Inês Botelho, Diogo Vaz Pinto, Havia um sino - excerto

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Um sino toca sobre o caminho passageiro, frio sob um sol de oblívio, quase um sussurro que meio se desvanece e logo volta a si, reganha os sentidos, tomando notas, ferve nesta luz violenta, feito um zumbido, e na tremura do ar quente, à hora das miragens, lembra aos vivos os passos dos mortos. Leva-os por um momento confusos, desorientados, rindo de cansados, trôpegos. O som tem uma história, viu coisas, e inutilmente faz por descrevê-las. A rua que lhe deixaram foi ficando sem nada para ver. De longe em longe algum aviso para assustar o vazio, a imensidão que parece torturar a vista. Campos crepitando num rumor de distâncias mortíferas. O pensamento só, vagueando, indigente, ao sabor do retrato que lhe pinta a sombra nos caminhos, e a paisagem a crocitar, a contorcer-se ao fundo.


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A natureza com o seu visco cobrindo, enchendo cada segundo deste espaço, uma eternidade sujeita à doença cíclica das estações. A selva bêbeda das monções, devoradora de homens. É doloroso ver este sino caído, tresmalhado da sua fé, ouvi-lo rastejar, bater-se por mais uns círculos, um ouvido. Ter descido da altura orgulhosa do campanário a este chão que já não leva nem traz: um chão de enterro. E senti-lo suplicar enquanto tudo ao redor o ignora, ou, até, despreza. A natureza não quer saber as horas. É a circunstância que amesquinha todas as outras, e deus não lhe interessa. Tudo o que o tempo para ela é não passa de uma fome tal, uma tamanha sede, que se tornam ensurdecedoras.

Diogo Vaz Pinto


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Inês Botelho Diogo Vaz Pinto

HAVIA UM SINO NO MEIO DA ESTRADA

D O C U M E N TA


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DO CIMO, UM CICLO Inês Botelho

Do Cimo, um Ciclo, 2016, barro, pigmentos, bronze, ferro


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TERRA BESTA Diogo Vaz Pinto


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Somos talvez até um país rico, e tivemos Camões, e tivemos pessoa e o infante, mas a beleza está nos escombros, e atola-se na areia e morre sem nos ver. Porque se eu abro a minha mão à noite e nela só vejo as linhas do destino, de que me vale a história do meu povo? Sim, é possível que a profética rosa do oriente ainda venha pelo rio da primavera ancorar na solidão imensa deste cais. Eduardo Valente da Fonseca


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Não há nada para ver na Índia. É tudo para interpretar. Henri Michaux


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Forçado a ler-me, a olhar para trás através dos apontamentos que escrevi e compus no alinhamento que se seguirá, vi-me na necessidade de começar por um pedido de desculpas, de explicar que não pretendia ir tão longe nalguns impulsos, mas que me deixei arrastar, talvez bem para lá do que seria educado e até justo, comovido tantas vezes mais por uma sensação do absurdo, um ânimo a contragosto, mesmo um desejo de violência ou ajuste de contas que não tinha, no fundo, razão de ser. Ainda assim, uma viagem recontada é sempre um acto de exposição daquele que foi, de como se sentiu arremessado para lá das suas circunstâncias, extraviado ao seu curso habitual. Não tenho defesa contra quem possa ler as páginas seguintes e entender que não ultrapassei as minhas próprias dificuldades, que não soube ficar em silêncio para escutar o que tive em meu redor. Seja como for, este foi o meu conflito. Se lhe passasse ao lado acabaria sem uma só verdade de que falar; teria registado levíssimas impressões que se esbateriam imediatamente, sem relação com nada.

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Não deitei rede todo o caminho. Larguei também muito do que me veio à mão. É difícil refazer as malhas, pôr caminho a ligar as impressões. Mais fácil era atar por cima uma ficção, dar-lhe um rumo e alimentá-la das anotações que fiz, voltando sobre aqueles dias novo olhar, recuperando algum susto, algum clarão. Vejo bem que o que consegui não foi mais do que encadear impressões numa música banal, num passatempo de alma, levando a vista a alguma consequência. Umas poucas ideias impressionados pelo olhar. Mas fiz isto com algum esmero, fui atrás da emoção sem deixar que se perdesse de um curso lúcido e natural. A primeira sensação que a memória ilude é a da própria passagem do tempo. Essa frágil tensão narrativa. Não me peçam por isso as horas a meio disto. Tenho dez dias marcados, mas só de fios soltos. De quem tenta fazer dos sentidos um sentido. A Índia foi afinal uma imensa pedra no nosso caminho. O que não se antecipa nem depois se pode trazer no bolso. É mais isso o que nunca esquecerei… Nunca me esquecerei desse acontecimento na vida de minhas retinas tão fatigadas. Nunca me esquecerei que no meio do caminho tinha uma pedra, tinha uma pedra no meio do caminho…

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Nunca confundas movimento com acção. Hemingway

Goa, Damão, Diu, Baçaim, Chaul, Bhavnagar, Bombaim. Isto por dez dias, se vais pôr-te a imaginar. Um certo gosto, se só lhes disser os nomes, se for com o dedo pelo mapa a perceber o que fizemos. A memória é outra coisa. A primeira sensação que me toca é a do meu lugar com vista sobre todo o corredor na última fila de um dos dois autocarros. A estrada depois, imensa, absurda. Como aquelas horas perduram e me custam a passar ainda. Só tinha o meu relatório, paciente alucinado de uma viagem onde não via direcção nenhuma, só uma rota exasperante. Mas há muitas coisas, fiz do tempo uma obsessão com as minhas notas. Ao todo, de Lisboa lá e voltar, doze dias. Enfiado numa cabine, afundado num porão, meio enjoado, muito alto o mar, abrindo a escotilha para ir seguindo a projecção de um cenário soberbo, vivo, «um estudo sobre extremos», como ouvi no filme que ajudou a empurrar duas horas das vinte e tal num dos aviões para lá chegar. Só que, como estou a tentar explicar, levou muito mais tempo que isso. Nem cheguei, talvez. Naufraguei algures no caminho. De facto, não vi nada, fui sacudido violentamente, impressionado a um ponto em que senti necessidade de usar as próprias palavras como medicação; ler outros também. Como me confortou «Ouvir o Incenso», de W.B. Yeats. Não faria sentido não transplantar para aqui alguns exemplos, as coisas que li, recordei ou pressenti. Só é uma viagem se, aos poucos, deixar de importar quem foi nela, se formos alguns e voltarmos mais. Pode não servir como desculpa, mas é indiscutível para mim que ir em direcção a Oriente significa perder o nome, esse juízo tão próprio, radical, e conviver. Roubar sem dar grandes explicações. Porque me sabe mais: «O nosso universo de cimento e de ramificações eléctricas não é simples. Quanto mais se o pretende explicar, mais ele se nos escapa. Viver por dentro, hermeticamente fechado, seguindo os impulsos mecânicos, sempre

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procurar trespassar estas muralhas e estes tectos, é mais do que inconsciência; é expormo-nos ao perigo de sermos pervertidos, mortos, tragados. Sabemos hoje que não há verdades; apenas há explosões, metamorfoses, dúvidas. Bem entendido, queremos abalar. Mas para onde? Todos os caminhos são parecidos, todos são um regresso ao próprio indíviduo. É pois preciso procurar outras viagens. Que é o tempo, que é o espaço? Em cada segundo descobrimos no espectáculo do nosso presente, daquilo que nos é familiar, os abismos do futuro e da distância. As dúvidas são céleres, mais céleres do que as proezas técnicas. Lá no fim da paisagem do futuro, ao cabo destas estradas de cimento, destas pontes suspensas, destes dédalos urbanos, destes desenhos dos fios e dos transístores, há talvez ainda este mesmíssimo país, desconhecido, este país velho de milhões de anos, sombrio, impregnado de solidão e de mistério, este país mudo e altivo onde a linguagem humana não passa ainda de um quase imperceptível tremor, este país tão terrivelmente vasto e tão vivo que as mais inertes coisas batem como corações e vibram como cérebros, país despovoado, país lendário que nasce, que está a nascer.» J.M.G. Le Clézio, Índio Branco

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Dia 1 A Índia não se abate sobre nós de um momento para o outro, mas deixa-se entrever, entre grades, cintilações que rasgam a noite. Recolhida na escuridão e, ao mesmo tempo, próxima na sua quentura suspirada, como se o bafo de um enorme animal, envolvendo-nos. Vai arrastando a contagem decrescente, um tanto dramática depois de tudo e de mais um dia inteiro entre escalas e a suspensão do tempo de voo. Tudo enredado, uma série de pequenos nós. Chegar foi nada. Outra hora que do aeroporto nos foi embrenhando cegamente no tal destino que se reservava para o dia seguinte. O meu sentido era todo um só, o de quem é passado de uma mão a outra, num jogo cujas regras ignora, numa progressão que não consegue decidir se lhe diz ou não respeito. O olhar é a primeira marca. Esse peso que impressiona ou não o mundo. O que vi das janelas sobre a minha primeira madrugada indiana foram pequenas fugas ao grande fundo negro. Do nada, numas lambretas sempre meio rebentadas mas galgando o espaço intrépidas, sempre aqueles tipos, baixos, às vezes um tanto velhos, com um jeito adolescente, sobretudo a dois, mas cheguei a ver três; o miúdo agarrado às costas, nos ombros do outro que conduz, e lá vão com o seu ar de modestos aventureiros. ——— Que espécie de dia amanheceu. Sob uma luz de candeia, pálida demais, um pouco abaixo da altura do peito. Sem nenhum gesto enérgico, numa briga cansada com as coisas, como um velho segurança que faz a primeira ronda do dia no museu. A rotina que pisoteia o espanto. Não diria que havíamos chegado faz umas horas. Deixados pelo autocarro num hotel-resort, o famoso Fort Aguada, aproveitando-se das ruínas de um forte português.

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Tudo em ordem, mas desoladora a sensação de termos caído ali ainda antes de se extinguir o eco das invasões da época alta. Não sabemos quanto do mundo não passa da distorção a que o sujeitamos, como o batemos em claras no nosso juízo, mas nos dias que se seguiriam as leituras que fiz poucas vezes foram ofendidas pelas informações que nos passavam. ——— Sem sol, as cores só dão um pouco de si. Dada a vastidão e alcance, a maioria dos apontamentos com a mão deles parece lixo. Um povo precário, que parece ter conseguido autorização só para uns dias, mas que foi ficando, fazendo vida neste difícil encosto. Isto é uma estrumeira, acontece que com uma certa distância aqui tudo delicia o olhar. ——— De tão urgente a necessidade de filmar toda a trajectória, cedo me releguei para a posição de quem só leva umas legendas à tela, essa onde me punha a projectar para mais alguém tudo o que trocou comigo um olhar. Não me coloquei nunca à distância a contar para um cego os passos que dava. E agora parece-me justo este exagero de dizer que falar do que vimos por ali é como tentar erguer paralelos no escuro de quem não vê. De que imagens posso refazer tudo aquilo. Só filmando, mas genial, magicamente. ——— Forte de Bardez. Se me deixassem ficar umas horas com isto. Sinto que umas poucas linhas copiadas de cada lugar, o que quisesse vir ou se deixasse ouvir, seria um bom motivo. Mas este movimento imparável, esta ânsia possuidora mata a viagem que os lugares estariam com vontade de fazer em nós. Estamos tão longe e ainda assim insistimos no abuso dos ritmos que já trazíamos connosco.

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Pego na máquina e sinto-me um idiota. Tudo fica com um sabor a postal mil vezes visto antes. Mas o olhar escorrega de frente noutras relações. A luz que se guarda numa foto não assombra deste modo. É preciso mudarmo-nos para aqui. ——— Outro forte. No ombro do mundo. Reis Magos. Com a vista de um deus ancião, sereno, se dissesse triste já seria só um hábito meu. Nas minhas costas discutem mais algumas linhas históricas não sei de que mundo nosso. À nossa frente, para lá da muralha, bem lá em baixo há um pequeno cemitério, uma vintena de sepulturas e os nomes que à distância não se deixam ler. Mas tudo indica que são dos nossos. Só que, depois de todo este tempo, que parentesco ainda nos liga? ——— As famílias indianas seguem com a vida delas, indiferentes. Ralham-se, abusam, as crianças choram de tão chatas. E sobre tudo isto há uma gralha que não se cala. Mais alto ainda com a sua risada agreste e vazia. ——— Comprei uma antologia de textos sobre Goa. Começa tão bem logo no título. Chama-lhe a cidade reflectida na água. De facto, no mundo e na vida interessa-me acima de tudo a perfeição desse filtro, a poesia. O guia chama-lhe a terra que não se deixa inundar. É sempre, de um modo ou de outro, uma questão de resistência. Só já nos conquistam e encantam as condições que sentimos ameaçadas. A perda é a melhor luz. Espelho dessa desgraça comovente que é a nossa própria morte. E, como escreveu Frank O’Hara, é sempre o estarmos a morrer o que nos preocupa e não a morte / it’s always about dying, never about death. ———

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Isto como cidade não dá. Que vida urbana se deixa perturbar de forma tão séria pela natureza. Dizer que isto é habitado, que a coisa prospera quando parece que as casas e edifícios se erguem a custo e não deixam de ficar de joelhos, rezando à natureza. ——— Há grilos nos canteiros, nos vasos dispostos pelos cantos à saída desta Igreja da Imaculada Conceição. Dizem os nossos nomes em inglês. Com tudo o que o colonialismo tem de mau, às vezes dá-me a ideia de que não fomos tão maus quanto podíamos ter sido. Como os ingleses, piores ainda se nos fosse possível. Termos segurado isto. Submetido meio mundo à nossa influência e concentrado as nossas energias nesse império que se perdeu. Tudo se perde, é claro, com o tempo. Mas os muito maus ao menos agarram-no e sentem-lhe o gosto. Os outros são arrastados e finalmente pisados e ultrapassados por ele. ——— «— Reflectindo bem, devemos considerar-nos afortunados por termos conhecido a Europa através dos portugueses. Não havia maneira de evitar o contacto com a Europa. Mas pense nos espanhóis, no Caribe e em outras partes. — É verdade. — A devastação, a brutalização de povos hospitaleiros. Ou veja os holandeses na Indonésia. Alguma vez fomos obrigados a dobrar o joelho à passagem de um branco? — Que eu saiba, não. — Ou os britânicos, racistas cheios de si, policiando a terra implacavelmente, em nome do lucro. — E os franceses solipsistas, e crianças africanas a contas com “os nossos antepassados gauleses”, que tinham cabelo loiro e olhos azuis? Nunca nos disseram que Viriato ou Sertório, cujos nomes vinham logo na primeira página do livro de história, eram nossos antepassados. Ou-

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vimos falar deles mas nunca pensámos que relação teriam connosco. Falavam-nos de Afonso Henriques, das suas lutas contra os mouros, suas vitórias miraculosas e a desavença com a mãe. De reis poetas que amavam as árvores, da paixão de Pedro e Inês e do modo selvagem como ele se vingou dos que a assassinaram. Ouvimos muita coisa sobre as Navegações. Sobre o mar negro e tenebroso, naufrágios e praias arenosas, cruzes erguidas em litorais pagãos. Diziam-nos que isso fora o início da era moderna (…) Portugal era mesmo a face da Europa virada para o exterior, para o oceano e mais além, qual fatídica cara de esfinge, no dizer do poeta, fitando, sonhando e cobiçando? Foi a Europa que velejou pelas costas da Guiné abaixo e à volta da África, ao longo do litoral da Etiópia, da Arábia e da Pérsia até à Índia? Ou foi antes uma nação entre outras, perseguindo o seu próprio destino histórico? Nesses tempos a Europa já era verdadeiramente Europa? Parece que ainda não havia Europa, mas Cristandade, uma maneira de viver e um tempo durante o qual aquilo que viria a ser Europa se aperaltava, embelezava as suas lendas, afinava os utensílios e tosquiava parte das melenas de estilo nibelungo. Um modo de vida que começava a ganhar ranço. Os príncipes, ainda guedelhudos mas cada vez mais sofisticados, começavam a irritar-se com a suserania do papa e a estabelecer as suas próprias soberanias. Os mercadores, tendo vencido algumas das barreiras internas à circulação de mercadorias, miravam mais longe, no estrangeiro. As Cruzadas e as repúblicas mercantis da Itália tinham revelado riquezas, requintes e aventuras nunca suspeitadas. Os portugueses eram homens criados dentro da concha medieval que estavam, como a Europa, prontos a quebrá-la. Homens de grande fé mas de ainda maior avidez, crentes nas recompensas da vida futura mas sedentos dos tesouros da presente. Homens que acreditavam de todo o coração no poder do Papa e na linguagem às vezes obscena em que este gostava de se exprimir, mas mundanos quanto bastasse para usar esse poder em seu proveito próprio. Homens intrépidos, dispostos a morrer por Deus e pelo seu rei, mas não ansiosos por o fazer. Acima de tudo, homens absolutamente seguros dos seus objectivos e dos seus direitos, convenci-

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dos de que a própria noção de direito era propriedade sua. Sim, os portugueses foram os olhos de uma Europa que despertava, a quem revelaram as rotas comerciais do mundo. Quando a Europa, finalmente acordada, se apoderou do comando, varreu-os para o lado. Os holandeses e os ingleses, mais europeus do que eles, mais modernos, tiveram um papel decisivo na história da Idade Moderna, a idade europeia. Mas se a era moderna entrou verdadeiramente na história com os barcos negreiros do Atlântico, então os seus arautos foram os portugueses. E este não foi o seu único contributo. Iniciaram o meticuloso inventário do planeta que antecedeu a sua exploração, o processo da sua apropriação, tanto mental como física; deram nomes aos seus relevos e fizeram o retrato dos seus habitantes, que a partir de então se transformaram no objecto por excelência do sujeito europeu, o “outro”, o “não-eu” para o “eu” da Europa. Inauguraram a época na qual a grande maioria da humanidade se viu forçada a viver num universo concebido e organizado por outras mentes e outras mãos, com finalidades de todo alheias às suas.» João da Veiga Coutinho, Uma Espécie de Ausência ——— Não quero deixar muita coisa para depois. É o primeiro dia e estou incrivelmente conquistado por isto. Mas quando acabar sinto que me ficará uma tremenda ressaca e, possivelmente, um longo silêncio. ——— Viajei muito pouco. Mas os que tenho à minha frente têm feito disto muito das suas vidas. Pergunto a um que também cá está pela primeira vez se isto não está longe de tudo. Viveu por muitos dos territórios onde nos fomos fazer senhores e diz-me que a marca que deixamos dói logo na superfície. Apesar de mesquinhos, há um jeito, uma graça que deixamos nas coisas. Somos de uma gente caprichosa e paciente, dolente mas persistente.

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——— Chove às vezes exageradamente. O que toda a gente sabe sobre a chuva, e o que aqui é vulgar, mas não dá para sentir como um incómodo. Que chova, assim, que nos obrigue a desvios, a ficar quietos, sorrindo de tolos, ensopados debaixo dos toldos do pequeno comércio, na sua apatia de coisa parada no tempo. De que século somos hoje? Por um momento breve demais dá para acreditar que não faz nenhuma diferença. ——— Fazemos fila e número, se andamos, ou ficamos aos magotes a ouvir falar, comentar disparates, compor o ângulo, tirar a foto. Somos apenas curiosos, mas não nos misturamos porque até nisso somos frívolos. Nada é chato, mas tudo é meio absurdo. Dois autocarros a sacolejar nas estradas estreitas, a subir, descer, virar, num comichar lento destas extensões. Eu gosto. Sinto que teria sempre do que escrever. Perder o juízo a andar. De um lado para o outro, levado, como os tontos. Não me é estranho. E de outra forma nunca seria eu a empenhar-me nestes cursos intensivos de visitação. Ficaria para trás, distraído, punha-me a ler até perder a luz. ——— Seria inteligente dar aos odores o protagonismo num caminho feito alegremente às cegas por estas ruas, ir atrás, saber o que é, porque esta humidade é perfumada, densa, como se fosse a obra de um artesão ou mago, um ser meio dormido, que se exala de um jeito ora mais pensativo e pesado, ora mais leve e sonhador. As cores que este país tanto sugere e que, a alguém de fora, até obriga a reportar, não passam de uma fase mais tardia do que nos abala as percepções, como se a cor fosse o simples desabrochar de um cheiro, cheiros que na sua confusão tornam a palete cada vez mais diversificada, mudando os tons uns nos outros, quebrando os joelhos à luz e fazendo-a cambalear insegura. Não há nada que brilhe por aqui que não conheça logo de seguida uma espantosa con-

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versão à treva. Não encontro nenhum trilho que me faça pensar em serenidade, tudo é já uma calma depois do esgotamento. O descanso vem na sequência de um cansaço muito mais sério. ——— «Sobre esta vida esparge-se o odor rançoso, amanteigado, apimentado, perfumado de incenso, de madeiras aromáticas, este odor magnífico e inesquecível do Oriente.» Paul Nizan, Aden-Arábia ——— Falando no cheiro dela, houve um texto que, já regressado a Portugal, me causou algum espanto e onde fiquei feliz por ter encontrado a relação com essa sensibilidade que mais é afinada em nós pela Índia. «OLFACTO Levo-o através do tremor sem forma e sem cor da poeira morta. O ar assombra-se de espíritos invisíveis mas não imateriais: um pó ténue ascende dos ossos em eflúvios e precede-me como a luminosa coluna mística. As dobras da toalha em que o levo sacodem o ar com o seu simum; e os tufões de areia exasperados reviram-se e sufocam-me. Os passos ritmados sobre as escadas sem fim dão ritmo à dança das areias; e os átomos íncubus vêm tamborilar as minhas narinas a intervalos regulares, como o fluxo de uma maré, e corroem-me com a acre queimadura do amoníaco. É o acompanhamento surdo de uma marcha indiana; e balançado na ponta dos meus braços inconscientes, o Feto acocorado encolhe-se e adormece, embalado pelo barulho dos dromedários. A árida poeira seca a garganta; devo ter bebido há muito tempo, mesmo há muito tempo, um odre cheio a longos tragos. Pois ainda tenho comigo

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este odre engelhado, prostrado e endurecido nas minhas mãos; e o bafio das coisas dessecadas dele emana. Ao menos algum ar, o ar húmido de que me priva o céu pesado destas abóbadas impenetráveis! E a janela vira o seu leme no mar de óleo negro. Tudo está negro, os astros fugiram irremediavelmente do céu, e o negro é absoluto por toda a parte, sem qualquer marulho glauco.» Alfred Jarry, Os Cinco Sentidos

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Dia 2 Velha Goa colonizada pela selva. Este braço-de-ferro perdido pela civilização. Cantiga de insectos. O que a natureza sabe. A paciência impiedosa com que avança. Selvagem é levar o seu tempo, reunir as condições, vencer pelo cansaço. Ouve-se bem. Como um bocejar, um balido verde. Nossa Senhora do Monte. Muito cá em cima, e como a visão se esparrama a toda a volta. No caminho para cá, no sacudido esforço do pequeno autocarro, só sabia uma palavra para ficar com as impressões que nos esmagavam, que tudo isto é sumptuoso. Estamos tão longe de casa e eu sinto cada quilómetro como se os tivesse feito a pé. O outro mundo fica aqui. ——— Falhámos a época alta por uns dias. A sensação de fim de festa mistura-se a uma mais forte, de alívio. Que estariam todos estes caminhos tomados, impedidos. Engarrafamos tudo. Sinto o sabor de um Verão perdido. Não há outra estação que me saiba melhor. ——— Os mais velhos ouvem as indicações do arquitecto. Resumos históricos, cortes abruptos, o sustento para outro modo de assombro. ——— Mantém-se nublado, sopra-nos, fala baixinho e eu volto a pressentir como toda a contemplação vive a um passo da dor. Não somos sérios por afectação, mas

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porque ficamos sentidos, e atentos tudo nos faz renunciar a nós. É este abandono que magoa. As folhas movem-se, há alguma mão nisto, e os gafanhotos a contar anéis. Entro na catedral. Pintada à mão numa imitação de azulejos. A sugestão tem uma graça infantil. Do que se perde fica uma lembrança tacteante. Esgrafito. Está fechada todo o ano, a concentrar humidade, escuro, silêncio. Há coisas absurdas que se entendem perfeitamente. Oiço tanto: é o que resta de, foram abandonando, foi o que ficou. Os séculos têm aqui uma enorme leitura. Saímos. Voltam a fechá-la. Porra que triste me ponho com estas coisas parvas. ——— (São Caetano) As loucas imposições da fé permitiram que o cenário de fábulas se erguesse. Talvez um pouco austero, mas só hoje temos que considerar que é destes nossos dias a pronúncia mais banal da vida. Antes existia a pura ignorância, as desterradas inocências, mas hoje a parvoíce é uma sensibilidade e uma forma de estar no mundo, inclusivamente nos supostos lugares de culto da ambição e do sucesso. Vou ficando para trás ou desvio-me numa anotação de margem. Gostava que fôssemos mais. Ao turismo falta um pulmão mais criativo. Um fôlego que soubesse não apenas deixar-se siderar e recolher as pedras soltas como souvenirs mas esculpir um rosto de olhar vivo, um reflexo sinceramente impressionado. Estão a fazer obras nesta. Um marceneiro solitário lá em cima, invisível para nós, mata a solenidade do espaço. Cá fora, os cães são a companhia dos santos, adiantam-lhes os gestos que a pedra perde para a eterna serenidade. Os cães aqui são como espectros de uma extrema doçura. Frágeis, olham-nos com uma timidez funda, desviam-se com um cuidado de delicadeza. São muito iguais aos que estamos habituados e por isso lembram-nos amigos de infância que reencontramos muito longe de casa. Já os indianos parecem bestas de carga. Bestas de uma vida dura, despojada, que nos deixa de fora. Passam por nós como por moscas. Aqui os turistas não valem nada. São um estorvo. Vejo bem como se cagam para a tal da indústria. Que bem lhes pode fazer? Percebo o

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mal-estar que lhes causamos, mas não sinto nada por eles. Somos moscas todos, uns dos outros. ——— Não dormi a noite e sinto as notas algo trôpegas, depois os indianos e as suas buzinas desfazem qualquer hipótese de sonambulismo. Sobressaltam-nos. A insónia ganha a sua natureza de desastre, pequeno massacre dos nervos. ——— (Catedral de Goa) Temos de inventariar as obras e a envergadura desta sandice. Entrar num lugar assim e não perceber como somos absolutos loucos é não querer ver para lá do que a cultura sanciona. Pode, de um certo prisma, ser adorável como nos cultivámos no terror, oferecidos à morte com o seu sono de condenados. Fomos completos loucos, cegos desta febre de Deus que tanto o humilharia se não se risse de nós. Somos miseráveis e é notável como só a loucura nos dá grandeza. Parecer-me-ia justo que o inferno estivesse cheio dos homens que sonharam e mandaram erguer este tipo de monumentos. A chuva fecha-nos aqui dentro e até os cães pedem santuário. Este deslumbramento todo também protege os cães da chuva. Deus nos abençoe. ——— A fé é uma loucura lavada. ——— A morte devia ser um pequeno assunto. Tratada com deferência, certamente, mas sem grandes cerimónias. Menos como uma perda e mais como o mistério que é. Que é feito desse gajo que nem há uns dias falou connosco e agora se re-

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cusa de todo ao mais pequeno sinal? (Quase) ninguém quer morrer, mas isso não significa nada. Nascer é que ninguém quer, mas a vida força-se a nós. ——— Aqui dentro, passado um bocado, se me disseres que estou na Índia é como se me desorientasses. A expressão é inane no jogo que faz mas é sincera. A Índia ainda é tudo o que nos leva para longe de casa. ——— Torna-se uma procissão banal seguir pelos corredores de um museu atrás do guia, mesmo se à frente ou fora dessa órbita. São lugares odiosos. Ainda que tudo conte algo de notável, pouco depois, no cansaço, tudo se dissolve e cai numa mudez esquisita, deixa-se confundir. ——— Visitámos às tantas uma velha casa colonial. Uma daquelas cuja esplendorosa arquitectura, com os dentes cerrados sobre a margem do rio, fez com que se dissesse que quem visitasse Goa não precisava de ver mais Lisboa, tinha aqui uma boa ideia, talvez melhor. Mas eu o que fui ver? Um nível de patético que na altura não foi para mim sequer comovente, embora talvez hoje sim. Provavelmente ajudou ter lido depois «o murmúrio do mundo», narrativa que Almeida Faria instruiu dedicadamente, e nisso levou anos, a partir de uma viagem que, mais que no esqueleto, se mostrou em tudo semelhante à que viríamos a fazer nós oito anos depois. Então ele conta como «A família Figueiredo, em Loutolim, na margem esquerda do Zuari, dona de latifúndios há nove gerações, continua a viver no seu palácio com varanda corrida ao nível do primeiro andar da extensa frontaria, interrompida só pelo pórtico a que chamam balcão e que encima a escada exterior de acesso à casa. Maria de Lourdes Figueiredo Vieira de Albu-

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querque passa parte do ano em Lisboa, é NRI (Non Resident Indian) e recebeu-nos, loquaz, no elegante salão de baile com móveis indo-portugueses, velhos retratos, um exército de cadeiras ao longo das paredes e vidraças abertas para que o ar abafado circulasse. Enquanto Dona Maria de Lourdes evocava figuras da família, repetindo talvez sem dar por isso, a frase «Nós, lá em Portugal», sentei-me junto a uma janela, estonteado pelo calor e pelo colar de histórias da dona da casa, e avistei no pátio um homem de chapéu mole, barba e bigode, corpete verde, calças cor d’açafrão, botas de cano flexível e uma curta espada bastarda, embainhada e decorativa. Sorriu para mim com ar de quem me conhecia e, pelo movimento dos lábios, pareceu-me que murmurava algo. Estremeci como se despertasse, ao voltar a olhar já ele lá não estava.» Esta lembrança, que começa por ser digna e depois mistura algo de fantasmático e pessoal, ser-me-ia impossível. Ainda me coze aquele ar abafado, que não era só um calor mas uma truculência, uma agitação quente num prenúncio infernal. E depois, apesar de a casa me ser em tudo estranha (com um ou outro aceno exilado à minha infância, pelo avesso das frias e tortuosas horas, semanas trancadas na ridícula casa — com as suas próprias aspirações museológicas — dos meus avós em Vimioso), só me apetecia dar-lhe ordem de demolição. Pelo menos, fugir dali. Mas tivemos de almoçar. Contarei esse episódio, aquele almoço, pela vida fora. Como o passado pode revelar-se uma caricatura doentia das coisas, como recuperá-lo pode fazer-nos sentir o absurdo respirar-nos muito chegado à pele, porque afinal tudo aquilo me desgostou para lá do que posso explicar ou entender, mas sei fazer uma descrição grotesca daquele alinhamento de coisas banais, num «bailado fúnebre», terrífico. Exagero, necessariamente, pois que sou um exagerado. Mas aqui não me atrevo a pôr as coisas tintim por tintim, porque o meu era um ângulo desesperado, como só quando era novo, e agora me apercebo da frustração que senti por me ver puxado de novo para as minhas tardes de refém em que tudo anestesiava e por isso me fazia sentir mais. Não fui, também por isso, capaz de grandes notas. Aliás, guardei uma só, talvez rancorosa, possivelmente mal-educada

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: Uma múmia na sua própria vida. Não pensei outra coisa quando fomos recebidos naquela casa imensa, hoje não mais que um postal desdobrando-se imensamente num grave estupor. E fomos conduzidos como centenas de turmas antes de nós, no toque de realejo de uma caixa afundada nas águas do tempo, e pressionada por uma corrente cada vez mais frágil que se reinventa um prestígio de lenda. Algo que talvez tenha um dia sido real, e por isso mesmo, hoje parece absolutamente uma invenção, uma desesperada ficção. Aquele casal deu cabo de mim, e eu mal os ouvi. Portugal no sangue que espalhou e deixou secar mundo fora foi das estórias mais tristes que já ouvi. ——— «Eis a cidade morta, a solitária Goa Seus templos alvejando num palmar enorme! Eis o Mandovy-Tejo, a oriental Lisboa, Onde em jazigo régio imensa glória dorme Jaz em tristeza imersa a tétrica cidade! O turbilhão dourado, o estrondear da festa Envolve-os em seu corpo a mística saudade E abisma-os no mistério a pávida floresta. Nós somos do passado a tímida memória Buscando os seus avós no palmeiral funéreo Que apenas sobredoura um ténue alvor de glória Como de fátua luz se esmalta um cemitério.» Tomás Ribeiro, finais de Oitocentos ———

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«De cada vez que conto a alguém como desapareceu a cidade de Velha Goa, eu próprio duvido: terá sido mesmo assim? Será isto possível? Não conheço que a qualquer outra cidade tenha acontecido uma história tão extraordinária. Velha Goa foi a maior cidade governada por europeus na Ásia até ao século XVIII e uma das mais famosas cidades do mundo. Foi tão grande como Lisboa ou Antuérpia. Em cinquenta anos, ficou deserta. Em século e meio desapareceu completamente. Hoje, o que vemos no sítio são uma dúzia de igrejas monumentais, algumas áreas ajardinadas recentes, ruas modernas com lojas muito pobres e casas miseráveis, arvoredo. Quando se pergunta o que sucedeu recebem-se respostas vagas acerca de decadência, epidemias, um processo longo de abandono e destruição. Mas foi tudo muito mais dramático, um caso sem precedentes de desfazimento de uma cidade em tempo de paz. Só a ignorância a que o saber português, até muito recentemente, votou a arquitectura e o urbanismo coloniais e a história do antigo Estado da Índia de épocas consideradas decadentes (ou seja, depois do século XVI), explica que esta questão não tenha sido ainda esclarecida como merece. Por mim, sugiro que o abandono da Velha Cidade pelos seus habitantes desde o final do século XVII se deveu antes de mais à hostilidade dos católicos e do clero goeses em relação aos padres europeus que ocupavam os conventos de Velha Goa e arredores, e à cidade que era o lugar da sua soberania. Depois, esvaziada de vida a cidade, veio no século XIX a transferência da capital de Goa para Pangim, acompanhada pelo desprezo moderno e anticlerical em relação às antiguidades católicas. Este desprezo, que produziu destruições muito vastas de conventos e igrejas no sul da Europa, nunca, em parte alguma, levou à desmontagem sistemática de uma cidade inteira com todas as suas ruas e praças, todas as casas, todos os arcos, todos os pilares, todas as janelas e portas. Mas foi isso que sucedeu a Velha Goa. Datada de 1880, há uma gravura que representa as ruínas do mais célebre convento franciscano de Goa, Daugim: ainda existiam as paredes da igreja, o convento, a escadaria, o pátio. A gente vai lá agora e há a planura da água e o plano ainda mais sossegado do arrozal, alguns coqueiros, a

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montanha ao longe. No meio de vegetação poeirenta, o ar tremente do calor, ouvem-se máquinas, o motor distante de barcos. Andando com dificuldade e cuidado no meio da mata, passamos ao lado dos casebres de uma oficina ferrugenta e dos seus operários de olhos dormentes. Na sombra, vemos o grande cruzeiro de pedra de Daugim, a cruz suja e enredada em ramos mortos. Da igreja, do átrio e escadaria, do edifício conventual, não há nada, nada de nada. Ficamos ali incrédulos, a gravura de 1880 e as descrições extasiadas da riqueza e do fausto de Daugim na memória. O desaparecimento de tudo, até à última pedra da última parede, causa uma espécie de angústia. Que tragédia, que apagada fúria pôde provocar um tal desfazimento da história?» Paulo Varela Gomes, Ouro e Cinza ——— «O avião que chega a Goa desvenda uma face do país diferente da que se viu à partida. Ao levantar, o avião costumava sobrevoar montes, rios e pequenos corpos de água, campos axadrezados, grupos de telhados descorados e formas brancas de igrejas e capelas. Era esta a imagem que se levava. O avião da chegada, depois de deslizar brevemente sobre uma extensão de praia e um corredor de palmeiras, precipita-se subitamente na direcção do promontório rochoso, outrora calvo e árido, agora coberto por um esbranquiçado conjunto urbanístico — a colónia naval, a nova Goa. A princípio tudo parece estar na mesma, embora saibamos que tudo mudou. A velha casa está naturalmente mais velha, a poeira e a chuva fizeram o que tinham a fazer. Mas os velhos móveis, as fotografias de família, os retratos a carvão dos antepassados, as imagens sacras estão todos no seu lugar. As árvores também estão mais velhas. Algumas são novas e outras, as mais lindas, as presenças tutelares da nossa infância, desapareceram. A rua tem o mesmo aspecto que dantes. Conserva o nome antigo, mas este já não se escreve em português, como em tempos, nem em concanim,

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nem em marata, nem em hindi, como era de esperar. Escreve-se em inglês. Há outros sinais de que o que passou não foi só o tempo. O velho edifício da escola parece enfermo, a camada de cal escama como uma pele doente, um vermelho acastanhado espreita sob o branco sujo. Ao lado, um monte de lixo, que em parte acompanha a parede. Aquelas salas já estiveram cheias de crianças, o bairro ressoava com os seus gritos; no final do período, os cadernos rasgados subiam pelos ares e desciam lentamente, pairando como um bando de garças. Parece que o edifício está a ser transformado para outros usos. Os poucos alunos que restam acotovelam-se em volta de um professor que não se senta num estrado, como dantes, mas a uma carteira comum ao nível do chão. Foram-se os cavaleiros e as damas, os castelos e os barcos com velas enfunadas ostentando a cruz da Ordem de Cristo. A história retirou-se. Em vez dela, mapas, cartas de anatomia e botânica, higiene e agricultura. A história que conhecíamos não aparece em parte alguma. Não era a nossa história mas envolvia-nos por todos os lados como a esfera armilar e povoava a nossa imaginação. Não são só as casas e as árvores, as pessoas também estão mais velhas, as poucas que reconheço. Toda uma geração desapareceu. Aqui e ali, um raro sobrevivente tenta abordar-nos na rua, estendendo a mão para se certificar de que realmente estamos ali — ou fica à janela voltado para a rua com ar atarantado e olhos que parecem não ter vista.» João da Veiga Coutinho, Uma Espécie de Ausência

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Dia 3 Terceiro dia na Índia, o último de Goa. A ideia era que o tempo se espreguiçasse, desfizesse a postura, mas não lhe damos hipótese. Turismo assim é uma missão e nós um regimento endoidecido, a querer provar tudo. Cada um dos mais velhos pagou uma soma valente para aqui estar e querem cheirar e fotografar todos os grandes peixes a que têm direito. Entretanto, sinto o efeito da sideração passar. A nossa passagem é demasiado breve. Não chegamos mesmo a tocar este país. Não passa de um vislumbre e até nisso algo desinteressado. Contornamos a Índia para ir colher cerejas nos monumentos e voltar para casa, com mais uns trunfos para as enfadonhas conversas que temos tido. Não deixamos de ser altivos mesmo assim, de nos adiantarmos ao que temos diante de nós. Não viemos ver nada, antes confirmar. Tudo é uma tarefa, um pequeno circuito já sem obstáculos. Sem a viagem, a Índia não é nada. Outro logro. E se olhado com olhos de ver, o que temos diante de nós, o que nos olha de volta, é uma vida miserável, como em toda a parte. ——— «Os turistas tinham o dinheiro de que nós precisávamos; a única coisa que eles pediam em troca era ser enganados e iludidos, e que lhes fosse dito o mais importante de tudo, que estavam seguros, que o seu sentimento de segurança — nacional, individual e espiritual — não era uma piada de mau gosto concebida por um destino aborrecido e cruel. Que lhes fosse dito que não havia ligação entre o dantes e o agora, que não precisavam de usar luto no braço ou sentirem-se culpados pelo seu poder e riqueza em relação a todos os outros: sentirem-se mal por ninguém conseguir explicar por que é que, curiosamente, a abundância de tão poucos parecia depender

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da carência de muitos outros. Simpaticamente, nós fingíamos que a questão era a compra e venda de cadeiras, a possibilidade de eles perguntarem o preço e a origem, e de lhes respondermos a condizer. Mas a questão não era o preço e a herança, nem pouco mais ou menos. Os turistas faziam perguntas insistentes e implícitas e nós tínhamos apenas que responder o melhor que podíamos através do mobiliário falsificado. Na realidade o que eles perguntavam era «Estamos seguros?» e nós realmente respondíamos «Não, mas uma barricada de bens inúteis pode ajudar a bloquear a vista.» E porque a húbris não é apenas uma ancestral palavra grega mas também um sentimento humano tão profundo que podemos considerá-lo um instinto nato, eles também queriam saber «Se a culpa é nossa, então vamos sofrer com isso?» e nós o que respondíamos era «Sim, lentamente, mas uma cadeira falsificada vai fazer com que todos nos sintamos melhor.» Richard Flanagan, O Livro dos Peixes de Gould ——— Estou desfeito. Dormi mal e a minha disposição é a de um cretino. Mas não deixo de me pesar no que sinto. Estamos no nosso primeiro templo hindu. Parece-me um bolo de anos, feito daquela camada colorida de açúcar. É profundamente decepcionante. E uma vez mais, à nossa volta, as gralhas riem-se miseravelmente. Custa-me a pobreza que sempre nos cerca. É uma pobreza de castigo, na pele. Se não amaciarmos o que temos à nossa frente, cegamos. Não consigo aqui entrar nos detalhes. Não vejo harmonia neles, apenas um mal muito simples, desgostante. Gostava de ter permanecido com o deslumbre, mas dou por mim desfasado. Passei dos contornos e começo a perder a paciência. Hoje a Índia é uma pocilga exótica. A condição deles é a do lixo. Já o vendem, vivem nele, parece ser só o que fazem. Os mais velhos vingam-se uns nos outros. Uns mais doidos, estragados, frágeis. Os melhores são os casais, metidos consigo mesmos. A solidão é uma merda. O que não mata, amesquinha.

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——— Tudo isto está em construção. Deixado a meio. O país é um enorme estaleiro. O senhor ter-se-á ausentado. Entregue aos bichos, falta aqui uma ideia mais forte. E diz-me cada vez menos. Estamos noutro templo hindu. Só para ver. Suamos. Sentados com as máquinas. Autocarro, sair, entrar. Sem nenhuma orientação ou vontade. Só um programa. ——— «É um facto, em todo o caso, que na Índia a atmosfera é favorável à religiosidade, como dizem até as descrições mais banais. Mas não me parece que os indianos se ocupem muito com problemas religiosos sérios. Algumas das suas formas de religiosidade são obrigatórias, tipicamente medievais: alienações perante a atroz situação económica e higiénica do país, autênticas neuroses místicas, que recordam as europeias, justamente, durante a Idade Média, e que podem atingir indivíduos ou comunidades inteiras. Mas mais do que uma religiosidade específica (a que traz consigo os fenómenos místicos ou o poder clerical), observei entre os indianos uma religiosidade genérica e difusa, um produto médio da religião. A não-violência, em suma, a indulgência, a bondade dos hindus. Talvez tenham perdido o contacto com as fontes directas da sua religião (que é evidentemente uma religião degenerada), mas continuam a ser seus frutos vivos. Assim a sua religião, que é a mais abstracta e filosófica do mundo, em teoria, é, hoje, na realidade, uma religião totalmente prática: um modo de viver.» Pier Paolo Pasolini, O Cheiro da Índia ——— No seminário jesuíta afasto-me e pervago pelos corredores. É indevassável, é a sensação que me dá. Os séculos aqui terão andado de joelhos, arrastando-se dificilmente, de surdina, numa vigília desesperante, langorosa, mas ao temor

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reverencial sobrevive a inteligência de um edifício imponente e calmo, feito para sustento do homem. Maciças, estas paredes contrariam a pressão de um clima de selva. Aqui entende-se o homem, o espaço que cria é a paz que busca. Se eu pudesse ler aqui longas tardes… Nunca me fez tanto sentido este retiro do mundo. Que alguém possa ter sonhado e conseguido condições destas, para ensinar, para ——— Igrejas, igrejas, a maldade dos que levam a vida nestas contas, salvação-condenação. E a arte vai de álibi nisto. De Goa ficará este abuso. Roma do Oriente, repetiram mil vezes. Estes disparates que repetimos. Há em tudo um certo grau de doença. Trinta pessoas fazem uma viagem destas e nada. Viemos ver. Dez dias, nada. A cultura é mais uma posse. Uma correspondência vazia. Para que serve este tipo de fé?

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Dia 4 Em nós o veneno da indiferença. Deixamos Goa de madrugada. Seguimos. A noite contra as janelas do autocarro, impenetrável, tem uma imensa espessura aqui. Mal soube dela, do que faz. Agora voamos de novo. Diu, com escala em Bombaim. Chego a odiar um sítio quando me despeço. Produzo um cansaço artificial que depois se realiza. No meu passado, na pouca memória que faço, não guardo refúgios. Mas gosto tanto de casa. Voltar é para mim muito mais uma questão de geografia do que de cronologia. Trouxe um casaco que fez as minhas primeiras viagens. Tem ainda um ar miúdo e fácil. Um azul de doce afogamento. Ia de Inverno com ele para o Norte, todos os meses, ver a primeira que tive. Durante um bom tempo foi mágico, um corte com as regras inescapáveis de então. Só me resta de tudo às vezes uma saudade de mim. Do que gostei e mais fiz por isso. Nunca fiz nada que não fosse atrás de alguém. Uma viagem destas é nada. Um exercício na vida dos outros. Cedo tudo me esquecerá. E não falarei disto senão como uma curiosidade de mim para mim mesmo na conversa que se vai desfiando ocasionalmente perante estranhos. A Índia não me será mais familiar depois disto, e não fingirei. Sou o oposto do cidadão do mundo. Tudo o que faço é voltar a casa. E o sentimento é o mesmo, quer esteja a umas ruas dela quer venha do outro lado do mundo. ——— Uma estrada de reflexos molhados sob o olhar frio dos faróis cruzados. Um tempo largo nisto, sem amanhecer. Só a estrada e o que chove. A miragem indiana estende-se. Depois do êxtase damos por nós sem novos sentidos. Mais calados, mais justos. Anarquicamente formamos já uma tripulação. O cansaço ajuda. Agrada-me

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esta convivência meio desanimada. O silêncio já tendo lugar. As frases encurtam e o sentido torna-se mais directo. As circunstâncias ganham peso e tornam-nos cúmplices neste ritmo que nos desfaz e refaz. Falamos quase sempre por fraqueza, em legítima defesa. Não precisamos das coisas que dizemos. É um recreio sujo, de baloiços tediosos. As melhores frases vêm muito depois, erupções do próprio silêncio, quando nos cosemos com a mesma linha sem no entanto nos sobrepormos. A Índia começa a desaparecer, um pano cada vez mais em fundo. E cá estamos no aeroporto, neste trânsito morto e insuportável. Ainda não dormi as horas. Podia chamar a esta viagem a minha insónia indiana. Chove e passa. Uma inconstância que reforça o enjoo. Estamos no mar há dias. Suspeito que só teremos chegado ao destino quando a luz de Lisboa nos der paz. ——— Em muito não passamos de um bando de miúdos numa excursão da escola. ——— Como a natureza abocanha o que é do homem. Em tempos isto terá sido a mais justa das lutas. ——— E então chegamos a Diu. Uma ilhota vagabunda a dar-se ares de estância turística. Esta é outra doença, o modelo internacional de retiro balnear. Esta ficçãozinha ordinária que se replica até à náusea como casotas para os cães do mar. Há outra ilha mais profunda, menos canalha. ——— Em Goa faltei à homenagem ao Percival de Noronha em casa do cônsul. Aqui deixei de ir ao Forte de Diu, parece que a grande fortaleza militar da Índia.

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E património mundial. Não foi desinteresse desta vez, mas sono. Isto deu para alguma incompreensão ou até incómodo entre alguns dos mais velhos. Vêm-me buscar ao sono para ir jantar. As janelas embaciam-se e fazemos o caminho de castigo no autocarro. Deixam-nos numa casa pobríssima com uma esplanada coberta de um tecto em bambu e tranças de folhas. É o fim da época das monções. Aqui debaixo estamos a apanhá-las bem. Gosto mais assim. Até a luz falta. E nesta intermitência vislumbra-se de novo o tal país. Dá-me a vontade de me perder e até de me dar mal no longínquo que isto é. Estou a odiar a perfeição das coisas. O acerto do programa, com a sua disciplina e organização escolar. Ainda bem que a luz faltou. Estamos a precisar de algo mais drástico. Não quero arrepender-me de dizer isto mas odeio pensar que sairemos daqui estritamente de acordo com o plano, incólumes. Era bom que nos faltasse a luz a sério e fôssemos forçados a seguir à luz de velas. O ambiente agora é espantoso. Envolvidos numa crisálida sonora pelo assobio dos insectos. De uma mesquita chega o belo chamamento do sol-pôr. O céu ainda não fechou por completo e entretanto a luz regressa. Os mais velhos batem palmas. Tenho pena. ——— O buffet é o mais prático às refeições. Ainda somos trinta. Fosse uma viagem à Índia e já seríamos menos. Mas a lógica do buffet parece-me entrar noutros aspectos desta passeata indiana. Fazemos a filinha que também chamam de indiana e lá vamos todos contentes e eu cada vez menos. Que falta me fazem os primos. ——— Um fenómeno que vou notando dá-se quando o investimento feito nalgum projecto de lazer é realmente sério — e estamos a falar de dinheiro — como o sentido crítico se abate a favor de um optimismo que a todo custo quer convencer-se de que valeu a pena, de que foi um investimento bem feito. O sonho das coisas impõe-se-lhes quanto mais forte o remorso. Mas lá está, isto sou eu quem o diz. Ao meu lado discute-se uma vez mais gastronomia. As conversas

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tecem meras legendas para a fraca acção que desenrolamos. Não há enredo, apenas as ocasionais atrapalhações, desabafos. Que enfadonhos somos. Trocam-se histórias mas sem moral. O humor vem pela trela, chutado, sem vontade nenhuma. Estou a ser cruel, mas a alternativa era ignorar. É difícil passar o tempo nisso. ——— Gostava de ser rendido. Deixo a mesa, sigo pela estrada, com os grilos a sacudirem o escuro. Parecem-me mais estridentes aqui, menos musicais, seguindo menos pela pauta. Em vez de se coçarem ociosamente dá a sensação que se exaltam, numa discussão com a noite. Remam até ao amanhecer.

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Dia 5 Os dias têm escamas, luzidios, e de sangue frio, mordem a cauda. Mal os sentimos passar. Confundem-se e a nós. O excesso de humidade suja mais tudo. Ficamos quedos, reféns deste torpor. Há um infinito recuo que pode semelhar uma grande calma, mas o que nos sucede é que ficamos acamados por dentro, lá atrás, com os sentidos numa síntese e os gestos a fazer piscas. É só o quinto dia, mas estou aqui há semanas. Dormi finalmente. As linhas já seguram as coisas sem tremer. A primeira coisa que se vai são os contornos, depois a paciência e, por fim, o juízo. Viemos ver outro monumento, porta não sei do quê. Uma muralha vermelha, decorativa. A chuva hoje não deixa. E os mais velhos bem se esforçam, já se desalmam. Esgotada a paciência, a Índia revela-se o oitavo círculo do inferno. Mói, achaca, põe-nos nhonhos. Na marginal, o mar impõe-se como outra muralha. Velhos cavalos trotando em tons de lama. Rude animal, indisposto. Chegamos à Igreja de São Paulo depois de passarmos pela de São Francisco. Os pormenores com as suas intimidades a serem-nos explicadas. Se há uma virtude na obsessão desta fé edificada, na sua imponência ameaçadora, é o quão evidente se torna como foram erigidas para intimidar os estranhos. Estas igrejas são armas de assombro, veículos da conversão. E são também hoje testemunhas de um glorioso fracasso. Por muito restauro, vão aguentar-se como ruínas de um diálogo impossível. Um só Deus seria sempre vencido pelo cansaço aqui. É preciso perder-lhes a conta, numa multiplicação delirante. ——— A influência e as marcas da presença e cultura portuguesas. Viemos claramente fazer número. Justificar um património injustificável. Estas igrejas restam como

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asilos das nossas ambições passadas. Poeira de cristandade aos bocados. Mas fazem mais sentido que nunca hoje, meio abandonadas. Orgulhosamente, têm-se de pé. Poucas vezes teremos sido mais audazes. As unhas do que sonhámos cravadas ainda nesta carne. Que eloquência. Nas aulas de história preferem feitos e conquistas, mas só hoje o império é um absoluto. Sem mais pretensões, o génio perfeito destas obras é alcançado pela perda do seu primeiro sentido, pela sua reconversão, passando a resistir porque desencorajam ambições menores. Purificadas, não ameaçam mais. Da paixão morta nasce uma segunda, livre de desejos. Independentes da sua fé, as almas comovem-se. ——— «Estávamos cientes de que a terra visível é feita de cinzas, e que as cinzas significam alguma coisa. Através das profundezas obscuras da história conseguíamos discernir os fantasmas de grandes navios carregados de riquezas e intelecto; não podíamos contá-los. Mas os desastres que os afundaram não eram, afinal, da nossa conta. Elam, Nineveh, Babilónia não passavam de bonitos nomes vagos, e a ruína total desses mundos tinha tão pouca importância para nós como a sua própria existência. Mas França, Inglaterra, Rússia… estes também seriam nomes bonitos. E agora vemos que o abismo da história é fundo o suficiente para nos devorar a todos.» Paul Valéry ——— Deixei há pouco o momento alto da viagem. Ao lado de uma igreja, no caminho para outro museu com os faqueiros das missões evangélicas, entrámos por uma escola, infantil. Umas poucas salas a envolver um pátio coberto. Lá dentro os putos em altas ladainhas cantadas a uma só voz, e os mais velhos só sorrisos e flashes cá fora. Estava a meio da nota anterior e sentei-me num banco entre as

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salas. Uma mulher veio puxar loucamente pela sineta e seguiu-se o aluvião de putos no intervalo. Deram-me cerco e cerraram, sem cerimónias. Um primeiro, outro logo e mais, depois, estenderam-me as mãos para o passou-bem. Passámos, todos contentes e eu mais ainda. Pensei que daria uma bela foto. Mas para quê estragar uma memória perfeita. ——— Troveja, o céu fende-se com estrondo, a luz com séria vantagem sobre o som. Volto a pensar o quão necessitados andamos do nosso pequeno desastre. Ou a Índia será apenas a última série de postais emoldurados nas cómodas de mais umas quantas casas portuguesas. ——— Às vezes apago, meu sono de velho, cabeceio-me e volto. Agora já as ruas a subir para os joelhos, alagadas. E chove ainda. O caldo a entornar devagarinho. E vem a hora do almoço, nosso contínuo buffet. Parece que andamos há dias a comer das mesmas três panelas. Um complot dos cozinheiros. Esta comida desmoraliza — tanta cor para nada (o tal nítido nulo) —, não fosse um ou outro dos molhos mais apurados e melhor seria andarmos a soro. ——— Cães e pedintes, as raças chuvosas deste manso inferno. Merecíamos pior que estas mãos estendidas. Temos agora sete horas de estrada pela frente, mas não vamos fazer muito, pouco mais de 200 km. Pior é o pachola do guia a fazer de rádio num inglês debaixo de água. Caralhos nos fodam e retrafodam se isto não é o fim do mundo. Este caminho que nem às cabras desejo. Buracos imensos, crateras umas a seguir às outras. O autocarro afunda-se e reergue-se a custo e vai nesta violência que nos lança e abate nos bancos. Uma luta que quebra o tempo todo. Horas de vidro. Paramos no equivalente a uma estação de serviço. Como meter isto na boca, que trabalho para as palavras. Esta imundície que faz

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das crianças palhaços da miséria. Correm a oferecer a sua figura, a incitar-nos as fotos a troco de esmolas. De volta ao autocarro e ao caminho, pela primeira vez na viagem ponho os headphones. Tantos meses depois, Bon Iver ganha neste segundo álbum outra vida, o jogo de melodias, ecos e reflexos larga deslumbrado a trazer e a buscar pedaços do que a toda a volta nos deixa a vista sem fôlego. Vamos a uns 50 à hora quando vamos, e o agreste bordado que seguimos esgota-nos a imaginação. ——— Forcei duas paragens «técnicas», antes e depois da primeira estação de serviço. Éramos uns oito a dar sumo às moitas na berma da estrada. Pequenas alegrias. Ou, como diria o chavalo, uma cerveja no inferno. ——— Amanhã terminamos isto. O percurso de Diu a Damão. Vai é levar-nos o dobro dos quilómetros. Garantem que os caminhos são melhores, estes é que não são recuperados antes do fim das monções. Veremos. A noite caiu-nos toda à frente ainda a uma hora do sítio onde paramos por hoje. É preciso falar da loucura muito particular da condução indiana. Sacanas afoitos, entre as duas faixas de sentido contrário passam o tempo numa dança maníaca. A espreitar sempre, a ultrapassar em situações absolutamente limite, ou a falhar e corrigir à última. Tudo no meio de sinais de luzes e o guincho ou música das buzinas. Porra de festival de doidos. Isto tem de dar muita merda. No escuro, a estrada encheu-se. É um filme de acção a arriscar tudo para comer mais uns. Não venham mais com a conversa de que os indianos vivem numa calma e paz maior. Isto é a guerra, e por uma vantagem de metros. Ao fazerem o desenho disto na cabeça, metam-lhe vacas, uma porrada delas a atravessar as faixas e mais ainda a ocupá-las, deitadas até, como se nada. E os malucos contornam sem reduzir a velocidade. É um nível de demência de causar susto ao caos. Também não há passagens de peões. É a modalidade cinco metros barreiras.

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Dia 6 Este será da estrada até ficar escuro. Passámos a noite num palácio muçulmano convertido em hotel de luxo. Depois do jantar, ao pedirmos na recepção um lugar para nos digerirmos, veio um culturista guiar-nos até à biblioteca. Bar não têm. O álcool é proibido no Estado. Gujrat, chama-se. E a cidade, Bhavnagar. Afinal, soubemos depois, o tipo era o príncipe, dono do sítio. Tínhamos, eu e a Inês, faltado às apresentações. Parados, para levantarem rupias nas máquinas, volto a pôr os olhos nos cães. A cada esquina três (sempre três), esquálidos, num tom abaunilhado, criam as suas pausas, de fome, de uma atenção calma. É o contraste que mais me fere. ——— Deviam tirar o som a este país. ——— Campos de sal a perder de vista. É pena que o tremor do caminho não dê sequer a hipótese de inventariar a paisagem, este horizonte imenso. Tivesse eu memória para vingar isto. Mas começo a perder escolhas assim que as coisas me fogem do ângulo. O rasto esfria tão depressa. O que faço é desenhar à vista. Escolher as linhas que quero e esquecer as outras. ———

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Parámos aqui noutra estação. Dez minutos, com tchai (vício antes exclusivo das visitas a casa do Barahona) no refeitório e uma mijadela nos lavabos. O próprio percurso é nesta viagem uma série de apontamentos, quase desconexos. ——— O vento a animar uma serpente feita do pó da terra na estrada a avançar aos ésses. Mas porquê? Muito mais à frente um tipo qualquer de babuínos amarelos e de cauda longuíssima a correr ao lado do autocarro. E esta gente que trata da vida à beira da estrada, gente que lembra o mais velho mundo, o eterno, que é uma mera e breve passagem olhada pelas vidas que estancam os pequenos mundos sucessivos. ——— Divenire, do Ludovico Einaudi, numa estratégia de corrigir minimamente a crueza roufenha com que brada tudo à volta. Espécie de moroso documentário sem montagem, só interrompido por um sono muito de superfície. Enodada canção, sombra forte de cores, com homens estendidos numas macas de couro negro e metal, e uns putos amatilhados que abrem fragmentos da terra do nunca, plena de rude exotismo. Falar em termos de pobreza sobre a Índia seria preguiça. Entendo aos poucos como isto não é tanto uma situação de miséria mas antes de vida incondicional. Vida a todos os pretextos, realmente por tudo e por nada. Incontestável, força incontida. É a quinta das estações naturais, atingida pelo extremo exercício dos elementos. Não já a graça mas a pura exaustão, as dores de crescimento da realidade, os impulsos que vão forçando os limites. Aqui sente-se o trabalho de músculos da expansão. É preciso estudá-la de forma séria, isto é, poeticamente. Compreender as implicações sensíveis antes que os estudos económicos e sociais aligeirem e funcionalizem tudo. De resto, é sempre avisado mandar poetas na linha da frente. Para que a palavra não se encha de pudores, tenha todo o atrevimento sem pagar excessivos impostos à razão. Uma embaixada que não empregue ocasionalmente poetas não passa de um posto de secretaria avançado, para tratar os vulgares expedientes da nossa representação.

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——— «A vida, na Índia, tem os caracteres do insuportável: não se sabe como se pode resistir comendo um punhado de arroz sujo, bebendo uma água imunda, sob a ameaça constante da cólera, do tifo, da varíola, quando não da peste, dormindo no chão, ou em alojamentos atrozes. O despertar de cada manhã deve ser um pesadelo. E contudo os indianos levantam-se, com o sol, resignados, e, resignados, começam a ocupar-se das suas coisas: é um girar no vazio durante o dia inteiro, um pouco como se pode ver em Nápoles, mas, aqui, com resultados incomparavelmente mais miseráveis. É verdade que os indianos nunca estão alegres: muitas vezes sorriem, é verdade, mas são sorrisos de doçura, não de alegria. De vez em quando há alguém que sai deste vórtice assustador, desta tempestade infernal. E vemo-lo como dando à margem, atordoado. Aconteceu-me muitas vezes surpreender alguém com os olhos fixos no vazio, imóvel, com os claros sintomas de uma neurose no rosto. Dir-se-ia que “compreendera” o insuportável daquela existência.» Pier Paolo Pasolini, O Cheiro da Índia ——— Tenho às vezes este projecto de me tornar um animal prolífico, levar à pena a linha de pulso, bater os pensamentos, pôr-lhes curso e ter mão. A poesia cheia de rigores acaba por se estafar numa ficção absurdamente austera. ——— Temos feito os últimos quilómetros pelo meio de uma cidade. Um organismo disforme, que cose elementos de eras diversas e distantes entre si, que se confrontam sem nunca se combinarem. É beligerante, grosseiro e imundo mas também, aqui e ali, se suspende, para narrar pequenas fábulas. Caça-nos o olhar desprevenido.

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——— Outra estação de serviço. Uma alegria apocalíptica. O ar desactivado que ficou não se percebe bem do quê, com um parque infantil em cima das casas de banho. Os baloiços muito quietos, sem fazerem um pio, depois há galinhas, das nossas e das da Índia. Patos também e coelhos numa cerca. Um sítio perfeito para toda a família, diz a Inês. (Chama-se Rose Garden. Tudo aqui são promessas. Todas falsas, e talvez por isso haja menos enganos.) Demasiadas ideias a acotovelarem-se. Vinte e quatro sobre vinte e quatro, o tempo passa mais depressa. Isto deve ir já no século XXIII.

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Dia 7 Chama-se Praia de Oiro o desta noite e manhã. Pequeno-almoço entre a piscina e a praia. Varesh de lixo, mas os bigodes sujos do mar nem causam grande impressão quando o prometido oiro é afinal lodo. Este mar pede que o escondam. Resfolega. Um bronco. Revolve-se num movimento que só inspira mal-estar. Um dia inteiro para Damão. E a primeira coisa é a Porta de Terra. Imensa muralha doce dos trabalhos do tempo e das dedadas de musgo. A nossa presença aparece subitamente num traço de tal firmeza que engenha um idílio cambando o olhar. Melhor que aquela perfeição japonesa, aqui as coisas quebram e arruinam-se como se o tempo continuasse e aprofundasse um esforço. A beleza importa muito pouco aqui. É sobretudo uma experiência do mundo, um jogo dentro das suas leis. Também o tempo é matéria artesanal. Não imagino nem fui saber quanto disto é verdadeiramente português. Alguma coisa será. ——— Os registos fotográficos teriam de ser proibidos. Mal os olhos se apanham num rastilho de êxtase as máquinas levantam-se e matam o seguimento que se oferecia. Toda a graça é mortal. Cada gesto de posse é duplicado pela perda. E este ressentimento é o que temos de mais tocante na nossa natureza. As mais fundas memórias doem, sobretudo as felizes. Os mais velhos disparam e em vez de troféus apenas se ficam com as peças que testemunham a morte do olhar. O tique fotográfico tão ligado aos hábitos turísticos que desenvolvemos é uma doença degenerativa que ataca o pensamento até não restar muito mais que uma gaguejante reflexão das coisas que nos têm de frente, mas distraídos. Retiramos o eixo e a força de rotação à nossa presença emboscados nestas ilusões de captura ou permanência.

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——— O vento, por exemplo. Ainda não se calou. Anda entre os eucaliptos, as palmeiras e uns cachos mais de folhagem que se erguem numa só linha. Vem até às ruínas de um dos conventos que aqui houve. Não diz puto, é claro. Mas uma insistência tão grande torna-se sempre confessional. Que destas andanças não se componham mais do que uns álbuns fotográficos é por si só um sinal de vazio cultural. Ainda que só se regougasse como o vento, ainda que nada se traduzisse, que não fôssemos além da compunção, estaríamos a tentar lidar com isto. Ninguém precisa de saber, mas sabe-se. O que muda somos nós. O que se atinge pela mudança é esse lugar de transitoriedade sensível, de imprevisibilidade mágica. Os melhores de nós não fazem mais que o vento. ——— Por toda a parte vêem-se parques, jardins infantis. Mas entretanto são estes que dão a sensação de que nada de infantil resiste a este país. Cormac conta de um país que não está para velhos. Que histórias lhe inspiraria este? As próprias condições naturais aqui parecem carregar um espírito de delinquência. As coisas crescem umas sobre as outras, devorando-se. Há um descanso de guerra. Todo o chão, qualquer sombra, tudo serve. ——— «As pessoas são mansas, gentis, de fala suave. Mas nada se consegue tirar a limpo. Impossível obter uma informação exacta. Elas parecem desconhecer mesmo o que está logo ao lado, não se interessam, tratam dos seus afazeres sem ligar ao resto. Como é natural na Índia a atitude do nawab e do sannyasi! Vestir uma armadura, encerrar-se dentro de um muro, material ou espiritual, tornar-se invulnerável à realidade empírica, aos sinais do outro. A Índia sem

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mediação é difícil de tragar. Mas o importante é deixar-se a gente ferir, não é verdade? Desde Gandhi também isso sabemos. Inventou-se um terceiro modo de estar, o satyagrahi, aquele que, enraizado e exposto, se mantém inabalável no mais cerrado de uma história traumatizante. Mas é isto tão fácil de fazer como de dizer? Um país em permanente desconcerto. Uma civilização que se desintegra. Mais do que uma crise, um estado de decomposição. Talvez possam ainda alguns elementos subsistir? Algumas técnicas manuais, algumas artes de maravilhosa beleza, um certo modo de ser? Mas, à primeira vista, o que a olhos desprevenidos aparece é como uma vida larvar enxameando em cima de uma carcassa que se desfaz. Há sem dúvida uma certa lógica inerente a essa proliferação, um instinto imanente, mas nenhum pensamento ou decisão totalizante. Nenhuma vida conscientemente organizada. Nem um sinal de uma nova civilização. Uma imagem emblemática com que se depara frequentemente perto das cidades: fossas, canos abertos onde crescem jacintos aquáticos. Apressamo-nos a atravessar Agra, Jaipur, Udaipur, acossados pela avassaladora fermentação. Turismo é de mau gosto. Pode um indiano ser turista na Índia. Nem o serviço num hotel-palácio beneficia o estatuto cultural dos pobres. Em vez de melhorar o nível dos seus empregados a presença destes prejudica o hotel, que se limita a usar-lhes a força do trabalho. À volta dos palácios-fortalezas em certas cidades as ruelas estreitas são entranhas congestionadas e malcheirosas. * Sob o sol escaldante, um homem está enterrado até ao umbigo no passeio. Vendo de mais perto, noto que afinal não está enterrado, só não tem pés, nem pernas, nem coxas, e tem a mão direita cortada pelo pulso. Parece apoiar-se sobre o saco das suas vísceras, bem embrulhado em cabedal. Tem a coluna direita, não cai nem pode dobrar-se sobre si mesmo. À sua frente, um recipiente de plástico com algumas moedas. A sua expressão é

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indescritível: tímido, quase pedindo desculpa, mas suplicante, infinitamente dorido. Tem os olhos raiados de sangue, um ligeiro sorriso envergonhado dança-lhe na boca. As pessoas vão passando e ele vê o mundo por entre as pernas delas.» João da Veiga Coutinho, Uma Espécie de Ausência ——— Passamos pela casa do Bocage. Lá está o que vos dizia dos poetas na linha da frente. Um casinhoto de nada, mas sólido, encostado à muralha. O tipo punha-se a pé, transpunha aquela ombreira e ia saber o que é isso da Índia. ——— Parece inóspita mas a escala da pobreza, o seu imenso rosto humano, revela afinal a enorme abundância da Índia. Os pobres são aqui uma praga, multiplicam-se e com os seus números enriquecem o país. A pobreza é sempre o que está por trás da acção discreta que realiza os sonhos de grandeza das nações. «Sem pobres acabava-se o mundo» (Raul Brandão). Por isso se empobrece hoje propositadamente o Ocidente. Distribuir com justiça a riqueza implica um país prescindir do seu maior activo, o desespero de uma maioria crescente e cada vez mais disposta a todos os sacrifícios apenas para sobreviver. Nessa condição estamos novamente a falar de escravos. Que ao menos isso fique claro. ——— Confundimos muito fé e fervor. Outra igreja, e nesta o tempo fica de sobra e mato-o a cirandar sem fio até espreitar, uma e depois outra, as várias pias de água benta. A marca de água em todas, e todas há muito vazias. Talvez o risco para a saúde. Benziam-se e às tantas davam por si febris. Um pouco da fé no fervor. Ou ao contrário se fizerem disso a questão.

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——— Damão pequeno agora, uma praça com vista para os caminhos desta manhã. Os nomes certos faltam a algumas árvores. Às duas que guardam a entrada de um pequeno cemitério, chamam-lhes os guias flores de Santo António. Há mais delas. Crescem bem e cada uma escolhe a sua cor, dá-lhe flores, de resto iguais. Ou brancas, ou só amarelas ou então vermelhas. Os mortos dormem no perfume delas. Estão pouco menos de quarenta graus, mas o vento sopra atencioso. Estamos bem, subidos ao forte. Lêem-se os nomes de casais e vaidosos solitários que se gravaram nos muretes. Saudações a algo com uma melhor perspectiva sobre a eternidade. Depois de dois dias num saco arrastado por horas, somos já uma unidade imunizada que escoa numa sintonia suave pelos monumentos, como uma cobra conformando-se e lambendo com a pele o caminho. ——— Nosso Senhor dos Remédios, de mil e seiscentos. Nossa Senhora das Angústias, mil oitocentos e picos. Este fio de igrejas perde-se num rosário de passos múrmuros, repetidos em semi-inconsciência. Uma peregrinação em paga de alguma promessa, que permanece obscura para alguns de nós. Entramos, saímos, numa alegria muito casta. E vamos para a seguinte.

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Dia 8 Postais andarilhos, compêndio de ignorâncias. Sonho de cabeça ferida a golpes de distância. A mão, mordida, balbucia. Desfaz o pão de um modo que faz dos pássaros um trilho. Perdidas, as ruas tiram-nos as medidas. Já me sabe a memória. Fiquei outra vez a noite a pé. O quarto e os corredores, a televisão e uma fraca ligação à internet. Home is so sad. Mesmo no estrangeiro. Também já fizemos Damão e hoje vamos levar nova sova de estrada para nos pormos em Baçaim. Coada pelos cerros de nuvens, a luz não diz que horas são. É muito trabalhoso para a coitada separar tanta coisa nesta sopa que leva tudo. Daí o ar exausto. ——— Paramos um tico, em Silvassa. No interior da Igreja da Nossa Senhora da Piedade os preparativos para uma rave. Música de pastilhados, o mais alto possível, num atentado a vários níveis. Tão profano, tão merecido. Desta casa de Deus já fizeram um pavilhão multiusos. Para ser justo, os mais velhos engolem o sapo sem ares de especial indignação. Meio esboço de um sorriso e a coisa fica por isso mesmo. Uns dias de viagem e com o cansaço vem a lucidez de um simples encolher de ombros. Fazer parte de um lugar é já ter pouco a dizer. O estranho que se entranha. Isso e também o sono todo com que estou. A Índia conta carneiros por nós. Vai muito mais longe do que fomos alguma vez a mirar alguns tectos, todos os tectos. É tamanha a confusão que desata os piores nós do pensamento. Uma selvajaria que enche as janelas e nos embala. ———

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O autocarro passa aturdido, no cambaleio comatoso de quem vai em burros, e são os indianos que riem e nos acenam. No seu tom de fábula rude, é este lugar que nos lembra de nós, do nosso papel. Deslumbra-nos e depois faz de ponto. Dá-nos as linhas quando nos vem uma branca. Entretanto, ao meu lado, agarro a meio uma pequena estória que se mostra um desses milagres no caminho, uma ilustração maravilhosa do que temos andado por cá. Peço que ma repitam para não guardar só a sombra da sua graça. «Um empresário de circo faz entrevistas de recrutamento, e chega ao final de um dia levado nisso exausto. Na altura em que só se queria já ir embora surge um último candidato. Um tipo de ar choninhas que trazia duas malas e insistia em ser recebido porque trazia um número inovador e verdadeiramente especial. O empresário diz que tem trinta e cinco anos de circo e que não há números novos. Perante a insistência do outro lá acede a dar-lhe cinco minutos para despachar o assunto. O outro abre as malas, tira de lá um gatinho, um ratinho, e nessa altura o empresário diz que está farto de números com animais, que animais amestrados já toda a gente viu. Mas o outro insiste que não é um número de animais amestrados mas um número musical. Para o ilustrar tira da mala que faltava um pianinho e um pequeno banco para ir com ele. E o empresário pergunta-lhe: e então agora o que é que se passa. E claro que a resposta é: o rato toca e o gato canta. O empresário diz-lhe para avançar. O gato espera dignamente e o rato ajusta o banco e posiciona-se em frente ao piano. O ratinho faz duas ou três escalas como todos os grandes só para aquecer os dedos, olha para o gato e os dois dão início a um daqueles excelsos lieds alemães. O gato entra e ouve-se uma portentosa voz de barítono. Ao fim de poucos compassos o empresário manda interromper para dizer esbaforido que estão já contratados. Mas eu tenho trinta e cinco anos de circo e preciso de perceber, isto tem truque. O rato não toca, de certeza. Não, diz o outro, o rato toca, claro que toca. E o gato canta? Não, não, o ratinho é que é ventríloquo.» ———

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(Forte de Baçaim) A sós, a natureza é um vício inconsciente. Em séculos, não será capaz de produzir um só erro. Falta-lhe perspectiva. A sua vontade é sem desejo. Tudo o que fez foi esperar. Uma obra destas é um juízo que faz valer toda essa espera. A perfeita ruína, e como ensina a natureza a desejar. Só tenho palavras. O que consigo dizer é que a imaginação está ao nível disto. Mas é difícil segurar tanto ao mesmo tempo. Passear pelas meditações de um espírito bem mais velho. Pensar com uma cabeça maior. Tantas igrejas depois, só este abandono parece ter alguma coisa a dizer sobre Deus. Imperturbável. E não é a distância, como também não se fechou nos detalhes. É o tempo que teve para se exprimir. O espaço, disputado entre reflexos e contrastes, pelas inúmeras espécies, o seu esforço e convivência. Muralhas e colunas trepadas, degraus e passagens tomados. A figueira de bengala, árvore das gralhas, estas aqui e aquelas outras. Só posso apontar. Imaginar em simultâneo, compor genialmente sem ceder a facilidades nem exaltações. Vida e morte confusas. Inextrincáveis. Igreja de Santo António. Uma ampla sala onde caminhamos sobre túmulos. «Para nascer: Portugal. Para morrer: todo o mundo.» Último quartel do século XVI. Há quanto tempo? Despedimo-nos como contemporâneos e seguimos para Bombaim. ——— «Devo dizer que, depois daqueles passeios doutros tempos, eu nunca me senti tentado a vaguear por entre esses “seis templos alvejando num palmar enorme”, como alguém os caracterizou. O que me comoveu muito mais foi uma experiência que tive nos meus tempos de faculdade, em Baçaim, a cidade fantasma para lá esteiro de Thana, a norte de Bombaim. Fui lá sozinho. Havia pouca gente na estrada. Entrei por uma brecha na muralha que dizem ter sido aberta pelos maratas. Nem uma árvore, só pedras e areia. Ainda sobravam vestígios de pavimentos. A casa do capitão. O senado. A alfândega. Aqui está, ou estava, a casa dos Franciscanos. Dizem que o nosso Francisco dormiu lá muitas vezes. Aqui os Agosti-

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nhos. Por fim, a igreja dos Jesuítas, construída depois de Xavier, ainda de pé, recentemente coberta… Entrei por uma porta lateral numa espécie de claustro ou pátio. Lá estavam o locutório, o refeitório, a cozinha. Uma escadaria conduzia ao andar de cima, aos aposentos dos religiosos. Dos seus quartos voltados para as fortificações, os padres poderiam ver as caravelas chegando… Corri escada acima e fui violentamente forçado a parar. Não levava a parte alguma. Aqueles arcos, aqueles pilares não sustentavam nada. Lá em cima não havia tecto, nem chão por onde caminhar. De repente, no lancinante momento do choque, uma imagem atravessou-me a mente. Não era a imagem de mim próprio mergulhando no vazio. Era, ao que me pareceu, uma imagem da nossa alma.» João da Veiga Coutinho, Uma Espécie de Ausência

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Dia 9 Como se faz um fantasma? De que noites? Quando acordas e não sabes onde nem quem. Mal de tudo, o corpo numa relação de coisas frias, numa hesitação em ligar os sentidos, dar-se um oriente. ——— Já se vê o fim e eu estou no fio. Falta o de hoje e ainda outro. Gasto, o corpo num títere, mal cosido, a vibrar de um sopro dolorido. Doce esvaimento que vai bem com o exagero de Bombaim, apesar de tudo calma nesta manhã de segunda. Os tons de névoa que não deixam o céu ganhar altura, não deixam também que a cidade se levante das vagas impressões de aguarela. Tudo é um tanto difuso, diluído, e apesar do movimento criam-se quadros sucessivos de assombramento. Mais mundo que isto não há. Mas não sinto nada. Não tenho um só sentimento em mim. Olho Bombaim do autocarro como a olharia um morto, uma última vez. Uma cidade onde só conseguiu pensar em morrer. Os guias não largam o altifalante, realizam no percurso até Chaul um documentário indiferente. Colecções de maus hábitos informativos. A história entre outras razões ausentes deste mundo. Quero lá saber. (Perdoem, deve ser a dor de cabeça.) Preferia dormir. A quantidade de coisas que as pessoas sabem. E se não se calam? Cansaço de merda. A poesia é também um lugar que se livra de tantas coisas. Podemos ser absurdamente cultos e, fatalmente, inoportunos, aborrecidos. Desencantados. É o mal maior da raça viageira. ——— «Na Primavera passada, quando viajava de comboio por França, tinha olhado pela janela e pensado que o véu de Maia estava a ficar mais fino.

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E porquê? Eu não via o que tinha diante de mim mas tão-somente o que toda a gente vê sob uma directiva comum. Deste modo fica implícito que a nossa mundividência esgotou a natureza. (…) Os instruídos falam de um mundo desencantado (e aborrecido). Só que não é o mundo que se mostra desencantado, mas a minha própria cabeça. O mundo não pode ser desencantado.» Saul Bellow, O Legado de Humboldt ——— Passámos a parte maior destes dias no autocarro. Tanta estrada. Para chegar aos lugares e repetir um mesmo ritual. Curso intensivo de turismo. Banal e desolador. É uma forma de se estar no mundo que me traz um desgosto profundo. Tenho dificuldade em entender, e tudo o que me parece é patético. Este caminho todo feito desgraçadamente, enlatados, aos solavancos, num pesadelo a ar condicionado. ——— Ho Chi Minh diz que desperta no viajante o poeta que havia em si adormecido. É capaz, em casos que se metem ao erro e vão dar consigo noutro acerto. Outra hipótese é o viajante ser só um cordel tenso que vai rodando entre pregos fixos num mapa, sem nenhuma intenção de se perder e ainda menos de acordar algum desconhecido que ainda tenha ficado a dormir no fundo de si, não se tendo apercebido de que aquela composição já não vai a lado nenhum, ou pelo menos não com vontade de se demorar. Tudo é uma pista, um disparo à partida e depois uma correria desenfreada até cruzar a meta. Uma forma de coleccionismo, mas desinteressado, apenas com o ânimo tirado de ter completado outra tarefa. ———

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Pior que doente, é andar num país destes de um modo que farta. Que não nos deixa ter nada nem estar, mas só ir indo cegamente de uns sítios para os outros, a fazer paragens literalmente para mijar. Da janela vou olhando perdidamente extensões avassaladoras, campos alagadiços, construções de nada para a pequena vida e os seus dedicados ciclos. Uma terra de chuva. Recomida, esgravatada por esses dedos mínimos no seu trabalho curioso. Chove mesmo se, como agora, não cai um pingo. Esta gente quieta que nos vê passar. Espalhados também, os signos dos seus cultos. Não se cansam de encontrar motivos de adoração. Ligam a divindade às coisas que amam. Um pobre ar de abandono. Tudo o que é do homem aqui parece um esforço de resistência, mas tudo muito temporário, precário. Pedras a segurar os telhados, plásticos e lonas a defender as coisas. Não se percebe a idade de nada, só se sente que é velho. Tudo velho e mal se aguentando, ao passo que a natureza faz o que quer, reina triunfante e ameaçadora. Uma muralha desalinhada que cerra os espaços. E finalmente as ruínas muito castigadas do forte português. É de início do século XVI. Ao contrário do de ontem este não tem aqui especial protagonismo. Foi consumido pela aldeia. De um verdadeiro fulgor, como até há décadas as houve em Portugal. ——— «…a raiva que sentimos não tem objecto. Não é certamente dirigida à natureza que estava cá antes de nós, cá ficará depois, e não gosta da morte. Nem é aos homens que temos raiva: quais deveríamos odiar? Nós próprios? Os outros. Proponho que odiemos antes a história. Isso: a história, o comboio da história, essa metáfora que avança largando fagulhas e provocando incêndios, o comboio que uma poderosa locomotiva puxa.» Paulo Varela Gomes ———

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Já não tenho nada. Gosto, coisa simples. Está tudo certo. Os canhões largados pela relva, o farol em encantada sobranceria, e um acesso para a praia rasgado por uma porção derruída da muralha. E agora o mar. Finalmente. «Beleza, violência, dor. O mar» (James Joyce). Tenho toda a sensação de que ainda ontem isto foi o futuro. Não precisei de descalçar-me nas pedras e de molhar os pés, simbolicamente. Mas não se pode retirar a isto o elemento do espanto, entender o lugar onde estamos e um pouco do que ainda significa. Não se pode não admirar o espírito de um tempo e das pessoas que foram capazes disto. E é tocante ver como o lugar recorda tudo. ——— «Ali se está, na praia, perante o mar, e no mesmo instante fica-se na praia e no mar. E isso produziu-se sem palavras de qualquer espécie, sem espera. Nada se desejou verdadeiramente. Aconteceu; apenas aconteceu. Música para aniquilar as palavras, para ir mais depressa que as palavras. Música que não é para compreender, mas frenesi duro e sobreconsciente, e de chofre vê-se, ouve-se, sente-se, conhece-se o desenho do universo. Música que num relâmpago passa para além da sociedade. Para quê as histórias, os planos, os mapas? Deixa de haver indivíduos, dominação, perguntas e respostas. Diálogo rompido. O cérebro está de fora — é isso —, é terrível e é belo, o cérebro está vivo no exterior. Vêem-se agora os desenhos inventados, os sinais, os arabescos, os disfarces. O ruído alumiou-os como um olhar, e eles aparecem nos seixos, no mar, na luz solar. É uma explosão que dura muito tempo, que não acaba. O sopro da deflagração é semelhante a um vento que não cessa. A estrela de chama que cresce, afastados seus raios de luz para as bordas do espaço, não se apaga; aumenta, pelo contrário, é a cada segundo maior, a cada segundo mais densa, e todavia sempre ali esteve, nunca foi pequena: por fim já se não conhece o tempo às avessas.» J.M.G. Le Clézio, Índio Branco

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Dia 10 A sensação de que cheguei ao fim antes de a viagem lá chegar. Não de imediato, mas aos poucos. Tudo hoje, que é o último dia, completamente acabado, sem nenhuma paciência e um pouco doente. Deixei de novo a loucomotiva turisqueira e fiquei pelo quarto. Dezasseis horas a baixar-me intermitente na corrente doce do sono. Que imenso caudal ao fim de dez dias de abuso num país que sempre que pode se estende e dormita. A Índia é um infinito cansaço. Mesmo o prazer é já uma alegria renascida de um mal ou tristeza. Primeiro tudo é inacessível e depois um gesto ínfimo torna-nos sensíveis. Este país súbito. A mim, que sou um chato e um garoto que faz da comodidade o seu vício, este país ofendeu-me. Sempre que pôde, mostrou-me desprezo. Ainda há pouco. Deixei o hotel e quis procurar alguma coisa, algum espaço comercial para não chegar a Lisboa e aos meus azedado e ainda por cima de mãos a abanar. Nada, mas nada. Abruptas avenidas sem eixo, tresabundando, com o olhar a cada aberta a deixar-me mais desencorajado. Uma Bombaim de grandes sedes corporativas com os pés em poças de água, lamacentas. Apesar de o clima ser dos mais amenos que apanhei por aqui, deu cabo de mim em menos de uma hora. Largos perímetros em construção, e entre os subníveis da fauna dos negócios neste novo centro ocidentado, cruzei-me mais com os trabalhadores das obras, que me punham os olhos em cima como habitualmente, e em Portugal, ponho eu nos outros. O meu reflexo nos vidros dos carros não me dava também nenhuma indicação. Estou longe de me sentir mais que um esquisso à procura de firmeza no traço. Seria tão fácil desesperar aqui. Podem fazer-se quilómetros nesta cidade sem encontrar o menor indício de esperança. ———

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Ontem, atravessámos a cidade cercados pelas derradeiras celebrações dos três dias de homenagem a um tal Ganesh, de quem ouvimos falar incessantemente toda a viagem. Elefante com um especial donaire sentado na posição de lótus, parece-me, e a gesticular confiantemente. Pareceu-me tudo uma barafunda, desorbitada, bastante estúpida. Lá iam as reproduções da divindade na mala aberta dos carros, ou numa escala maior, em carros alegóricos, atrás de turbas coladas a colunas a cuspirem uma barulheira como discotecas a céu aberto, com algum dj a presidir à triste cerimónia. Muitos homens e quase nenhumas mulheres. Cobertos de um pó rosa. As fadas mais tristes que já vi. Apesar disso comoventes na sua alegria invencível. Os grupos de jovens e miúdos radiantes de se verem bloqueados no trânsito ao lado de um autocarro cheio de turistas ocidentais. A acenarem-nos incansavelmente, ou a colarem as mãos nas janelas a pedir essa proximidade tão própria das gentes da infância. Mas nós, já meio descrentes, esboçávamos algum sorriso, retribuíamos com algum sinal de reconhecimento frio. Não haja dúvida de quem eram as aves (pouco ou nada raras) que seguiam o cortejo engaioladas. Ainda foram quilómetros de marginal naquela convergência de dois mares. As centenas de reproduções de Ganesh levadas à imersão nas águas escuras do Índico, a maioria deixadas lá. Um ritual de toda a Índia, que já em Goa tínhamos testemunhado. Mas apesar da vontade, do ânimo geral que em Lisboa só comparo às celebrações dos campeonatos benfiquistas, a festa nem parecia vir nem caminhar para um clímax, como uma gala destrambelhada, ao ritmo azucrinante de tambores, barulho e agitação, mas sem chegar a produzir uma vibração infectante. Tudo numa dança morta. Só cabeças, mas nenhum corpo. Uma contagem de milhões, tão pouco impressionante ali como traduzida numa estatística. Fez-me pensar numa confrangedora antítese do carnaval do Rio. Mesmo as celebrações do Santo António, de que tenho preferido fugir, me pareceram gloriosas contra o ridículo destas. Não sei o que foi ou será, mas pareceu-me tudo desconexo, demasiado ambíguo e até arrependido. Nem mundano nem religioso ou espiritual, apenas força de vontade e um tremendo engano. Como uma massa imensa de gente abismada entre duas eras, despovoada. Sem a disciplina totémica para guiá-la. Agarrada a signos de uma tradição que subsiste desfazada do seu ânimo original. São hipóteses de um olhar muito passageiro,

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e que não se obrigou a um maior estudo. De qualquer forma, parece claro que as culturas ancestrais não possam sobreviver a um modelo de modernização que devora tudo e tudo explora e esvazia para gerar mais algum lucro. Nem tudo é mau, claro. O hotel onde agora escrevo vale todas as suas cinco estrelas, mas fica em Bombaim como em Berlim, Manhattan ou, um dia, até numa das capitais de Marte. Um lugar inominado onde toda a História é um processo em direcção ao luxo e ao conforto. Está-se muito bem, se ausente, a pensar noutro lugar. Aqui mesmo, nestes corredores e câmaras ligadas, abertas e espaçosas não se sente muito e pensa-se distantemente, porque outra coisa seria incómoda. ——— Os mais velhos regressaram, já os oiço, no corredor, nos quartos. Daqui a pouco cortamos novamente Bombaim e jantamos outra vez, mas na nossa própria gala, modesta, desta vez para nos despedirmos. Uns poucos, muito poucos, ainda ficam, para saber mais da Índia. A Inês fica. Foi a melhor companhia que alguma vez fiz fora do país. «A última dama.» Sem a tolerância e a generosa inteligência dela ter-me-ia portado pior com tudo e todos. Além de que as conversas com ela me mantiveram comprometido e empenhado com esta viagem. É apenas uma menção, mas ela saberá como me apoiei nela para me segurar a linha e encontrar a disciplina para gozar as coisas com atenção à sua verdadeira natureza. No fim, e tendo-me visto combalido, os mais velhos mostraram-me uma atenção e carinho que me sensibilizaram. Um grupo de pessoas que mereciam afinal alguém com melhores instintos humanos. Pudesse eu chegar mais vezes ao fim. Tentar começar por aí. Farei por isso. ——— «O que tu não criares, não serás. O teu ser é só a actividade em equação. Pois como quer subir acima de si

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quem não faz escadas? Como achar o caminho do seu próprio ser sem companheiros de jornada?» Günter Kunert ——— Estou acriançado, de fôlego mendigado, a colar retalhos, impressões, intimamente tenho claro quanto muitas vezes só me foi possível respeitar e viver o caminho que fizemos em segunda mão, pressentindo-o nos gestos e olhares de quem segui e acompanhei. Mesmo se a contragosto. Uma coisa não é só uma coisa e isto não é um momento de redenção. As viagens são difíceis e por isso nos fazem alguma diferença. Venha essa diferença. Ao andar pelas avenidas de Bombaim sozinho dei por mim a abençoar todos os cuidados que tiveram connosco. O simples exercício de atravessar uma estrada sozinho exige aqui uma natureza mais viva, mais aguçada. A humidade e o calor são o suficiente para não me deixarem sair da minha pele, multiplicar-me ou pelo menos evadir-me. A minha disposição habitual seria aqui, pelo menos inicialmente, uma forma de clausura. Só uma enorme adaptação… Mas não a espero nem vislumbro para esta vida. Quem sabe reencarnando, como por cá se faz, e numa forma de vida superior. ——— Mas ficam sempre um pouco assombradas as relações com pessoas que nos lembram muito alguém. Ao mesmo tempo que nos são familiares também nos assustam. Dizem-se coisas a quem já não está. E tira-se mesmo um certo prazer dos equívocos que se geram. A vingança, como dizia uma personagem do Cormac, não tem temperatura. Não se serve fria nem quente. Serve-se de tudo e contra todos.

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