Revista E - abril/2022

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INÉDITOS

ALINE BEI

ANTÔNIO

Ilustrações: Luyse Costa

sentir pena de algo é enxergar no outro uma miséria que é tua, meu pai dizia e agora que ele se foi eu morri nas pernas, ele que me fazia correr pelo bairro corpo parado é corpo alvo de doenças do espírito. nessas corridas, ele gostava de conferir se as casas que não viraram prédio seguiam resistindo como a dele, a mesma que estou agora enquanto empacoto a multidão de objetos que um morto sempre deixa para trás. aqui, (pega o taco) neste piso solto de madeira cósmica reencontro não só a criança que fui mas também o seu tropeço que em hora desconhecida perderá os seus vapores em silêncio, exatamente como as luzes dos fogos de artifício. meu pai adorava essa casa, se sentava naquela cadeira azul. bebia seus vinhos de garrafa densa, nunca me contou de onde tirava aquilo, talvez do fundo de um navio pirata. ele enchia o copo, o mesmo do pingado e me dizia numa mistura de santo, sambista e filósofo da sensação de pertencimento que ele lia na boca dos meus primeiros anos ou de um urso que eu tive chamado Antônio e que adoeceu, o fiz adoecer de não sei qual enfermidade só para cuidar dele como o meu pai cuidava de mim. não me tornei médica. nem sou particularmente feliz ao chegar em casa, tirar o meu casaco e vislumbrar a palidez dos meus olhos enquanto guardo as chaves na gaveta.

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