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2. À escuta da voz que ensaia uma declaração de amor


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com realização do filho Edoardo Ponti, reservaram para a cenografia uma função diversiva, ao transformar o quarto numa casa burguesa ou então numa mansão senhorial napolitana.
Por sua vez, a versão que Pedro Almodóvar nos oferece com The Human Voice (A Voz Humana, 2020), interpretada por Tilda Swinton, radica na sua vontade expressa de «saltar para o outro lado do décor e mostrar a matéria do artifício». As razões que motivaram a sua retoma foram explicadas em diversas intervenções sobre o filme: «Esse texto de Cocteau sempre me fascinou, tanto que aparece também no meu filme La ley del deseo (A Lei do Desejo, 1987), numa cena muito breve, e em Mujeres al borde de un ataque de nervios (Mulheres à Beira de Um Ataque de Nervos, 1988). Esse telefonema que nunca chega e essa mulher só,


acompanhada pelo cão também abandonado, formam uma situação dramática que sempre me interessou». De igual modo, foi por si bem sublinhada a distância que pretendeu introduzir:
Tive de me apropriar do texto como Rossellini já havia feito com Anna Magnani como intérprete, mas queria fazê-lo de uma forma diferente, quase oposta, em total liberdade em relação a Cocteau. Em suma, queria reescrever o texto como se fosse um duelo. De outro modo não reconhecia esta mulher como contemporânea, necessariamente mais dona de si mesma. No original há uma excessiva submissão da mulher

abandonada, submissão essa que eu quis converter num acto de vingança. Desde o início imaginei o filme como acabou por ser feito, uma narrativa muito afastada do realismo e do naturalismo. O único real que serve de referência ao espectador é a voz. 4
A prática do transplante de um motivo menor num filme para florescer e se desenvolver numa obra posterior é algo bem conhecido e ainda mais bem executado por Pedro Almodóvar, por exemplo, em Hable con ella (Fala com Ela, 2002) e a sua aplicação em A Voz Humana dependeria de seguir a hipótese de ao camarim de teatro suceder o set da representação cinematográfica, pois sabemos também, pela boca do próprio realizador, que o camarim de teatro, em que as mulheres mentem e se confessam se converteu em «sancta sanctorum do universo feminino». Na origem dessa correspondência estaria o pátio da infância. Espaço vital, em que as mulheres fingiam e mentiam, ocultando e desviando o curso da vida do controlo machista dos homens. Lugar do primeiro espectáculo encenado e visto nos pátios de
4 Almodóvar, Entrevista a Pedro Almodóvar por David Noriega e Clara Morales.



la Mancha, cujo significado tem para Almodóvar a seguinte expressão e alcance: «três ou quatro mulheres falando significam, para mim, a origem da vida, mas também a origem da ficção e da narração»5 .
Contudo, acertado que fosse o lugar da fala, a maior distância em relação a Cocteau/Rossellini derivaria, talvez, da introdução ab initio no set pela mão da protagonista, provindo explicitamente do exterior, de dois objectos destinados a fazer sangue e pegar fogo: o machado e o jerricã.
Segundo Roland Barthes, «existe uma cenografia da espera, que eu organizo», mas há uma determinação que é como «um encantamento: recebi ordem de não me mexer»6 que a heroína de Almodóvar teima em contrariar, e subverte.
5 Cf. José Bogalheiro, Empatia e Alteridade: A Figuração Cinematográfica como Jogo (Lisboa: Documenta, 2014), 441-442. 6 Roland Barthes, Fragmentos de Um Discurso Amoroso, trad. Isabel Pascoal, Obras de Roland Barthes – 1, [1977] (Lisboa: Edições 70, 2006), 131-132.
106 • José Bogalheiro
Adenda
Na crónica do mês Março («Círculos à volta de uma flor da Primavera»), muito embora eu não tivesse uma resposta para a pergunta deixada por Anna Magnani, sobre quem pudesse ser o homem da sua recordação do parque de Nova Iorque, ficou, contudo, por dizer aquilo que se confinado um espectador acabaria por ter como certeza, indemonstrável e anacrónica, mas justa: nos seus arabescos, sem parar, o que conduzia o patinador ao alvorecer era Morning Circles de Bernardo Sassetti1 .
1 Bernardo Sassetti, Morning Circles (Timbuktu Solo Sessions, #10), mp4 (Música composta e executada por Bernardo Sassetti para «Uma Coisa em Forma de Assim», coreografia de Olga Roriz. Inédito (2011). Versão originalmente partilhada na página oficial do Facebook do autor, 2011), https://www.youtube.com/watch?v=rWKDx99rYRc&list= RDrWKDx99rYRc&start_radio=1.
