«Pedro Cabrita Reis: A Voragem do Mundo — Conversas com Sara Antónia Matos e Pedro Faro»

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CÂMARA MUNICIPAL DE LISBOA

CONSELHO DE ADMINISTRAÇÃO DA EGEAC

ATELIER-MUSEU JÚLIO POMAR

vereadora da cultura Catarina Vaz Pinto

Joana Gomes Cardoso Lucinda Lopes Manuel Veiga

directora | curadora Sara Antónia Matos adjunta de direcção Graça Rodrigues conservação e produção Sara Antónia Matos Graça Rodrigues Pedro Faro Hugo Dinis Joana Batel comunicação Graça Rodrigues assessoria de imprensa Pedro Faro investigação Sara Antónia Matos Pedro Faro Hugo Dinis coordenação editorial Sara Antónia Matos serviços administrativos Isabel Marques Teresa Cardoso

apoio / parceria

visitas guiadas Teresa Cardoso Ana Gonçalves Joana Batel Atelier-Museu Júlio Pomar | EGEAC Rua do Vale, 7 1200-472 Lisboa, Portugal Tel + 351 215 880 793


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Cabrita Reis A VORAGEM DO MUNDO


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Cabrita Reis A VORAGEM DO MUNDO conversas com Sara Antรณnia Matos e Pedro Faro

D O C U M E N TA CADERNOS DO ATELIER-MUSEU Jร LIO POMAR


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ÍNDICE

Introdução, Sara Antónia Matos . . . . . . . . . . . . . . .

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Conversas com Sara Antónia Matos e Pedro Faro . . Atelier de Cabrita Reis, Abril de 2016 . . . . . . . . . . Atelier de Cabrita Reis, Maio de 2016. . . . . . . . . . Atelier-Museu, Junho de 2016 . . . . . . . . . . . . . . . Atelier de Cabrita Reis, Julho de 2016. . . . . . . . . . Atelier de Cabrita Reis, Setembro de 2016 . . . . . . . Atelier-Museu, Novembro de 2016. . . . . . . . . . . . Atelier-Museu, Janeiro de 2017 . . . . . . . . . . . . . . Atelier-Museu, Fevereiro de 2017 . . . . . . . . . . . . . Atelier de Cabrita Reis, Março de 2017 . . . . . . . . . Atelier-Museu, Abril de 2017. . . . . . . . . . . . . . . . Atelier de Cabrita Reis, Abril de 2017 . . . . . . . . . .

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INTRODUÇÃO Sara Antónia Matos [Directora do Atelier-Museu Júlio Pomar]

Cabrita Reis: A voragem do mundo. Conversas com Sara Antónia Matos e Pedro Faro insere-se na colecção Cadernos do Atelier-Museu Júlio Pomar e dá seguimento ao projecto de entrevistas que se iniciou com Júlio Pomar: O Artista fala… [2014], continuou com Rui Chafes: Sob a pele [2015] e teve seguimento com Julião Sarmento: O Artista como ele é [2016]. As entrevistas são feitas por ocasião do programa de exposições do Atelier-Museu, que cruza a obra do pintor com artistas convidados, mostrando novas relações daquele com a contemporaneidade. Periodicamente, durante a investigação, as conversas vão acontecendo, ora no atelier do artista, ora no museu, gerando-se um corpo de diálogos espaçados no tempo, que poderá servir para o leitor acompanhar e desvendar o processo de preparação da exposição, desde a sua concepção até às opções de montagem e materialização. De realçar que o projecto de exposição «Das Pequenas Coisas» foi construído passo a passo com Cabrita Reis, concorrendo estas conversas para definir as obras que entraram na

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exposição, o conceito a elas inerente, a forma de as apresentar no espaço, o título da exposição e as publicações. Desse modo, as conversas e períodos de investigação desenvolvidos com o artista revelaram-se fundamentais para a exposição que se centrou (por sugestão do próprio Cabrita Reis) nas assemblages de Júlio Pomar (realizadas sobretudo nas décadas de 1960 e 1970) e num conjunto de peças relativamente pequenas de Cabrita Reis, intimamente relacionadas com momentos da sua vida privada. Na verdade, através das conversas, veio a perceber-se que, embora não esteja explícito na materialização da obra, cada peça conta uma história e um episódio de vida. Como se verá ao longo das páginas que se seguem, as conversas abrangem questões relativas à vida pessoal, ao percurso profissional e aos posicionamentos ideológicos do autor, e para esta edição em particular Cabrita Reis convidou Júlio Pomar a ir conhecer o seu espaço de trabalho — local onde se fez a primeira gravação, na qual Júlio Pomar participou. A entrevista com Cabrita Reis, um artista com um percurso internacional reconhecido, deixa compreender os vários contextos em que o artista se move e como se posiciona em relação ao mundo. Uma vez que os vários diálogos aconteceram, todos eles, antes da inauguração da exposição, não foi possível registar e transmitir aqui um dos momentos mais empolgantes envolvidos na realização de exposições: a montagem das obras, as

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reviravoltas e surpresas que decorrem desse processo enigmático em que a intuição é geralmente rainha. Assim, esse processo permanecerá em segredo ficando apenas transcritas aqui as intenções prévias do artista quanto às formas que as obras vão tomar no espaço — deixando ao espectador o desafio de imaginar a intensa experiência que reveste esse momento. É, aliás, este momento em que o artista se mostra sem reservas — na sua força e nas suas fragilidades — que, no caso de Cabrita Reis, sempre me suscitou maior curiosidade. Vê-lo em acção, a movimentar-se no espaço, a dirigir os colaboradores e a manobrar as matérias, sem preconceitos formulados, é talvez uma das experiências mais avassaladoras, vulcânicas e intensas que um profissional pode experienciar. Como tenho dito em outras ocasiões, estas metodologias de trabalho, a transferência momentânea de papéis (entre artista e curador) na montagem da exposição, podem ser altamente produtivas para reinventar os modelos curatoriais mais clássicos, o que muitas vezes se revela extremamente interessante para o curador e para a instituição, na medida em que lhes mostra novas formas de actuação e lhes traz novos olhares sobre o acervo e sobre o espaço. Estas ocasiões tornam-se fundamentais para manter o museu como um espaço de ensaio, aberto e potenciador de liberdade crítica. Como adiante se verá, esta conversa com Cabrita Reis tem um carácter e um tom diferentes das que a precederam na colecção Cadernos do Atelier-Museu Júlio Pomar. Se a do

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artista que dá nome ao museu apresenta um carácter divertido (embora na sua informalidade faça afirmações incontornáveis), a de Rui Chafes é um statement pessoal, profundo e vinculado aos fundamentos que regem o autor na obra e na vida, e a de Julião Sarmento apresenta o artista «tal como é», talvez se possa dizer que a entrevista de Cabrita Reis é a mais bélica. Nela mostra-se combativo, revelando a persistência que o caracteriza na obra e na vida. Como o próprio deixa entender várias vezes ao longo das páginas, para si não há possibilidade de separação entre a pessoa e o artista. Arte e vida, em simbiose, fazem parte do seu modo de estar voraz em relação ao mundo. «Eu e o mundo alimentamo-nos mutuamente… […] Está tudo ao meu alcance, ao alcance da vontade, ao alcance do desejo de devorar. Só se ama, só se vive devorando o corpo amado. Neste caso, o “corpo amado” é o mundo inteiro.» Esta é a ambição das entrevistas: mostrar, através da voz própria, que cada artista é uma singularidade da qual a obra brota e explode para o mundo, mostrando-nos outras formas de estar e alternativas possíveis. O Atelier-Museu Júlio Pomar agradece a energia fulgurante com que Cabrita Reis se entregou à exposição e o modo, sem tabus, com que se mostrou nesta entrevista.

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conversas com Sara Antรณnia Matos e Pedro Faro


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Atelier de Cabrita Reis, Abril de 2016

Está a gravar. PCR: Estou muito contente que tenham vindo conhecer a minha casa e o meu atelier e que tenham trazido o Júlio Pomar para iniciar as conversas. O Júlio pode sentar-se nesta cadeira do topo, a Doutora Sara Antónia Matos ao lado e o Dr. Pedro Faro ao pé de mim. Por favor, deixemos os títulos de lado. Estamos muito bem acomodados e agradecemos o convite para almoçar. O Pedro quer ajuda com os tabuleiros? PCR: Sendo certo que não quero correr o risco de ser considerado machista…Vamos comer pargo no forno. Branco ou tinto? Júlio? Sara? Pedro? JP: Tinto. Faz bem ao coração. O Júlio conhece bem esta zona da cidade, Beato, Xabregas, ou a sua zona de movimentação em Lisboa é o centro? JP: As minhas referências e o meu perímetro de movimentação sempre foi o centro de Lisboa, o Chiado, definitivamente.

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O Café Chiado era um ponto de encontro para a malta da escola, onde muita coisa acontecia e sabíamos de outras tantas. Não quer dizer que não houvesse um pequeno sector de jornalistas que contribuíam para a divulgação dos eventos, mas extremamente reduzido. Os senhores mais consagrados, por assim dizer, frequentavam a Brasileira. Não era qualquer um que entrava na Brasileira. A Brasileira partilhava-se entre artistas, ditos modernos e outros mais conservadores. Gente já considerada ou consagrada. Na Brasileira encontravam-se diariamente, por exemplo, o Jorge Barradas, o Eduardo Viana e outros como o Almada — sempre actor de teatro, declamado num português muito particular, semipopular, semierudito. É preciso dizer que ele tinha passado não sei quantos anos com os jesuítas e o pai ia buscá-lo nas férias. Isto é um pormenor, importante, que vai determinar todo o comportamento do Almada. PCR: Isso em que ano? Estamos a falar de quê? Estamos a falar de trintas? JP: Não, não. Já depois disso. Quarentas. Então, nessas elites da Brasileira estava o Almada, que era sempre muito elogiante e amável para jovens artistas. O tom de falar era muito particular. Aliás, ele era muito melhor escritor do que pintor. Uma vez eu estava na Brasileira, sozinho numa mesa, ele chega, senta-se e pergunta: «Você tem trabalhado?», e res-

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ponde: «Eu não tenho quem trabalho me dar». Dizia que não tinha encomendas. PCR: Claro, era outra lógica. JP: Entre os tempos da altura e os tempos de hoje a diferença é abissal. PCR: Há quase um programa e os artistas têm de ser estrategas relativamente ao seu percurso. Programas e estratégias que, em parte, também deixam os artistas reféns de determinadas circunstâncias, pessoas, instituições, mercados. O facto de hoje não haver encomendas e de o trabalho ser mais autónomo, no sentido em que não tem de responder a programas de encomenda, muitas vezes ideológicos, também deixa os artistas reféns de uma espécie de percurso estratega que têm de fazer para sobreviver e impor o seu trabalho. JP: Estratega, exactamente. Essa é uma palavra que na altura não existia… Porque se os artistas não cumprem um determinado conjunto de exposições, se não passam por um certo número de instituições, se não conhecem determinados curadores, directores, coleccionadores ou galeristas, se não chegam a certos meandros, não alcançam determinados patamares e ficam fora. PCR: Sim, fora do sistema, fora do circuito de informação… fora.

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O Júlio estava a falar das relações entre os artistas mais velhos, nomeadamente o Almada, e a geração dele. E o Pedro, qual é a sua relação com os artistas mais novos? PCR: A minha relação com os artistas mais novos agora é menor do que no passado porque toda aquela parte da minha vida que está na base do coleccionar e do ir ter com as pessoas para ver o que estavam a fazer, já não a tenho. Como é que isso começou? PCR: Começou há muitos anos. Vinha muita gente ter comigo a pedir livros porque na altura não havia livros e eu tinha muitos. Tenho uma biblioteca de arte «pequena»! Digamos que tem para aí dois mil e tal volumes, mas neste momento está toda no Algarve, que há-de ser a minha casa no futuro. Um dia faço a mala, vou-me embora e já não volto. Porquê? PCR: Outra fase, de contacto com a terra.

Voltando à colecção, ao seu ímpeto para o coleccionismo e à forma como isso acabou. PCR: Essa altura foi muito intensa, mas o meu entusiasmo foi-se de alguma maneira atenuando porque houve um momento da minha vida em que acompanhar a produção dos jovens artistas deixou de ser a parte mais importante do meu trabalho. Tive de me dedicar ao meu próprio, de alma.

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Consta que os apadrinhava e que isso foi muito importante para alguns. PCR: Houve uma altura em que me orgulho de ter tido alguma, pequena, importância para o incentivo da produção dos artistas mais jovens. Escrevi muitas cartas de recomendação e essas cartas foram úteis. Ajudei muita gente das formas mais diversas, inclusive a financiar produções de exposições ou impressões de fotografias ou a arranjar dinheiro para catálogos ou para viagens. Lembro-me que uma das coisas que fiz foi ajudar um artista jovem por quem eu tenho imensa estima e respeito, e que tinha sido convidado para fazer uma exposição em Moçambique, mas o Estado não lhe pagava, ninguém lhe pagava, a viagem. Então, ele falou comigo e propôs oferecer-me uma peça em troco da viagem. Eu disse-lhe para ir que logo falaríamos. Isto para dizer que as coisas foram acontecendo desta maneira. Mas hoje os jovens artistas também já não precisam disto. Como estávamos a dizer anteriormente, o sistema realmente mudou. Essa parte da minha vida desapareceu de alguma maneira. Digamos que agora prefiro plantar árvores a fazer cartas de recomendação. Mas isso desaparece com a venda da sua colecção? PCR: Não. A venda da minha colecção teve como objectivo último deixá-la em mãos de quem tenha as condições exactas para a tratar, conservar e fazer aquilo que é mais im-

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portante: dar visibilidade aos trabalhos que a compõem, sendo certo que essa visibilidade é por inerência a projecção dos artistas que estão representados na colecção. Foi para isso que a passei para outros. E não tenho qualquer tipo de constrangimento em dizer que hoje prefiro o silêncio do campo aos debates sobre arte contemporânea. Mas tem noção de que quando adquiria uma obra de um artista, um jovem artista, essa compra era também uma forma de legitimação do próprio artista? PCR: Sem dúvida, tinha a noção de que o facto de ser eu a comprar e não outra pessoa qualquer daria ao trabalho em causa e ao seu autor um determinado tipo de visibilidade. Nunca fui inocente em relação a essa questão. Mas nunca foi essa responsabilidade que me levou a fazer a colecção. Fui comprando o que me apetecia e quando queria. Nunca tive uma directriz ou linha condutora para ficar com as peças. Há por aí colecções só de desenho, ou só de pintura, ou que só abrangem determinado período histórico. Eu, tal como na minha própria arte ou na minha vida, sempre fiz aquilo que me apeteceu. E fazia trocas directas com os artistas? PCR: Também. Provavelmente entre meados dos anos noventa e a altura em que vendi a colecção (2016), acumulei cerca de quatrocentas peças. Quando vendi a colecção já não

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combater sob todas as formas contra esses interesses. Assim sendo, pode dizer-se que sou a favor da guerra, o que não é necessariamente a mesma coisa que ter uma postura belicista. De alguma forma, e por caminhos enviesados, os pacifistas com as suas supostamente boas e humanitárias intensões, sustentam em limite o horror e a perpetuação da violência. Pode dizer-se que, em certas circunstâncias, a vida quotidiana, rotineira, comum, também é uma violência? PCR : A vida já por si é violenta por natureza. Vivê-la quotidianamente de uma forma banal, rotineira, desatenta, desapaixonada é levar essa violência a um extremo insuportável.

Atelier-Museu, Abril de 2017

Hoje gostávamos de voltar a discutir e decidir o título da exposição. A dada altura o Pedro tinha proposto «Tótemes», mas depois surgiu com outras ideias. PCR : Abandonei esse título, porque achei que o título da exposição devia ser composto só com os nomes dos artistas. Os nomes são o que expressa a individualidade, tema que tem ocupado muitas das nossas conversas. Temos falado tantas vezes sobre a individualidade, sobre a impossibilidade de mime-

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tismos, sobre a construção de territórios próprios e linguagens próprias, que os nomes são a melhor forma de traduzir e dar substância a esse encontro de autorias. De facto, nomear é criar existência. Portanto, o título da exposição ficaria… PCR : «Cabrita Reis e Júlio Pomar». Ao contrário. PCR : Sim, claro. Com certeza que sim. Tem de ser o homem da casa primeiro. Os nomes deviam ser separados apenas por um espaço. Nada a uni-los, nenhuma vírgula, nenhum traço. Existirá apenas uma coexistência dos dois nomes, dois artistas, um encontro num determinado território. Acho que faz todo o sentido. Percebem a minha ideia? De acordo. «Júlio Pomar Cabrita Reis». PCR : Imagino que o Júlio perceba e que não tenha nada contra, não é? Não terá com certeza. Pelo contrário, o Júlio está entusiasmadíssimo com a exposição. PCR : Pensando agora no espaço de exposição. O chão está sobre terra ou há alguma coisa para baixo?

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Há um piso técnico, com ar condicionado, que foi afundado. Se o Pedro reparar, as janelas dão pelos joelhos. O edifício tem cento e tal anos… PCR : Só queria informar-me o mais possível. Talvez me apetecesse fazer uma peça em que ando a pensar há muito tempo, uma peça de grande escala. Na linha dos meus compounds, mas desta vez horizontal e com seis metros de comprimento, três de altura e três de largo. É um empilhamento grande, alto, de tubos de alumínio mas inteiros, com seis metros de comprido. Uma peça que funcionaria em altura. Eu sempre quis fazer essa peça, nunca tive a ocasião de a fazer e poderia ser feita aqui. De facto, seria interessante trabalhar o eixo vertical, em altura — coisa que ainda ninguém fez. De qualquer modo, chamamos à atenção para os acessos. Os perfis com seis metros de comprimento não entram. O Hugo Dinis, curador da exposição referente ao Prémio de Curadoria 2016 — AMJP/EGEAC, incluiu uma peça com cerca de quatro metros de altura, mas entrou no espaço em pedaços. PCR : Pois, os acessos são terríveis, não só para entrar como para descarregar. Como é que as carrinhas vêm aqui descarregar? É um sarilho, de que as pessoas não se lembram mas com o qual a equipa do museu e os profissionais têm de lidar.

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PCR : Seis metros, um camião, rua fechada. Polícia. Entra o camião; o camião tem de entrar pelo lado do liceu. É um sarilho possível, mas é um sarilho.

De qualquer modo, já escolhemos muitas peças do Pedro e julgamos que a exposição tem uma determinada coerência, de outra natureza: peças pequenas, de certa forma íntimas, flashes ou momentos privados que o Pedro viveu e que até remetem muito para a sua história pessoal. Não devíamos abdicar das peças já escolhidas e das ideias a elas subjacentes. PCR : Certo. É por isso que esta exposição no Atelier-Museu vai ser um momento especial. Remete mesmo para a minha vida privada, para o meu império das pequenas vivências, dos momentos quase imperceptíveis, das pequenas coisas, que na verdade têm mais importância do que parece. Vamos mostrar que a escala pode não ter nada que ver com a força da peça, que uma peça pequena pode ter mais força do que uma peça de grandes dimensões. Há artistas que tendem a afirmar-se pela escala e pela dimensão esmagadora dos trabalhos e aqui parece-nos importante mostrar que o Pedro também trabalha a pequena dimensão. Entre as maiores que escolhemos está o Vulcano e o pneu desenrolado. PCR : Essa peça, um pneu rebentado de camião que encontrei na beira da estrada numa das minhas viagens ao Algarve,

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chama-se Purgatory. Quanto ao Vulcano, tem uma base que é uma bigorna que me foi oferecida pelo Zé Andrade, um homem que, durante os catorze anos em que levou e trouxe o meu filho António da escola, jamais chegou atrasado ou faltou sequer um dia ao trabalho. Gente desta já não há. Tive essa bigorna anos no meu atelier à espera. Um dia soldei-lhe uma marreta e também uma viga de ferro, um resto de Absent Names — uma das duas peças que em 2003 apresentei na Bienal de Veneza. O que pensa o Pedro da vertente lúdica da arte? Interessa-lhe? PCR : No máximo, posso interessar-me por um twist qualquer que uma obra de arte possa ter, ou algum laivo de ironia, se for o caso. Mas essa vertente dita lúdica não só não interessa como me enjoa à náusea. Nada pior que os supostos objectos de arte com que o publicozinho pode interagir, pode carregar em botões que fazem coisas ridículas, e cuja verdadeira utilidade para mim é servirem de fundos para selfies imbecis. Todas as selfies são imbecis. E os ditos artistas que fazem obras dessa natureza e com esses objectivos não o são menos. Voltando às peças escolhidas para a nossa exposição… Há umas que temos na memória que têm de vir. Já não vemos a exposição sem elas. Mas podemos escolher mais uma ou duas peças de maior dimensão.

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PCR : Os problemas de escala ficam resolvidos com as peças maiores que podem ser colocadas no centro do espaço, o que faz que tudo o resto tenha de ser de parede, peças de parede. Além disso, e como me conheço, sei de antemão que durante a própria montagem desta exposição não resistirei a fazer dois ou três trabalhos novos. É sempre assim, tem sido sempre assim. A minha exposição itinerante que começou em Hamburgo em 2009 e terminou aqui no Berardo em 2011, depois de passar sucessivamente pelo Carré d’Art em Nîmes e no museu M em Lovaina, começou na Alemanha com um conjunto determinado de obras, e quando terminou aqui em Lisboa trazia no mínimo mais umas dez ou quinze peças novas. É exasperante assistir à abertura das caixas, ao desembrulhar das obras e a todo esse processo demorado, que tem de ser rigoroso e meticuloso, sem o amenizar com a realização de uma ou outra peça nova que se me impôs porque, ao visitar as reservas do museu, vi lá um objecto qualquer pelo qual me apaixonei e que o director do museu acabou por me oferecer para eu poder então fazer a peça que queria.

A maior parte das assemblages que escolhemos do Pomar também são peças de parede. Desse modo é desnecessário construir suportes — que o Pedro tanto detesta. Vamos manter aquela ideia do Pedro de não identificar as peças com os nomes dos autores, não dizendo se são do Júlio Pomar, se são suas?

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CADERNOS DO ATELIER-MUSEU JÚLIO POMAR D O C U M E N TA


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Caveiras, Casas, Pedras e uma Figueira Júlio Pomar, Álvaro Siza Vieira, Luís Noronha da Costa, Fernando Lanhas Textos de Sara Antónia Matos, Delfim Sardo Notas Sobre uma Arte Útil — Parte escrita I (1942-1960) Júlio Pomar Edição de Sara Antónia Matos, Pedro Faro Da Cegueira dos Pintores — Parte escrita II (1985) Júlio Pomar Tradução de Pedro Tamen Introdução de Sara Antónia Matos Organização de Pedro Faro Tratado dos Olhos Júlio Pomar Textos de Sara Antónia Matos, Paulo Pires do Vale, Catarina Rosendo Temas e Variações — Parte escrita III (1968-2013) Júlio Pomar Apresentação e organização de Sara Antónia Matos, Pedro Faro


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O Artista Fala… Conversas com Sara Antónia Matos e Pedro Faro Júlio Pomar, Sara Antónia Matos, Pedro Faro Fotografias de Luísa Ferreira Incandescência — Cézanne e a pintura Tomás Maia Apresentação de Sara Antónia Matos Edição & Utopia — Obra gráfica de Júlio Pomar Textos de Sara Antónia Matos, Maria Teresa Cruz, Pedro Faro Júlio Pomar e Rui Chafes: Desenhar Textos de Sara Antónia Matos, João Barrento, Maria João Mayer Branco Rui Chafes: Sob a pele. Conversas com Sara Antónia Matos Rui Chafes, Sara Antónia Matos Prémio de Curadoria 2015 — AMJP/EGEAC Projecto curatorial de Maria do Mar Fazenda, Vários artistas Textos de Sara Antónia Matos, Maria do Mar Fazenda Decorativo, Apenas? — Júlio Pomar e a integração das artes Organização de Sara Antónia Matos Textos de Júlio Pomar, Sara Antónia Matos, Catarina Rosendo


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O Museu como Veículo de Desenvolvimento Crítico e Social Organização de Sara Antónia Matos Textos de Sara Antónia Matos, Liliana Coutinho Fotografias de Teresa Santos Julião Sarmento: O Artista como ele é. Conversas com Sara Antónia Matos e Pedro Faro Julião Sarmento, Sara Antónia Matos, Pedro Faro Void*: Júlio Pomar & Julião Sarmento, Vol. I Textos de Sara Antónia Matos, Alexandre Melo, Pedro Faro Void*: Julião Sarmento — Dirt, Vol. II Textos de Sara Antónia Matos, Alexandre Melo, Pedro Faro Void*: Júlio Pomar — Obras destruídas, Vol. III Textos de Sara Antónia Matos, Alexandre Melo, Alexandre Pomar, Pedro Faro Estranhos Dias Recentes de um Tempo Menos Feliz Prémio de Curadoria 2016 — AMJP/EGEAC Projecto curatorial de Hugo Dinis, Vários artistas Organização de Hugo Dinis Textos de Sara Antónia Matos, Hugo Dinis, José Neves, Carmo Sousa Lima, Alexandre Quintanilha, Miguel Vale de Almeida, Tiago Castela


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Júlio Pomar e Cabrita Reis — Das pequenas coisas Júlio Pomar, Cabrita Reis Texto de Sara Antónia Matos Cabrita Reis: A voragem do mundo. Conversas com Sara Antónia Matos e Pedro Faro Cabrita Reis, Sara Antónia Matos, Pedro Faro Táwapayêra Dealmeida Esilva, Igor Jesus, Júlio Pomar, Tiago Alexandre Textos de Alexandre Melo, Pedro Faro, Sara Antónia Matos


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© Atelier-Museu Júlio Pomar / Sistema Solar, Crl (Documenta), 2017 Textos © Sara Antónia Matos, Pedro Faro e Cabrita Reis 1.ª Edição, Dezembro de 2017 ISBN 978-989-8834-99-7

colecção Cadernos do Atelier-Museu Júlio Pomar apresentação Sara Antónia Matos edição de texto Sara Antónia Matos Cabrita Reis transcrições Rita Ferreira design gráfico Manuel Rosa revisão Helena Roldão

Depósito legal: 435888/17 Este livro foi impresso na Gráfica Maiadouro, SA Rua Padre Luís Campos, 586 e 686 – Vermoim 4471-909 Maia



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