Charles Ferdinand Ramuz, «Derborence»

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DER BOR ENCE


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Charles Ferdinand Ramuz em 1923.


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Charles Ferdinand Ramuz

DERBORENCE

tradução e apresentação

Aníbal Fernandes


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TÍTULO DO ORIGINAL: DERBORENCE

© SISTEMA SOLAR, CRL (2017) RUA PASSOS MANUEL, 67B, 1150-258 LISBOA tradução © ANÍBAL FERNANDES NA CAPA: RENÉ MAGRITTE, LE DOMAINE D’ARNHEIM, 1938 (PORMENOR) REVISÃO: ANTÓNIO D’ANDRADE 1.ª EDIÇÃO, NOVEMBRO 2017 ISBN 978-989-8833-22-4 DEPÓSITO LEGAL 000000/17 ESTE LIVRO FOI IMPRESSO NA EUROPRESS RUA JOÃO SARAIVA, 10 A 1700-249 LISBOA PORTUGAL


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Charles Ferdinand Ramuz gostava que a linguagem rústica da sua literatura fosse sentida como um elaborado eco da sua própria linguagem; e que os seus leitores o restringissem a poeta de ficções, apaixonado pelo País de Vaud; foi tudo isto evidente na sua carta de 1924 a Henry Poulaille, quando forneceu os dados biográficos pedidos pelo editor Bernard Grasset: Nasci em 1878, mas não o divulgue. Nasci na Suíça, mas não o divulgue. Diga que nasci no País de Vaud, que é um velho país da Sabóia, ou seja, de língua d’oc, ou seja, francês e das margens do Ródano, não longe da nascente. Sou licenciado em letras clássicas, mas não o divulgue. Diga que me esforcei por não ser licenciado em letras clássicas, o que é no fundo verdade, que sou neto de vinhateiros e camponeses, e quis dar-lhes expressão. E dar-lhes expressão é engrandecê-los. A minha verdadeira necessidade é engrandecer… Vim muito jovem para Paris; e fiquei em Paris a conhecer-me, por causa de Paris. Durante doze anos passei sempre vários meses em Paris; e todas as minhas viagens foram desde Paris à minha casa, e desde a minha casa a Paris! (Com excepção de uma, feita por religião até ao mar, o meu mar, a descer o Ródano.)


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Há, porém, dificuldades nesta vontade; esta obsessiva vontade exigia-lhe que iludisse a sua verdadeira origem; não ligada aos camponeses que iam povoar de uma ponta à outra a sua literatura, mas urbana e com o conforto que podia dar-lhe um pai negociante de mercadorias africanas e vinho. Ao liceu, que frequentou perto de casa, acrescentou a universidade de Lausana onde se licenciou em letras clássicas. E depois destes estudos sofridos com hesitações e desencantos, não foi durante muito tempo professor no colégio de Aubonne nem preceptor em Weimar, onde tentou impregnar de cultura os filhos de um conde russo-branco com origens disfarçadas pelo nome Maurice Prozer. Ramuz arrastava-se, entediado, por estas ocupações, sentindo que só havia em si um escritor literário; ao princípio de poesia, como se viu em 1904 com o livro de versos Le Petit village, mas logo depois com Aline, o seu primeiro romance (acusado de contar a história de uma camponesa seduzida e sem nenhum sentido patriótico, achavam os seus compatriotas), e que era primeira pedra de uma vasta construção literária que se prolongou até 1947, o ano da sua morte. No entanto, em 1904 e tomado por um estranho capricho cultural, a Sorbonne de Paris impôs-se-lhe como desejável veículo para um doutoramento. E na sua Suíça romanda, ou seja, na de Vaud, ou seja, numa das que adoptaram a expressão francesa, imaginou-se a trabalhar e a vencer com uma tese que teria por tema o estranho escritor de poemas em prosa, lateral e pouco lido, Maurice de Guérin. Ramuz desembarcou em Paris, deu os primeiros passos que o destinariam a defensor de uma tese na Sorbonne, mas nunca chegou a escrever uma linha sobre Guérin. Vim por seis meses e fiquei lá mais de doze anos, lê-se numa sua prosa dos Cahiers d’un vaudois. Anos de sedução parisiense, de inquieta oscilação, com mais largos


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tempos de grande cidade do que amenidades paisagísticas do lago Leman, vividos com o reduzido conforto de um escritor de escasso êxito, divulgado sobretudo por edições suíças de reduzida circulação. Ramuz era um solitário. O suíço Albert Béguin, que o conheceu de perto, escreve em Pacience de Ramuz: «Só lhe vi segredo e reserva, mas não frieza e distância. Sob a aparência havia todo aquele fervor, aquele poder de poesia, aquele amor pelo que foi criado, que são a carne viva da sua obra. Tinha um destes corações feitos para amar, para desejar que o amassem, e que permaneceu insaciado. E essa grande tristeza de uma solidão que nunca pode ser quebrada, a não ser com o próprio acto do romancista que inventa personagens para construírem à sua volta a presença e a imagem de uma comunhão entre vivos e mortos.» Ramuz passou pela sedução de Paris até 1914, quando a Grande Guerra lhe fez compreender que a tranquilidade suíça era mais segura do que um centro de conflito como a França se destinava a ser. Já era autor publicado de oito livros em prosa, entre eles Jean-Luc persécuté (1908) e Vie de Samuel Belet (1913), mas de uma prosa ainda «bem comportada» e obediente na sua exposição à cronologia. Era um Ramuz que ainda não criava os anti-corpos nem as admirações incondicionais que se fizeram centro da futura divisão onde se arrumaram detractores e defensores em dois lados opostos e activamente antagónicos (em 1926 chegou a ser editado um livro de muitas colaborações que se intitulou A Favor e Contra C.F. Ramuz). Ramuz viria a ter incomodados leitores que o acusariam de escrever conscientemente «mal e com sintaxe pobre», mas também encantados defensores entre pesos pesados da literatura francesa: Cocteau, Rolland, Céline, Claudel… Céline arriscou-se a escrever


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que ele seria (além de si próprio) um dos autores de expressão francesa ainda lidos no ano 2000; e Paul Claudel anunciou: «Dentro de cinquenta anos as pessoas vão rir-se, ao folhear jornais, por verem quantos medíocres foram eleitos como celebridades nesses anos em que Ramuz, para a alegria de um bem pequeno número, publicava Joie dans le ciel ou La Guérison des maladies.» Este escritor, disposto a tornar inabalável a sua decisão de 1914 que o fez radicar-se sem desvios na Suíça, quis no ano anterior disfarçar a sua solidão com um casamento. Escolheu para isto Céline Pellier, pintora que ouvia elogios bondosos à baixa mediania dos seus quadros e se destinava a astro menor na vizinhança de um grande escritor, a esposa fiel numa união de trinta e três anos. Ramuz casado, escritor visionário com uma concepção poética da vida que exaltava os valores da ordem natural, ostentava a sua indiferença perante as seduções culturais que o tinham agarrado durante anos a Paris; vivia agora enraizado numa Suíça culturalmente tranquila e politicamente neutra, mas que aliciava nesses anos de guerra com as suas branduras; que se enchia de nomes célebres, fugidos às durezas maiores do conflito europeu. Igor Stravinsky, esse, desde há anos lá estava; tinha vivido com a estreia bailada do seu Pássaro de Fogo em Paris, mas pouco depois já compunha em Lausana Petrushka e recebia em Clarens aquela inspiração de todas as audácias que surgiriam somadas na sua A Sagração da Primavera. A Suíça dar-lhe-ia ainda A História do Soldado com texto de Ramuz, seu grande amigo nesses anos helvéticos, que desviava para uma forma teatral narrada e dançada um conto tradicional russo. Ramuz-escritor era agora polémico; surgia com uma força e uma fabricada ingenuidade de tom e de prosa que lembravam nos


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diálogos as artes primitivas. Punha leitores a tropeçar e a franzir o sobrolho perante repetições sábias, discordância de tempos, simplicidades «excessivas». Havia, no entanto, quem reconhecesse neste atropelo às normas estabelecidas um difícil trabalho de estilo. Oiçamos esta lucidez de Jacques Chessex: «Aos meus olhos, e sobretudo aos meus ouvidos, Ramuz é um escritor da escrita, tal como Flaubert era no final do século XIX o escritor da escrita. A anedota é o suporte. Flaubert tinha como ideal o livro sobre nada, e que pudesse manter-se de pé só pela força do estilo. Ramuz é exactamente isto. Em Ramuz há um tema, por certo, há uma anedota que pode ser o ciúme, a ambição, a riqueza, uma certa posição social, a solidão, ou uma determinada mística, mas o que acima de tudo conta é Ramuz escritor do estilo.» Esta disciplina exercia-se em histórias de combate entre a natureza magnífica mas cruel e o homem simples, e encontrava aí o necessário para construir o mais eficaz retrato da sua terra. Os homens de Ramuz são, em geral, homens vencidos pelo supremo poder da natureza. Ele próprio, em Besoin de grandeur escreveu isto: Os que vivem na natureza sentem-se todos os dias «ultrapassados», ultrapassados em todos os sentidos pelas suas dimensões, pelo seu mistério e pelo seu todo-poder, mas com isto acrescentados e enobrecidos. A partir de 1923 foi reconhecida ao escritor uma dimensão com direito aos prestígios da editora Bernard Grasset de Paris, que nunca abandonou apesar das insistências de Paulhan na Gallimard. Já é de Grasset o seu máximo êxito de público (La Grande Peur dans la montagne — 1926), mas ainda reedições de obras anteriores e La Beauté sur la terre (1927), por exemplo, e Derborence (1934).


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Derborence tem atrás de si uma realidade histórica e mítica. No Velho Testamento, O Livro de Job (14, 18) tira o carácter singular do estranho acontecimento de 1714: «A montanha cai e perece, o rochedo desaparece do seu lugar, a pedra é esfarelada pelas águas, e a terra levada pela sua corrente.» Também assim em Derborence. Esta alta montanha suíça tinha sob a sua imponência o frágil assentamento de camadas do primário e o terciário com espaços ocos entre elas, um peso de rochas, neves e florestas que a incitavam à desagregação. Os camponeses das suas encostas ouviam inexplicáveis ruídos que atribuíam aos Diabretes, seres fantásticos que a sua superstição enfeitava com histórias mais e menos macabras, mais e menos assustadoras. Naquele 23 de Setembro, por volta das duas ou três da tarde que era de um domingo — o cone gigante do Sex Diableret tremeu na base, e a alta barreira de rocha oscilou e ruiu ao longo da vertente. A monstruosa massa de pedra desfez-se, e os troncos robustos da floresta não conseguiram travar o seu fluxo. Os rios que ali corriam foram perturbados no seu curso, e vários se transformaram em lagos. Tudo foi rápido e mortal, como se regista numa crónica do padre paroquial de Ardon. Sabe-se que cinquenta e cinco, de um total de sessenta e quatro chalés, ficaram soterrados; catorze camponeses ficaram retidos e morreram dentro dos escombros, mais de uma centena de animais pereceu. Sabe-se, também, que um tal Sévérin Antonin conseguiu dois meses depois reaparecer. Tinha-se alimentado com queijo e pão seco, até descobrir uma possível mas difícil comunicação com o exterior. E conseguiu, nesta mesma aventura, libertar uma mulher. A catástrofe da Derborence de Ramuz nunca surge datada de um ano preciso; é no entanto esclarecido que devemos imaginá-la


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em Junho e com o seu mais alto momento em horas nocturnas; que o sobrevivente não se chama Sévérin Antoine, mas Antoine Pont; e não salva ninguém. E sabe-se hoje, também, que esta memória de um longínquo e brutal acontecimento no cenário da sua terra natal permanece como um dos mais celebrados títulos da sua literatura. Mais treze anos de actividade literária concederam-lhe um prestígio de estranho estilista com um sub-reptício virtuosismo que ele procurou reduzir a uma singela simplificação: Escrevi (tentei escrever) uma língua falada; a língua falada por aqueles do meio onde nasci. Menorização ocultadora de um grande trabalho de estilo, que Stefan Zweig retocou numa homenagem que o teve como centro: «Os temas de Ramuz são a cadeira de Van Gogh, a árvore de Hobbema, a violeta de Dürer, a maçã de Cézanne: a banalidade do quotidiano transfigurada, eternizada pela intensidade do artista. E ainda o dom de fazer a simplicidade sublime e o sublime simples; esta mistura de contenção e generosidade, este equilíbrio entre a arte requintada e a força primitiva. Aqui estão, segundo me parece, os seus mais belos segredos de artista, os que lhe valem toda uma admiração de colegas e amor dos seus leitores.» Derborence: a cadeira, a árvore, a violeta, a maçã de Charles Ferdinand Ramuz. A.F.


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PRIMEIRA PARTE


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i.

… Um pastor, que tinha desaparecido e fora considerado morto, passara vários meses sepultado num chalé, a alimentar-se de pão e queijo. Dicionário Geográfico

Ele agarrava com a mão direita numa espécie de longo bastão enegrecido na ponta, que por momentos mergulhava no fogo; a outra mão descansava na coxa esquerda. Era o dia 22 de Junho, por volta das nove horas da noite. Com o bastão fazia faúlhas levantarem-se do fogo; resistiam, agarradas à parede coberta de fuligem onde brilhavam como estrelas num céu negro. Ele, Séraphin, era por um instante mais visível quando mantinha o atiçador tranquilo; e também se via melhor outro homem à sua frente, muito mais novo e com os dois cotovelos de igual modo apoiados nos joelhos erguidos e a cabeça inclinada para diante. — Pois bem — dizia Séraphin, ou seja, o mais velho — estou a ver… Isto aborrece-te. Olhava para Antoine, e começou depois a mostrar um sorriso na barbicha branca. — No entanto não subimos há muito tempo até aqui.


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Tinham subido no dia 15 de Junho com os de Aïre e uma ou duas famílias da aldeia vizinha chamada Premier; não tinha sido há muitos dias, de facto. Séraphin voltara a espevitar as brasas onde deitara um ou dois ramos de pinheiro; e os ramos de pinheiro tinham começado a arder tão bem, que os dois homens eram perfeitamente visíveis, sentados um à frente do outro nos dois lados da lareira, qualquer deles na ponta do seu banco; um já de idade, seco, bastante grande, com pequenos olhos claros metidos em órbitas sem sobrancelhas, debaixo de um velho chapéu de feltro; o outro muito mais novo, entre os vinte e os vinte e cinco anos, com uma camisa branca, um casaco castanho, um pequeno bigode preto, cabelo preto cortado curto. — Ora, ora… — dizia Séraphin — até parece que estás no fim do mundo… Até parece que vais ficar separado dela para sempre… Abanou a cabeça e calou-se. É que Antoine só há dois meses se tinha casado; e é preciso notar que este casamento não fora feito sem trabalho. Órfão de pai e mãe, posto aos treze anos a servir como criado numa família da aldeia, amava alguém que tinha posses. A mãe dela não queria ouvir falar de um genro que não trouxesse ao lar a sua justa parte. Durante muito tempo a velha Philomène sacudira a cabeça para dizer: «Não!», e outra vez «Não!» e mais uma vez «Não!». O que teria acontecido se Séraphin não estivesse lá, quer dizer, exactamente no lugar necessário e com importância nesse lugar por ser irmão de Philomène, a senhora Maye, viúva, por não ser casado e ter mão firme nos assuntos da sua irmã? Ora, Séraphin tomara o partido de Antoine e acabara por levar a dele avante.


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O casamento tinha-se realizado em Abril; e Séraphin e Antoine agora andavam, como ali se diz, na montanha. A gente de Aïre tem o costume de subir por volta de 15 de Junho com os seus animais até às pastagens lá de cima; e uma delas é Derborence, o local onde os dois nessa noite estavam. Séraphin, que começava a ficar velho, levara com ele Antoine para lhe dar a conhecer o trabalho. Coxeava, não dobrava uma perna. E há pouco tempo os reumatismos tinham-lhe chegado ao ombro esquerdo que também começava a não prestar serviço, causando-lhe toda a espécie de contratempos uma vez que nesses chalés da montanha o trabalho não espera; é preciso mugir duas vezes por dia os animais e fazer todos os dias manteiga ou queijo. Séraphin levara consigo Antoine, esperançado em conseguir que ele dentro em pouco o substituísse. Mas a verdade é que o via com ar de não meter o dente (como é costume dizer-se) naqueles trabalhos novos, e longe da sua mulher amolecer. — Então, isso não vai melhor? — voltou a dizer-lhe. — Será assim tão mau teres-me por companheiro? Mas não pensava em si, só pensava em Antoine. Foi a Antoine que Séraphin voltou a dirigir-se por volta das nove horas desse 22 de Junho, à frente do fogo; e como a chama começava a baixar, voltou a alimentá-la e a reavivá-la com alguns ramos de pinheiro. — Oh! É claro que não — disse Antoine. E foi tudo; tinha-se calado. E como Séraphin também se tinha calado, sentiram à volta crescer uma coisa sem nada de humano e que era, com o tempo a passar, insuportável: o silêncio. O silêncio da alta montanha, o silêncio destes desertos de homens onde só temporariamente o homem aparece. Se


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um acaso, por breve que seja, o deixar em silêncio, apurando o ouvido ouvir-se-á que nada se ouve. É como se já nenhuma coisa existisse em nenhum lado, desde o sítio onde estamos até ao fim do mundo, desde o sítio onde estamos até ao fim do céu. Nada, o nada, o vazio, a perfeição do vazio; uma interrupção total do ser, como antes do começo do mundo ou mesmo depois do fim do mundo. E a angústia instala-se no peito onde uma mão se fecha à volta do coração. Por sorte o fogo recomeça a crepitar, ou uma gota de água cai, ou um pouco de vento arrasta-se no telhado. E o menor ruído é como um imenso ruído. A gota cai e ressoa; o ramo mordido pela chama estala como um tiro de espingarda; e só o roçar do vento chega para encher a capacidade do espaço. Há toda uma espécie de pequenos ruídos que são grandes e se repetem; nós próprios voltamos a ficar vivos por eles estarem vivos. — Vejamos então! Vejamos então! — tinha Séraphin recomeçado a dizer. O fogo volta a estalar. — Se no sábado quiseres descer… podes ficar na aldeia dois ou três dias e passar com ela o domingo… — E fica aqui sozinho? — Oh! Eu… Estou habituado a estar só — diz Séraphin. — Não te preocupes comigo. Começou a haver um sorriso na sua barba quase branca, embora o bigode continuasse preto — eram quase nove horas da noite de 22 de Junho em Derborence, no chalé de Philomène, onde estavam os dois homens sentados à frente do fogo. Por momentos qualquer coisa estalava no telhado. Ouviu-se Séraphin falar de novo:


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Os génios, seguido de Exemplos, Victor Hugo O senhor de Bougrelon, Jean Lorrain No sentido da noite, Jean Genet Com os loucos, Albert Londres Os manuscritos de Aspern (versão de 1888), Henry James O romance de Tristão e Isolda, Joseph Bédier A freira no subterrâneo, com o português de Camilo Castelo Branco Paul Cézanne, Élie Faure, seguido de O que ele me disse…, Joachim Gasquet David Golder, Irene Nemirowsky As lágrimas de Eros, Georges Bataille As lojas de canela, Bruno Schulz O mentiroso, Henry James As mamas de Tirésias — drama surrealista em dois actos e um prólogo, Guillaume Apollinaire Amor de perdição, Camilo Castelo Branco Judeus errantes, Joseph Roth A mulher que fugiu a cavalo, D.H. Lawrence Porgy e Bess, DuBose Heyward O aperto do parafuso, Henry James Bruges-a-Morta — romance, Georges Rodenbach Billy Budd, marinheiro (uma narrativa no interior), Herman Melville Histórias da areia, Isabelle Eberhardt O Lazarilho de Tormes, anónimo do século XVI e H. de Luna Autobiografia, Thomas Bernhard Bubu de Montparnasse, Charles-Louis Philippe Greco ou O segredo de Toledo, Maurice Barrès


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Cinco histórias de luz e sombra, Edith Wharton Dicionário filosófico, Voltaire A papisa Joana — segundo o texto de Alfred Jarry, Emmanuel Rhoides O raposo, D.H. Lawrence Bom Crioulo, Adolfo Caminha O meu corpo e eu, René Crevel Manon Lescaut, Padre Prévost O duelo, Joseph Conrad A felicidade dos tristes, Luc Dietrich Inferno, August Strindberg Um milhão conta redonda ou Lemuel Pitkin a desmantelar-se, Nathanael West Freya das sete ilhas, Joseph Conrad O nascimento da arte, Georges Bataille Os ombros da marquesa, Émile Zola O livro branco, Jean Cocteau Verdes moradas, W.H. Hudson A guerra do fogo, J.-H. Rosny Aîné Hamlet-Rei (Luís II da Baviera), Guy de Pourtalès Messalina, Alfred Jarry O capitão Veneno, Pedro Antonio Alarcón Dona Guidinha do Poço, Manoel de Oliveira Paiva Visão invisível, Jean Cocteau A liberdade ou o amor, Robert Desnos A maçã de Cézanne… e eu, D.H. Lawrence O fogo-fátuo, Drieu la Rochelle Memórias íntimas e confissões de um pecador justificado, James Hogg Histórias aquáticas — O parceiro secreto, A laguna, Mocidade, Joseph Conrad O homem que falou (Un de Baumugnes), Jean Giono O dicionário do diabo, Ambrose Bierce A viúva do enforcado, Camilo Castelo Branco O caso Kurílov, Irène Némirowsky Nova Safo — tragédia estranha, Visconde de Vila-Moura A costa de Falesá, Robert Louis Stevenson


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Gaspar da Noite — fantasias à maneira de Rembrandt e Callot, Aloysius Bertrand Rimbaud-Verlaine, o estranho casal O rato da América, Jacques Lanzmann As amantes de Dom João V, Alberto Pimentel Os cavalos de Abdera e mais forças estranhas, Leopoldo Lugones Preceptores – Gabrielle de Bergerac seguido de O discípulo, Henry James O Cântico dos Cânticos – traduzido do hebreu com um estudo sobre o plano a idade e o carácter do poema, Ernest Renan



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