Viagem ao País dos Tarahumaras

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VIAGEM AO PAÍS DOS TARAHUMARAS

Antonin Artaud no papel de Marat no filme Napoléon de Abel Gance (1927)

Antonin Artaud

VIAGEM AO PAÍS DOS TARAHUMARAS

tradução, organização e apresentação

Aníbal Fernandes

© SISTEMA SOLAR CRL

RUA PASSOS MANUEL 67B, 1150-258 LISBOA tradução © ANÍBAL FERNANDES, 2023

ISBN 978-989-568-078-8

1.ª EDIÇÃO, ABRIL DE 2023

REVISÃO: DIOGO FERREIRA

DEPÓSITO LEGAL 514102/23

ESTE LIVRO FOI IMPRESSO NA ULZAMA

No dia 10 de Janeiro de 1936, Antonin Artaud embarcou em Antuérpia no S.S. Albertville para viajar até ao México. Tinha nascido quarenta anos antes em Marselha; mas a sua superior inteligência de alienado fazia-o sentir-se hostil aos mecanismos orgânicos de um parto vulgar, como veio muito mais tarde a dizer numa carta a Henri Parisot: «Nasci de um útero com o qual nunca tive nada a ver, e mesmo antes disso, porque ser copulado e masturbado nove meses pela membrana, a membrana brilhante que devora sem dentes, como dizem os Upanishads, não é forma de nascermos. […] Nasci apenas da minha dor.» E numa outra carta a Marthe Robert, teve esta certeza: «Há um mistério na minha vida […] que tem por base eu não ter nascido em Marselha no dia 4 de Setembro de 1896 e ter passado apenas por lá, vindo de outro sítio, porque realmente nunca nasci e realmente não poderei morrer.»

Artaud adoeceu aos cinco anos de idade com uma meningite, brutal acidente que talvez tenha determinado num muito alto grau a sua futura oposição às engrenagens do mundo. «A infância é como a morte», escreveu um dia, «e para ela um som ou um grito está cheio de imensos fantasmas.» Numa carta a G. Soulié de Morant informa que teve, desde os seis aos oito anos de idade, «períodos de gaguez e de uma horrível contracção física dos nervos faciais e da língua.»

Tempos depois, no colégio dos maristas foi um aluno médio e diferente, já apaixonado pela literatura; prova-o a revista gratuita que ele pôs a circular (aos catorze anos de idade), onde se impunha como único redactor e não ocultava inegáveis influências de Baudelaire, Rimbaud e Edgar Poe.

Em 1914, como primeiro sinal do que viria a perturbá-lo fisicamente durante toda a vida, sofreu uma grave crise depressiva que o internou alguns meses no sanatório de Rouguière. Destruiu tudo quanto tinha escrito, e uma crise de religiosa piedade fê-lo pensar que queria ser padre. Mas dois anos depois estava com Deus um pouco mais longe; era sobretudo poeta na Revue de Hollande e tinha a equívoca vocação religiosa esbatida num intenso vaivém que o rodeava de médicos e ele recordou assim numa carta ao doutor Latrémolière: «Deram-me centenas de injecções de hectina, galyl, cianeto de mercúrio, novarsenobensol e quinby, que me fizeram cicatrizes em todo o corpo e sequelas no sistema nervoso, sem que o meu estado geral se modificasse, a não ser para pior, porque esta pretensa sífilis hereditária é falsa e as injecções lesaram-me gravemente as entranhas e o cérebro.»

Em 1919 teve pela primeira vez a tentação do láudano; e em 1920, internado no asilo de Villejuif teve a sorte de privar com o doutor Édouard Toulouse, um intelectual que fez dele secretário de redacção da sua revista Demain. Liberto tempos depois de Villejuif, Artaud instalou-se em Paris e foram-lhe abertas as portas de um outro mundo: que o fez sentir-se temporariamente dadaísta, que o aproximou de Max Jacob e de Charles Dullin, o mestre que sabia fazê-lo «encontrar velhos segredos e toda uma esquecida mística da encenação.»

Artaud, que já andava a sonhar-se como actor, conseguiu aparecer no palco de Dullin num papel insignificante: «Um dos

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meus primeiros papéis no teatro foi de um homem que surgia na última cena de um acto insípido, beato, inerte, vazio, dramático e sobrecarregado, a dizer em dois tons destituídos de alma: — Posso entrar? Posso entrar? POSSO ENTRAR? E a seguir o pano baixava.» Mas a sua personalidade estranhamente histriónica convenceu Dullin, que o fez chegar a um papel em O Avarento de Molière, à interpretação do mouro em Moriana et Galvan de Alexandre Arnoux, à de Sottiner em O Divórcio de Regnard, à de Don Luis em As Visitas de Pêsames e à do rei da Polónia em A Vida é um Sonho de Calderón. E paralelamente a estas prestações de actor fê-lo conceber trajos e cenários para As Oliveiras de Lope de Rueda e A Estalagem de Francesco de Castro.

Em 1922, Artaud era um actor-opiómano; e sentia o seu estado físico a condicionar asperamente a veleidade de exercer-se como intérprete teatral. A sua amada Génica Athanasiou pôde ler isto numa das suas cartas: «Ando agora bastante cansado. Faço um enorme esforço para suprimir o ópio. E isso causa-me pavorosos sofrimentos. Só tomo de vez em quando um quarto de dose.» Este homem perturbado conseguiu que lhe publicassem os oito poemas de Tric Trac du Ciel numa reduzida edição de cento e doze exemplares, e revelar-se ao público como o inclassificável poeta que tanta perplexidade causou ao crítico Francis de Miomandre: «É uma obra estranha, compósita ou mesmo caótica, sem fazer nenhum esforço para nos prestar qualquer ajuda. Antonin Artaud compreende-se a si próprio, faz um jogo que é pessoal, sorri aos dados que lança, faz, sim, do céu sua mesa; o céu, ou antes, o espaço, o ilimitado.»

Houve a seguir um período de Artaud sem ópio, onde uma grande parte do entorpecimento foi trocada por insuportáveis dores de cabeça: «Os entorpecimentos em parte desapareceram, mas

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para darem lugar a cefaleias ainda mais violentas, e elas mais do que nunca tiram-me o domínio do pensamento. Não posso limitar-me a banais remédios. Pensei numa imensidade de coisas capazes de lutar contra a depressão do meu cérebro; em apanhar injecções com todo o género de sucos e todo o género de soros. […] Quero tentar TUDO ou, de uma vez para sempre, acabar.»

E neste ano (o ano da morte do seu pai, capitão de navios de longo curso) também fará esta curiosa revelação: «Até aos vinte e sete anos vivi com o obscuro ódio do Pai, em especial do meu pai. Até ao dia em que o vi falecer. O desumano rigor que eu o acusava de ter para me oprimir, nessa altura desapareceu. Saiu desse corpo um outro ser. E pela primeira vez na vida este pai me estendeu os braços. E eu, que me sinto incomodado no meu corpo, compreendi que ele se tinha sentido durante toda a vida incomodado pelo seu corpo, e que nascemos para protestar contra uma mentira que existe no ser.»

Em 1924, Artaud apareceu pela primeira vez como actor de cinema. Pertenceu ao elenco de Fait divers, um filme pré-surrealista de quinze minutos, realizado por Claude Autant-Lara, em que ele é o amante estrangulado ao retardador por um marido cheio de fúria. Até 1935 fará papéis mais e menos longos em vinte filmes, dos quais valerá a pena destacar Napoléon de Abel Gance (1927), La Passion de Jeanne d’Arc de Carl Dreyer (1928), L’Opéra de quat’sous de Pabst (1931), Liliom de Fritz Lang (1934) e Lucrèce Borgia de Abel Gance (1935).

Em 1925 Artaud é um surrealista aguerrido; redige manifestos e textos que obedecem às directrizes do Movimento; aproveita esta onda para atacar Paul Claudel, para se mostrar contra a guerra de Marrocos, contra as repressões da Polónia, da Roménia e da Hungria. Mas a sua liberdade de pensamento não tarda a

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incomodar os fanáticos da sombra que vai estendendo um pano de fundo político no Movimento. Dois anos antes da sua definitiva ruptura com o Surrealismo, que ele não aceita ligado a uma posição política, neste caso a comunista, já Louis Aragon aproveitava a acidental distância de Madrid para citá-lo com acinte num discurso proferido na Residencia de Estudiantes: «Anuncio-vos a chegada de um ditador: Antonin Artaud, aquele que se atirou ao mar. Hoje assume o papel imenso de arrastar quarenta homens, que querem sê-lo, para um abismo desconhecido onde se incendeia um grande archote que nada respeita; nem as vossas escolas, nem as vossas vidas, nem os vossos mais secretos pensamentos.»

O seu projecto pessoal, teatral, a que ele chamará Thêatre Alfred Jarry, faz em 1927 as primeiras representações com Les Mystères de l’amour de Roger Vitrac, Ventre brûlé ou la Mère folle, um espectáculo musical de Artaud, e Gigone, que Robert Aron escreve com o pseudónimo Max Robur. Artaud pensa que este seu teatro vai ser reconhecido como revolucionário. Tem um programa audacioso: quebrar com o teatro da ilusão e do artifício, dar-lhe a força de uma «necessidade espiritual», fazer de cada peça uma espécie de «operação mágica» com a realidade inscrita directamente no palco, procurar atingir esse «poder de deflagração» que anda ligado a certos gestos e palavras. Embora as suas peças tenham a afluência de um público ansioso por assistir a provocações feitas à tradição teatral, as receitas não cobrem as despesas. Em Março de 1930, Artaud decide dar um fim ao Thêatre Alfred Jarry e confessa a Jean Paulhan: «Deu-me azar, e não estou interessado em que ele me ponha de candeias às avessas com os últimos amigos que me restam.»

Em Janeiro de 1936, quando faz a sua viagem ao México, já é autor publicado de obras que virão a ser consideradas pontos

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essenciais no seu trajecto literário: Tric Trac du ciel, L’Ombilic des limbes, Le Pèse-nerfs, L’Art et la mort, Héliogabale, e uma versão rescrita e «artaudizada» do romance inglês The Monk, de M.G. Lewis. Mas este viajante, obcecado por aquilo que leu sobre uma tribo de índios muito retirada e descrente da civilização branca, só está interessado em acreditar que os seus rituais vão revelar-lhe o verdadeiro sentido da vida; em acreditar que regressará à França «outro», transformado por uma iniciação que não lhe será negada, apesar da reconhecida renitência de uma tribo hostil à intromissão de curiosos, alheios aos seus costumes «de raça».

Artaud escreveu textos sobre o México que nunca chegaram a formar o livro que ele pensava intitular Viagem ao País dos Tarahumaras; que já têm sido associados com vários critérios, quanto à sua organização, e vão ser aqui reunidos por ordem cronológica. A sua idoneidade como resultado de uma experiência realmente vivida tem preocupado conscienciosos e desconfiados antropólogos. Sem outra confirmação que não seja a das suas próprias palavras, sentiram-se no direito de perguntar: Ele foi realmente iniciado no ritual do Peiotl? Chegou a estar pessoalmente em lugares considerados de muito difícil acesso, que têm desanimado outros curiosos? Terá assistido às danças dos índios tarahumaras? Ou ter-se-á apenas baseado em textos já existentes sobre a realidade que ele afirma ter presenciado? Quatro anos antes, «Galapagos, les îles du bout du monde» e «L’amour à Changaï» tinham aparecido como reportagens suas na revista Voilà, sabendo-se que Artaud nunca tinha estado em nenhum desses lugares. Mas J.M.G. Le Clézio afirma no seu Le rêve mexicain que não tem sentido levantar-se em Artaud a questão antropológica: «Seria absurdo e inútil conduzir ao nada este encantamento, este apelo de um relato de viagem procurando nele a autenticidade.»

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Évelyne Grossman, essa, pensa que «Artaud atravessou a Sierra como se atravessasse a morte»; que percorreu «um mundo de sinais sagrados, de poesia e teatro em estado puro.» E o próprio Artaud escreve que fez no México uma «descida para voltar a sair no dia.»

Há no entanto algumas certezas. A do seu irresistível desejo de aventura: «É para mim uma verdadeira aventura e com isso a agradar-me, aliás, dentro dela, uma vez que parto com grande escassez de fundos. Terei a todo o custo de contar com o que irei encontrar lá para viver. E o destino, ao que parece, não poderá deixar de falar.» Que em 2 de Fevereiro fez escala em Havana e sofreu um percalço por um feiticeiro negro lhe ter dado uma pequena espada: «Tudo o que eu tinha foi apreendido pela polícia e todos os meus papéis se perderam. Já nada tenho do que possuía e não era mais do que uns manuscritos, uma pasta e, sobretudo, uma pequena espada de Toledo com doze centímetros de comprimento, que tinha presos três anzóis e me foi dada por um negro de Cuba.» Que Alejo Carpentier conseguiu que publicassem alguns artigos seus num jornal cubano. Que desembarcou no dia 7 de Fevereiro em Vera Cruz, foi daí directamente para o México, e em 27, 28 e 29 deu três conferências na Universidade do México com numeroso público e imprensa elogiosa. Que em 18 de Março deu uma conferência na Alliance Française. Que os textos destas conferências foram traduzidos para espanhol e publicados em El Nacional Revolucionario. Que escreveu e publicou nos meses seguintes mais artigos. Que no dia 1 de Agosto pediu um prolongamento da sua permanência no México. Que no fim de Agosto partiu em direcção à Sierra Tarahumara, depois de conseguir uma pequena quantia dada pelas Belas Artes do México. Que passou todo o mês de Setembro na região dos Tarahumaras.

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Que em 7 de Outubro regressou à Cidade do México. Que El Nacional publicou traduções de «A Montanha dos Sinais» e «O País dos Reis Magos». Que em 31 de Outubro embarcou em Vera Cruz no navio Mexique e em 12 de Novembro desembarcava em Saint-Nazaire, em solo francês.

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OS TARAHUMARAS PENSADOS NO MÉXICO

O país dos Tarahumaras está cheio de sinais, formas, efígies naturais que não parecem nascidas do acaso; como se os deuses, que em todo o lado ali sentimos, tivessem querido dar um aspecto visível aos seus poderes com estas estranhas assinaturas onde a figura do homem é constantemente perseguida.

É verdade que não faltam na terra lugares onde a Natureza, movida por uma espécie de capricho inteligente, esculpiu formas humanas. Mas o caso é aqui diferente: porque foi em toda a extensão geográfica de uma raça que a Natureza quis falar. E é estranho os que ali passam, como se fossem tocados por uma inconsciente paralisia, fecharem os seus sentidos para tudo ignorarem. Quando a Natureza, por um capricho estranho, mostra de repente um corpo de homem a ser torturado num rochedo, podemos começar por pensar que apenas se trata de um capricho e este capricho nada significa. Mas quando a mesma magia inteligente se repete durante dias e dias a cavalo, e a Natureza manifesta com obstinação a mesma ideia; quando as mesmas formas patéticas regressam; quando cabeças de

1 «A Montanha dos Sinais» é, segundo parece, o primeiro texto escrito por Artaud sobre o México, enviado de Chihuaha a Jean Paulhan; mas o segundo a ser publicado em espanhol por El Nacional, em 16 de Outubro de 1936, com o título «La Montaña de los Signos». (N. do T.)

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deuses conhecidos surgem nos rochedos e um tema de morte se liberta, fazendo-o obstinadamente à custa do homem — e à forma esquartejada do homem respondem as dos deuses tornadas menos obscuras, mais libertas de uma petrificante matéria, dos deuses que desde sempre o torturaram — quando todo um país desenvolve sobre a terra uma filosofia paralela à dos homens; quando sabemos que os primeiros homens utilizaram uma linguagem de sinais e encontramos essa língua formidavelmente ampliada nos rochedos, é bem verdade que não podemos continuar a pensar que seja um capricho, e este capricho nada signifique.

Se a maior parte da raça tarahumara for autóctone e tiver caído do céu na Sierra, como ela pretende que tenha acontecido, poderá dizer-se que caiu numa Natureza já preparada. E esta Natureza quis pensar como o homem. Mas tal como ela evoluiu a partir dos homens, de igual forma evoluiu a partir dos rochedos.

Eu vi este homem nu, que estava a ser torturado, preso a uma pedra e com formas que por cima dele actuavam, e o sol volatilizava; mas não sei por que milagre óptico o homem permanecia por baixo delas inteiro, apesar de estar dentro da mesma luz.

A montanha ou eu próprio, não poderei dizer qual deles estava assombrado; mas, pelo menos uma vez por dia, fez-se evidente um análogo milagre óptico que eu vi neste périplo através da montanha.

Talvez eu tenha nascido com um corpo atormentado, com artimanhas, como a imensa montanha; mas um corpo com obsessões que ajudam; e apercebi-me, na montanha, que nos ajuda ter a obsessão da contagem. Não houve sombra que

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eu não tivesse contado, quando a sentia rodar à volta de uma coisa qualquer; e foi a adicionar sombras que eu muitas vezes consegui subir a estranhas moradas.

Vi na montanha um homem nu debruçado numa grande janela. Só tinha por cabeça um grande buraco, uma espécie de cavidade circular onde o sol ou a lua, à vez e de acordo com as horas, aparecia. Tinha o braço direito estendido como uma haste, e o esquerdo também como uma haste, mas afogado na sombra e dobrado.

Podíamos contar-lhe as costelas, que eram sete de cada lado. No lugar do umbigo cintilava um triângulo brilhante, feito de quê? Não saberei dizê-lo. Como se a Natureza tivesse escolhido esta parte da montanha para deixar a nu os sílex fechados dentro de si.

Mas apesar de aquela cabeça estar vazia, a toda a sua volta os recortes da rocha impunham-lhe uma determinada expressão que a luz de hora a hora matizava.

Aquele braço direito estendido para a frente e contornado por um risco de luz não indicava arbitrariamente uma direcção… Procurei descobrir o que ele anunciava!

Ainda não era meio-dia quando encontrei esta visão; eu ia a cavalo e avançava depressa. Mas pude ainda assim reparar que não estava a ser confrontado com formas esculpidas, mas com um determinado jogo de luzes que se acrescentava ao relevo dos rochedos.

Os índios conheciam esta figura; pela sua composição, pela sua estrutura, pareceu-me que obedecia ao mesmo princípio a que toda a montanha, por troços, obedecia. Na linha do braço havia uma aldeia rodeada por uma cintura de rochedos.

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E vi que todos os rochedos tinham a forma de um peito de mulher com dois seios perfeitamente desenhados.

Vi oito vezes o mesmo rochedo que fazia estender no solo duas sombras; vi duas vezes a mesma cabeça de animal que tinha presa na goela a sua efígie; vi, a dominar a aldeia, uma espécie de enorme dente fálico com três pedras na ponta e quatro buracos na sua face externa; vi todas estas formas a pouco e pouco passarem até à realidade.

Pareceu-me que lia em todo o lado uma história de parto na guerra, uma história de génese e caos com todos estes corpos de deuses esculpidos como homens e estas estátuas humanas truncadas. Não havia uma única forma intacta, nenhum corpo que não me aparecesse como que saído de um recente massacre, nenhum grupo onde eu não pudesse ler a luta que o dividia.

Encontrei homens afogados, meio comidos pela pedra, e em rochedos mais altos outros homens que se esforçavam por afastá-los dali. Noutro lugar, uma enorme estátua da Morte tinha na mão uma criancinha.

Há na Kabbala uma música dos Números; e esta música, que reduz o caos material aos seus princípios, explica com uma espécie de matemática grandiosa como a Natureza se ordena e dirige o nascimento das formas que ela retira do caos. E tudo o que eu via parecia-me obedecer a um algarismo. As estátuas, as formas, as sombras davam sempre o número 3, 4, 7 e 8, que se repetia. Os bustos de mulheres truncados chegavam ao número 8; o dente fálico, a que eu já me referi, tinha três pedras e quatro buracos; as formas volatilizadas chegavam ao número 12, etc. Volto a repetir: é possível admitir-se que estas formas sejam naturais; mas a sua repetição não é natural.

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E ainda menos natural os Tarahumaras repetirem as formas do seu país nos rituais e nas danças. E estas danças, que não nasceram do acaso, obedecem à mesma matemática secreta, à mesma preocupação do subtil jogo dos Números a que toda a Sierra mostra obediência.

Ora, acontece que os Tarahumaras semearam com sinais, sinais perfeitamente conscientes, inteligentes e de acordo uns com os outros, esta Sierra habitada e que sopra um pensamento metafísico nos seus rochedos.

Em todas as voltas dos caminhos vêem-se árvores voluntariamente queimadas, com a forma de uma cruz ou a forma de seres, e é vulgar estes seres serem duplos e estarem de frente uns para os outros, como se quisessem manifestar a dualidade essencial das coisas; e vi esta dualidade ser restituída ao seu princípio num sinal com a forma de fechado num círculo, que me surgiu marcado a ferro em brasa num grande pinheiro; outras árvores tinham lanças, trevos, folhas de acanto rodeadas por cruzes; aqui e além, em lugares inacessíveis, estranguladas gargantas de rochas, desenvolviam-se em procissão linhas de cruzes egípcias com asas; e as portas das casas tarahumaras mostravam o sinal do mundo dos Maias: dois triângulos opostos, com os vértices ligados por um traço; traço que é a Árvore da Vida e passa pelo centro da Realidade.

Caminhando através da montanha, estas lanças, estas cruzes, estes trevos, estes corações folhosos, estas cruzes compósitas, estes triângulos, estes seres que se voltam uns para os outros e se opõem para testemunhar a sua guerra eterna, a sua divisão, a sua dualidade, despertavam em mim estranhas memórias. De repente lembrei-me de que a História faz referência a Seitas com o hábito de gravarem nos rochedos os

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mesmos sinais que os homens usavam sobre si esculpidos em jade, batidos sobre ferro ou cinzelados. E dei por mim a pensar que este simbolismo dissimula uma Ciência. E parece-me estranho que o povo primitivo dos Tarahumaras, com rituais e um pensamento mais velhos do que o Dilúvio, tenha dominado esta ciência muito antes de a Lenda do Graal aparecer, muito antes de se ter formado a Seita dos Rosas-Cruzes.

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ÍNDICE Apresentação ............................................................ 7 OS TARAHUMARAS PENSADOS NO MÉXICO A montanha dos sinais ...................................... 17 O país dos Reis Magos ...................................... 23 O ritual dos reis da Atlântida ............................ 27 Uma raça-princípio .......................................... 33 OS TARAHUMARAS PENSADOS NA FRANÇA Quatro cartas a Jean Paulhan ............................ 41 A dança do Peiotl ............................................. 53 Quatro cartas a Jean Paulhan ............................ 67 A raça dos homens perdidos .............................. 73 Duas cartas a Henri Parisot ............................... 79 Suplemento à viagem ao país dos Tarahumaras ... 87 Uma nota sobre o Peiotl ................................... 103 O ritual do Peiotl nos Tarahumaras ................... 105 Tutuguri, o ritual do sol negro .......................... 133

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