na intuição. Por conseguinte, o que vemos são de algum modo «documentos» de uma performatividade radical e livre, que integra os imprevistos (os quais caracterizam o movimento da vida) e as contingências de uma pulsão criativa sem reservas, imune aos constrangimentos disciplinares, desafiando o pensamento e a proficiência técnica.

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Outro aspecto que sobressai nesta selecção de obras feita pelo artista é o predomínio de obras que podemos designar de abstractas. As excepções são: uma pintura em que, dispostos numa estrutura em grelha, nos é dada a ver uma série de volumes piramidais e cilíndricos, mas que a existência da linha do horizonte nos faz supor serem rochedos, montes e menires, que brotam do solo; um quadro que representa um muro de tijolos; e um conjunto de pinturas que figuram objectos feitos com um material dúctil (e.g. folha de papel, tela preparada, chapa metálica) que permite a sua modelação através de flexões e encurvamentos, e a conversão desses planos achatados e superficiais em objectos tridimensionais: uma pirâmide circular, quase completa, sem base ou interior; uma peça ondulante; e vários outros objectos que aparentam ser folhas de papel representadas no momento em que se fazem as primeiras dobras de um origami. Relembremos que a dobra é todo um tema na obra de Jorge Martins.

Cada face tem uma cor distinta e espessa, como se fossem dois monocromos unidos num corpo duplo, paradoxal. São esculturas pintadas, ou, dito de outro modo, exemplos do rebatimento pictural de três para duas dimensões. O cruzamento explícito da escultura e da pintura que se oferece à evidência do olhar. São objectos reconhecíveis, mas são objectos (pictóricos) fundamentalmente abstractos, que flutuam sobre o fundo branco do quadro. Descontextualizados, nada significam. Auto-suficientes, neutros, leves, consistentes, mas ocos, aparecem como objectos imponderáveis. Neste conjunto destaca-se, pela sua diferença e estranheza, a pintura de uma armadura, o motivo mais próximo da figura humana em toda a exposição. Um objecto sem o corpo que o usa. É o que resta da figura humana. Um corpo espectral.

Todas as restantes pinturas podem ser consideradas abstractas, no sentido em que não se referem às formas das coisas que conhecemos, são imagens esvaziadas das aparências e dos ruídos do mundo. Diante da superfície da tela, perante o suporte da representação, da pintura e da não-pintura, o artista entrega-se à experiência dos processos e formação da imagem plástica. Cor, luz, forma, movimento, matéria, mancha, sombra, tempo são doseados e enredados, com a razão e o devaneio, na construção de pequenos mundos, de planos totais.

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Observe-se um quadro de grandes dimensões (200 × 200 cm), terminado em 2021. Vemos uma mistura turva, atmosférica e psicadélica de cores. Podemos encará-la como uma visão imprecisa e difusa ocorrida num estado de alucinação ou simplesmente como uma retinal afterimage depois de termos passado algum tempo a olhar para o Sol. É uma pintura feérica, plena de efusão cromática, onde se sobrepõem manchas-cores, densas, desordenadas e desfocadas, a imagem momentânea no interior de um organismo perceptivo hipersensível. O pintor foi instigado por uma emoção abstracta. Porém, existe um elemento dissonante neste quadro: a demarcação de um rectângulo vertical entre o centro e a zona mais à direita do quadro. Uma dissonância óptica. Os contornos deste desenho geométrico são facilmente discerníveis porque a luminosidade é mais clara no interior. Podemos presumir a ideia de uma janela (eventualmente uma evocação distante e irónica à finestra aperta de L.B. Alberti) ou de uma porta separando dois mundos, o de cá e o de detrás da pintura, em que o plano físico da tela seria o locus primordial de passagens transfiguradoras, sensoriais, cognitivas e imaginárias. Ou podemos simplesmente entender essa demarcação interna como alusão à ideia do quadro dentro do quadro, ecrã dentro do ecrã, a poetização imaginária de um espaço físico propenso a projecções e reconversões de cor e luz.

Na maioria destas pinturas não existe propriamente um antagonismo entre figuração e abstracção. Se dissermos que estas obras não representam algo em concreto, no sentido em que não correspondem a aparências que ligam automaticamente o visível e o cognoscível, não queremos com isto dizer que perante estas obras não é expectável que ocorra a experiência da representação. Ora, sabemos que a prática do desenho e da pintura estão obviamente ligadas à nossa persistente compulsão por representar, por estabelecer continuidades, nexos, perceptibilidades com o mundo que nos habituamos a ver. É sabido que é necessário muito pouco para que o impulso de metaforização inicie o seu curso. Estamos no reino da estética, pródigo no desencadear de situações de pareidolia, apofenia, sinestesia. Nestas pinturas observamos vestígios informes, coisas transformando-se noutras, matérias suspensas no decurso de processos metamórficos. Projectam-se assim formas potenciais. Uma linha horizontal simula o encontro com uma paisagem, a divisão

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entre a terra/mar e o céu, a esquerda e a direita, o perto e o longe. Nos movimentos laterais, verticais e circulares da tinta acrílica intuímos deslocações de terra, cursos de água, a força do vento e a suavidade das nuvens. Somos assim confrontados com o desvelamento de formas remissivas, formas que inspiram possibilidades futuras, insinuações dirigidas aos nossos sentidos e à nossa capacidade de prosseguir, de desfiar infinitas virtualidades a partir do visível. A questão retorna: o que ver com o que estamos a ver?

A noção de território, de cartografia e de desenho geográfico vem muito a propósito quando olhamos para algumas das pinturas recentes de Jorge Martins. Atente-se às quatro pinturas em que áreas rectangulares e monocromáticas se destacam do fundo branco do papel, como que avançando na direcção do observador. Essas superfícies coloridas prefiguram territórios que foram sujeitos a supressões e cesuras, resultado de processos (plásticos, geológicos) que conduziram a vazios internos ou desmembramentos, fracturas e cisões topográficas. O contraste entre a camada de tinta, com a sua expressividade matérica e cromática, e a alvura do papel conferem uma fisicalidade surpreendente a estes segmentos monocromáticos, erguendo a pintura da platitude — uniforme, monótona, chata — do suporte. O branco do papel torna-se luz e forma, intervalo e espaço envolvente no prolongamento da reverberação de cada parcela de terreno com a sua cor irregular e orgânica.

Noutras pinturas assistimos a fenómenos análogos. Cada campo visual dispõe uma geografia de segmentos pictóricos. Dentro do plano, as coisas parecem estar soltas, suspensas e separadas, como se estivessem a decorrer vários microacontecimentos sem ligação entre si, ocorrências breves e declaradamente plásticas. Vemos figurações de espaços de cores trémulas (entre tons suaves e macios e outros mais refulgentes) que pairam sobre a superfície do papel. A sugestão topográfica confirma-se: pequenos continentes, penínsulas, ilhas, linhas estreitas e esvoaçantes que lembram rios que se cruzam ou que se reencontram em zonas de acumulação de água. São pinturas belas e tranquilas, de ressonâncias poéticas e musicais, disposições topográficas reconfiguradas por uma meteorologia aprazível de luzes, cores e formas. Mas aqui a beleza ou prazer não visam a indolência contemplativa ou a mera acomodação

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decorativa. Pelo contrário, são atributos que estimulam a indeterminação, o carácter enigmático da pintura, que desafiam a perplexidade de quem as observa.

É de referir que algumas destas pinturas foram precedidas de desenhos preparatórios. Esboços rápidos de pequena dimensão nos quais Jorge Martins exercita um jogo com linhas, limites, margens, fronteiras, dispondo zonamentos diferenciados no interior de cada plano. (Aqui se enuncia um dos sentidos possíveis para o termo topomorphias, o título escolhido pelo artista.) É um mapeamento que obedece a critérios que desconhecemos, também porque supomos serem, outra vez, averiguações gráficas que potenciam relações espaciais, hipóteses de composição. É, pois, inevitável que a imagem cartográfica ecoe por inúmeras pinturas. Mas existem também planos que parecem cortes no terreno. Linhas horizontais que dividem o subsolo da realidade entre a terra e o céu. Nesses casos, a percepção é reconduzida para o campo gravitacional do corpo. Num quadro, o azul abaixo dessa linha faz-nos pensar num mar subterrâneo. Noutro caso, podemos presumir movimentos geológicos, a ideia de massa em permanente transmutação, que se acentuam com o movimento denso e pesado, polimorfo e multicolor da tinta. O arrastamento da tinta indicia o envolvimento de um corpo, a acção da mão e braço do pintor, mas também as qualidades hápticas da pintura. Com efeito, é entre a espontaneidade e improvisação dos gestos e o raciocínio organizador e sábio que se rege o ritmo e o vigor da actividade pictórica de Jorge Martins, que é notoriamente fecunda nestas articulações, mesclando investidas a frio ou a quente, encontrando estados de pregnância entre o caos e a ordem.

No início dos anos oitenta, o artista realizou várias pinturas em que utilizava telas em estado cru, sem preparação, ou seja, em que assume o corpo da tela como matéria natural. Recentemente, Jorge Martins regressou a esse procedimento, ao integrar o suporte como elemento base da pintura e reiterando de algum modo a ideia de que toda a pintura é monocromática e abstracta na origem. Nestes quadros, territórios ou corpos de cor planam, caem, atravessam a superfície da tela. São realidades espaciais e pictóricas separadas entre si, porém entre elas não há vazio, porque evidenciam intervalos que actuam e vincam a sua materialidade, expandindo a bidimensionalidade do quadro a outras dimensões.

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Estas pinturas, que prosseguem qualidades transversais à sua obra, destacam-se pela singularidade e refinamento dos seus processos formativos e pela admirável polivalência e amplitude da sua sintaxe, isto é, a capacidade de o artista organizar os componentes da imagem e de fazer ressoar dimensões — estéticas, simbólicas, metafísicas — praticamente incontroláveis fora do plano da representação. Neste sentido, é no seio do trabalho plástico que o artista supera as supostas diferenças e tensões entre pintura e desenho, luz e cor, forma e composição, figuração e abstracção. Aonde nos conduz o Jorge Martins, através desta pulsão visual que se exprime com os meios parcos da sua pintura? Certamente a algo que não pode ser plenamente explicitado, porque cada obra é um capítulo, um desafio singular ou cena de trabalho de uma vida, que carrega consigo um desejo de ver, que anseia a experiência de um olhar perscrutador, o olhar do despertar, ávido e livre, susceptível de proporcionar esse movimento incontrolado e tacteante, em que a visão simultaneamente se detém e se desembaraça, para estimular a imaginação e a rememoração que renova o mundo a cada piscar de olhos, na procura de uma nova luz, o assombro de uma imagem sobre a qual ainda não dispomos de saberes apropriados.

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Notas biográficas

ADRIANA ANSELMO DE OLIVEIRA

Nasceu em 1976, em São Paulo, Brasil. Tem dupla nacionalidade, brasileira e portuguesa. É doutoranda em Ciências da Arte e do Património na Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa, e Mestre em Ciências da Conservação, Restauro e Produção de Arte Contemporânea na Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa (2016), tendo apresentado uma dissertação sobre Jorge Barradas e a sua azulejaria. É licenciada em Conservação e Restauro em Artes (Revestimentos Arquitectónicos) pela Escola Superior de Artes Decorativas Ricardo Espírito Santo Silva, Lisboa (2013), e em Artes Visuais pela Universidade Federal do Espírito Santo, Brasil, com a monografia Athos Bulcão e a Moderna Azulejaria Brasileira (2010). Desde 2015, trabalha na conservação e restauro de azulejaria, pinturas murais e outros revestimentos.

ANTÓNIO GUERREIRO

Foi jornalista cultural e crítico literário no jornal Expresso. É actualmente cronista no jornal Público. É um dos fundadores da revista

cultural Electra, publicada pela Fundação EDP, da qual é editor. É docente convidado na Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa. Tem muita colaboração dispersa em revistas, catálogos e publicações colectivas sobre arte e literatura. É autor dos seguintes livros: O Acento Agudo do Presente (2000), O Demónio das Imagens. Sobre Aby Warburg (2018) e Zonas de Baixa Pressão (2021).

JOANA BAIÃO

Historiadora da arte, investigadora no Laboratório de Artes da Montanha – Graça Morais, Instituto Politécnico de Bragança, membro colaborador do Instituto de História da Arte da NOVA FCSH, onde lecciona desde 2018. Licenciada em Artes Plásticas – Escultura (2005), Mestre em Museologia (2009) e Doutora em História da Arte – especialização em Museologia e Património Artístico (2014). Foi bolseira de pós-doutoramento (2016-2019) na NOVA FCSH e na École Normale Supérieure (Paris), com investigação à circulação artística entre Portugal e França no século XX. Colabora com diversas instituições em projectos dedicados à história da arte e da

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cultura em Portugal nos séculos XIX a XXI, e é autora de artigos e ensaios publicados em Portugal, Espanha, Brasil e França.

JOSÉ ALBERTO FERREIRA

Docente convidado na Universidade de Évora, onde lecciona disciplinas da área da história e teoria do teatro, da estética e da programação cultural. Desenvolve investigação na área do teatro, teatro de marionetas, edição, curadoria e programação. Tem colaboração dispersa em vários jornais e revistas, nacionais e internacionais. Dirigiu e produziu o Festival Escrita na Paisagem (2004-2012), no âmbito do qual programou projectos e criações de artistas nacionais e internacionais de âmbito transdisciplinar. Foi o curador português do projecto INTERsection:

Intimacy and Spectacle, integrado na Quadrienal de Praga 2011. Dirigiu e programou os «Ciclos de São Vicente», em Évora (2011-2017). Foi director artístico do Centro de Arte e Cultura da Fundação Eugénio de Almeida (2018-2023). Além de textos dispersos por catálogos e revistas, publicou os livros Uma Discreta Invençam (2004), sobre Gil Vicente; Da Vida das Marionetas, sobre os Bonecos de Santo Aleixo (2015). Editor de vários títulos, dos quais se destacam Escrita na Paisagem (2005), Autos, Passos e Bailinhos (2007), Teatro do Vestido. Um Dicionário (2018).

Colabora com várias organizações ministrando cursos e seminários.

JOSÉ GIL

Filósofo e ensaísta português, nascido em 1939, em Moçambique. Estuda Matemática na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. Muda-se para Paris e inscreve-se em Filosofia, concluindo a respectiva licenciatura em 1968, na Faculdade de Letras de Paris. No ano seguinte, faz o mestrado com uma tese sobre a moral de Kant, e em 1982 conclui o doutoramento com Corpo, Espaço e Poder, editada em livro em 1988. É professor de Filosofia no ensino secundário entre 1965 e 1973. É coordenador do Departamento de Psicanálise e Filosofia da Universidade de Paris VIII. Em 1976, regressa a Portugal para ser adjunto do secretário de Estado do Ensino Superior e da Investigação Científica. Foi Directeur de Programme do Collège International de Philosophie de Paris e professor na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa até 2010, tendo leccionado Estética e Filosofia Contemporânea. Autor de extensa obra ensaística em torno, entre outros temas, da poética de Fernando Pessoa (Fernando Pessoa ou a Metafísica das Sensações, 1987; O Devir-eu de Fernando Pessoa, 2010; ou O Espaço Interior, 1994), de reflexões sobre o corpo (Metamorfoses do Corpo, 1981) ou estudos sobre as mentalidades (sobretudo Portugal, Hoje – o Medo de Existir (2004). Publica também três livros de ficção (A Crucificada, Cemitério dos Desejos e Ao meio-dia, os pássaros). Em 2005, a revista Nouvel Observateur integra-o na lista dos 25 grandes pensadores do mundo. Nos

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últimos anos tem feito intervenções no espaço público, sobretudo nas áreas da educação e da política.

JOSÉ R. SANTOS

Nasceu em Évora, Portugal, a 21/12/1943. Licenciatura em Sociologia, Paris, Sorbonne, 1966. Mestrado em Sociologia, Paris, École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), 1969. Doutoramento em Antropologia Social e Etnologia, Paris, EHESS, 1995. Doutoramento em Antropologia do Simbólico e da Cultura, pelo ISCTE, Lisboa, 1996. Agregação em Ciências Sociais, Universidade de Évora, 2008. Várias décadas de ensino e investigação em França: de 1996 a 2000, Professor Auxiliar, na Universidade de Évora; de 2000 a 2008, Professor Associado; e de 2008 a 2014, Professor Associado com Agregação na Academia

Militar, Lisboa, onde se jubilou. Trabalhos em antropologia cognitiva, cante alentejano, rituais tauromáquicos.

SÉRGIO MAH

Licenciado em Sociologia e Mestre em Ciências da Comunicação. Actualmente, lecciona sobre Fotografia e Arte Contemporânea na Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa e na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Tem investigado e escrito sobre questões em torno da imagem, em especial sobre os domínios entre a fotografia,

o vídeo e o cinema. Concebeu para o Ministério da Educação os programas oficiais da disciplina de Fotografia do Ensino Artístico Especializado; foi o coordenador da residência artística «O Sítio das Artes» (2007), no âmbito do fórum cultural «O Estado do Mundo» da Fundação Calouste Gulbenkian, e coordenador e professor dos cursos de Fotografia (2005, 2008) do Programa de Criatividade e Criação Artística da Fundação Calouste Gulbenkian. Enquanto curador foi responsável por um número significativo de exposições individuais e colectivas, nas quais trabalhou com artistas como Jeff Wall, Thomas Demand, David Claerbout, Pedro Costa, Paulo Nozolino, Victor Burgin, Julião Sarmento, Joel Sternfeld, Roman Signer, Tacita Dean e Walid Raad. Foi o comissário-geral das edições de 2003 e 2005 da LisboaPhoto, e director artístico da PhotoEspaña entre 2008 e 2010. Foi o comissário da Representação Oficial Portuguesa à 54.ª Bienal de Arte de Veneza.

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Este livro reúne os textos das conferências organizadas por José Alberto Ferreira na sequência da exposição Topomorphias , de Jorge Martins, com curadoria de Jorge Martins e Sérgio Mah, realizada no Centro de Arte e Cultura da Fundação Eugénio de Almeida, em Évora, de 22-10-2022 a 9-4-2023.

© Sistema Solar Crl (chancela Documenta)

Rua Passos Manuel 67 B, 1150-258 Lisboa

imagens © Jorge Martins

textos © os Autores

ISBN: 978-989-568-130-3

1.ª edição: Janeiro de 2024

Fotografia: Francisco Pereira Gomes

Revisão: Helena Roldão

Depósito lega l : 526186/24

Impressão e acabamento: Europress

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