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América Latina e suas conexões invisíveis

AMÉRICA LATINA E SUAS CONEXÕES INVISÍVEIS

Por Enrique Blanc

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No circuito musical latino-americano, o Brasil sempre teve um lugar de destaque, dada a sua produção musical potente e a magia que caracteriza os incontáveis sons aí gerados. Entretanto, o país é visto pelo restante da América Latina como um território cercado por muros e pouco aberto ao diálogo continental. Ninguém pode minimizar a quantidade de compositores brasileiros que deram ao mundo movimentos e estilos que vão da bossa nova ao mangue beat, passando pelo tropicalismo; ao falar de Jobim, Elis, Caetano, Os Mutantes, Chico Science, Tribalistas, para mencionar só alguns artistas de impacto global, invariavelmente surge a pergunta: por que esse país extremamente apaixonado por música, que está muito além do que é importado dos EUA e da Inglaterra, é tão pouco propenso ao intercâmbio com aquilo que é composto e cantado nos países com os quais faz fronteira?

BRASIL E A INEXPLICÁVEL CONJUNTURA CULTURAL

Ao visitar o site do Ibermúsicas (ibermusicas.org), não apenas encontraremos a frase “Programa de fomento das músicas Ibero-americanas” como poderemos ler histórias como a seguinte: “A cantora e compositora brasileira Ana Paula da Silva inicia uma turnê que a levará por lugares na Argentina, Chile e Uruguai”. Ou notícias como: “O bem-sucedido grupo brasileiro BaianaSystem fará shows na Espanha e em Portugal”, entre outras envolvendo artistas do país.

Bem, os artistas brasileiros devem levar em consideração as possibilidades que o Ibermúsicas pode oferecer para o desenvolvimento de suas carreiras, especialmente no cenário de incerteza criado pela política do atual governo brasileiro para a área da cultura. Isso é importante, já que há o interesse de países da América Latina em promover um intercâmbio com o Brasil, o que é evidenciado pelas redes já criadas dentro do mercado da música, que ajudam na circulação de artistas pelo território latino-americano, português e espanhol.

Causa estranheza a inexplicável pretensão do Brasil de deixar de ser membro do Mercado de Indústrias Culturais do Sul (Micsul), uma plataforma para “conhecimento, divulgação, promoção, circulação e comercialização” da cultura da região sul da América Latina. Mesmo assim, o fato de que finalmente decidiu permanecer dentro do Ibermúsicas é uma luz de esperança em um caminho que, hoje, infelizmente está ofuscado por cortes no orçamento de projetos culturais e pelas tentativas de censura que temos ultimamente.

ANTES

No final dos anos 1980, aconteceu no México um fenômeno musical que alterou de diversas maneiras sua relação cultural com o restante da região. Surgiu o chamado “boom do rock mexicano” no qual tiveram destaque grupos como Caifanes e Maldita Vecindad e, posteriormente, Café Tacvba, Santa Sabina e Molotov, entre outros.

O auge de uma coleção de canções que fizeram sucesso nas rádios públicas, universitárias e em algumas frequências comerciais foi precedido no país por uma iniciativa da RCA/Ariola, a gravadora multinacional que, em 1987, editou localmente a coleção “Rock en Tu Idioma”: uma série de discos que permitiu que grupos e artistas como os espanhóis Radio Futura e Los Toreros Muertos e os argentinos Miguel Mateos e GIT fossem conhecidos e circulassem pelo México, semeando pela primeira vez a ideia de um mercado comum em todo o continente, pelo menos no rock, no qual a música pudesse ir e vir, acelerando sobre a via Panamericana ou navegando de ambos os lados do Atlântico.

Desde então, pode-se afirmar que existe um intercâmbio ativo nos países nos quais se canta em espanhol, o que possibilitou o êxito massivo, em momentos distintos, de nomes como Soda Stereo, Mano Negra, Aterciopelados, Babasónicos, Bunbury, Bomba Estéreo e Mon Laferte.

Em 1991, os Paralamas do Sucesso, sentindo-se seduzidos por essa aventura de dimensões continentais, decidiram traduzir suas músicas mais populares para o espanhol e produzir um álbum voltado para o mercado hispânico, que foi lançado pela EMI, gravadora a qual estavam associados na época.

Nesse sentido, Herbert Vianna intuiu que, apesar da distância entre o português e o castelhano, algo podia ser feito para conectar - se com o público de fora do Brasil. No ano seguinte, os Paralamas – como são conhecidos no México – realizaram duas turnês e se aproximaram do circuito de rock latino-americano como ninguém havia feito antes.

A este insuficiente comércio cultural entre Brasil e América Latina em geral pode-se somar o êxito prévio de figuras do pop como Roberto Carlos e Nelson Ned; as esporádicas colaborações entre músicos de rock, como a participação de Fito Páez no “Unplugged” dos Titãs; a música que Rubén Albarrán, do Café Tacvba, gravou com Mundo Livre S/A; ou os duetos de Julieta Venegas com Marisa Monte, Otto e Lenine. Mas se resumia a isso (talvez a alguma outra coisa mais).

O país é visto pelo restante da América Latina como um território cercado por muros e pouco aberto ao diálogo continental

HOJE

A era musical pela qual transitamos atualmente, marcada pelo auge dos mercados musicais no circuito independente ibero-americano e pelas redes que surgem em seu interior, motiva um novo modelo de aproximação, com maiores possibilidades para que qualquer membro da indústria criativa, sem se importar com sua procedência, possa se aventurar em outros cenários. Um exemplo disso é a banda Francisco, El Hombre. O quinteto brasileiro-mexicano tem conseguido de maneira esperta fazer-se presente em diversos países e colocar-se como um novo embaixador da música brasileira na América Latina. Uma iniciativa emulada por artistas como Ava Rocha e Curumin, que também se mostram interessados em conhecer mercados hispânicos.

A circulação de artistas brasileiros no resto da América Latina não é coisa simples, especialmente se considerarmos as características de alguns mercados musicais, como o mexicano e o argentino. Do primeiro, deve-se levar em conta a hegemonia da música anglo-saxã, cujo consumo chega a bater, em certas áreas, os talentos locais. Já do segundo pode-se dizer que, de maneira similar ao Brasil, possui um mercado muito fechado em si mesmo, no qual domina a música doméstica – em toda a sua variedade de gêneros: rock, tango, pop, folclore, cumbia – e a música que sai dos EUA e do Reino Unido.

É importante considerar também que o Brasil tem uma região, especialmente aquela que abrange a Amazônia, que compartilha alguns pontos culturais em comum com outros países, como Bolívia, Colômbia e Venezuela. A existência de povos originais com expressões próprias é uma delas. Ainda assim, poucos são os esforços para incentivar a criação de vínculos.

É bem sabido também que há uma tendência do atual governo brasileiro em ignorar o intercâmbio cultural com os outros países do continente. Isso gera um panorama incerto, no qual as conexões musicais que vinham sendo tecidas de alguns anos pra cá significavam uma possibilidade importante para seguir alimentando o espírito de cooperação e aproximação que houve naquele momento com Herbert Vianna. A reinclusão do Brasil na plataforma Ibermúsicas representa uma opção de integração dos artistas do país com o restante da América Latina, em momento que agora parece complicado dentro de suas fronteiras.

A internet levanta uma série de possibilidades que facilitam que projetos musicais possam se engajar em uma internacionalização: a distribuição digital – levando-se em conta que a América Latina é a região em que mais cresce o consumo de música digital – e as consequências favoráveis que uma boa estratégia de redes sociais pode gerar.

Mas hoje é importante considerar as vantagens que eventos como a SIM São Paulo, no Brasil, ou, para citar alguns outros que tiveram crescimento importante, Fiempro, em Guadalajara, México; Circulart, em Medellín, Colômbia; e Imesur, em Santiago, Chile, oferecem em relação à aproximação entre profissionais do meio. Isso representa, sem dúvida, uma ferramenta poderosa para gerar a circulação em ambas as direções: da América Latina para o Brasil e vice-versa.