Ontológica e etimologicamente antagonizando com a atenção, momento ativo da experiência, o que nos afeta está num momento passivo, só verdadeiramente notado quando nos chama a atenção. Em outras palavras, ao ser notado, o que estava no momento passivo aciona a atenção, esse modo de direção da consciência que nos faz dar conta de algo já presente. Tudo o que é acessível à consciência, cuja origem é perceptiva (pertinente aos sentidos), nos afeta e já nos afetava antes de percebermos uns elementos entre outros, antes de atentarmos para eles e, só então, lhes atribuirmos importância.
Se essa leitura for interrompida e erguermos os olhos acima das linhas e da página que as contém, perceberemos coisas que, sucessivamente, nos afetam mais do que outras, isto é, se sobressaem mais intensamente. Não importam agora os possíveis motivos de isto que vemos contar mais do que aquilo que também podemos ver, mas que, entre o que está disposto ao olhar, algo é mais ou menos atraente para nós. Importa constatar que, no plano da percepção – mas valeria também para a memória, para a imaginação e para a reflexão –, uma coisa nos chama, variável ou invariavelmente, mais do que outra.
Pergunto: o que chama a sua atenção? Na vida desperta, mesmo sem nos darmos conta disso, a atenção é continuamente convocada, mesmo que não sintamos a intensidade do chamado, pois a diferenciação que faz algo passar da afeição à atenção já age na simples imersão de algo qualquer no plano perceptível. A atenção, assim, tem origem na intensificação de algo que nos afeta e se sobressai entre os estímulos e acontecimentos evidentes na consciência.
Podemos pensar que as intensidades primárias das afeições correspondem a uma ordem vital da sobrevivência e nos encaminham à nossa própria animalidade. Se essa afirmação convida à lógica baseada na noção das ciências biológicas, naturalista, de inscrições genéticas de instintos e impulsos em benefício da continuidade da espécie, podemos dispensar o convite e, em vez disso, sustentarmos a atenção junto à fenomenalidade.
Observando atentamente as várias coisas que nos afetam e imaginando as outras, de que podemos ter consciência, é possível denominar a presença de cada uma delas, independentemente de como surgem para nós, como vivências. Essa denominação proposta no seio da fenomenologia clássica não diz respeito só àquilo de que estamos conscientes, mas se estende a tudo que sustenta a experiência atual com a sua própria ocultação à consciência, isto é, a tudo que precede a atenção consciente e sem o que faltariam elos na cadeia de sentido, e, ainda, a tudo aquilo que não faltaria ao sentido atual, mas que pode, simplesmente, vir a ser notado.
Na consciência intencional, atenção e afeição são correlatas ao que se doa à percepção como figura e fundo. Portanto, qualquer coisa sujeita a ser notada é uma vivência, inclusive hipóteses, mistérios, dúvidas e desentendimentos, havendo também uma infinitude de vivências que não notamos. Não é essa infinitude que chamamos acima de afeição?
A mesma a que eventualmente atendemos com atenção? Uma vivência assim, ou uma afeição qualificada dessa maneira, ao se destacar, pode ser chamada de sobrevivência – é merecido. Quando se trata de uma legalidade, isto é, de uma estrutura da manifestação perceptiva, entendemos o porquê da afirmação na abertura deste parágrafo – as intensidades primárias das afeições correspondem a uma ordem vital da sobrevivência –, coerente
pele e, muitas vezes, parte de nossa identidade. Grosso modo, esses padrões podem ser chamados de funcionais.
Retomando os raciocínios introdutórios, a percepção do espaço pode ser descrita como revestida por um entrelaçamento de diversas camadas de acesso e relação com o mundo. Na camada mais cognitiva da percepção, vigora o atravessamento do entendimento que o apreende geometricamente; logo, toma-se certa distância das coisas possibilitada pela mediação abstrata e pela objetificação do espaço. Essa mediação, todavia, se mistura às demais camadas da percepção, numa síntese, inserindo nelas os “efeitos” do que se supõe explicativo, racional e científico, dando à ordem do cálculo a capacidade de mensuração homogeneizada das distribuições do que está no espaço, diferenciando-as por valores quantitativos. Sim, é verdade que não percebemos a espacialidade mundana tirando medidas nem fazendo cálculos constantes. Mas o fato de termos aprendido e incorporado uma abstração do espaço, como propõe a matematização geométrica, retroage e indicia uma afeição carregada pela presunção de valores quantificáveis a tudo quanto se apresenta e é distribuído à percepção. Se não contabilizamos incessantemente as coisas por suas medidas, o simples fato de presumirmos que as coisas estão “todas” sujeitas a essa quantificação tem força para se inserir como um valor objetivo que expropria de nós mesmos, de nossa afeição primária e de nosso juízo, a justa palavra sobre sua importância. Assim, onde vigora o entendimento no registro perceptivo, a maneira como nos exercitamos fisicamente, por exemplo, não é notada como efetiva em virtude do que sentimos durante e após sua execução, mas pelo valor atribuído a ela desde mensuráveis relações espaço-temporais, conforme diferentes parâmetros científicos, como as tabelas de gasto calórico. Portanto, a racionalidade também participa e atua em nossa geografia afetiva. Nesse caso, mesmo sem ativarmos o cálculo, sua atuação destitui o valor dos sentimentos afetivos, nos tornando afetivamente céticos em relação aos sentimentos, ao mesmo tempo em que nos torna afetivamente apegados a valores quantificáveis pela razão calculadora. Nesse espectro, o valor do exercício físico só é tributável ao que diz a sua quantificação.
Aqui, o contraste entre percepção infantil e percepção adulta é ilustrativo. Afinal, como em parte considerável da infância não há a camada de entendimento geométrico atravessando a percepção, esse e outros padrões ainda não se estabeleceram. A corporeidade das crianças se dispõe espontaneamente mais aberta, porosa e imersa nas facetas sensíveis do mundo, motivo pelo qual alguns de seus comportamentos são, com frequência, tão disruptivos para os adultos. As condutas infantis são maleáveis, por assim dizer, e pouco fechadas às expectativas de esquemas, o que ocorrerá gradativamente no processo educativo para que as crianças aprendam e se invistam de padrões culturais, apresentando o mundo comum que as antecede, permitindo sua inserção e participação na comunidade humana em que convivem. Não é sem outras cargas de juízo de valor, mas é sempre baseado nesse contraste fundamental, que, pejorativa ou elogiosamente, o comportamento de um adulto será chamado de infantil. Mais porosas ao mundo, e por isso também mais vulneráveis, as crianças estão igualmente mais sujeitas à flutuação e imprevisibilidade dos
afetos, abertas a um campo de percepção inaudito e tornado inaudível pelo adulto, a não ser, talvez, quando esse se deixa levar e habitar pela abertura infantil.
Introduzida e incorporada à herança cultural, a criança fará a transição para a vida adulta se impregnando de afetos cujas relevâncias são socialmente designadas. As fontes e os sentidos desse relevo socioafetivo são, em grande medida, desconhecidos, obscurecidos e implícitos, sendo presentificados como maneiras de sentir, isto é, como a afetividade psicológica a que nos referimos anteriormente. É na espessura dessa larga medida que, ao serem incorporados, os afetos agem em nós disponibilizando-se como paisagens com seus diferentes relevos e valores, ou seja, com intensidades positivas e negativas, atrativas ou repulsivas, tão mais efetivas na determinação de nosso comportamento quanto menos advertidas e refletidas, operando pré-reflexivamente. As padronizações dessas paisagens agem em nós na forma psicossocial de preconceitos, preferências, discriminações, hierarquias morais, mas também, eventualmente, de ceticismo à sensibilidade e apego à racionalidade a que nos referimos e com os quais, queiramos ou não, também nos orientamos. Valores quantificáveis tributam, como vimos, a efetividade do exercício físico. Esse é um exemplo entre muitos outros, como o da autoestima moral, que atualmente pode ser inflada ou fraturada pela quantificação de curtidas em redes sociais. Entretanto, somos introduzidos à idade adulta com a responsabilidade de nos posicionarmos quanto aos valores que regem nossa conduta. A discordância ou a concordância em relação a valores que podem, no âmbito psicossocial, agir em nós inadvertidamente – ou estruturalmente – depende de seu exame.
Nós procuramos, como indivíduos e sociedade, nos valer do pensamento crítico e fomentá-lo. É ele o principal legado da filosofia para a humanidade, desdobrando-se historicamente nas ciências, entre elas a psicologia, que procurará, justamente na aderência a esse legado, desvendar processos como os que abordamos aqui. Todavia, a história do pensamento crítico e da psicologia é fortemente marcada pelo afastamento da corporeidade. Não deve ser de se estranhar, portanto, que o pensamento crítico tenha desenvolvido recursos escassos para se converter em mudanças consistentes na esfera perceptiva. O adulto já está plenamente instalado em funcionalidades sociais, investido nelas e por elas. Quando a razão crítica se dedica a isso, ela o faz de cima abaixo, isto é, da abstração à concretude. Diferentemente, o contato com a arte, mas também com certas modalidades da cultura corporal e movimento, enquanto contato existencial, ou seja, ressonante, tem potenciais para ocasionar alterações de baixo para cima. Por isso o impacto com a experiência estética dessas modalidades e da arte, a exemplo do que pode despertar o contato com as crianças, tem caráter disruptivo, viabilizando-se como um potencial de reorganização perceptiva.
Entretanto, é preciso admitir que nós saltamos diretamente da incorporação da herança cultural à sua crítica e à menção da possibilidade de reorganização perceptiva, deixando de observar a sua positividade funcional em nossas vidas. É a ela que voltamos agora para, em grandes linhas, continuar a situá-la nas diferentes fases da vida. Começamos na infância e chegaremos ao envelhecimento. Em sua socialização e, mais particularmente,
Podemos agora conjugar algumas das consequências disso no quadro do que nos interessa, as relações do corpo com seu movimento e o espaço. Essa conjugação, contudo, é reflexiva, portanto, ela não se dá sem o pronome oblíquo referindo o próprio sujeito que a executa. Digamos que o pronome oblíquo que permite essa conjugação é marcado pelo signo da saúde, tema que, por razões óbvias, sempre acompanha a questão do envelhecimento.
Tendo como referência social dominante a utilidade, o sentido de eficácia motora em nossa sociedade segue, invariavelmente, o trajeto associado às fases da vida de ascensão, estabilização e decadência. A constatação dessa referência é determinante, porque sua problematização nos abre a outras possibilidades referenciais. Ao repassarmos o tema da saúde camada a camada, a exemplo do que fizemos com a análise da percepção, compreenderemos como certas proposições da cultura corporal de movimento existencialmente enraizadas no quiasma, fonte da vitalidade, reorganizam o envelhecimento como outro modo de estar no mundo, modo pleno e dissociado da decadência, sem contrariar as alterações que se impõem ao organismo.