Battling Malone, Pugilista

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BATTLING MALONE PUGILISTA

Louis Hémon

BATTLING MALONE PUGILISTA

tradução e apresentação

Aníbal Fernandes

TÍTULO ORIGINAL: BATTLING MALONE, PUGILISTE

© SISTEMA SOLAR, CRL

RUA PASSOS MANUEL, 67B, 1150-258 LISBOA tradução © ANÍBAL FERNANDES, 2023

1.ª EDIÇÃO, JUNHO DE 2023

ISBN 978-989-568-094-8

NA CAPA: GEORGE WESLEY BELLOWS, PRELIMINARIES TO THE BIG BOUT (1916)

REVISÃO: DIOGO FERREIRA

DEPÓSITO LEGAL 518028/23

IMPRESSÃO E ACABAMENTO: ULZAMA

No dia 26 de Junho de 1913, dois homens com os bolsos quase vazios saíram de Montreal a pé e tomaram a direcção oeste, levando dentro de si a esperança de trabalho num Canadá menos urbano onde as ceifas e as colheitas pediam, sob fortes calores do Verão, o extraordinário esforço de muitos voluntários. A viagem seria longa. Mas em 8 de Julho, os quilómetros dia a dia vencidos já lhes mostravam campos a norte de Ontário. Andar ao longo de vias férreas era mais cómodo; elas correm com um monótono paralelismo por terrenos planos e poupam ao caminhante o imprevisto de incontáveis obstáculos. Nesse dia, às dezanove horas e vinte minutos, o seu fácil caminho tinha-os posto num par de carris acompanhado por outro par; e neste par, a correr com uma grande velocidade de comboio cumpria o seu horário o Canadian Pacific Railways, que iria passar por eles com as emoções de uma vertigem mas sem fazê-los enfrentar um verdadeiro perigo. No entanto estes dois homens, diríamos que sob o impulso de uma idêntica alucinação, saíram subitamente do seu desimpedido entre-linhas para enfrentar ao lado e de frente a locomotiva. Não houve travões que moderassem a tempo o veloz Canadian.

Um destes dois suicidados tinha origem australiana e chamava-se Harold Jackson; homem sem história nem qualidades que nos justifiquem uma demora à volta de palavras para o contar; o outro, com trinta e três anos era francês, chamava-se Louis Hémon e tinha passado por uns quantos momentos de escritor; vários romances seus desesperavam na tranquilidade injusta de uma gaveta — rejeitados por sucessivos editores de olhar enevoado

— romances que passaram, com esta decorativa sombra do suicídio, a dar-lhe uma persistente celebridade póstuma.

No dia 8 de Maio de 1904, quando pediram a Louis Hémon que escrevesse algumas palavras autobiográficas para um jornal desportivo onde ele colaborava como articulista e contista, começou por dizer: «Nascido em Brest — 12 de Outubro de 1880 — nascimento não acompanhado por nenhum fenómeno meteorológico.» E dois anos depois, com este mesmo tempo meteorologicamente calmo, já ele vivia em Paris as amenidades de uma infância protegida, a de um filho de professor de letras no Lycée Charlemagne. Tinha dois irmãos — Félix e Marie — mais velhos do que ele. Desde cedo a literatura lhe interessou; e veio mais tarde a afirmar que as suas primeiras seduções andaram por Jules Verne, Maupassant, Kipling e Dickens. Mas reconhece que foi, nas horas não preenchidas por leituras, um adolescente melancólico que muito sofreu nos seus «dez anos de externato num liceu negro — preenchidos por estudos sem brilho; com toda uma combatividade que desaparecia perante a lenta opressão dos temas gregos.»

Depois deste detestado liceu estudou o Código de Napoleão na Sorbonne, em aulas pouco excitantes da Faculdade de Direito, mas complementou-as com momentos de uma grande liberdade desportiva — «todos os dias no Bosque, desde as cinco às sete da manhã, eu no lugar de trás de uma bicicleta de assento duplo; mas também no velódromo… e numa outra iniciação: futebol, corridas a pé (joelhos onze vezes esfolados), esgrima, atletismo, desportos náuticos.»

Foi a par deste Direito pouco atractivo que ele fez estudos de anamita, rematados por um diploma que o dava como entendido «em línguas orientais». Louis Hémon queria ver-se com esta base linguística perante as realidades de uma qualquer civilização exótica; em 1901 chegou a fazer um concurso de entrada na Escola Colonial, e foi seleccionado; mas quando a

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sorte das colocações lhe designou um lugar em África, sem lhe oferecer o tão sonhado Oriente Asiático, desistiu.

Louis Hémon, com dezanove anos de idade e a sentir dentro de si a grande desilusão do sonho oriental, teve vontade de se aperfeiçoar no inglês; e a sua família, com desenvoltura material para enfrentar os custos desta nova decisão, manteve-o como estudante em Oxford (entre 1899 e 1901), cidade desse inglês enfático que aspira com insuperável elegância os seus hagás. Mas a verdade é que Hémon se interessava mais por outra Inglaterra — menos erudita e com seduções de grande metrópole. Por isso resolveu em 1902 sair da França e instalar-se por conta própria em Londres, onde viveu durante nove anos — com dias mais altos e mais baixos, aqueles que o fizeram por diversas vezes apelar à benevolência dos subsídios familiares. O romancista Hémon, se exceptuarmos o seu último título, é desta fase londrina. E é também de Londres o praticante de boxe (com números do seu físico que ele próprio registou): «Peso sessenta e dois quilos, tenho um metro e sessenta e oito de altura, um metro e dois centímetros de peito, trinta e cinco de bíceps.» Marsillac, um amigo seu, elucidou-nos sobre o que mais se destacava ao olhar de quem o via: «A pele clara, os olhos azuis, o cabelo tão louro como o bigode que escondia dentes um pouco amarelados pelo tabaco; com magreza musculada e andar ligeiro, Hémon tinha a esbelteza de um galgo.»

Em Londres, entre as previsíveis ocupações mal pagas de quem aceita todos os trabalhos para subsistir, este boxeur-romancista fez-se (com pouco êxito) representante comercial de algumas firmas francesas; e também teve, nesta difícil vivência londrina, o único caso amoroso da sua vida — uma moderada atracção sexual por Lydia O’Kelly, actriz de teatro irlandesa que nunca ultrapassou nos palcos a lateralidade dos pequenos papéis; relação com o grande contratempo de uma filha — Lydia Katheleen — desde muito cedo entregue aos cuidados de uma tia materna, devido ao definitivo internamento da sua mãe numa clínica psiquiátrica.

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Nestes tempos de Londres, o Hémon escritor publicou artigos e contos na revista francesa Le Vélo, e a sua história La Foire aux vérités até ganhou um prémio de cento e cinquenta francos; mas o seu primeiro romance, Colin-Maillard, foi recusado por vários editores; e o mesmo aconteceu com Battling Malone, pugilista e Monsieur Ripois et la Némesis, não aceites por aqueles que os tiveram para avaliação, bem como o livro de contos intitulado La Belle que voilà.

Quando Hémon se sentiu farto das suas dificuldades londrinas, lembrou-se de que havia no outro lado do Atlântico um Canadá; um Canadá onde se falavam as línguas francesa e a inglesa, que ele dominava; e em 7 de Outubro de 1911, com um bilhete na mão que lhe permitiria fazer a bordo do Virginian a travessia Liverpool-Québec, despediu-se da Europa. «Sete dias de mar», dirá numa primeira carta canadiana; «bom mar com uma ondulação moderada que o não torna incómodo, e com a que lhe basta para não se tornar insípido.»

Mas o seu Canadá começou, desilusão sua, por não lhe oferecer mais do que trabalhos indiferenciados numa herdade de Péribonka. E meses depois desta agricultura que muito menos lhe dizia do que o desporto e a escrita, viu-se entregue a trabalhos de agrimensor nos bosques da mesma região. Era um pouco melhor, mas também não lhe agradava. Acabaram por parecer-lhe mais toleráveis as horas de secretária a que se obrigava num escritório de Saint-Gédéon e depois noutro, em Kénogami, por fim em Montreal como tradutor e estenógrafo na firma Lewis Brothers. Foi com estas serenidades de escritório que voltou a surgir o Hémon escritor de romances; o que tinha escrito vários, não publicados, onde se reflectiam as suas más experiências de Londres, mas que ia agora mostrar-se como romancista «do Canadá», criador de uma personagem feminina que foi considerada vítima exemplar dos perversos vectores sociais da sua ruralidade machista. Hémon foi autorizado pelos seus empregadores a utilizar durante a noite a sua secretária para dactilografar ali a história pessimista a que ele deu o nome de Maria Chapdelaine.

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Há vários indícios biográficos desta época que podem fazer-nos crer que as desilusões londrina e canadiana faziam-no olhar para a vida com bastante desencanto. E dá-nos disto algum vislumbre a carta que em 19 de Maio de 1913 escreveu ao seu pai (cinco semanas antes de olhar de frente para a morte que o Canadian Pacific Railways lhe ia a grande velocidade oferecer), objectiva, sem ódio mas isenta de qualquer espécie de brandura:

«Recebi a tua carta de 3 de Maio, com outra que me era dirigida e vinha aberta. Li as explicações que deste sobre este facto: que a carta tinha sido aberta apressadamente e por engano, embora os meus nomes e sobrenomes claramente expostos no sobrescrito façam essa hipótese difícil de acreditar; e que depois de aberta, confrontado com um carta escrita em inglês que começava por Cher Mr. Hémon, houve a calma suficiente para ver a quem ela era endereçada, etc. Lamento não encontrar em mim candura suficiente para achar isto verosímil. Se a abertura dessa carta pode ter sido um erro, a sua leitura não foi mais do que uma grosseira indelicadeza.[…]

«Há uma menina — com quatro anos — de quem sou inegavelmente o pai. Não houve nesse caso casamento nem sedução (longe disso). A mãe merece que a estimem? Que seja estimada por quem? Ao que imagino, vocês e eu não vemos estas coisas da mesma maneira. Essa pergunta nem sequer pode fazer-se. E, a ser feita, eu responderia que sim. Mas a pergunta não pode fazer-se porque essa mãe merece, bem mais, que a lamentemos. Está de momento internada no asilo de alienados de Hanwell, e atingida por uma loucura provavelmente incurável.[…]

«Há na tua carta uma frase infeliz. Magnânimo, queres dizer-me que falas, ou antes, escreves sem indignação nem cólera. És muito bom. Muito bom ao ponto de repelires a indignação num caso do qual nada sabes. Muito bom por conteres a cólera quando pensas nestes desenfreados desvarios que são, como é evidente, o lamentável nascimento de uma criança que ninguém quis, o parto, os meses de amamentação feitos sob uma ameaça de loucura. Sim! Diverti-me muito por teres escrito: “Aqui está no que deu a

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nossa grande complacência!” Disto só posso compreender uma coisa: fazes alusão ao dinheiro que eu, de facto um imbecil e um cobarde, durante muito tempo vos tirei. Se te desolas com o pensamento de que esses subsídios me ajudaram a pagar as despesas da criança, nada terei a dizer-te. Deixo-te ficar com esse desgosto por aquilo que ele vale. Porque em tudo isto é preciso pôr a hipocrisia de lado; em casos destes, até a moral burguesa só costuma censurar a vinda da criança, e não o pai por ele não ter vivido numa inverosímil castidade.

«Mais uma vez vos não peço nada, e nada vos compete fazer. Farei eu o que puder, e aquilo que à minha maneira vou pensar que tenho de fazer sem fiscalização e sem conselho. Aconselho-vos a não tentarem fazer seja o que for, exteriormente a mim e contra o que eu quiser. E não voltem ao assunto.»

No dia 26 de Junho, Louis Hémon despediu-se da firma Lewis Brothers. E nesse mesmo dia, dois homens de bolsos quase vazios saíram de Montreal a pé e tomaram a direcção oeste. Iam para um Canadá menos urbano, onde as ceifas e as colheitas pediam, sob fortes calores do Verão, o extraordinário esforço de muitos voluntários. A 8 de Julho o Canadian Pacific Railways, a grande velocidade de comboio devia passar-lhes ao lado com as emoções de uma vertigem mas sem fazê-los enfrentar um verdadeiro perigo. No entanto estes dois homens, diríamos que sob o impulso de uma idêntica alucinação, saíram subitamente do seu desimpedido entre-linhas para enfrentar ao lado e de frente a locomotiva. Um deles chamava-se Louis Hémon e tinha passado por uns quantos momentos de escritor; vários romances seus desesperavam na tranquilidade injusta de uma gaveta — rejeitados por sucessivos editores de olhar enevoado — romances que passaram, com esta decorativa sombra do suicídio, a dar-lhe uma persistente fama póstuma.

De facto, um ano depois (1914) Maria Chapdelaine surgiu em fascículos no jornal Le Temps com imenso êxito; a partir de 1916 começou a esgotar edições em livro, foi traduzido em dezenas de línguas e teve em

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1934 a sua primeira versão para cinema feita por Julien Duvivier. Mais tarde, soprado por Daniel Halévy, Bernard Grasset descobriu como editor os outros livros inéditos de Louis Hémon: em 1923 os contos de La Belle que voilà; em 1924 Colin-Maillard e Battling Malone em 1925; em 1926 Monsieur Ripois et la Némesis (só com uma tiragem de cinquenta exemplares porque a irmã do autor não autorizou que se fizesse uma edição para venda ao público, receando que este Ripois, a viver em Londres à custa de mulheres, fosse associado à experiência pessoal de Louis durante os anos em que lá viveu); em 1950, trinta e sete anos depois da sua morte, Grasset conseguiu vencer esta negação e publicá-lo em edição normal; o filme de René Clément, com Gérard Philipe no papel principal, é de 1954 (e chamou-se em português O Grande Conquistador). Com uma qualidade que surpreendeu, Battling Malone, pugilista escolhia o tema do boxe fazendo-o subir bastante acima do tom que costumava condená-lo a formas literárias que entretinham, em jornais e revistas, leitores pouco exigentes; escolhia o tema do boxe e dos seus jogadores num ambiente inglês tutelado pela aristocracia e por homens de dinheiro, muito povoado por gentlemen. Houve para isto uma decisiva vontade de escritor, expressa num artigo seu de 1905 com o título «Anglomanie»: «Desde há uns nove a doze anos, vemos aparecer periodicamente nas revistas [inglesas] uma mesma história sempre popular. Há nela a rapariga, o herói e o francês. A rapariga é encantadora, o francês atiradiço e o herói um indignado. Ele atira-se ao francês — que as gravuras, como é natural, representam como um homem pequeno, franzino e amaneirado — e administra-lhe uma fenomenal bordoada que deixa todos contentes. Por vezes os dados variam, mas o desfecho é sempre o mesmo. E todas as vezes que eu encontro sob uma nova forma este quadro britânico, fico obcecado pelo desejo de escrever a contrapartida desta mesma história.»

Vários indícios, que encontramos em cartas e artigos de Hémon, fazem crer que ele criou «o desvio da norma» a que chamou Battling Malone em

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1909, levando a cabo a sua projectada subversão da história do jogador de boxe inglês e da rapariga que oscila entre o prestígio físico e desportivo do seu compatriota e a menoridade pouco viril de um belo francês.

«Louis Hémon proíbe a si próprio o uso da primeira pessoa do singular», disse Jacques Ferron quando prefaciou Colin-Maillard, «embora nos faça estar sempre na presença de um herói da sua idade, vindo não se sabe de onde, que parece não ter família e nunca, em qualquer caso, se volta para trás quando luta com as necessidades da vida, e nunca lhes tenta escapar de outro modo que não seja pelo sono e pelo amor.»

Battling Malone — o jovem, o selvagem, o ingénuo — personagem que executa uma das variações sobre a identidade conflituosa que Hémon obsessivamente espalhou — espalhando-se a si próprio — por todos os seus romances.

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A.F.

A grande sala do National Sporting Club, aquela onde se faziam os combates e era uma antiga sala de teatro transformada, acabava de ficar vazia. Os últimos espectadores saíam em fila, e para chegarem ao vestíbulo e à porta da rua atravessavam um dos lados da sala de jantar do Club. Agora, que já lá não estavam os intrusos que só compareciam ali pelo espectáculo, havia entre amigos e membros do clube muitos gentlemen e noblemen reunidos à volta de pequenas mesas num ponto e noutro espaçadas sobre os tapetes espessos, reunidos para beber ou cear mais copiosamente.

Empregados silenciosos e atentos, impecáveis no comportamento e nas maneiras como só sabem sê-lo os criados ingleses de alto estilo — os aristocratas da criadagem — deslizavam de uma ponta à outra da sala sem movimentos mais visíveis do que os das silhuetas em desfile no fundo de uma carreira de tiro. Obsequiosos, debruçavam-se nas mesas dizendo por vezes algumas palavras em voz baixa:

— Um scotch and soda, my lord ? Um Black and White; muito bem!

— O habitual vinho palhete e uma costeleta mal passada? Pois com certeza.

Como os bebedores e os que ceavam, tudo gente de boa companhia, só falavam uns com os outros numa voz abafada, embora a vasta sala estivesse cheia causava uma impressão de concentrada calma, quase de tristeza. E esta impressão não era totalmente falsa porque havia melancolia e um pouco de irritabilidade, se é que não se tratava de uma verdadeira tristeza, a reinar nos corações de todos aqueles gentlemen reunidos.

I

A noite pugilística, a mais importante do ano no clube que se mantinha como o templo consagrado da nobre arte britânica da defesa pessoal, tinha assistido a uma tripla vitória francesa. Na verdade, os franceses exageravam!

Até os mais jovens membros do National Sporting Club, ao passarem em revista as suas memórias lembrar-se-iam muito bem dos começos desses mesmos franceses na ciência do pugilato. Valha-nos Zeus, como eram cómicos! Um belo dia, cansados de dar pontapés nas caras, tinham resolvido aprender a usar os punhos como homens; numa palavra, a jogar boxe. Toda a Inglaterra se tinha rido disto. Um francês a jogar boxe! Era um paradoxo do maior ridículo; uma graça que fazia o seu caminho; um desafio lançado à razão e ao bom senso! No entanto, quando ali chegaram os primeiros, a representar o seu país em encontros internacionais, os membros do National Sporting Club, como verdadeiros gentlemen corteses e hospitaleiros, tinham dissimulado o seu contentamento.

O mais pequeno e meritório esforço de um jogador de boxe francês, a menor prova de ciência que ele desse, só o facto de cumprir as regras essenciais da nobre arte e não cometer enormidades, bastava para provocar aplausos cheios de benevolência. Mas os indulgentes espectadores já não procuravam, depois de baterem amáveis palmas, esconder uns aos outros que se sentiam divertidos. E aqueles franceses não desconfiavam de nada! Desempenhavam o seu papel, posso afiançá-lo, muito satisfeitos! Tinham aprendido depressa o cerimonial e a etiqueta do ringue, até as atitudes e os gestos que lhes convinham. Mas daí a enfrentar pugilistas ingleses, mesmo os de terceira classe, havia um abismo que nunca seria transposto. Não, meu caro senhor! Só a ideia era grotesca; não tinham aquilo no sangue, fiquem a sabê-lo; estava aí o glorioso privilégio dos anglo-saxões!

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Todos aqueles gentlemen, os que ceavam ou bebiam à volta das mesas semeadas na sala de jantar do clube, talvez se lembrassem com uma ponta de despeito das frases amáveis que tinham noutros tempos dito. Batiam na mesa e declaravam — Zeus me castigue, senhor! — que aqueles franceses nunca teriam, entre as cordas do ringue, mais do que um aspecto de palhaços de feira e saltimbancos. E poucos anos tinham desde então passado!

A lembrança das três derrotas dessa noite, três dos seus campeões deitados nas tábuas aos pés de franceses que esmurravam, pesava sobre eles como uma queda amarga e, a bem dizer, incompreensível.

A uma das mesas estavam sentados quatro homens com impecáveis fatos pretos, peitilhos mais do que refulgentes! Brancos! Com a brancura do branco sem igual, único, que só alguns engomadeiros de Londres sabem obter.

Um destes homens ainda muito novo, grande e muito desempenado, moreno, com o rosto saudável e bronzeado de um homem de ar livre, era herdeiro de uma dessas fortunas menos pretensiosas e menos conhecidas do público do que as «pilhas» gigantescas dos reis da indústria, mas que não deixam de ser as maiores e as mais sólidas. O seu nome? Os empregados do National Sporting Club chamavam-lhe em voz baixa e com deferência My Lord !, e conseguiam dar ao nome todo o matiz de profundo respeito que ele deve comportar; porque o National Sporting Club, como todos sabem, possui entre os seus membros um respeitável número de lordes. Os seus companheiros chamavam-lhe mais familiarmente «Westmount», o que pode fazer-nos concluir que era vulgarmente conhecido com o nome e o título de Lord Westmount.

Tinha o ar firme sem soberba, mas seguro de si e contente com a vida, de um jovem aristocrata com digestões perfeitas, ainda não perturbado pela gota, membro dos clubes mais cotados de Londres e do continente, possuidor de um castelo na Escócia, de outro no

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Buckinghamshire, de uma pequena moradia pitoresca na New Forest e, mais exactamente, de trezentos e oitenta e sete acres de terrenos construídos nos bairros mais centrais de Londres, que lhe davam uma renda anual de setenta e sete mil e seiscentas e vinte e oito libras sterling, dezasseis shillings e nove pences.

A um curioso, que tinha sido suficiente estúpido para um dia lhe perguntar qual era o número exacto da sua fortuna, respondera com a sua voz desdenhosa e um pouco arrastada:

— Não tenho a certeza do número em libras; mas lembro-me muitíssimo dos nove pences. Sobre esses nove pences eu tenho, imagine lá bem… uma a-bso-lu-ta certeza…

Também tinha esse tom aristocrático que causava tão forte impressão nos plebeus, quando o víamos a cear com três amigos na sala de jantar do National Sporting Club; embora desta vez se tivesse misturado nele um pouco de impaciência e aborrecimento.

— Valha-me Zeus! — dizia a dar pancadinhas na costeleta. — Isto não pode continuar! Três danados franceses aparecem aqui, e varrem o chão com três dos nossos melhores homens! Isto não pode continuar!

Isto era repetido com o mesmo tom de homem bem educado, embora se sentisse que nesse tom transparecia a irritação de um potentado sem o hábito de dizer muitas vezes em vão que uma coisa «não pode continuar».

Um dos seus companheiros de mesa respondeu; um homem gordo com rosto apopléctico, bigodes de ponta encerada como já não se vêem, a não ser na Inglaterra, e que um bom número de ingleses imagina com a maior das ingenuidades que é traço essencial e infalível de todo o rosto francês.

— Tinha de acontecer — disse ele com uma voz enrouquecida, onde a tristeza surgia com um ar um pouco cómico. — Era inevitável.

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Nesta altura o sangue subiu-lhe de repente às têmporas e começou a falar com força, liberto de toda a timidez, como um imperioso macho que não quer saber de categorias nem de castas.

— Preciso de si. Nunca soube dizer-lho porque não passo de um bruto com cabeça dura, e talvez não soubesse fazê-lo. Mas preciso de si. E penso que gosta mais de mim do que dos outros homens; por isso é necessário que venha comigo. O seu marido não conta, uma vez que não lhe tem nenhum afecto. Bem pode deixá-lo. Não acredite que vá ter comigo uma vida dura porque tenho agora dinheiro no banco e continuará a ser uma verdadeira dama. Vou ser bom para si. Tem de vir comigo.

A sua voz rouca calou-se; procurou dizer qualquer coisa, mas talvez se tivesse esquecido dela. Chegou-lhe depois à ideia que Lady Hailsham talvez não compreendesse como ele era digno e sincero; apressou-se, portanto, a dar provas disto pronunciando palavras sacramentais e que são um compromisso:

— Vou casar-me consigo… Abandone o seu marido, e caso-me consigo.

Houve um segundo de silêncio; depois Lady Hailsham soltou uma longa gargalhada.

O hotel estava quase em silêncio porque a noite já ia adiantada. Este riso harmonioso ressoou curiosamente no silêncio. Patrick Malone ficou hirto no seu lugar, com o boné na mão, a olhar para a aquela mulher de pescoço branco e adiamantado que se ria; e tanto olhou, que compreendeu.

Compreendeu que ela nunca tinha feito mais do que troçar dele; que só o tinha considerado um animal de estimação, de boa raça, com um contacto às vezes tolerado em horas de distracção; se a sorte o tivesse favorecido e dado uma espécie de embriagadora nomeada, ela

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talvez consentisse que esse contacto fosse mais estreito e durasse algum tempo. Mas agora, de uma forma ou de outra tinha acabado.

O que ele compreendeu de tudo isto reduzia-se a uma rudimentar intuição e só com a clareza suficiente para se sentir ofendido. O seu ressentimento também foi qualquer coisa simples e puramente animal.

Nada o retinha. Aquela mulher troçara dele; e quando uma mulher de Shawell ou Shoreditch troçava de um homem de forma tão cruel, o homem vingava-se com as suas mãos. Tudo o que havia nele de brutalidade latente despertou e subiu como uma chama.

Deitou o boné para o chão e deu três passos em frente.

O riso de Lady Hailsham, um riso solto sem reservas e de garganta plena, feito com a cabeça deitada para trás, parou de repente quando baixou de novo os olhos e viu o rosto de Pat. Sem transição, depois da jovialidade o medo subiu-lhe à garganta porque conhecia bem aquele homem e a sua terrível simplicidade. Recuou, com um desarticulado grito de socorro.

Ao que pareceu, o empregado que tinha conduzido Patrick Malone tinha-se mantido no corredor, desconfiado; porque a porta logo a seguir se abriu e ele entrou a correr.

Pat deu uma volta sobre si próprio, derrubou com um murro o empregado, agarrou-o pelo pescoço e por uma perna, e atirou-o para fora do quarto; depois fechou atrás de si a porta à chave e voltou a aproximar-se dela.

Lady Hailsham recuou até ao guarda-roupa do fundo da sala, com uma mão na cabeça, um esgar de medo e alucinação; com a outra mão agarrava em qualquer coisa; e como Pat se aproximava dela, com a voz sobre-aguda da histeria gritou duas vezes:

— Fique onde está! Pare!

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Pat não era daqueles que param. Um instante depois, o tiro do revólver ressoou nos corredores vazios, com o fumo já a espalhar-se no quarto, e Pat com o rosto voltado para baixo, deitado no chão.

Mas teve antes da morte um momento alucinado; ou talvez fosse o simplório instinto com raízes naquele coração feito para a batalha… Pôs, como um combatente no ringue, tudo quanto lhe restava de vida num desesperado esforço para se levantar.

A Morte tinha o cronómetro na mão, e já se ria daquele esforço supremo e fútil. Mas ele levantou-se.

Primeiro de joelhos, a apoiar-se nas mãos; depois com um pé pousado firmemente no chão, e por fim com uma derradeira tensão de músculos fortemente humedecidos, com o último sobressalto da sua grande vitalidade e da sua coragem a porem-no de novo de pé durante alguns segundos, com um fio de sangue no queixo e outro no peito que já tingia de vermelho o cachecol branco, a cambalear e com olhos de novo tão simples como os de uma criança, onde não restava mais nenhuma cólera, e que olhavam para a mulher que o tinha morto. Depois voltou a cair.

Quando as pessoas do hotel arrombaram a porta que ninguém lhes abria, no canto da alcova Luís XV encontraram uma mulher lívida que tapava os olhos com as mãos, gritava como um animal a ser torturado, e Battling Malone com o rosto no chão e largos ombros que no tapete claro, a vermelho, tinham decalcado a sua forma.

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últimos títulos da colecção Sistema Solar

Riso vermelho – fragmentos encontrados de um manuscrito, Leonid Andreiev

A morte da terra, J.-H. Rosny Aîné

Nossa Senhora dos Ratos, Rachilde

O colóquio dos cães incluído no Casamento enganoso, Miguel de Cervantes

Entre a espada e a parede, Tristan Bernard

A vida de Rembrandt (história a ir para onde lhe dá), Kees van Dongen

Os meus Oscar Wilde, André Gide

As aventuras de uma negrinha à procura de Deus, George Bernard Shaw

Meu irmão feminino – «Noites Florentinas», Marina Tsvietaieva

Jean-Luc perseguido, Charles Ferdinand Ramuz

O filho de duas mães, Edith Wharton

A armadilha, Emmanuel Bove

Um jardim na margem do Orontes, Maurice Barrès

Erotika Biblion, Conde de Mirabeau

A minha amiga Nane, Paul-Jean Toulet

Paludes, André Gide

O bar dos dois caminhos, Gilbert de Voisins

Sol, D.H. Lawrence

Cagliostro, Vicente Huidobro

As magias do Ceilão, Francis de Croisset

Má sorte que ela fosse puta, John Ford

Chita – uma memória da Ilha do Fim, Lafcadio Hearn

A mulher 100 cabeças, Max Ernst

A dificuldade de ser, Jean Cocteau

O duplo Rimbaud (com um preâmbulo de Benjamin Fondane), Victor Segalen

A vida apaixonada da grande Catarina, Princesa Lucien Murat

Casa de incesto, Anaïs Nin

Morte de Judas seguido de O ponto de vista de Pôncio Pilatos, Paul Claudel

Os domingos de Jean Dézert seguido de contos, Jean de la Ville de Mirmont

Ser ou não ser – Três histórias, Honoré de Balzac

Babilónia, René Crevel

O encontro (uma história incerta), Henri de Régnier

Carmilla, Sheridan Le Fanu

Mulheres na vida, Guy de Maupassant

O plantador de Malata, Joseph Conrad

A mandrágora, Jean Lorrain

A biografia de Vénus, deusa do amor, Francis de Miomandre

Viagem ao país dos Tarahumaras, Antonin Artaud

O nevoeiro de 26 de Outubro e outras lições de abismo, Maurice Renard

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