Constelações — Ensaios sobre Cultura e Técnica na Contemporaneidade

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CONSTELAÇÕES

Ensaios sobre cultura e técnica

na contemporaneidade

J osé Bragança de Miranda
DOCUMENTA
Dedico este livro à Matilde e à Mariana
7 Índice | ÍNDICE Abertura ............................................................ 9 Introdução .......................................................... 11 PARTE I: DA CONSTELAÇÃO A constelação como método do contemporâneo ................... 41 O duplo movimento da constelação ............................... 71 Fotografia e arqueologia do materialismo .......................... 89 A constelação da técnica em Heidegger ............................ 119
Entre próximo e distante, lógicas da apropriação ................... 155 O fim da distância: a emergência da cultura telemática ............. 177 A interactividade: da mímesis tecnológica .......................... 205 A virtualização do arquivo ........................................ 247
PARTE II: REFRACÇÕES

ABERTURA

Um livro deve tudo aos que ajudaram a arrancá-lo ao grande exterior, seja ele o nada ou o real. Agora que o devolvo aos meandros de onde proveio, escavados por todos sobre a superfície da Terra, talvez mais um sulco, ou alguma água desviada, quero agradecer àqueles que me ajudaram a fazer este retraçamento do caminho feito nestes anos de crise, pouco propícios para a escrita. Em primeiro lugar, àqueles que foram encomendando os ensaios que o compõem, a saber: Hugo Barata, Ana Rito, Cristina Gameiro, Isabel Babo, José Manuel Gomes Pinto, Luís Alegre, Luís Cláudio Ribeiro, Manuel Bogalheiro e Patrícia Nunes.

Agradeço ainda à Catarina Patrício que faz a revisão do livro e ao Luís Cláudio Ribeiro pela sua mão literária na Introdução.

Uma outra palavra de agradecimento ao ICNOVA, Centro de investigação da Universidade Nova de Lisboa, nomeadamente à Cristina Ponte e à Teresa Mendes Flores, pelo apoio para a sua publicação.

Finalmente, ao meu editor, o Manuel Rosa, pelo acolhimento generoso do livro na Documenta, e cuidado posto na sua produção e edição.

Dá-me alegria o número daqueles a que precisei de agradecer. Se morremos sozinhos, mesmo que sejam sempre os outros que morrem — é esse o epitáfio escolhido por Duchamp —, só vivemos bem em companhia.

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INTRODUÇÃO

Reúne-se aqui uma série de estudos que tem um denominador comum: pensar a relação com a técnica e as maneiras como afecta e reformula a cultura contemporânea. Mais do que uma teoria, estamos perante aproximações que evitam o espírito de sistema, aceitando o estilo ensaístico em todos os sentidos da palavra — algo de tentativa, experimental, arriscado. Em nada isso obsta ao rigor do pensar, apenas evita a arrogância a que se resiste com dificuldade quando se está dominado pelo desejo ou pela convicção da superioridade da sua intuição ou «teoria»». O efeito de se estar na certeza é dar-se ares sublimes e inspirados, modo de escrita de um superior, como dizia Kant, um senhor que evita trabalho1. Se nos tempos do romantismo alguns falavam directamente com Deus ou com os mistérios, o mesmo estilo entusiástico se aplica hoje aos negadores de tudo, aos denunciadores do real, uns baseados nas teorias da conspiração, outros no conhecimento íntimo acerca do «segredo» do real — segredo para os demais, mas não para o próprio.

A euforia e o entusiasmo que vem do nulla dies sine linea2, uma espécie de adicção que já Duchamp detectara nos adictos da terebentina3, parece resultar de um misto de evidência absoluta da teoria que se suporta na inventiva ou na opinião estridente. Aliás, boa parte delas incluem na sua trama as opiniões estridentes, ficando sem se saber se advêm da teoria ou se a apoiam. Um exemplo, o de um pensador notável que nos informa que «a casa está a arder»:

1 Immanuel Kant (1796), «Sobre um recentemente enaltecido tom de distinção na Filosofia», in Studia Kantiana, trad. Valério Rhoden (Curitiba, 2010).

2 Mas, com ironia, Benjamin reescreve: «Nulla dies sine linea — mas semanas sim». Ver Walter Benjamin, Rua de Mão Única & Infância Berlinense: 1900, ed. e trad. João Barrento (Belo Horizonte: Autêntica, 2013), 28.

3 Marcel Duchamp [1960], Entretiens avec Georges Charbonnier (Paris: Allia, 2014).

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Que casa está a arder? O país onde vive, a Europa, o mundo inteiro? Talvez as casas e as cidades já estejam queimadas, não sabemos desde quando, numa única e imensa fogueira que fingimos não ver. […] Vivemos em casas, em cidades queimadas de cima a baixo como se ainda estivessem em pé, as pessoas fingem viver aí e saem pelas ruas mascaradas entre as ruínas, como se ainda fossem os bairros familiares de outrora.4

Que o mundo seja uma casa, que esteja a destruir-se, que ninguém saiba a não ser o autor desiludido com os que não receberam a notícia. Opiniões que devêm teorias, teorias que devêm opiniões, um círculo infindável de entusiasmos e dramatismos, mas, como dizia Fernando Pessoa, «ser dramático é uma maçada». Ou, escutando Francis Ponge, «o valor das ideias parece-me, na maioria das vezes, em proporção inversa ao ardor usado para emiti-las.»5 Com efeito, a história decide-se no conjunto dos lances dos que habitam a Terra, em poesia e em prosa, teóricos ou outros, e esses lances não são calculáveis, embora se pretenda calcular a partir deles.

A existir método neste livro, e ele pressente-se, assenta na ideia de problema, que vem desde Euclides, atravessa as matemáticas e as ciências, e que é assumida por Michel Foucault como um esforço de problematização. Afirma este que «procuro, ao contrário, fora de qualquer totalização, tanto abstracta quanto restritiva, abrir problemas que sejam tão concretos e gerais quanto possível — problemas que levam a política ao reverso, atravessam as sociedades na diagonal, e que são ora constituintes da nossa história ora por ela constituídos»6. Não estamos a falar de uma «problematologia» transformada em método geral7, como a propõem autores como Michel Meyer, nem de problemas já fixados, mas de uma resposta a um acontecimento que se constela subitamente8. Sendo certo que a matemática e a filosofia desde sempre se estru-

4 Giorgio Agamben, Quando la casa brucia (Macerata: Giometti & Antonello, 2020), 10.

5 Francis Ponge, «My Creative Methode», in Le Grand recueil: Méthodes (Paris: Gallimard, 1961), 9.

6 Michel Foucault, Dits et écrits IV (Paris: Gallimard, 1994), 386-387.

7 Para uma visão sintética, ver Michel Meyer, De la problématologie: Philosophie, science et langage (Paris: PUF, 2008).

8 Deleuze refere mesmo que estamos perante um «conjunto de constelações-problemas» que emergem de um dado acontecimento. Cf. Gilles Deleuze, Logique du sens (Paris: Minuit, 1969), 81.

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turaram em torno de problemas fundadores, a acepção aqui seguida trata de algo que faz problema, revestido de especial urgência ou perigo, que questiona o real. Neste aspecto, a selecção do problema e a resposta que se arrisca para o defrontar é essencialmente política, assumindo formas várias — a da escrita, ou da teoria, ou do filme, a própria forma é a inventar. Parecerá que aquilo que faz problema para uns, pesa pouco ou nada para outros, ou então alguns problemas ocupam toda a cena. Assim, o pós-colonial, a crise climática, a guerra na Ucrânia, são problemas agudos, diante dos quais os outros parecem menores, como os centrados sobre a arte, ou sobre a técnica, ou sobre as frases e as imagens, mesmo sobre a decisão política. Acresce ainda que a temporalidade dos problemas não está decidida de antemão, ou sobrevivem problemas que vêm do passado e permanecem numa certa invisibilidade, ou então boa parte das «soluções» correspondem a novos problemas. O que distingue dos falsos problemas é a urgência, um perigo que se perfila e a resposta só é efectiva se estiver à altura do acontecimento que a origina. Essa resposta pode assumir inúmeras formas.

Não se trata evidentemente de recusar a teoria, mas de evitar o gesto que a opõe ao real no mesmo instante em que o captura pela descrição, criando uma imagem ou ficção da totalidade que se afirma como evidente. Acaba sempre por se projectar uma coesão dissimulada e inapercebida, que impede a intervenção no real, de que nunca estamos afastados, mas nele totalmente imersos e implicados. Não é possível dar conta desses efeitos enquanto representação que supera a relação com o real de modo puramente metafísico ou simbólico9. Essa separação ocorre dentro do real e é simulacro a estratégia de sair para o exterior do real, separar-se dele, para depois a ele regressar. Lição proveniente das artes e do construtivismo bem colocada por Samuel Beckett, que questiona: «o que resta do representável se a essência do objecto deve es-

9 Tem interesse a vigorosa crítica de François Larruelle à representação por corresponder a uma decisão filosófica que se baseia na separação entre real e representação, quando todo o trabalho ocorre no real e não numa saída dele para depois voltar a ele. Mas a filosofia ainda procura um outro modo de acesso ao real: «O Um não é um objecto/entidade “em si mesmo” oposto a uma linguagem “em si mesma”, formando assim um par filosófico ou dialéctico de opostos. A visão em “um” como matriz de pensamento é um “falar/pensar — de acordo com — o Um”.» Cf. François Laruelle, «A Summary of Non-Philosophy», Pli 8 (1999): 11.

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capar à representação?»10. Com efeito, o real está sempre em excesso sobre as representações que procuraram capturá-lo pela teoria, tal como a palavra «natureza» não capta aquilo para que aponta e que excede a palavra. Essa impossibilidade vai do cosmos ao objecto mais mínimo.11 Muito materialisticamente, aceder à totalidade, por mínima que seja, só é possível com recurso à ficção ou ao mito. Mesmo as teorias mais ilusórias fazem parte do real e produzem efeitos, nem que seja como aceleradores do real em relação a certas possibilidades. Se para o teórico inspirado o real fosse determinado pelo ser azul, se o descreve como azul anulando tudo o mais, o efeito é adicionar algum azul no mundo, nem que seja pelo livro sobre o devir-azul do mundo, e se tivesse todo o poder, tornaria tudo totalmente azul. Mas se o «azul» aumenta, algo diminui indubitavelmente.

A representação faz mais do que pretende, não se limita a descrever o real ou a captá-lo na trama da linguagem, pois ao descrever produz algo. Mesmo a linguagem mais metafísica ou mística produz algo, releva de um impulso produtivo. Foi essa a lição essencial dos artistas-pensadores russos que emergiram na revolução de 1917, casos de Tatlin, Rodchenko, Malevich e Tretiakov e mesmo de Andrei Platonov, e que é posteriormente assumido pela Bauhaus e pela estética da máquina. Com aspectos comuns, na verdade, o construtivismo esteve sempre em tensão com os defensores da produção, versão mais política, como se verifica com Arte da Produção (1926) de Boris Arvatov12, devendo incluir-se nesse movimento o ensaio de Walter Benjamin «O Autor como Produtor» (1934), defendendo-se aí que «é decisivo que a produção tenha um carácter de modelo, capaz de, em primeiro lugar, levar outros produtores à produção e, em segundo lugar, pôr à sua disposição um aparelho

10 Samuel Beckett, «Peintres de l’empêchement», in Le Monde et le pantalon suivi de Peintres de l’empêchement (Paris: Minuit, 2014), 28.

11 A imensa superioridade da poesia é a de superar a dificuldade da representação pela construção através de palavras, espacializações, fragmentos de algo que se torna presente sem poder ser apanhado. Deste ponto de vista é sintomático o poema de Francis Ponge sobre a «mesa», a que dedica mais de cinquenta páginas para que ela possa aparecer em absoluta liberdade. Cf. Francis Ponge, «La Table», in Oeuvres complètes II (Paris: Gallimard, La Pléiade, 2002), 913-949.

12 O lema da arte producionista é o de que «a arte é um instrumento directa e conscientemente empregado para a “construção-da-vida”». Cf. Boris Arvatov [1926], Art and Production (Londres: Pluto Press, 2017), 101.

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melhorado. E esse aparelho é tanto melhor quanto mais consumidores levar à produção, numa palavra, quanto melhor for capaz de transformar os leitores ou espectadores em colaboradores.»13 Para além do intuito polémico, que procurou evitar a colusão das categorias estéticas com o absolutismo, Benjamin detecta nas novas condições técnicas uma possibilidade de abolir a longa teatralização do mundo que nos transforma em espectadores e consumidores, ou em escritores e leitores, etc. Ora, este é o pressuposto da representação como mediadora entre o real e os receptores. Uma outra redistribuição destas «funções» é desejável e possível. Comprova-o a infinidade de frases ou imagens que entram no mundo, dificilmente controláveis, estética ou politicamente.

Esta opção não precisa de demonstrar que a representação falha ou se baseia numa ilusão epistémica qualquer, pois se considerarmos um livro que procura representar o mundo e um filme que pretende fazer algo de similar, verificamos que só o podem fazer pois são objectos, um pouco estranhos, mas objectos que transportam materialmente as «ideias» por mais místicas que pareçam ser. Esses objectos não vêm de fora, de uma inspiração ou genialidade, são produzidos no real, como todos os outros objectos, lances, gestos, imagens, acrescentando-se-lhe paradoxalmente. Com alguma ironia diríamos que estamos diante de um «princípio materialista da adição histórica.» Com efeito, os livros que negam o mundo, as obras que apontam para outro mundo, as utopias, as teologias mais etéreas, caem sempre nele, fazem parte das partes do mundo. Essa adição que corresponde ao gesto da produção não diminui a sua potência. Em certas circunstâncias abre-se a Odisseia de Homero e as sereias começam a circular dos gregos até à Walt Disney e, além disso, pressentimos que os centauros existem na terra da literatura e nos sonhos dos geneticistas, em suma, abre-se a Bíblia e a criação volta a repetir-se espantando-nos como sempre.

Os metafísicos a sério gostariam que algumas obras fossem mais essenciais e preciosas que outras, que fossem obras absolutas, mas escrevem isso em coisas como livros. Este é o seu meio de transporte pelo mundo, e podem mesmo

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13 Cf. Walter Benjamin [1934], «O Autor como Produtor», in A Modernidade. Obras Escolhidas de Walter Benjamin, ed. e trad. João Barrento (Lisboa: Assírio & Alvim, 2006), 288.

ser digitais e mais rápido andam ou tornam-se invisíveis. Não se trata de mais um objecto teórico, mesmo que efeito do real, mas diz respeito a todo o objecto ou lance, teórico ou não: descrevemos esse processo como uma adição. As suas formas podem ser espontâneas, como a chuva ou as nuvens, ou trabalhadas, como ocorrem nos objectos produzidos. Por exemplo, um carro entra no real, mas isso não significa que não tenha resultado de um processo que reúne vários componentes até que, com estranha subitaneidade, aparece no real, adiciona-se-lhe. Estes dois aspectos são essenciais, mas do ponto de vista geral é a entrada no real que impera, enquanto do ponto de vista particular é o resultado de um processo controlado, rentabilizado, por exemplo, pelo capital. A actual crise dos automóveis revela bem esta duplicidade: a sua potência provém das composições e arranjos em que entram, e das estruturas que os controlam e exploram.

É evidente a trama de estruturas de controle, da rede de instituições que recortam o real, sem que isso implique que existem lógicas profundas e abstractas que determinam o real, como as teses do dispositivo de Heidegger ou Agamben, ou as dialécticas herdeiras de Hegel, que fazem do real uma «passagem» para fins mais elevados, ou então um capitalismo universal que arrastaria tudo para a extinção. Muito materialmente, tudo se joga na empiricidade do existente, e na rede de instituições, formas e potências que maximizam os seus usos e rendibilidade.14 Todos esses agenciamentos instalam-se sobre uma produtividade geral, cuja base é a «natureza», que o gregos descreveram com a palavra physis15, enquanto pura espontaneidade do que aparece e é enviado,

14 Sem se poder atestar que existe uma lógica única que determina o real, é aceitável pensar que está em funcionamento nas instituições uma espécie de princípio neguentrópico, uma certa pulsão para o «mais», que Hobbes detectou no Leviatã estando pressuposta na sua tese sobre a Libido dominandi: manter o poder implica mais poder, o que se aplica também ao dinheiro, às empresas, à política, ao amor, etc. Saber dosear a hybris do «mais» teria de ser uma arte. Não está aqui em causa a crítica moral da pleonexia, bem presente em Aristóteles e em contemporâneos como Dany-Robert Dufour, que a resumem à psicologia. Para uma visão mais ontológica, seria de pensar as análises de Mehdi Belhaj Kacem, Système du pléonctique (Paris: Diaphanes, 2020).

15 Pierre Aubenque refere que «A physis não sugere apenas a ideia de produção, mas também a de uma auto-regulação da produção. Podemos, portanto, falar dela indiferentemente num sentido dinâmico ou num sentido estático, e dizer com Aristóteles (Física, II, 1, 193b 12-13) que “a physis como génese é um caminho para a physis”, entendida desta vez como realização ou como substância. Não há aqui ambiguidade, mas sim um círculo, uma vez que o início e o fim do processo natural coincidem: como Aristóteles gostará de repetir, “o homem gera o homem”, o que significa que o ser natural é tanto o produtor (neste caso, o pai ou, mais precisa-

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dos mínimos como os arranjos quânticos, ao mais desmesurado como tempestades solares ou os meteoritos, do mais benigno como as brisas de Outono, ao mais violento como os terramotos ou os tsunamis. Numa indiferença absoluta, a physis produz e envia sinais em formas ainda informes. O actual recrudescer de interesse por Schelling vem precisamente da sua atenção à «produtividade originária da natureza», na sua indeterminação e continuidade absolutas, pois «todos os produtos estão ainda invisíveis e dissolvidos na produtividade universal.»16 As ligações quânticas, as nuvens, as árvores e os planetas e uma infinidade de outras aparições da natureza estão numa continuidade absoluta, pois são a mesma produtividade da physis, e a sua individuação ocorre numa opacidade absoluta, o que passa pelo uso da palavra para produzir separações, que alimentam por seu turno a produtividade de onde provêm. Todos os mitos cosmogónicos acentuam o papel essencial da palavra para desagregar o «absolutismo da natureza»17, criando um espaço habitável por seres que nomeiam, como os humanos. Desde os primórdios que se tentou fundar essa produtividade natural fosse em Deus, ou no espírito ou na matemática, mas ela é ancestral18, estando a exercer-se muito antes de existirem seres como os «humanos», tal como as nuvens de metano de Júpiter são sem-nome nem porquê, até a ciência as começar a estudar.

A tentativa de se «espiritualizar» a natureza é já uma forma de apropriação, que por ilusória que seja, pois a physis excede toda a palavra ou acto, implica uma aproximação, operações e construção que a tocam materialmente, e sobre a qual se edifica a produtividade histórica. Esta implica uma composição

mente, a semente) como a estrutura ou o fim da produção». Cf. Pierre Aubenque, «Physis», Encyclopaedia Universalis, 2017.

16 Friedrich Schelling [1799], First Outline of a System of the Philosophy of Nature (Albany: SUNY Press, 2004), 87. E acrescenta numa tese decisiva: «O produto da produtividade é (de cada vez) nova produtividade» (231).

17 Trata-se de uma formulação de Blumenberg que se coloca do lado de cá da opacidade da natureza. Cf. «After the Absolutism of Reality», in Hans Blumenberg (1985), Work on Myth (Massachusetts: MIT Press, 1990), 3-33.

18 Usamos «ancestral» no sentido proposto por Meillassoux: «chamamos ancestral a qualquer realidade que seja anterior ao aparecimento da espécie humana — e mesmo anterior a qualquer forma de vida registada na Terra». Cf. Quentin Meillassoux, Après la finitude: Essai sur la nécessité de la contingence (Paris: Seuil, 2006), 25-26.

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com a «natureza», criando uma barreira à sua omnipotência, fragmentando-a, extraindo matérias, máquinas, etc.19 Assim, as muralhas e os muros, que afastam o exterior, prolongam-no e têm-no dentro, nesse misto de pedra e forma, poder e impotência. Se essa produtividade é apropriada, acumulando corpos e objectos, dinheiro e poder, no seu conjunto excede todas as apropriações, tal como uma cidade não é propriedade dos proprietários das casas, sendo um bem comum e inapropriável. De facto, assente na physis, instala-se uma produtividade geral que excede todas as formas particulares. Tudo o que existe é efeito de um trabalho milenar transmitido historicamente. Como refere Joseph Kaines: «A nossa fantástica civilização é o resultado dos esforços silenciosos de milhões de homens desconhecidos, tal como os penhascos de calcário da Inglaterra são formados por contribuições de uma miríade de foraminíferos.»20 As apropriações pelo poder ou pelas instituições, baseadas no uso dos corpos e da sua energia, são menos potentes que esses estratos aparentemente firmes e estáveis, ainda cheios de vida.

No século XIX, Marx tratou explicitamente da produtividade, que considera como a base da resolução do «enigma da história» e da relação com a «natureza».21 Esta tese joga-se em torno da ideia de uma produção geral correspondendo à «espécie»:

19 Pode entender-se assim a tese de Carl Sagan segundo a qual «O carvão, o petróleo e o gás são chamados combustíveis fósseis, porque são na sua maioria feitos dos restos fósseis de seres de há muito tempo. A energia química dentro deles é uma espécie de luz solar armazenada originalmente acumulada por plantas antigas. A nossa civilização funciona queimando os restos de criaturas humildes que habitavam a Terra centenas de milhões de anos antes dos primeiros seres humanos entrarem em cena. Tal como um sinistro e culto canibal, subsistimos dos cadáveres dos nossos antepassados e parentes distantes.» Cf. Carl Sagan, Billions & Billions: Thoughts on Life and Death at the Brink of the Millennium (Nova Iorque: Ballantine Books, 1997), 69.

20 Joseph Kaines, «Western Anthropologists and Extra Western Communities» (1873), citado em Maria Stavrinaki, «Carl Einstein’s History without Names: From Geology to the Masses», Grey Room 62 (Inverno de 2016), 72-101.

21 Marx vê no comunismo o «retorno pleno, tornado consciente e interior a toda riqueza do desenvolvimento até aqui realizado, retorno do homem para si enquanto homem social, isto é, humano. Este comunismo é, enquanto naturalismo consumado = humanismo, e enquanto humanismo consumado = naturalismo. Ele é a verdadeira dissolução (Anlösung) do antagonismo do homem com a natureza e com o homem; a verdadeira resolução (Auflösung) do conflito entre existência e essência, entre objetivação e auto-confirmação (Selbstbestätigung), entre liberdade e necessidade (Notwendigkeit), entre indivíduo e género. E o enigma resolvido da história e se sabe como esta solução.» Cf. Karl Marx [1844], Manuscritos Económico-Filosóficos (São Paulo: Boitempo, 2008), 105.

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Na elaboração do mundo objectivo [é que] o homem se confirma, em primeiro lugar e efectivamente, como ser genérico. Esta produção é a sua vida genérica operativa. Através dela a natureza aparece como a sua obra e a sua efectividade (Wirklichkeit). O objecto do trabalho é, portanto, a objectivação da vida genérica do homem: quando o homem se duplica não apenas na consciência, intelectual[mente], mas operativa, efectiva[mente], contemplando-se, por isso, a si mesmo num mundo criado por ele.22

Esta tese é suficientemente forte sem precisar de postular o domínio da natureza, como pretendiam Descartes e Bacon, e que Marx não rompe de facto. No círculo perfeito do fim da história, a natureza e o humano coincidiram inteiramente. Mas esse círculo não se fecha, por razões que se prendem à história, e acima de tudo à physis. Se é certo que a sua potência alimenta a produtividade geral, é absurdo pensar que os nossos modelos científicos e económicos podem apropriar-se dela sem deixar rasto. Reconhecer o excesso de potência da natureza sobre os poderes humanos é a condição para uma relação séria com ela. Se sabemos receber as brisas e os frutos, não sabemos acolher a força do vulcão ou de uma tempestade solar; se começamos a conhecer as partículas subatómicas, o cosmos escapa-nos completamente. Dependem de nós as boas composições com a natureza e a suspensão das piores. Com o ponto de vista da história, o qual equivale ao regime da lei, sucede o mesmo. O acaso e a contingência impedem o seu fechamento num círculo perfeito. O caso da recente pandemia mostra-o bem. Sendo um produto biológico, e a vida equivale a um salto da physis, disseminou-se por todo o lado, provocando uma crise geral. No caso dos automóveis, se o conjunto das empresas determinam o número de carros que entram no mundo, já a sua disseminação pelo planeta produz efeitos que excedem a gestão racional do seu

22 Apesar do humanismo implícito, e a sua a insistência no «humano» e no «ser genérico», vigorosamente criticado por Althusser, a tese geral é sólida: o real mais não é do que a síntese da história na qual decorre a vida. Que esta seja lesada de muitos modos, trata-se de outra questão, onde assenta uma variedade de estratégias políticas. Mas é possível uma outra relação a Marx, mais materialista, como é bem argumentado num livro recente de Reiner Schurmann, Reading Marx: On Transcendental Materialism (Zurique: Diaphanes, 2021), 61-70.

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fabrico.23 Sendo essencial a maneira como Marx pensa a produtividade geral, afigura-se problemática a ideia de uma forma geral regida pelo «capitalismo». Assim, lê-se nos Grundrisse: «Aqui, como em toda parte, é preciso distinguir entre a maior produtividade que resulta do desenvolvimento do processo social de produção e aquela que resulta da exploração capitalista desse desenvolvimento.»24 A forma geral que explora e, simultaneamente, sustenta a produtividade geral é o «modo» de produção capitalista. Mas na verdade o processo é mais arcaico, está em curso ao longo da história, e as formas esclavagistas, servis e outras não foram menos potentes, tal como não se deve menosprezar o poder do mito ou da teologia. A produtividade geral, desenvolvida na história, implica a produção da vida e não apenas a produção económica, seja do capital seja da burocracia de estado, seja a científica, técnica, ou artística. Todas elas se entrelaçam sem constituir uma forma total e única.

Portanto, apesar de alguma ambiguidade, é essencial a maneira como Marx se dá conta da tensão entre produtividade e forma, e mostra como este conflito alimenta os combates não sobre a materialidade, mas sobre as formas. A produtividade instalada historicamente excede as formas como é canalizada, constituindo uma espécie de «segunda natureza», para desviarmos uma fórmula de Hegel. Este tende a considerar a positividade actual como dada e prescritiva, na qual os actos são pré-determinados, mas estando o positivo arrastado dialecticamente para a realização terminal, isso implica reconhecer a sua transitoriedade, e mesmo a sua abertura de raiz.25 Contrariamente à es-

23 Tudo isto parece ter apenas efeitos negativos, mas o assunto é bem mais afirmativo. Para além dos efeitos de associação formais, existem uma série de efeitos contingentes e inesperados que escapam à lógica do cálculo.

24 Karl Marx [1857-58], Grundrisse, Esboços da Crítica da Economia Política (São Paulo: Boitempo, 2011), 330. Noutra passagem sintetiza-se a mesma ideia, acentuando agora a produtividade: «A relação capitalista, de resto, nasce num terreno económico que é o produto de um longo processo de desenvolvimento. A produtividade preexistente do trabalho, que lhe serve de fundamento, não é uma dádiva da natureza, mas o resultado de uma história que compreende milhares de séculos.» (383)

25 Jean Hyppolite analisou a importância da noção de positividade no jovem Hegel. Na sua síntese: «A positividade é considerada por Hegel como um obstáculo à liberdade do homem, e, como tal, é condenada. Procurar os elementos positivos de uma religião, e pode-se acrescentar de um estado social, é descobrir o que neles é imposto pelo constrangimento ao homem […], a positividade deve ser conciliada com a razão, que perde então o seu carácter abstracto e se torna adequada à riqueza concreta da vida.» Cf. Jean Hyppolite [1968], Introduction à la philosophie de l’histoire de Hegel (Paris: Seuil, 1983), 45-46.

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pontaneidade da physis, a segunda natureza que resulta da inclusão da primeira na história26, mas que assenta sobre ela, firmou-se num entramado de leis, instituições e conceitos que lhe confere rigidez e a possibilidade de se transmitir ao longo do tempo. Dada a sua evidente empiricidade, a crítica da positividade orientou-se em torno de uma série de críticas da razão, de Weber a Heidegger, de Adorno a Foucault27, todas pressupondo um «dispositivo» que articula e captura a totalidade do existente e intercepta todos os actos, livres ou não. A segunda natureza equivaleria assim à «jaula de ferro» de que falava Weber, e a uma psicopolítica da habituação ou de domesticação dos sujeitos.

Ao invés desta visão que resume o presente a inescapáveis dominações e males absolutos, considera-se aqui que a segunda natureza equivale à produtividade geral que entrelaça hibridamente a physis com tudo o que fizemos na história, num processo aberto e que não se pode fechar, pois está em devir. Sendo certo que encontramos por todo o lado formas rígidas, conceitos constringentes e instituições que conflituam para a apropriação da produtividade geral, daí não se deve dar o salto para postular uma forma geral e única, que só existe ficcionalmente. Representar o real como uma lógica única — a do mal, ou da queda ou da dominação, sendo evidente que existem políticas que criam o mal, a queda ou a dominação — é antitético com o facto de se estar sempre imerso na vida, no meio dela. Como dizia Gadda, estamos sempre no meio, de nada serve querer «começar de novo», pois «quando nos perguntamos: onde começar? É porque já começámos.»28 É na segunda natureza que nos localizamos, não é possível saltar fora dela, que não seja teoricamente, pois

26 Ou seja, do que se extrai e produz a partir da indeterminação originária da physis, mas que é sempre uma «aproximação», sem a conseguir esgotar.

27 Na filosofia analítica dá-se uma versão da segunda natureza que é radicalmente oposta. Assim, John McDowell sustenta que «[…] a natureza inclui a segunda natureza. O ser humano adquire em parte uma segunda natureza ao ser iniciado em capacidades conceptuais cujas inter-relações pertencem ao espaço lógico das razões.» Cf. John McDowell, Mind and World (Cambridge/Mass: Harvard University Press, 1996), XX. Mas esta segunda natureza não se reduz a um problema de saber, mesmo que racional, que faz parte dela na medida em que o conceito e a razão foram instalados historicamente. Existe uma potência aconceptual que excede essa estrutura e que vem justamente da physis, e não das suas interpretações «científicas» sobre as «leis da natureza».

28 Carlo Emilio Gadda, Meditazione Milanese (Turim: Einaudi, 1974), 4.

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a vida não faz intervalos: está-se nela, e nas formas em que decorre.29 É, portanto, impossível fechar o círculo do real, dada a sua permanente tensão. Sem apelar à potência de decisão política ou de invenção artística, em si mesmas forças afirmativas, a tensão funda-se no facto de ser incancelável a contingência da natureza, onde fenómenos inesperados sobrevêm incessantemente, mas também da contingência histórica, que ressurge a todo o instante, mesmo nas suas formas mais arcaicas.

Se a espontaneidade caracteriza a physis, o acontecimento caracteriza a História. Os efeitos de ambas são perturbadores para a facticidade. É certo que desta se produzem acontecimentos, os acrescenta ao real, procura estabilizá-los para os rendibilizar, mas estes acabam por se compor com uma infinidade de lances caóticos e errantes, dir-se-ia infra-minces, para referir Duchamp, e que se ligam e engrossam meandricamente, escavando o real. Mas de maneira não calculável emergem os grandes acontecimentos que interrompem as linhas de associação que reticulam o real. O efeito é uma crise que exige uma resposta. Com efeito, acontecimento é um fenómeno que interrompe ou divide o curso regular das coisas. Como refere Deleuze: «o próprio acontecimento é desconectado ou rompe com as causalidades: é uma bifurcação, um desvio das leis, um estado instável que abre um novo campo de possibilidade.»30 Neste aspecto, o acontecimento acarreta sempre uma certa violência — por ser inesperado, por desarrumar as coisas — ao mesmo tempo que exige resposta, no mínimo para absorber e alentecer os seus efeitos, mas também para bifurcar o real noutras direcções que não as prescritas.31 Nesse aspecto, o acontecimento, do mais mínimo ao mais urgente, perturba, suspende e abala as formas como se procura controlar a produtividade e, através dela, a vida. Estar à altura do acontecimento significa inventar outras formas de vida.

29 A história da Idade Média, ou dos antigos impérios, da peste medieval ou da guerra, não são intervalos da vida, pois a vida é absoluta.

30 Gilles Deleuze, Deux régimes de fous (Paris: Minuit, 2003), 215.

31 O pensamento do século XX está crescentemente marcado pela ideia de acontecimento, sendo desenvolvida por pensadores como Arendt, Heidegger, Badiou, Deleuze, mas também Lévinas, entre outros. Trata-se de uma ideia que se coloca para além das teorias da representação ou construtivistas. É da ordem do contingente, do aparecer, do envio, que por ser súbito e inesperado tende a confundir-se com uma catástrofe.

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O centro constelar destes ensaios é a técnica. Ela constitui o acontecimento decisivo que nos requisita e a que temos de responder. Sendo decisivo, mantém-se para além das formas que suscitou até que uma decisão o possa absorver, reintegrando-o na vida. Ainda hoje estamos confrontados com o aparecimento da vida na Terra e o seu destino; não conseguimos absorver os efeitos do acontecimento onde se iniciou a apropriação da Terra e criou os impérios e as nações, que se expressam na nossa geopolítica. O acontecimento da técnica é indissociável da entrada na época planetária a qual, não por acaso, podemos datar com a viagem de 1961, de Yuri Gagarin, para o exterior da Terra, toda ela impulsionada pela técnica que a reenvia ao nosso olhar aturdido através das fotografias da Apollo XI. Ora, a época planetária foi aberta pelo acontecimento da técnica. Num livro um pouco esquecido, afirma Kostas

Axelos: «A técnica planetária constitui o novo destino do mundo.»32 Desde

Copérnico que esse acontecimento estava em curso, indo progressivamente da Terra fechada sobre si para a sua descoberta como uma passagem, um limiar do cosmos. Acentrando-se, a Terra revela-se aberta ao cosmos onde se insere, mas também à sua perecibilidade. Sabemos que se extinguirá em seis mil milhões de anos, que tudo o que nela vive aparece ameaçado de extinção. Porém, a partir da distância que nos concede, entrevê-se melhor o «enigma da história» (Marx) e a sua resolução.33 Responder a essa fragilidade liga-se à potência da técnica e aos modos como se cruza com o destino político e o bios daqueles que a habitam. Num texto quase profético, Walter Benjamin sintetiza bem o problema: «O grande relacionamento com o cosmos cumpriu-se pela primeira vez em escala planetária, ou seja, no espírito da técnica.»34 No nosso tempo

32 Kostas Axelos, Vers la pensée planétaire (Paris: Minuit, 1964), 297.

33 Na verdade, a história mundial afirma-se como globalização ou mundialização, basicamente dependente do agir humano, enquanto que ao planetário abre-se uma nova fisicalidade, com a qual os humanos e seus companheiros têm de se compor, mas que é, em si mesma, não-humana. Esta contraposição é pensada com nitidez por Dipesh Chakrabarty, The Climate of History in a Planetary (Chicago: The University of Chicago Press, 2021), 18-19.

34 Walter Benjamin [1928], «Para o Planetário», in «Rua de Sentido Único», Imagens de Pensamento, trad. João Barrento (Lisboa: Assírio & Alvim, 2013), 70. Num comentário sobre o «cosmismo» de Benjamin, refere Neyrat que «[…] podemos começar a encarar as tecnologias como a forma de manter um estrangeiramento da Terra, deixando esta de ser apreendida apenas como uma ecoesfera, mas sempre ao mesmo tempo como um planeta a vogar no universo. Em vez de ser um recurso a explorar, ou um lugar para habitar, o longínquo torna-se

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existem novas condições para pensar as promessas essenciais que a história nos legou. Uma relação falhada com a técnica levará ao falhanço dessas promessas. Existindo actualmente uma espécie de obsessão pela técnica, a relação com ela está longe de ser clara. Isso deve-se a razões que se prendem com um humanismo difuso que pretende fazer dela uma «invenção» humana, dominável para o bem e para o mal. Enquanto acontecimento, a técnica está longe de ser moderna, encontrando-se traços da sua presença ao longo da história. Aliás, esta nem seria possível sem a afinidade entre técnica e tectónica. As cavernas paleolíticas anunciam as futuras construções, já as implicavam e pressupunham. A esta distância constata-se que os sinais precursores da sua irrupção moderna vinham anunciando-se com a aparição de inúmeras máquinas que entraram em catadupa no real e se disseminaram a uma velocidade vertiginosa, a ponto de se ter podido definir a modernidade como a «era da máquina»35. Reconhece-se a profusão das máquinas, as quais são em si mesmas sempre singulares e plurais. Depois de um longo bloqueamento, basicamente simbólico36, assiste-se a uma explosão das máquinas: do telescópio de Galileu ao microscópio de Leeuwenhoek, da máquina a vapor aos motores atómicos, mas também a fotografia e o gramofone, as nanomáquinas e as estações orbitais e, agora, os computadores quânticos. Porém, são momentos marcantes os motores a vapor, eléctricos, etc., que abalam a antiga energologia37, e o surgimento de máquinas matemáticas como os computadores, que ainda nos determinam. O entusiasmo dos futuristas, ou o pavor dos românticos, dá conta de uma estranheza que vem através delas38.

numa carga explosiva, messiânica, a única capaz de reavivar o élan revolucionário». Cf. Frédéric Neyrat, Le Cosmos de Walter Benjamin: Un communisme du lointain (Paris: Kimé, 2022), 15.

35 Cf. Nicolas Berdyaev, L’Homme et la machine (Paris: Éditions «Je Sers», 1933), 20. Trata-se de um livro essencial apesar do seu espiritualismo remanescente.

36 Max Weber descreve o fenómeno como uma «emancipação» da técnica e o desabar das barreiras postas pelo orgânico e a simbolicidade pré-moderna, avesso ao cálculo. Cf. Max Weber [1923], História Económica General (México: FCE, 1997), 71-72

37 Energologia: o uso massivo, na história, da energia humana e animal.

38 É interessante verificar que os antigos se sentiam à vontade com as máquinas poéticas como a dos autómatos de Hefesto, ou as asas de Ícaro, como inventaram máquinas de conversão espiritual e de transubstanciação ritual que na modernidade sobrevivem como formas de arte e da imaginação.

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Surgindo como algo de inquietante, multiplicando-se empiricamente, a resposta mais imediata é a de as controlar teoricamente. Não é acidental que o século XX tenho sido fértil em teorias da técnica, em larga maioria marcadas pela desconfiança e o perigo que através delas viria. Deixa-se as máquinas aos engenheiros e são inscritas numa essência comum, que equivale à essência da técnica. Por exemplo, para Heidegger, autor de uma influente ontologia da técnica em que as máquinas mal são abordadas, «a técnica não é igual à essência da técnica».39 Estando numa relação inevitável com a «técnica», as máquinas não têm qualquer autonomia e estão inteiramente dependentes da essência desta última. As mais diversas teorias tendem a assumir posição similar, começando com a de Marx, a mais inovadora na época dos motores e da energia, passando por Ellul, Jünger, Gehlen, Heidegger, Habermas, Foucault ou Agamben40, mas a lista poderia prosseguir facilmente. Cada uma delas oferecendo uma imagem diferente da «essência», nuns casos o capitalismo, noutros o poder, noutros a requisição racional do mundo, ou então o reino do cálculo, etc. O resultado é sempre o mesmo: o menosprezo das máquinas e o abstractizar da técnica.

O desprezo pelas máquinas, misturado com a superioridade «espiritual», associado à ideia de que são absolutamente determinadas, sem potência em si, comporta uma relação séria com elas e impede uma ideia da técnica que possa sustentar a produtividade geral em que assenta a história. É certo que esta pode ser explorada sob inúmeras formas e instituições, mas excede sempre as formas que a controlam. A produtividade da physis é omnipotente e a maneira como é apropriada historicamente passa pela potência das máquinas, que a intensificam, fazendo da produção nova produção. A resolução dos problemas com que estamos confrontados, como a crise climática, as pandemias, a guerra dos impérios, a pobreza mundial, passa pela técnica, que aparece, assim,

39 Cf. Martin Heidegger [1953], «A Questão da Técnica», trad. Marco Aurélio Werle, in Scientiae Studia 5, n.º 3 (São Paulo 2007), 375.

40 Em A Casa Está a Arder, op. cit., afirma Agamben: «[…] talvez, o incêndio começou já há muito, quando o cego impulso da humanidade em direcção à salvação e ao progresso se uniu à potência do fogo e das Máquinas […]. E agora a chama mudou de forma e natureza, fez-se digital, invisível e fria, mas justamente por isso está ainda mais próxima, está ao nosso lado e nos circunda a todo o instante».

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como um órgão geral das espécies. As mesmas máquinas usadas para a guerra biológica são as que permitem responder às pandemias, o que implica libertar possibilidades políticas e éticas que se centram na produtividade e não na guerra pelo território. O essencialismo que integra as máquinas à sua lógica absoluta, como se fosse o que existe em comum entre elas, assenta na ideia de que a técnica é uma mera invenção humana, totalmente ao seu alcance e que pode e deve ser dominada. No entanto, perante a evidente intensificação e generalização das máquinas, esse controlo tem vindo a revelar-se bem frágil, acusando-se a técnica de ser um «perigo» absoluto, out of controll (Langdon Winner), ameaçando uma extinção generalizada da vida.41 Num caso extremo, Samuel Butler, sustentando-se num «darwinismo das máquinas», defendeu a sua destruição total e imediata, pois estariam a ter uma evolução que as levaria a ultrapassar os humanos.42

Desconstruir a visão essencialista da técnica passa por desmontar as teses que a determinam como algo exterior e unificado, embora produto dos humanos. Com efeito, as máquinas fazem parte da vida, como os humanos ou os animais, e tudo depende das composições ou arranjos onde entram, podendo servir a guerra ou o capital, ou necessidades humanas imprescindíveis. Pensar que as máquinas devem ser submetidas ou que se tornem em escravas ou servas do «homem», tese que vem de Aristóteles até Marx, é o resultado de uma visão da técnica que menospreza o facto de que todos os objectos, mesmo corpos e plantas, são crescentemente um seu produto, que se multiplica de maneira plural43. É com Gilbert Simondon que o antiessencialismo ganha força, permitindo uma articulação nova entre máquinas, técnica e real. Diz Simondon:

41 Da parte do pragmatismo americano temos uma posição mais atenta às máquinas e crítica do essencialismo. Similar tendência encontra-se também no chamado realismo especulativo orientado pelos objectos (G. Harman). Latour, no que vagamente se chama de pós-humano, produz alguma alteração ao defender a ideia de uma agência das máquinas.

42 Escreve Butler: «Dia após dia, porém, as máquinas estão a ganhar terreno sobre nós; dia após dia estamos a tornar-nos mais subservientes a elas; […] o desfecho é simplesmente uma questão de tempo, mas chegará o tempo em que as máquinas terão a verdadeira supremacia sobre o mundo e os seus habitantes. A guerra até à morte deve ser imediatamente proclamada contra elas. Todas as máquinas de todo o tipo devem ser destruídas pelo bem intencionado da sua espécie.» Samuel Butler, Darwin Among the Machines (1863).

43 Eis a razão por que todas as distopias consideram que as máquinas constituem uma máquina total, fora do real e cujo único objectivo seria o controle ou a dominação.

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O objecto técnico é muito interessante na medida em que ele faz emergir um terceiro termo, que é um termo de realidade física, pois o objecto técnico é feito de metal, de madeira, etc.: ele provém da natureza. E esse objecto técnico não estabelece uma relação de violência com a natureza e, quando ele surge, surge como intermediário entre o Homem e a natureza.44

Este estatuto intermediário corresponde a um espaço onde natureza e história se articulam, constituindo a forma geral da vida, tal como a teologia ou a mitologia constituíam um espaço com lógica semelhante, ao mesmo tempo técnico e mágico.

Este pensamento corresponde a uma viragem essencial da produtividade geral instalada na história. Reconhecer o carácter mediador da técnica, significa reconhecer que através dela se articula a produtividade da physis e a produtividade que sobre ela se inscreve, historicamente instalada. Apesar de todas as instituições e formas económicas e políticas, tudo se joga no interior desse espaço extenso que recobre toda a Terra. Conseguir uma relação com a técnica passa por reconhecer a prioridade da técnica da physis, ou a sua anterioridade absoluta, e a diferença onde se origina a técnica que se foi elaborando historicamente. Essa diferença originária foi delimitada com clareza por Aristóteles quando refere que a técnica da produção é simultaneamente uma mímesis da técnica da natureza, complementando-a: «Em geral, a técnica perfaz certas coisas que a natureza é incapaz de elaborar e a imita.»45 É essencial assumir esta divisão em vez de tentar interpretá-la filosoficamente retirando-lhe toda a força. A techné grega, que foi traduzida para o latim por produção, e mais tardiamente por técnica, tem hoje em dia outra conotação: algo vem à frente, aparece, entra no mundo. Na primeira técnica, algo aparece espontaneamente, na segunda, algo é produzido de modo a poder aparecer. De certo ponto de vista

44 Cf. Gilbert Simondon, «Entretien sur la mécanologie», in Sur la téchnique (Paris: PUF, 2014), 438.

45 Numa outra passagem dirá Aristóteles que a técnica pode suplementar a técnica da natureza: «a técnica e a educação desejam suprir o que está em falta na natureza» (Aristóteles, Política, 1337a). Cf. o valioso estudo de Hans Blumenberg, «“Imitação da natureza”: contribuição à pré-história da ideia do homem criador», in Luiz Costa Lima (org.), Mimesis e a Reflexão Contemporânea (Rio de Janeiro: EdUERJ, 2010), 87-136.

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tudo se joga em envios e traduções maquínicas destes envios, para quem os possa receber. A prioridade funda-se nos envios e nas traduções desses envios realizados por operações produtivas. Antes de existir alguém para receber, a physis e o cosmos estiveram sempre ao trabalho: os lagos espelhavam antes de surgirem os espelhos, a Terra era o relógio de si própria ao rodar vinte e quatro horas por dia, antes de surgirem os relógios atómicos, que replicam esse movimento e cuja matemática é mais perfeita que a do movimento planetário. Todas essas máquinas criam uma segunda natureza, que reflui sobre a primeira, e que cria, tectonicamente, o espaço onde os humanos vivem.

Marx sublinhou como tarefa obrigatória a de resolver «o enigma da história». Qualquer que seja o seu significado, sabemos como a injustiça campeia, vigoram a guerra e a pobreza, as exclusões de todo o género. As máquinas foram envolvidas nessas lutas, mas não as podem resolver, pois trata-se de uma questão política que exige uma decisão geral e humana. Denunciar a técnica de pouco serve, porque acabaríamos enclausurados num «real», a fechar um círculo impossível mas sempre erodido. Tais envolvimentos não impedem que seja a técnica como acontecimento histórico que esteja a criar condições para que o teatro histórico chegue ao fim (Burroughs). É essa a intuição preciosa de Walter Benjamin ao afirmar:

A técnica não é dominação da Natureza: é dominação da relação entre Natureza e humanidade. Os homens como espécie estão, decerto, há milénios, no fim de sua evolução; mas a humanidade como espécie está no começo. Para ela organiza-se na técnica como Physis na qual o seu contacto com o cosmos se forma de modo novo e diferente do que em povos e famílias.46

Na época da técnica, inseparável da sua potência cósmica, que anula a excepcionalidade do humano e da Terra, torna-se finalmente possível acabar com a apropriação do planeta, esse arcaísmo originário, e libertar a política da sua confiscação pelos Estados e as suas linhagens de sangue, território e lín-

46 Benjamin, «Para o Planetário», 70.

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guas, mas também pôr fim ao abuso das máquinas para fins inumanos.47 Isso exige uma nova fisicalidade, como a das redes que estarão a ligar todos os humanos e que, cruzadas com ficções historicamente elaboradas, estão a abrir novas possibilidades.

Trabalhar sobre as redes implica um outro método, outro modo para activá-las. Trata-se de encontrar um caminho fora da coesão conceptual das teorias que reúne o disperso segundo uma arquitectónica forte, puramente projectada, e em concorrência com outras que desejam o absoluto com a mesma intensidade, porém fora do regime das mecânicas institucionais ocupadas em transmitir-se e repetir-se ao controlar o tempo.

Sobre a matriz rígida das instituições circula cada vez mais uma espécie de «poeira» de imagens, sons, frases, corpos e objectos que emanam dela, mas que também invocam a crise, o que leva os nostálgicos a anunciar uma nova Babel. É preciso trabalhar a quente sobre esta experiência, sem ilusórias distâncias de segurança, operando arranjos e rearranjos, ligando e desligando, desinserindo as cadeias de associações fixadas historicamente e reinserindo outras, mais justas politicamente. Estar no real implica uma deslocação essencial, tornar-se produtor. Fazer teoria ou outra idealidade qualquer passa por produzir um objecto instável que entra no mundo criando uma dobra neste: na forma de livro, ou de filme, ou de poema ou de complot.48 Parece uma deslocação mínima, mas é essencial. Trata-se de assumir que a figura que afecta com a sua materialidade o real, dependendo da sua potência e das composições onde entra, provoca uma série de perturbações, rearranjos, respostas, novas composições, outras bifurcações.49

47 As máquinas serão os companheiros para essa viagem política, como afirma Andrei Platonov: «E proponho organizar uma noite dedicada ao poeta do futuro a nascer, que já está tecendo as coroas de ferro de seus poemas. Seu nome é Máquina. A Máquina já está a mastigar o mundo e a fazer uma canção alegre a partir da tristeza. Só que os sons da canção não são palavras trémulas, mas mundos mudados, o cosmos dançando. Proponho organizar uma noite para poeta-máquina, nosso camarada e meu.» Cf. Valery Podoroga. «“Revolutionary Machines” and the Literature of Andrei Platonov». Stasis, 1, vol. 5 (2017).

48 Isso ocorre sem qualquer prioridade — a frase mais efémera, um filho que nasce, um exilado que chega à cidade, mais ainda as nuvens, um carro desembalado, tudo isto opera conversões infindáveis do real.

49 Para uma visão napoleónica ou imperial da política que sempre se baseou na acumulação de corpos, dinheiro, poder para os aplicar num ponto com o máximo de poder, esta estratégia minimalista que não apela a qualquer arkhé, sendo da ordem da na-arkhé, parece insuficiente, mas a primeira está a levar-nos ao desastre.

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Estes ensaios foram escritos sob a imagem da constelação. Controlada pelo conceito, com as novas máquinas como a da fotografia, a imagem libertou-se, separou-se dos objectos que a aprisionavam, eles próprios prisioneiros da lógica da rendibilidade. Uma nova plasticidade é produzida pelas imagens, que na sua leveza e movimento arrastam, com leveza e sem violência, o real. O pensamento do século XX propôs uma outra configuração do pensar pela imagem, desenvolvendo métodos como os de mosaico, de caleidoscópio, de paradigma, de mapa, de atlas, de arquivo, de arquipélago, e até de floresta ou de montanha, como nos ensinou Aldo Leopoldo. Esta nova semântica da imagem, depois de milénios de destituição pelo platonismo, significa estar à escuta da máxima de Giordano Bruno de que «pensar é especular com imagens». Algo aparentemente antiquado, sabe-se como emanou da astrologia antiga, mas que foi avançado de maneira essencial por Walter Benjamin como método adequado à criação de «obras» que, em vez de falarem do «real», o afectam e transformam subtilmente. Uma obra como O Capital de Marx ainda está a percorrer o real, outras estão ocultas nos arquivos ou na memória dos happy fews, outras, sem-nome, procuram os seus próximos e outras ainda estão vindouras. O primeiro modelo da constelação foi, para Benjamin, o do cinema, embora o tenha aplicado ao barroco e ao capitalismo do século XIX. Compreende-se esta ligação ao cinema justamente por ser indissociável da operação de montagem.50 Não existe montagem que não passe pela ligação do disperso, enquanto este é produzido pela explosão do «reunido» ou «associado» ou pelo descolamento da imagem, criando-se uma potência plástica, em aberto. Com efeito, o cinema tematizou o trabalho da montagem como intrínseco à produção da obra e não como uma ligação formal ou simples, inteiramente dominada. Alexander Kluge di-lo bem: «O cinema constelacional é um poder gravitacional, como o sol. […] O mesmo princípio deve ser usado no filme. Este é o tipo moderno de conectar as coisas. Não pela lógica, pois

50 Não por acaso, no princípio do século XX, a ideia de montagem generaliza-se a todas as actividades, indo desde a cadeia de montagem da Ford, passando pelo cinema e pela fotografia. Cf. Bernard Stiegler, L’Homme-montage: Une figure de la modernité (Paris: Hermann, 2019).

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isso seria mera maquinaria.»51 Não se trata, porém, de qualquer ligação, de que emergiria o terceiro sentido, estilo Barthes, e que é mais adequado à colagem, ou da imprevisibilidade surrealista, mas de um acto único de desinserção e inserção que passa pela tradução em imagem do empírico, dos conceitos, das máquinas, tudo isso magnetizado por um atractor geral. Na arte renascentista o nome para um tal atractor era o de «ideia», e afigura-se, ainda hoje, útil.

A «ideia» existe apenas se plasmada numa «obra», num artefacto ou objectos que sendo heteróclitos se acrescentam ao real, e este fica forçado a responder-lhe, pois nada acontece sem deixar traços. Como refere o poeta Eugen Gomringer, a constelação é um «arranjo» que cria um «campo de forças».

Numa frase: «A cada constelação algo novo vem ao mundo, cada constelação é uma realidade em si e não um poema sobre alguma outra coisa. A constelação é um desafio, é também um convite.»52 Enquanto novo objecto, ao entrar no real origina uma constelação de forças, provocando tensões e rearranjos novos cuja disseminação é indecidida e incontrolada: nenhum marketing ou poder a pode controlar. Ela é, sobretudo, um convite, uma dádiva, que se pode aceitar ou não, mas não se pode evitar. Isto aplica-se a toda a adição ou nova produção, mesmo que seja um livro de teoria da representação ou uma descrição do universo ou a notícia de um deus em devir. Contam primeiro como livros ou objectos e apenas através da sua trajectória material têm efeitos sobre o mundo, mas sem qualquer garantia. Tudo depende das forças em presença, da potência que contém, das bifurcações que opera.

Em suma, a constelação em acto neste livro é magnetizada por uma certa ideia da técnica enquanto acontecimento decisivo, e cada ensaio aqui reunido corresponde a uma refracção dessa ideia num problema por ela suscitado, passando pela arte, o corpo, a fotografia e a técnica propriamente dita. Tem como único objectivo que um certo pensar se materialize, que este livro o transporte consigo e, seguindo o seu curso, encontre os seus próximos ou não.

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51 Cf. Alexander Kluge em entrevista a Jonathan Thomas, The Third Rail 10 (2017). 52 Eugen Gomringer, «From Line to Constellation» [1954], in Mary Ellen Solt (ed.). Concrete Poetry: A World View (Indiana University Press, 1968). 1 . Leonardo da Vinci, Mona Lisa , 1503-1506

mínimo que existe entre arquivar e desarquivar. Tem antes que ver com a visibilidade, com o trabalho da figura.

4.

Este trabalho já vai longo e os problemas saltam em catadupa. Decisivo é saber como responder ao arquivial que se dissemina. Tudo indica que a técnica está a abandonar o esquema milenar que a dominava como meio para um fim, ou para um princípio (diria que o poder é o telos e a arkhé o princípio). O problema é saber se haverá uma medialidade que não utilize os arkhai e os telos. Já vimos isso, sustentando que essa mutação é indissociável de uma disseminação do arquivial. Paradoxalmente, essa medialidade arquivial só é eficaz através de uma conectividade imediata. É esse sonho místico que a electricidade parece poder realizar. Mais do que ser um suporte para os traços da acção, para os restos da acção, para as cinzas da memória, o arquivo apresenta-se como sendo o estado de «restância» ou de traceabilidade (e repetição) de tudo. Mas dada a sua instantaneidade, pressuposta e necessária, a própria diferença entre acção e efeitos, entre suporte e conteúdo, entre dizer e dito, etc., anula-se, numa reversibilidade que coloca problemas novos.

De entre vários, o mais importante é o do controlo do biótipo pela replicação arquivial. Toda a figurabilidade depende do adiamento desta queda no bios e da possibilidade de trabalhar a mescla do silício com a carne.58 A própria carne pode ser salva, como tudo é salvo tecnicamente — a teologia da salvação incubava a sua realização através da técnica. É preciso abandonar a mística da salvação que só relança o processo. Aceitando a finitude, vivendo numa errância longe dos arkhai, habitando no abismo da medialidade sem fim, surge a questão da política como imperativo absoluto.

58 As crescentes preocupações pelo cyborg e os «corpos artificiais», os clones, etc., indicam o caminho que se está a seguir.

269 Refracções |

© SISTEMA SOLAR, CRL (DOCUMENTA)

RUA PASSOS MANUEL, 67 B, 1150-258 LISBOA

© JOSÉ BRAGANÇA DE MIRANDA, 2023

1.ª EDIÇÃO, ABRIL DE 2023

ISBN 978-989-8833-91-4

CAPA: JOSEPH KOSUTH, ONE AND THREE PLANTS , 1965 TWO MOUNTED PHOTOGRAPHS AND PLANT COLEÇÃO BERARDO

REVISÃO: CATARINA PATRÍCIO, LUÍS GUERRA

DEPÓSITO LEGAL: 514913/23

IMPRESSÃO E ACABAMENTO: TÓRCULO

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