Sousa Dias «Grandeza de Marx — Por Uma Política do Impossível»

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obras do autor

ensaio (selecção) Lógica do acontecimento — introdução à filosofia de Deleuze, Edições Afrontamento, Porto, 1995, 2.ª ed. aumentada Documenta, Lisboa, 2012, reimp. 2018 O que é poesia?, Pé de Página Editores, Coimbra, 2008 2.ª ed. (e-book), Grácio Editor, Coimbra, 2011 3.ª ed. modificada, Documenta, Lisboa, 2014 Grandeza de Marx — por uma política do impossível, Assírio & Alvim, Lisboa, 2011 2.ª ed., Documenta, Lisboa, 2021 Žižek, Marx & Beckett — e a democracia por vir, Documenta, Lisboa, 2014, reimp. 2016, 2018 O Riso de Mozart — música pintura cinema literatura, Documenta, Lisboa, 2016 Pre-Apocalypse Now, Documenta, Lisboa, 2016 Teologia da carne — a pintura de António Gonçalves, Documenta, Lisboa, 2018 Anti-Doxa — a filosofia na era da comunicação, Documenta, Lisboa, 2019

antologias Manuel António Pina, Dito em voz alta, Pé de Página Editores, Coimbra, 2007, 2.ª ed. aumentada, Documenta, Lisboa, 2016 Manuel António Pina, Por outras palavras & mais crónicas de jornal, Modo de Ler, Porto, 2010 Manuel António Pina, Crónica, saudade da literatura, Assírio & Alvim, Lisboa, 2013

traduções François Châtelet, Platão, Rés, Porto, 1977 Gilles Deleuze, Cinema 1. A imagem-movimento, Assírio & Alvim, Lisboa, 2009, reed. Documenta, Lisboa, 2016 Gilles Deleuze, Cinema 2. A imagem-tempo, Documenta, Lisboa, 2015 reed. Documenta, Lisboa, 2020 Gilles Deleuze / Félix Guattari, Rizoma, Documenta, Lisboa, 2016


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GRANDEZA DE MARX por uma política do impossível


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GRANDEZA DE MARX por uma política do impossível

D O C U M E N TA


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1.ª EDIÇÃO: ASSÍRIO & ALVIM, LISBOA, 2011

© SISTEMA SOLAR (DOCUMENTA) RUA PASSOS MANUEL, 67 B, 1150-258 LISBOA © SOUSA DIAS, 2021 1.ª EDIÇÃO, AGOSTO DE 2021 ISBN 978-989-9006-99-7 DEPÓSITO LEGAL: 487376/21 IMPRESSÃO E ACABAMENTO: ACD PRINT, SA RUA MARQUESA D’ALORNA, 25-19 2620-271 RAMADA


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O título deste livro é uma homenagem à memória de Gilles Deleuze


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ao Ângelo César, sombra luminosa do livro


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1. DE QUE FRACASSO É O COMUNISMO O NOME?

O espectro do comunismo, o lendário Gespenst des Kommunismus do Manifesto de 1848, parece hoje inquestionável, já não ronda a Europa nem anda à solta algures, já não assombra a nova ordem do Mundo, erigida aliás sobre o fim dessa assombração. Já os Estados não se aliam em santas ou profanas caçadas ao espectro, já o comunismo não é receado como um poder por Poder nenhum. Crepúsculo do espectro, e crepúsculo proclamado, jubilatoriamente aclamado, como definitivo. Ocaso da história do espectro e do espectro na história. Saída do palco, da cena histórico-mundial, fim da encenação, tragédia e farsa, fim do teatro de sombras, queda do pano ou da cortina, queda do muro. Morte, pois. Morte de vez, sem retorno possível, da fantasmagoria do espectro, da sua ronda sombria, dissipada contra a luz da democracia como Nosferatu o vampiro, o morto-vivo, no filme de Murnau. Morte do comunismo como força política, maquinação contra-política, movimento revolucionário internacional. E com ele — não outra morte, a mesma — do marxismo, do pensamento de Karl Marx inspirador desse movimento, suscitador do espectro «sem pátria». Filosofia visionária, visão do espectro, anúncio da sua vinda iminente como «reino Grandeza de Mar x

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da liberdade», teoria prática, práxica, da revolução por vir, o marxismo — parece também evidente hoje — não resistiu à crise irreversível do comunismo, quer dizer, à «crítica» pela realidade. A sua realização histórica — as encarnações do espectro, as experiências fracassadas dos Estados «comunistas», «marxistas» — terá sido a prova paradoxal da sua irrealizabilidade, da pura idealidade ou idealismo do seu anúncio ou promessa, do seu profetismo e do espírito desse profetismo. Vai longe, muito longe, o tempo em que Sartre afirmava o marxismo como «a filosofia do nosso tempo, inultrapassável». Agora a verdade, axiomática na sua evidência, é outra, rigorosamente oposta, a verdade, como se disse, jubilatória da ultrapassagem, do passamento, da morte: do marxismo, do comunismo, da revolução. Ou seja. O que era para Marx, e para a época de Marx, para «todos os poderes da velha Europa» de então e até ao tempo de Sartre (e que foi também o «nosso tempo», de confiança no marxismo, para muitos de nós), o espectro de um comunismo por vir aparece agora como um fantasma já só do passado, de uma vez por todas ultrapassado. Aparece como um expectro, um ex-espectro sem vida, sem espírito, sem a alma que o animava, caída a máscara de Ideia emancipadora que ofuscou Sartre e tantos de nós e revelada na sua nudez a autêntica face ocultada pela Ideia, a face sinistra, tenebrosa, totalitária, do espectro. Tempo pois da dissipação, ou tempo pós-dissipação, do espectro e do pensamento espectral, da espectrologia comunista de Marx, e dissipação de vez, para sempre, sem regresso possível: espectro não regressivo, espectro irregressível.

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Mas será exactamente assim? Tudo isso será assim tão evidente, ou tão evidentemente o novo tempo histórico sem a ameaça espectral do seu fim, tempo por isso sem fim, ou fim por si próprio, «fim da história»? Será essa, efectivamente, a nova cena, a nossa? Ou trata-se antes de uma nova encenação, de uma nova farsa, farsa neoliberal anti-espectro? «Marx morreu», «o comunismo morreu». Dissipação do fantasma ou — repondo aqui a questão derridiana — conspiração contra ele, conspiração ainda, nova aliança e nova caçada, quer dizer, ainda exorcismo, conjuração, neutralização? Uma conspiração tácita generalizada, e que seria tanto mais impudica, tanto mais obscena, quanto não declarada, não assumida como tal, denegada como complô, como plano conspirativo, apresentando-se antes como axioma não ideológico ou como se diz pós-ideológico, verdade meramente constativa e não performativa, consensual por isso mesmo, neo-dogmática em todo o caso, celebração uníssona de uma certeza, de uma certificação, de uma certidão de óbito. Marx, o espectro da revolução, a Ideia de comunismo como coisas mortas, coisas do passado: nenhum produto vende mais, actualmente, nos supermercados político-ideológicos do mundo neoliberal. Mas, insistimos, será exactamente assim? Não será da essência do espectro, pelo contrário, e como pretende Derrida que escreveu todo um livro sobre o tema dos espectros de Marx (assim mesmo, no plural, pois que, tese do autor, espectros ou espíritos de Marx há vários: variedade decisiva para a questão da actualidade de Marx), ser sempre futuro, estar sempre no futuro? Não será próprio da espectralidade do espectro, Grandeza de Mar x

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do espectro enquanto espectro, estar sempre por vir, vir do porvir e, mais ainda, ameaçar voltar a vir, regressar? «No fundo, o espectro é o futuro, está sempre no futuro, não se apresenta senão como o que poderia vir ou regressar [venir ou re-venir]»1. O espectro do Manifesto comunista de Marx (ou de Marx-Engels, na sua dupla assinatura), a Ideia de comunismo, é a Ideia de uma comunidade como poder do comum, de uma democracia absoluta tal como já a sonhava Spinoza no século XVII. É por conseguinte, e para o formular em linguagem derridiana, a Ideia de uma justiça imanente por vir incomensurável no seu espírito, na absolutidade da sua exigência, com os conceitos e as práticas existentes de democracia, de direito e de política. Esta Ideia não surgiu pois com Marx, nem sequer com Spinoza, nem mesmo com o capitalismo, vem de muito antes, embora só o capitalismo, como mostrou Marx, tenha produzido as condições necessárias à sua realização, as condições materiais de possibilidade da vinda dessa comunidade igualitária, igualitarista, «sem classes». Ou, como preferimos dizer pela nossa parte contra o pensamento textual de Marx mas não contra o espírito — um determinado espírito, mais que todos vivo — desse pensamento, as condições de im-possibilidade dessa vinda, da im-possível efectuação da Ideia. (Veremos que nesta grafia do termo impossibilidade se joga toda uma concepção não marxista, antimarxista até, mas consentânea com o espírito ou um espírito fundamental de Marx, do acontecimento, da «possibilidade impossível» do acontecimento como 1

Jacques Derrida, Spectres de Marx, Galilée, Paris, 1993, p. 71.

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tal). Foi pois Marx, com as suas análises da lógica do capitalismo e do seu desenvolvimento, que fez passar essa Ideia do plano da estrita utopia ao de projecto sociopolítico revolucionário ou, na expressão de Engels, «do socialismo utópico ao socialismo científico». Ora bem. Pode essa Ideia marxiana de emancipação, de revolução social emancipadora, de projecto emancipativo colectivo, ser pura e simplesmente revogada, «ultrapassada», pelos sucessivos fracassos das tentativas da sua descida do céu à terra, do seu devir-mundo? Pode falar-se de obsolescência dessa Ideia, de morte do fantasma, sem ser por exorcismo, esconjuro e ajuramento, estratégia ideológica, performativamente portanto? Pode o grande Espectro verdadeiramente deixar de voltar, de vir, de insistir, de existir? Pode? Pode a Ideia de comunismo, nem que com outro nome, na sua imperatividade por assim dizer ética, na «messianicidade» (Derrida ainda) da sua apelação como Ideia de uma justiça que expropriasse as expropriações organizadas como realidade possível, de um Acontecimento que instaurasse, não uma pós-história, mas uma outra história, portanto como Ideia de uma Alternativa como comunidade fundada na comum auto-apropriação, não a anulação ou alienação colectivista do indivíduo mas ao invés a afirmação do individual, comunidade não hierárquica do ser-si-mesmo como função do ser-em-comum, relação igualitária com os outros, com o outro como outro, com a alteridade do outro — pode essa Ideia perder jamais a sua força imperativa, abdicar dos seus direitos como Ideia? Pode ela morrer, dissipar-se, extinguir-se jamais? Expirar, esgotar o prazo de validade histórica, Grandeza de Mar x

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prescrever? Ou, pelo contrário, ela é aquilo mesmo, aquela mesma, que não prescreve nunca, a Ideia por excelência imprescritível ? E não obstante. É inegável que o que se passou, o desastre dos «comunismos», afectou profundamente a Ideia comunista, o seu prestígio, o seu poder mobilizador, a sua praticabilidade, o seu estatuto epistemológico e talvez até o seu próprio nome. Sem dúvida que o comunismo é hoje o nome de um fracasso, de um trauma insuportável na consciência dos que recusam resignar-se às possibilidades impostas pela realidade dominante, e que esse fracasso tende a identificar-se, como o fazem os ideólogos liberais e também os socialistas na sua naturalização do admirável novo mundo do tecnocapitalismo imperial como o melhor dos mundos possíveis, com o fracasso da própria Ideia comunista, da Ideia de revolução e de comunidade democrática pós-capitalista. Uma após outra falharam, sem excepção, as experiências revolucionárias que originaram Estados «marxistas» e que se apresentaram como vias para o comunismo, para uma «sociedade sem classes», como se esse falhanço, essa falha, essa impraticabilidade ou corrupção empírica, fossem inerentes à Ideia, ao seu idealismo ou utopismo, à sua metafísica inadequação à realidade humana, à natureza humana, ou à simples natureza, vontade de poder, pulsão de dominação, tal como se exprime através dos homens, das suas relações e da sua história. Em todo o caso não há que lamentar, muito pelo contrário, mesmo de um ponto de vista marxista, o desaparecimento da face da Terra dos Estados ditos comunistas, o fim dos partidos co-

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munistas tradicionais, a falência da política comunista marxista, «marxista-leninista». De facto esse comunismo morreu, até mesmo onde formalmente sobrevive (China, Coreia do Norte, Cuba), e ainda bem que morreu, e com ele ao mesmo tempo um certo marxismo, um certo Marx, um certo espírito de Marx, já dogmatizante de algum modo, marcado pela epocalidade dos seus traços (era esse espírito que fazia Michel Foucault declarar o marxismo prisioneiro da configuração epistemológica do século XIX e anacrónico fora dessa «epísteme»). Só que, apesar da névoa ideológica neoliberal, essa morte não significa, nem implica, a morte da Ideia comunista e a morte de Marx, de um outro espírito de Marx, avesso a todos os dogmatismos e antes de mais à sua própria dogmatização — não foi Marx o primeiro não-marxista ou antimarxista confesso?, o primeiro a distanciar-se do marxismo seu contemporâneo em formação? —, espírito intempestivo, trans-epocal, trans-histórico, de uma justiça por vir, espectro ainda e sempre do futuro, no futuro. Com efeito. Indiscutível que o comunismo seja hoje o nome de um fracasso, mas. Em rigor, de que fracasso é o comunismo o nome? O que é que verdadeiramente, na experiência dos Estados «comunistas», foi posto à prova e falhou? A que é que, como lição desse imenso falhanço, há que renunciar? E — questão testamentária, questão de fundo — o que resta, o que fica, da Ideia comunista e do legado de Marx, da herança «espiritual» de Marx? Daniel Bensaïd resume muito bem esta questão. «A herança de Marx põe pois a questão de saber se a palavra “comunismo” ficou comprometida pelo seu uso estatal e buroGrandeza de Mar x

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crático a ponto de se ter tornado impronunciável. E de determinar sobretudo de que é que — utopia crítica, movimento de emancipação, hipótese estratégica — o comunismo pode ser hoje o nome»2. Exacto. A questão do comunismo, da Ideia comunista, é hoje em primeira instância a questão do nome: a do sentido desse nome, da incerta actualidade desse sentido, mas antes ainda, correlativamente embora, a da actualidade do próprio nome, isto é, da pronunciabilidade ou impronunciabilidade do nome próprio da Ideia. De facto, talvez esse nome, glorioso outrora, se tenha tornado um nome impossível, um nome inominável. Talvez ele esteja condenado, perdido, sem remissão ou reanimação, sem perdão, nome imperdoável, irrecuperável, insalvável, posto fora de circulação pela sua sobreconotação. Em suma, talvez seja forçoso abandoná-lo, assumir a definitividade do seu desprestígio, talvez o espectro — o espírito da justiça e da democracia que falta, o espírito de uma impossível comunidade por vir — já não possa vir, voltar, insistir, sobrevir do seu refluxo na nova idade imperial do capitalismo, senão sob outro nome, outra denominação, outra apelação para o mesmo apelo, fantasma ou Ideia. Por outro lado, a questão da herança de Marx aponta também, e precisamente enquanto questão, enquanto herança da questão ou essa questão mesma como «a» herança, para uma irreversível conversão no perfil epistemológico da Ideia comunista. Porque o que sem dúvida morreu, o que está morto e bem morto, é uma concepção do comunismo como 2

Daniel Bensaïd, «Penser la lutte», Le Nouvel observateur n.º 2337, 20.08.2009, p. 11.

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solução, uma concepção marxista, marxiana, da Ideia comunista como Ideia de uma comunidade garantida, na certeza ou na «necessidade» da sua vinda, na sua possibilidade e previsibilidade, pelas «leis» da história, do movimento «materialista dialéctico» da história, para dar lugar a um conceito de comunismo como problema, hipótese, im-possibilidade, ou seja, a uma Ideia de comunismo reposta na sua constitutiva problematicidade rasurada, deixada sem rasto ou vestígio, já pelo próprio Marx — por, repita-se, um certo espírito de Marx — e completamente, dogmaticamente, pelo marxismo. Ou seja, e para tudo dizer com clareza. O que falhou, o que fracassou, o que acabou derrotado nas experiências dos poderes comunistas não foi a Ideia de comunismo, inderrotável, irrevogável no seu espírito. Foi unicamente uma dada apropriação, cientificação ou liturgização da Ideia, e com isso uma determinada estratégia, um modelo, uma ortodoxia, um determinado autoritarismo ou autoridade do partido-vanguarda, do partido-consciência, Cogito proletário («ninguém pode ter razão contra o partido», nenhum proletário, dizia Trotsky, porque o partido é a razão, a forma consciencial e organizacional do proletariado como classe revolucionária), um determinado estatismo ou identidade partido-Estado, e, como corolário, um burocratismo nunca visto, um totalitarismo ou terror como tirania da Ideia «científica». Por outras palavras, o que fracassou não foi a Ideia comunista mas apenas uma forma de usurpação da Ideia, quer dizer também, uma forma de perversão ideológica, de ideologização dogmática como razão de Estados totalitários, do pensaGrandeza de Mar x

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mento de Marx, do espírito mais profundo da sua herança, espírito, como veremos, irredutível à dogmatologia marxista-leninista (estalinista, maoísta, etc.). Alain Badiou tem vindo a perspectivar o comunismo, a Ideia comunista, como «hipótese» e, mais ainda, como hipótese im-possível, como Ideia de uma política do impossível. Também ele coincide em sublinhar, contra a generalizada intoxicação liberal-capitalista, que o que falhou nas experiências históricas do comunismo não foi a própria «hipótese comunista», a Ideia de universal emancipação, mas a forma como se experimentou a Ideia, as «soluções» buscadas para essa hipótese, toda uma política revolucionária passando ainda por uma concepção do poder de que deveria pelo contrário, segundo ele, afastar-se (centralismo do poder, forma-Estado, propriedade pública socialista, etc.). Nesta perspectiva não foi o comunismo, a Ideia-hipótese de Marx, que se revelou uma falsa solução para o capitalismo como problema da humanidade, foram as experiências comunistas que se revelaram soluções inadequadas para essa Ideia ainda à espera de uma inantecipável solução «correcta» (Badiou dá como exemplo, a título comparativo, o teorema de Fermat e os três séculos de tentativas da sua demonstração)3. «A hipótese comunista continua a ser a boa hipótese, como já disse, não vejo qualquer outra. Se essa hipótese tiver de ser abandonada, não vale a pena fazer seja o que for na ordem da acção colectiva. Sem o horizonte do comunismo, sem essa Ideia, nada 3

Alain Badiou, L’Hypothèse communiste, Lignes, Paris, 2009, p. 11.

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no devir histórico e político é de natureza a interessar o filósofo. Que cada um se ocupe dos seus assuntos e não falemos mais disso. (…) Mas ater-se à Ideia, à existência da hipótese, não significa que a sua primeira forma de apresentação, centrada na propriedade e no Estado, deva ser mantida tal qual. De facto, aquilo que nos cabe como tarefa, digamos até como dever filosófico, é ajudar a que se destaque um novo modo de existência da hipótese»4. Texto exacto, incisivo, que subscrevemos sem reservas. Ou seja. O fracasso, os fracassos, das experiências comunistas, longe de significarem o fracasso da Ideia comunista, fazem parte da Ideia, do seu estatuto «hipotético» ou «problemático», constituem o seu campo necessário de experimentação, de tentativas, de renovação, de erro e de autocorrecção. Isto é. A Ideia de comunismo, enquanto Ideia-problema ou Ideia-hipótese, é inseparável da sua própria história, a sua existência ideal da sua existência histórica e dos efeitos modalizadores desta sobre aquela, quer dizer, das sucessivas soluções falsas ou falhadas, dos casos (mesmo perversos) de solução que redefinem, uma vez e outra, a forma de apresentação da Ideia, a sua posição como problema, ou, nos termos de Badiou, o seu «modo de existência». A Ideia de comunismo é, conforme a metáfora de Marx, um espectro, mas não no sentido de uma ilusão: antes um espectro vivo, duplo ou fantasma revolucionário da intolerável realidade existente, por ela segregado como o seu negativo sempre virtualmente presente, hipótese trans-histórica variável, Ideia 4

Alain Badiou, De quoi Sarkozy est-il le nom?, Lignes, Paris, 2007, p. 153.

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sempre à procura da forma da sua efectuação. Tentar, falhar, voltar a tentar, falhar melhor, como o diz Beckett citado por Badiou e por Žižek. Não há outra hipótese, não há outra luta — esta ou nenhuma —, não há fora disto solução. Por outro lado, se a Ideia comunista só pode proceder por tentativa e erro, por consecutiva busca da solução adequada, isto significa que essa solução não pode ser objecto de uma previsão teórica como já o afirmava Marx, mas apenas de uma imaginação prática instituinte, de uma imaginação colectiva inantecipável como criação de uma possibilidade, de um possível que não preexiste à sua realização, ou seja, e em rigor, como realização de uma impossibilidade. Badiou dá o exemplo entre outros do poder popular auto-instituído pela Comuna de Paris de 1871, da Comuna como invenção de um contra-poder político ou de uma contra-organização do poder político que já não passava pelo aparelho de Estado, pela forma-Estado. «A Comuna, como todo o acontecimento verdadeiro, não realizou um possível, criou-o» (sublinhado de A. B.)5. Mais adiante voltaremos a este tema, decisivo, da «im-possibilidade» do acontecimento propriamente dito e da política revolucionária como necessariamente, imperativamente, política do impossível. E se a questão de Marx hoje, da actualidade de Marx e da Ideia comunista, do espólio marxista, não fosse a questão de um despojo ou de um resto, do que resta dessa Ideia na perspectiva da realidade contemporânea, mas exactamente o contrário, a questão inversa da actualidade, segundo um novo «modo de existência» da 5

Alain Badiou, L’Hypothèse communiste, p. 175.

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Ideia, da crítica da realidade contemporânea por essa Ideia, da crítica marxista da economia política? Em linguagem žižekiana: e se a questão de Marx e do comunismo hoje não fosse a de analisar o que subsiste de actual, de utilizável, na Ideia de comunismo mas, ao invés, a de determinar o que significa, o que pode significar, em termos práticos e políticos, ser actualmente comunista, viver a contemporaneidade do ponto de vista da Ideia comunista?6. Sem dúvida que, como observa também Žižek, permanecer hoje fiel a essa Ideia, permanecer fiel a Marx, não faz sentido senão na forma de uma espécie de infidelidade, de um certo e assumido antimarxismo, de um abandono absoluto da Ideia de comunismo legada pelos séculos XIX e XX, do comunismo-solução, do comunismo como figura do «Grande Outro» do capitalismo garantida na sua vinda pela dialéctica objectiva da história — tudo isso em favor de um comunismo-hipótese, de uma nova Ideia, problemática, de comunismo7. Seja como for, essa infidelidade é tão-só a condição negativa necessária e a própria forma de actualidade de uma fidelidade fundamental, é a redefinição num modo de existência contemporâneo — processo em aberto, processo em curso, ou, como diz Badiou, a tarefa que nos cabe — da Ideia revolucionária de Marx face à realidade neocapitalística planetária por fidelidade ao espírito da Ideia, à provocação desse espírito pela lógica mesma Slavoj Žižek, À travers le réel, Lignes, Paris, 2010, pp. 91, 144. ibidem, p. 144: «Essa ideia do comunismo dos séculos dezanove e vinte segundo a qual a História estaria do nosso lado, que haveria uma necessidade histórica do comunismo, e que o comunismo seria aquele que age, que realiza essa tendência ou até a necessidade objectiva do comunismo, etc. Ora nós precisamos de um comunismo sem Grande Outro». 6 7

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(exasperação brutal das desigualdades) dessa realidade, à sua injunção ética, ao imprescritível pois. A questão-Marx, a questão da actualidade de Marx, por conseguinte não será tanto, ou não será de todo, e para retomar ainda a fórmula žižekiana, a de saber o que devemos pensar de Marx mas a de saber o que Marx pensaria, poderia pensar, de nós. Não será tanto a da crítica da Ideia comunista pela realidade contemporânea como a da crítica desta realidade na perspectiva da Ideia de Marx. Crítica evidentemente, assumidamente, parcial — e nisso também fiel a Marx, ao espírito crítico de Marx, à visão marxiana da teoria como «praxis», tomada de partido —, pois que, na ordem do político e do pensamento político pelo menos, não há crítica ou verdade imparcial, não há lugar da verdade que seja ou possa ser neutral. É igualmente esse, diga-se de passagem, o sentido crítico do presente livro, a sua ostensiva fidelidade (infiel) a Marx, a sua forma de ser, e de se apresentar como, marxista, a sua forma de modéstia também: não falar «sobre» Marx, não julgar Marx, mas deixá-lo «julgar-nos», deixá-lo «falar». «Ouvir» a sua voz espectral, a presença viva dessa voz, desse «espírito», entre nós, e tanto mais viva, apesar de todos os exorcismos que a declaram voz morta irregressível, quanto mais provocada, convocada, pela realidade contemporânea do capitalismo imperial. Como escreve Žižek, quando se questiona o que está vivo e o que está morto num autor do passado, essa questão trai, da parte de quem assim questiona, a arrogância de um direito em si mesmo inquestionado, fundado na mera posterioridade histórica do questionador, a julgar o objecto da questão.

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Ora — e vale a pena citar esta longa passagem — «quando se trata de um filósofo verdadeiramente grande, a verdadeira questão a levantar não concerne o que esse filósofo pode dizer-nos ainda, o que pode ainda significar para nós, mas antes o inverso: onde é que estamos aos seus olhos? Que pensaria ele da nossa situação contemporânea, da nossa época? E deveria proceder-se também assim com o comunismo — em vez de se colocar a questão batida: “A ideia de comunismo é ainda hoje pertinente, pode-se ainda utilizá-la como instrumento de análise e modelo de prática política?”, deveria inverter-se a perspectiva: “Como é que se apresenta o nosso marasmo actual na perspectiva da Ideia comunista?”. É aí que reside a dialéctica do Antigo e do Novo: são aqueles que propõem a criação constante de termos novos (“sociedade pós-moderna”, “sociedade do risco”, “sociedade informacional”, “sociedade pós-industrial”, etc.) a fim de apreenderem o curso actual das coisas que falham o reconhecimento dos contornos do realmente Novo. A única maneira de captar a verdadeira novidade do Novo é analisar o mundo através da objectiva do que era “eterno” no Antigo. Se o comunismo é verdadeiramente uma Ideia “eterna”, nesse caso funciona como uma “universalidade concreta” hegeliana: é eterno não no sentido em que se trataria de uma série de características universais abstractas aplicáveis por toda a parte mas no sentido em que tem de ser reinventado em cada situação histórica nova»8. Absolutamente Slavoj Žižek, Après la tragédie, la farce!, 2009, tr. fr. Flammarion, Paris, pp. 14-15. Cf. também, do mesmo A., Fragile absolu, 2001, tr. fr. Flammarion, Paris, p. 154 (a propósito de Schelling e da actualidade da filosofia schellinguiana). 8

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de acordo. (Mais à frente abordaremos esta questão da «eternidade», da parte de eterno, da Ideia-acontecimento). Ou seja, e em suma. Não será propriamente a Ideia de revolução a ter de prestar contas à realidade capitalista imperial actual auto-ideada, ou ideologizada, como idade pós-revolucionária do mundo, idade da dissipação do espectro, da morte do comunismo e de Marx; mas antes esta mesma realidade — a nossa, nós — a ter de prestar contas ao imperecível fantasma que a assombra, à Ideia de revolução, Ideia «eterna», por isso mesmo sempre futura, porquanto Ideia de uma Justiça que deve ou deveria vir, que exige vir, e cuja exigência ameaça sobrevir, encarnar ou reencarnar. De facto. Aquilo que mais falta nos faz hoje, e que explica o reinteresse ou a redescoberta difusos de Marx, é a teoria, o pensamento, o regresso a uma tradição radical do pensamento político de esquerda, o reatamento criativo com essa tradição. Falta-nos a teoria crítica da economia política do Império capitalista universal contemporâneo, da lógica das suas estratégias geo-político-tecno-económicas planetárias, dos novos poderes e relações de poder mundiais constituídos ou em constituição, das novas classes e reclassificações sociais (quem são os proletários de hoje?), das novas contradições e antagonismos implicados na máquina capitalista «globalizada», etc. — e que fosse também uma teoria clínica, o diagnóstico ou a sintomatologia da Crise civilizacional da nossa época, das suas tendências evolutivas potenciais, quer das hipóteses apocalípticas à vista de todos quer das contra-hipóteses revolucionárias, dos devires revolucionários colectivos que se podem abrir (os trabalhos de Negri e

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Hardt vão nesse sentido9). Ou seja, falta-nos o pensamento que, como o de Marx para o capitalismo industrial do seu tempo, nos permita pensar em termos contra-políticos, ou de uma política impossível, a actual reconfiguração cosmo-imperialista do Capital, esta ditadura mundial absoluta da «economia» ou do «mercado» que se apresenta como em si mesma apolítica ou despolitizada (isto é, como a única realidade possível, sem alternativa), e combater o sufocante pragmatismo ou chantagem do possível como clima desta realidade político-económica instalada e a correlativa ideologia neoliberal como tautologização dessa realidade («é assim porque é assim e porque não pode ser senão assim») — e esse pensamento ou, melhor, o seu espírito radical, o espírito teórico-crítico a reactivar, o seu influxo, sopro ou inspiração, só pode vir-nos ainda de Marx, de um certo espírito «eterno» de Marx, irredutível, sempre sobrevivo e sobrevindo, em excesso sobre a sua oclusão evangélico-dogmática no ou nos marxismos. Faz-nos falta, em suma, uma «interpretação do mundo», da realidade presente, que nos relance a fé numa sua impossível transformação. O que significa concordar, também aqui, com Žižek que, invertendo a famosa proposição de Marx, a XI das Teses sobre Feuerbach de 1845 — «os filósofos não fizeram mais do que interpretar o mundo de diferentes maneiras; o que importa é transformá-lo» —, advoga que a tarefa hoje prioritária Cf. sobretudo Michael Hardt — Antonio Negri, Império, 2000, tr. port. Livros do Brasil, Lisboa. 9

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não consiste tanto em transformar o mundo mas em interpretá-lo. Entenda-se: em interpretar, crítica e clínica, a sua figura capitalista-imperial contemporânea para reabrir uma hipótese da sua radical transformação, a hipótese de uma nova política de emancipação, hipótese contingente, tudo menos garantida pela pretensa necessidade histórica da realização do comunismo, pela lógica «dialéctica» do desenvolvimento capitalista, nos termos proféticos do «materialismo histórico», da «ciência» marxista da história (pelo contrário, o capitalismo, que em vez de se aproximar do fim com as sucessivas contradições que suscita se reproduz e auto-revoluciona indefinidamente com elas, é anti-história, «fim da história», telos civilizacional). Ou seja, trata-se de renovar, de reformular, de actualizar a Ideia comunista, a Ideia de revolução enquanto ponto de vista, perspectiva de análise, essa Ideia não universal-abstracta mas «universal concreta» como o afirma Žižek em linguagem hegeliana. Trata-se em suma de lhe determinar um novo modo de existência, ou de insistência, conforme às condições problemáticas desesperadas, aparentemente adversas, obstrutivas, impossibilitadoras como nunca antes, da realidade presente. O que quer também dizer por outro lado que falar da Ideia de comunismo, do comunismo como Ideia e da «eternidade» ou trans-historicidade da Ideia, não significa fazer do comunismo uma espécie de Ideia platónica eterna, uma idealidade inapresentável como tal na realidade histórico-empírica ou só apresentável na condição de corrupção e de perversão, de simulacro (outra forma de inapresentabilidade). Nem significa igualmente fazer dele uma espécie de Ideia reguladora kantiana, de puro ideal

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igualitarista, ético-político, um ideal de Justiça ou de Democracia «numenais» elevado a princípio orientador da acção política mas, em absoluto, inacessível, irrealizável, inconstituível. De facto, a Ideia marxiana de comunismo, Ideia práxica, crítica-prática e não teórico-contemplativa nos termos da contraposição filosófica de Marx a Feuerbach nas Teses, não designa propriamente um ideal mas, como o sublinha Žižek, um movimento de reacção a antagonismos sociais reais, antagonismos que, eles e eles só, geraram e continuam a gerar essa Ideia, mesmo que num novo modo e, eventualmente, diremos nós, sob um outro nome10. É pela relação «genética» com esses antagonismos que o provocam e que lhe conferem «um carácter de urgência prática»11 e aos quais reage como movimento revolucionário de resolução e abolição efectivas desses mesmos antagonismos que o comunismo ou, melhor, a Ideia de comunismo, de revolução comunista, permanece válida e inteiramente actual.

A actualidade de Marx é a actualidade da Ideia de revolução comunista. Sem essa Ideia de uma solução «proletária» revolucionária dos antagonismos e desigualdades sociais sempre mais exasperados e naturalizados pelo capitalismo — e voltaremos Slavoj Žižek, Après la tragédie, la farce!, pp. 137-138. Cf. Karl Marx — Friedrich Engels, A Ideologia alemã (1845), tr. port. in Marx-Engels, Obras escolhidas, I, Ed. Avante, Lisboa, p. 41: «O comunismo não é para nós um estado de coisas a estabelecer, nem um ideal a que a realidade terá de se ajustar. Chamamos comunismo ao movimento real que abole o presente estado de coisas» (tr. modif.). 11 Slavoj Žižek, ibidem, p. 142. 10

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de autoconsciencialização. As novas tecnologias informáticas, internet, redes sociais, vieram acelerar a possibilidade, já visível nas recentes revoltas populares «contra todas as expectativas» no mundo árabe, de um comum globalizado, mobilizado internacionalmente por um espírito comum, por uma comum exigência de democracia não simplesmente política mas económica, social, etc. É uma globalização do comum, e do seu poder, que ainda está só a começar. Talvez um dia se quebrem as barreiras globais do medo e o sentimento de impotência e o comum descubra a vulnerabilidade da realidade sistémica que nos domina e dos poderes que asseguram essa realidade e afastam os homens do seu próprio poder. Aguardamos esse dia com alegre pessimismo, mil vezes preferível ao optimismo triste dos esquerdistas que já só esperam um reformismo democrático ilimitado do sistema dominante.

Porquê escrever afinal sobre Marx, porquê permanecer marxista, quando o marxismo, ensombrado por conotações históricas monstruosas, crepusculizou como filosofia e como ideologia? Porquê insistir na grandeza e, mais ainda, na actualidade de Marx? Desde a República de Platão que a filosofia como teoria política sempre foi inseparável de um projecto revolucionário: em cada época a proposta de uma possibilidade política incompossível com a realidade da época, de uma comunidade por vir impossível de acordo com o campo de possibilidades dessa realidade. Marx não criou o comunismo, que o antecedeu de sécuGrandeza de Mar x

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los, mas foi quem fez essa Ideia descer do céu das utopias à vida histórica dos homens e transformar-se no grande projecto revolucionário do mundo moderno, mostrando que o capitalismo tinha trazido consigo as condições materiais (económicas e sociais) para essa transformação. E foi ele quem mostrou também porque é que esse «espectro que ronda» há-de sempre vir, voltar, regressar com esse nome ou outro, continuar a rondar o real e o possível que o conjuram. E com efeito, nestes tempos pré-apocalípticos como os designa Žižek, torna-se cada vez mais evidente que, «contra a ausência do homem no homem» como diz o poeta30, o comunismo é a única hipótese do homem.

Eugénio de Andrade, Rosto precário, Fundação Eugénio de Andrade, Porto, reed. 1995, p. 16. 30

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ÍNDICE

1. De que fracasso é o comunismo o nome? ............

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2. Actualidade de Marx ......................................... 38 3. O regresso da crítica da economia política .......... 71 4. Lógica do impossível ......................................... 102 5. A comunidade por vir ........................................ 135



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