Revista E - dezembro/2022

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Revista E | dezembro de 2022 nº 06 | ano 29

Lima Barreto

Reconhecimento tardio de um gênio da literatura

Ampliar repertório Cursos livres a distância fomentam novos saberes

Utopia brasileira Exposição homenageia legado de Darcy Ribeiro

Julia Lemmertz

Atriz comemora 40 anos de carreira

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Jamilly Santos

Ex-funcionária do setor de comércio

Ela faz tratamento odontológico no Sesc Avenida Paulista.

Com a Credencial, você e sua família terão acesso prioritário a todas as atividades do Sesc em todo o Brasil.

Faça como a Jamilly! Se você trabalha ou teve seu último registro em Carteira Profissional, há até 24 meses, na área de comércio de bens, serviços ou turismo, você tem direito à Credencial Plena do Sesc, gratuitamente.

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Foto: Matheus Jose Maria

Legendas Acessibilidade

CAPA: Obra Releitura de Mona Tarsilete [série Museu de Rua] (2022), estêncil, do artista Ozi, que a define como “um híbrido de Tarsila e Leonado da Vinci, uma Mona Lisa negra, antropofágica e moderna”. A obra integra a exposição Margens de 22: presenças populares, em cartaz no Sesc Carmo até fevereiro de 2023.

Em estabelecimentos de uso coletivo é assegurado o acompanhamento de cão guia. As unidades do Sesc estão preparadas para receber todos os públicos.

Em constante transformação

Promover o bem-estar e a qualidade de vida dos trabalhadores do comércio, serviços e turismo, de seus familiares, bem como de toda a comunidade, está no cerne das ações do Sesc – Serviço Social do Comércio. Criado em 1946, por iniciativa do empresariado do setor, realiza ação educativa permanente, por meio de extensa programação nos campos da cultura, lazer, esporte, turismo, saúde e alimentação.

Trata-se de uma iniciativa que se transformou ao longo das décadas, adequando-se aos novos desafios e às condições de uma sociedade em constante mudança. Assim, o Sesc mantém a relevância de sua atuação junto ao público frequentador, compreendendo e se adaptando ao tempo presente, sem abrir mão da história da qual participou ativamente, e lançando-se ao futuro, numa perspectiva dialógica e propositiva.

Proporcionar o encontro de saberes, as trocas, a ampliação do repertório cultural e o aprimoramento interpessoal segue como um compromisso da entidade, contribuindo, deste modo, na construção de uma sociedade melhor para todos.

Leia também a revista em versão digital

Conexões da Educação

A palavra educar compreende, em seu sentido amplo e filosófico, a dimensão transformadora, disruptiva e emancipatória. Aprendemos desde o momento do nascimento e, nessa jornada, somos instigados, acompanhados, corrigidos e provocados, fazendo com que o processo educativo se dê, em sua essência, a partir das relações humanas. Deste modo, a educação, quando mediada pela tecnologia, como ocorre no ensino a distância – modalidade que vem crescendo no país –, traz o desafio intrínseco de gerar vínculos para que o processo de ensino-aprendizagem seja bem-sucedido. Reportagem desta edição da Revista E aborda o tema da educação a distância (EAD) e apresenta a diversidade de oportunidades de cursos de curta duração, inclusive na área cultural, que promovem a experimentação e a ampliação de repertório.

Em Entrevista, o diretor peruano Miguel Rubio Zapata relembra a fundação do Grupo Cultural Yuyachkani e reflete sobre a herança dos povos originários na produção teatral de seu país. Na Gráfica, imagens da exposição Utopia Brasileira – Darcy Ribeiro 100 anos, em cartaz no Sesc 24 de Maio, que celebra vida e obra do pensador. No Perfil, a trajetória do escritor Lima Barreto, cujo legado tem sido celebrado no centenário de sua morte. E no Inéditos, conto da escritora Eliane Potiguara. Boa leitura!

SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO – SESC

Administração Regional no Estado de São Paulo Av. Álvaro Ramos, 991 – Belenzinho

CONSELHO REGIONAL DO SESC EM SÃO PAULO

Presidente: Abram Abe Szajman

Diretor Regional: Danilo Santos de Miranda

Efetivos: Benedito Toso de Arruda, Dan Guinsburg, Jair Francisco Mafra, José de Sousa Lima, José Maria de Faria, José Roberto Pena, Manuel Henrique Farias Ramos, Marco Antonio Melchior, Marcos Nóbrega, Milton Zamora, Paulo Cesar Garcia Lopes, Paulo João de Oliveira Alonso, Paulo Roberto Gullo, Rafik Hussein Saab, Reinaldo Pedro Correa, Rosana Aparecida da Silva, Valterli Martinez, Vanderlei Barbosa dos Santos

Suplentes: Aguinaldo Rodrigues da Silva, Aldo Minchillo, Antonio Cozzi Junior, Antonio Di Girolamo, Antonio Fojo Costa, Antonio Geraldo Giannini, Arnaldo Odlevati Junior, Célio Simões Cerri, Cláudio Barnabé Cajado, Costabile Matarazzo Junior, Edison Severo Maltoni, Omar Abdul Assaf, Sérgio Vanderlei da Silva, Vilter Croqui Marcondes, Vitor Fernandes, William Pedro Luz

REPRESENTANTES JUNTO AO CONSELHO NACIONAL

Efetivos: Abram Abe Szajman, Ivo Dall’Acqua Júnior, Rubens Torres Medrano

Suplentes: Álvaro Luiz Bruzadin Furtado, Marcelo Braga, Vicente Amato Sobrinho

CONSELHO EDITORIAL | Revista E

Adauto Fernando Perin, Adriano Ladeira Vannucchi, Airá Fuentes Tacca, Alessandro Souza Santos, Aline Ribenboim, Ana Carolina Garcez de Castro, Ana Paula Fraay Moyses Henriques, Andre De Araujo Silva, Andrea De Oliveira Rodrigues, Barbara Cristina Roncati Guirado, Bruna Marcatto da Rocha, Bruno Seiti Momma, Carlos Daniel Dereste, Carolina Balza, Carolina Barbosa de Melo, Cinthya De Rezende Martins, Claudia Dias Perez Machado, Corina De Assis Maria, Danilo Cymrot, Danny Abensur, Edmar Rodrigues De Fátima Júnior, Eduardo Santana Freitas, Eloá De Paula Cipriano, Érika Mourao Trindade Dutra, Estevão Denis Silveira, Felipe Campagna de Gaspari, Fernanda Porta Nova Ferreira Da Silva, Gabriel Maion Gianelli Damasco, Geraldo Soares Ramos Junior, Heloisa Pisani, Igor Cardoso do Prado, Ivan Lucas Araujo Rolfsen, Juci Fernandes de Oliveira, Julia Parpulov Augusto Dos Santos, Laís Silveira De Jesus, Leandro Nunes Coelho, Ligia Helena Ferreira Zamaro, Marcel Antonio Verrumo, Mariana Lins Prado, Marina Burity Francisco, Marina Reis, Natalia Dos Reis Fernandes Silva, Priscila Rahal Gutierrez, Rafaela Ometto Berto, Renan Cantuario Pereira, Renata Barros Da Silva, Ricardo Carrero Da Costa, Ricardo Lemos Antunes Ribeiro, Roberta Lima Olimpio da Silva, Rodrigo Gerace, Romeu Marinho C. Ubeda, Roseane Silveira De Souza, Rosielle Francine Machado, Sergio Luis Venitt de Oliveira, Silas Storion Santos, Sílvia Garcia, Sofia Calabria Y Carnero, Tatiane Ferrari De Souza, Thais Ferreira Rodrigues, Thamyres Rodrigues de Araujo, Thereza De Oliveira Leite De Almeida, Thiago Da Silva Costa, Valeria Mantovani de Andrade Alves, Vitor Penteado Franciscon

Coordenação Geral: Aurea Leszczynski Vieira Gonçalves Editora Executiva: Adriana Reis Paulics • Projeto Gráfico e Diagramação: Bruno Thofer e Larissa Ohori • Ilustrações: Luyse Costa • Edição de Textos: Adriana Reis Paulics e Maria Júlia Lledó • Revisão de Textos: Cláudio Leite • Edição de Fotografia: Adriana Vichi • Repórteres: Luna D’Alama, Manuela Ferreira e Maria Júlia Lledó • Coordenação Executiva: Marcos Ribeiro de Carvalho e Fernando Fialho • Coordenação Editorial Revista E: Adriana Reis Paulics, Guilherme Barreto e Marina Pereira • Propaganda: Daniel Tonus, José Gonçalves Júnior e Renato Perez de Castro • Arte de Anúncios: Alexandre Amaral, Felipe Castro e Glauco Gotardi • Supervisão Gráfica: Rogerio Ianelli • Finalização: Bruno Thofer e Larissa Ohori • Criação Digital Revista E: Ana Paula Fraay • Circulação e Distribuição: Jair Moreira

Jornalista Responsável: Adriana Reis Paulics (MTB 37.488)

A Revista E é uma publicação do Sesc São Paulo, sob coordenação da Superintendência de Comunicação Social

Distribuição gratuita Nenhuma pessoa está autorizada a vender anúncios

Esta publicação está disponível no site: www.sescsp.org.br/revistae

Fale conosco: revistae@sescsp.org.br

Danilo Santos de Miranda Diretor do Sesc São Paulo

Cofundador do Grupo Cultural Yuyachkani, Miguel Rubio Zapata fala sobre herança dos povos originários na produção teatral e proximidade do Peru com criadores brasileiros

Cursos livres na internet ampliam repertório cultural e encurtam distância entre aluno e conhecimento

Racismo, críticas e tragédias pessoais marcaram vida e obra de Lima Barreto, um dos maiores nomes da literatura brasileira

A importância dos manuscritos como objetos históricos que guardam o pensamento de grandes nomes da humanidade

Acervo visual celebra legado do pensador Darcy Ribeiro no ano do centenário de seu nascimento

dossiê entrevista educação perfil gráfica artes visuais

p.54 p.11 p.16 p.24 p.34 p.40
SUMÁRIO
Renato Oliveira (Dossiê); Bob Wolfenson (Gráfica)

Sobre a coragem Autores abordam conceito e essência dessa virtude

Eliane Potiguara

Julia Lemmertz Atriz comemora 40 anos de carreira

Espaços culturais estendem experiência artística em lojas e livrarias abertas à convivência do público

José Maria (Encontros); Luyse Costa (Inéditos); Sesc Santo André / Guilherme Luiz de Carvalho (Almanaque)

almanaque

Cláudia Dias Perez

em
p.66 p.70 p.74 p.78 p.82
pauta encontros inéditos depoimento
P.S.
Virgínia Rodrigues
p.60
Matheus

Elenco: Amaurih Oliveira, Angélica Prieto, Arara Xestal, Cainã Naira, Chica Carelli, Clara Paixão Sales, Clara Torres, David Caldas, Ella Nascimento, Emira Sophia, Igor Nascimento, Jackson Costa, Jhonnã Bao, Júlio Silvério, Loiá Fernandes, Lucas Tavlos, Lúcio Tranchesi, Marinho Gonçalves, Mario Alves, Nara Couto, Rafael Faustino, Rodrigo de Odé, Sofia Tomic, Vagner Jesus, Vinícius Barros, Vinicius Bustani. Com a participação de Virgínia Rodrigues. A música ao vivo é executada por Caio Terra, Giovani Di Ganzá e Raiany Sinara.

encenação MARCIO MEIR EL L ES texto MONICA SANTANA direção musical JOÃO MILET MEIRELLES direção de movimento CRISTINA CASTRO
ESPETÁCULO INSPIRADO NA CONJURAÇÃO BAIANA, REVOLTA DOS ALFAIATES OU REVOLTA DOS BÚZIOS, UM DOS PRINCIPAIS LEVANTES PELA INDEPENDÊNCIA DO BRASIL, DE 1798. Sesc Vila Mariana ATÉ 29/01/2023. Quinta a sábado, 21h. Domingos, 18h. sescsp.org.br/umaleituradosbuzios
Foto: Tiago Lima

O espetáculo Museu Nacional [todas as vozes do fogo], apresentado no palco do Teatro Antunes Filho, no Sesc Vila Mariana, em outubro, celebrou os dez anos da companhia Barca dos Corações Partidos. É escrito e dirigido por Vinicius Calderoni, com direção musical de Alfredo Del-Penho e Beto Lemos.

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Matheus José Maria

35 jovens num projeto social inédito do Sesc São Paulo. Um espetáculo sobre questões climáticas e os povos da �loresta.

Sesc Pinheiros Até 12/02/2023

Sexta e sábado, 19h. Domingo, 18h. sescsp.org.br/amazonias

Coordenação artístico-pedagógica: MARIA THAÍS. Equipe de criação: Aelson Lima, Edlene Sousa, Jennifer Ramos, Kako Guirado, Marcelo Nakamura, Marcia Kambeba, Márcio Medina, Morris, Murilo de Paula, Naine Terena, Rubens Oliveira, Otávio Oscar, Patrícia Gondim, Rita Carelli, Silvana de Jesus, Tiça Camargo, Wagner Antônio, Willame Leite, Yghor Boy, Ubiratan Suruí.

Cidade para todos

como serviços e ações que as contemplem, sem preconceito ou discriminação. Com o objetivo de visibilizar as barreiras que impactam, assim como as práticas que fortalecem a vida de pessoas com deficiência nas cidades, o Sesc São Paulo realiza mais uma edição da Semana Modos de Acessar, entre os dias 3 e 10/12.

Crianças, jovens, idosos, homens, mulheres, negros, indígenas, homossexuais. As pessoas com deficiência são diversas e, assim como todos, estudam, trabalham e produzem. Como participantes efetivos da vida nas cidades, precisam de espaços acessíveis, bem

Com o tema Cidades Acessíveis - De casa para a rua, a 5ª edição do projeto conta com mais de 60 ações, entre debates, batepapos, cursos, espetáculos, exibição de filmes e práticas esportivas e de lazer. Segundo Octávio Weber Neto, técnico da área de acessibilidade na Gerência de Educação para Sustentabilidade e Cidadania, a edição deste ano "convida as pessoas com e sem deficiência a perceberem e refletirem

sobre as condições que tornam possível a participação efetiva na dinâmica urbana. Muitas vezes a atividade é acessível, mas o trajeto até ela não é. Há diversos desafios a serem vencidos desde a saída de casa, como falta de acessibilidade em calçadas, no transporte, em serviços e demais espaços, incluindo os naturais, que nem sempre consideram as necessidades de corpos diversos".

O projeto conta, ainda, com um folheto educativo com ilustrações de Gabriela Gil e textos de Silvana Cambiaghi, destacando a importância da acessibilidade nos espaços públicos assim como nas atitudes das pessoas, nos serviços e na convivência urbana. Programação completa: sescsp.org.br/ semanamodosdeacessar

Octávio Weber Neto, técnico da área de acessibilidade na Gerência de Educação para Sustentabilidade e Cidadania do Sesc São Paulo

Série de atividades visibiliza práticas para fortalecer a vida de pessoas com deficiência nos espaços urbanos
O grupo A Casa das Lagartixas compõe a programação da Semana Modos de Acessar com o espetáculo circense Birita Procura-se, sobre uma palhaça com deficiência, apresentado no Sesc Rio Preto, dia 4/12. Renato Oliveira
“A edição deste ano da Semana Modos de Acessar convida as pessoas com e sem deficiência a perceberem e refletirem sobre as condições que tornam possível a participação efetiva na dinâmica urbana”
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DOSSIÊ

DOSSIÊ

PRAZER, ESPORTE

Com direção de João Barbosa, a série documental do SescTV Vida por esporte conta, em 13 episódios, histórias de pessoas que encontraram no esporte um prazer, a melhoria da qualidade de vida, espaços de sociabilidade e a própria identidade. Neste mês, às terças-feiras, serão exibidos os episódios Regildênia, a árbitra (dia 6/12), sobre a paixão pelo campo de futebol e os desafios em exercer uma profissão majoritariamente masculina. Outro destaque é Luquinhas, o triatleta (dia 13/12), sobre o primeiro triatleta com síndrome de down do Brasil. Saiba mais: sesctv.org.br/vidaporesporte

DIREITOS HUMANOS

Fomentar diálogos plurais baseados na convivência e no respeito. Esse é o principal objetivo da ação Direitos Humanos para Todas as Pessoas, realizada pelo Sesc São Paulo neste mês. Em celebração aos 74 anos da promulgação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, pela ONU, e às ressonâncias desse feito nas leis e estatutos brasileiros, mais de 20 atividades artísticas e socioeducativas, todas gratuitas, serão realizadas em dez unidades do Sesc no estado de São Paulo. Na programação, debates, ciclo de filmes, lançamento de livro e espetáculos de teatro e de música, além de um festival de cultura e uma feira de ideias. Saiba mais: sescsp. org.br/direitoshumanos

DA FEIRA AO PRATO

O projeto Feira Feliz foi o grande vencedor na categoria Melhor Pesquisa Científica, do 12º Prêmio Josué de Castro, promovido pela Secretaria Estadual de Agricultura e Abastecimento de São Paulo. Realizado em uma feira livre da cidade de Santos, no litoral paulista, a pesquisa identificou o descarte de alimentos íntegros e em bom estado, e propôs possibilidades de aproveitamento do material na alimentação humana, no enriquecimento da alimentação animal, além de compostagem e adubação. Voltada ao combate à fome e à promoção da segurança alimentar e nutricional, Feira Feliz é uma iniciativa da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), em parceria com o Composta Santos, por meio da Secretaria de Meio Ambiente da cidade, e com o programa Mesa Brasil Sesc Santos.

Piu Dip (Vida por esporte); Freepik (Feira Feliz) Cena de Regildênia, a árbitra, um dos 13 episódios da série Vida por Esporte Projeto identificou o descarte de alimentos íntegros numa feira da cidade de Santos.
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VANGUARDA EM REVISTA

Em dezembro, as revistas literárias são as protagonistas de um projeto do Sesc Ipiranga que chega à segunda edição com uma feira, oficinas e ciclo de encontros. Até 4/12, a unidade da zona sul da capital paulista recebe o Revistaria, que abre espaço para a discussão sobre a relevância e a contribuição histórica dessas publicações para a literatura. Durante a programação, que tem curadoria de Fabiano Calixto e Pedro Spigolon, conheça revistas brasileiras e de outros países lusófonos, e participe de conversas sobre tradução literária, inovação na produção periférica e presença feminina no mercado editorial, entre outros assuntos. Confira a programação completa: sescsp.org.br/ipiranga

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UM SÉCULO DE MEMÓRIAS

No ano em que o prédio ocupado pelo Sesc Registro completa 100 anos de inauguração, a unidade do Vale do Ribeira celebra as memórias deste espaço tombado como patrimônio histórico e conhecido como o mais famoso cartão-postal da cidade. Inaugurado em 1922, o KKKK (sigla derivada de Companhia Ultramarina de Desenvolvimento Kaigai Kogyo Kabushiki Kaisha) é um complexo fabril que simboliza a imigração japonesa na região e que, desde 2016, abriga essa unidade do Sesc. Desde julho deste ano, ações comemorativas vêm sendo realizadas, como mesas de debates, oficinas, vivências, espetáculos, visitas guiadas e webséries. O objetivo é relembrar e valorizar as histórias que atravessaram o espaço no último século, além de criar recordações para as próximas gerações. Comemore com o Sesc Registro: bit.ly/kkkk100anos

Tati Vieira (Revistaria); Marcio Shimamoto (KKKK) Fachada dos galpões do KKKK, complexo fabril inaugurado em 1922 e que, desde 2016, abriga o Sesc Registro. Publicações literárias apresentadas na primeira edição do Revistaria, realizada em 2021, em formato online. Neste ano, o Sesc Ipiranga recebe revistas de países lusófonos, como Portugal, Guiné-Bissau, Angola, Cabo Verde e Moçambique.
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Pessoas que trabalham ou se aposentaram em empresas do comércio de bens, serviços ou turismo podem fazer gratuitamente a Credencial Plena do Sesc e ter acesso a muitos benefícios. São aceitos registro em carteira profissional (com contrato de trabalho ativo ou suspenso), contrato de trabalho temporário, termo de estágio e de jovem aprendiz, e pessoas desempregadas dessas empresas até 24 meses.

Para fazer ou renovar a Credencial Plena de maneira online e de onde estiver, baixe o app Credencial Sesc SP ou acesse centralrelacionamento.sescsp. org.br. Se preferir, nesses mesmos locais é possível agendar horário para ir presencialmente a uma das Unidades (compareça com a documentação necessária).

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Ricardo Ferreira
LIBERT A CÃO Ao reencontrar em suas vizinhas o apoio que precisava, Anna decide mudar o rumo da sua história. Vencedor do Prêmio SescTV no 32º Festival Internacional de Curtas-Metragens de São Paulo 5 DE DEZEMBRO, 22h30 | 7 DE DEZEMBRO, MEIA NOITE

Trajetórias cercanas

Cofundador do coletivo cênico peruano Yuyachkani, Miguel Rubio Zapata fala sobre criação coletiva e pontos de convergência com o teatro brasileiro

No primeiro plano, professores e estudantes de uma escola tradicional de Lima montam uma quermesse para arrecadar fundos para uma excursão de formatura. O evento irá comemorar o bicentenário da independência do Peru. Ao fundo, a reprodução da tela Proclamación de la Independencia de Perú (1904), do pintor Juan Lepiani (1864-1932), busca recriar o ato histórico com o general argentino José de San Martín (1778-1850) – que emancipou o país da coroa espanhola em 1821 –, além de membros da igreja e uma multidão de pessoas completamente distintas dos povos quéchua, aimará, amazônico e afrodescendente.

Nesse enredo, atores-criadores e artistas parceiros do Grupo Cultural Yuyachkani encenam Discurso de Promoción, obra que instiga o público a refletir sobre que história é essa que se perpetua nos livros didáticos peruanos. O espetáculo, criado por esse que é um dos mais significativos representantes do chamado teatro de grupo, na América Latina – e que, em 2021, expôs seu acervo na 34ª Bienal de São Paulo –, foi apresentado no MIRADA – Festival Ibero-americano de Artes Cênicas, em setembro passado.

Dirigida por Miguel Rubio Zapata, membro-fundador do coletivo que acumula 51 anos de história, a obra reforça, justamente no ano do bicentenário da independência do Brasil, as semelhanças entre narrativas de apagamento

da história dos povos originários. Nesta Entrevista, o diretor fala sobre a criação coletiva que norteia o trabalho do grupo, o intercâmbio com companhias e artistas brasileiros, e sobre a busca por uma teatralidade que dialogue, ainda mais, com as culturas tradicionais.

A criação coletiva, como você já defendeu em outras entrevistas, não é um método, mas uma atitude muito importante para o Grupo Cultural Yuyachkani. Como ela se dá?

Para nós, a criação coletiva é uma atitude que tem a ver com a resposta política que se deu na América Latina, em meados do século passado, e que é, comumente, chamada de “insurgência do teatro latino-americano”. Esse período nos instigou a criar um teatro que fosse necessário. Então, a criação coletiva é uma atitude basicamente anticolonial, porque se trata de projetar no teatro questões como quem somos e onde estamos. Ela é uma resposta política, pois dialoga com os sonhos e as esperanças dos nossos países. Também está associada a uma estrutura, que é o teatro de grupo. O teatro de grupo e a criação coletiva geram um ator-criador, e quando digo ator-criador digo artistas responsáveis pelo que dizem. A partir daí, surge a categoria de ator-criador e atrizcriadora. Portanto, a criação coletiva é, essencialmente, um novo modo de produção, e mais: um novo modo de produção anti-hierárquico que recorre a saberes de uma

Adriana Vichi 17 | e entrevista

entrevista

A criação coletiva do Yuyachkani é uma atitude que visa colher saberes do coletivo

comunidade artística que quer dialogar com o seu tempo. Creio que esse é o foco central, antes de pensar a criação coletiva como uma categoria, ou método previsível, o qual você supõe que vai gerar um determinado resultado esperado. A criação coletiva do Yuyachkani é uma atitude que visa colher saberes do coletivo.

Em setembro deste ano, o grupo se apresentou no MIRADA – Festival Ibero-americano de Artes Cênicas, que reuniu montagens de 12 países, além do Peru. Como você avalia a importância de festivais como esse para o fortalecimento do diálogo entre diferentes coletivos?

Não posso olhar o MIRADA simplesmente como uma continuidade [de outras edições]. Tenho que pensá-lo

a partir de uma crise civilizatória que é a pandemia, porque, de alguma maneira, isso é algo que ainda não terminou. Temos que pensar o que significa um teatro situado neste tempo, neste momento social e histórico. Dito isso, acredito que o MIRADA nos devolveu o encontro e o diálogo. Assisti a obras maravilhosas do Brasil, como CÁRCERE ou Porque as Mulheres Viram Búfalos [da Companhia de Teatro Heliópolis (SP), em parceria com a dramaturga convidada Dione Carlos], que traz questões da periferia de São Paulo e também dialoga com a religiosidade afro-brasileira. Ou seja, a espiritualidade e a religiosidade estão presentes como uma forma de buscar respostas. Não se trata somente de fazer um retrato do presente, mas de apontar qual presente queríamos que houvesse. Essa postura frente à realidade, de ser testemunha do seu tempo, me parece importante, e o MIRADA nos proporciona este e outros encontros que são renovadores e permitem o diálogo entre esta diversidade de teatros que somos.

Yuyachkani, nome que batiza o grupo peruano, é uma palavra quéchua que significa “estou pensando/estou me recordando”, metáfora para soma de teatralidades que se encontram nas tradições ancestrais e no contexto sociopolítico atual do país.

Musuk Nolte e | 18

Para o coletivo teatral peruano, o espectador é uma peça fundamental no processo de criação e durante a apresentação das montagens: a disposição entre palco e plateia é feita de tal modo que o espectador se vê misturado ao espaço onde ocorre a ação cênica.

Na programação do MIRADA, o grupo apresentou Discurso de Promoción, que vai ao encontro da necessidade de uma revisão da história oficial, questão que também foi levantada por outros países participantes do festival. Qual a importância de apresentar essa montagem, que problematiza o bicentenário da independência do Peru, justamente no ano em que também revisamos o bicentenário da independência do Brasil?

Primeiramente, gostaria de dizer que o Brasil, no governo anterior ao atual, aproximou-se de maneira diferente da América Latina. Antes disso, víamos um Brasil mais próximo da Europa do que da América Latina. Eu acredito que houve um processo de aproximação. Essa ênfase na Amazônia e as teatralidades que vêm do Brasil reforçaram esse laço fraterno e nos permitiram um diálogo constante com grupos e artistas pedagogos e criadores brasileiros. Discurso de Promoción parte desse olhar para o que significa a independência da América Latina e de nossos países, em

particular. Nessa obra, partimos do quadro Proclamación de la Independencia de Perú (1904), do pintor Juan Lepiani (1864-1932), conhecido como o quadro que registra o momento da independência. No entanto, esse quadro tem muitas ausências, porque nele há, apenas, os militares de costas, um povo borrado e membros da elite eclesiástica. Ou seja, esse é um quadro de um evento inexistente. Essa foi a primeira imagem que levou nosso grupo para a criação coletiva e que nos fez pensar: Como, 200 anos depois, não temos razões para celebrar nada e constatamos um Estado baseado na exclusão? A pandemia também nos revelou o mesmo. Na pandemia, nós processamos essa questão, e o que temos aqui [na montagem] é uma versão revisada dessa obra. Durante a pandemia também pudemos processar o que significa fazer arte no Peru e o que significa ser artista na terceira idade, uma vez que éramos a população de risco. Foi quase como perder nosso nome para nos tornarmos “população de risco”. Por trás dessa consciência, que eu creio que nos fortaleceu para os 50 anos do Yuyachkani, e para falar sobre os 200 anos de República, pensamos: o que nos deve essa República? E estamos muito felizes de levar ao MIRADA essa bandeira de renovação e de luta que essa obra se converteu para nós. Uma obra que tem grande aceitação, sobretudo dos jovens, que veem como este grupo está vivo, renovado e com ganas de seguir aprendendo.

Madeleine Alves 19 | e entrevista

Quando você fala sobre esse diálogo com grupos brasileiros, você já mencionou que esse contato começou nos anos 1980, em Berlim, durante um festival que reuniu coletivos da América Latina, e que ali conheceu o diretor Antunes Filho. Como foi esse momento?

Conhecemos Antunes Filho, um maestro cativante, e inclusive construímos uma amizade. Mas, posso dizer que esse encontro com o teatro brasileiro aconteceu antes, em 1970, com Augusto Boal [após o AI-5 (Ato Institucional número 5), quando o Teatro de Arena esteve no Peru com as peças Arena conta Zumbi e Arena conta Bolívar]. Depois, eu criei um vínculo com Fernando Peixoto [(1937-2012) ator, diretor e escritor] durante a criação da Escola Internacional de Teatro da América Latina e do Caribe (Eitalc) [foi em Havana que, no ano de 1987, grandes nomes do teatro sul-americano fundaram este centro pedagógico itinerante destinado a encontros de grupos e artistas em cursos e oficinas]. Mais recentemente, criamos vínculos com vários grupos brasileiros, como a cativante companheira Tânia Farias [atriz, encenadora, figurinista, cenógrafa, diretora de arte e produtora teatral da Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz, de Porto Alegre], Sérgio de Carvalho [dramaturgo, encenador e pesquisador de teatro, fundador da Companhia do Latão, de São Paulo], o Lume Teatro (Campinas-SP), Grupo Clowns de Shakespeare, Teatro de Vertigem, Oco Teatro, Grupo Galpão, Narciso Telles, Valmir Santos, André Carrera, Silvana Garcia, Nitis Jacon, Ana Julia Marko. Eu acredito que nosso vínculo com o Brasil vem se fortalecendo e se tornou um diálogo permanente.

E quais seriam os pontos de convergência entre o Yuyachkani e coletivos teatrais brasileiros? Para mim, a irreverência, essa ousadia na teatralidade brasileira, é algo de que eu gosto. O Peru está mais associado à cultura tradicional andina, e o diálogo com as teatralidades andinas são as que permitiram ao Yuyachkani ter uma identidade dialogante. Eu creio que esse permanente diálogo com os grupos brasileiros, que são para nós cativantes, e que estão pensando no Brasil e em inventar um teatro do Brasil, é o que, de alguma maneira, reflete essa semelhança com o Yuyachkani. A exemplo de Antunes [Filho], não é uma casualidade que uma de suas montagens seja Macunaíma, nome deste que é um dos mitos fundadores do Brasil. Antunes trabalhou muito essa diversidade de identidades. Podemos dizer que essa, também, é uma preocupação permanente do Yuyachkani.

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Para nosso grupo, o espectador não é um consumidor passivo, ele está no mesmo lugar [da ação cênica] e completa com sua imaginação o que a cena lhe propõe

O grupo também é uma referência na área pedagógica, na troca de saberes. Como é este braço de atuação? Primeiramente, reconhecemos o não saber. No início, éramos muito jovens, um grupo que queria fazer teatro, mas não tinha as ferramentas, tampouco nos parecia que as escolas oficiais respondiam às necessidades do tipo de teatro que queríamos fazer [há 51 anos]. Um teatro que não partisse de um texto como algo que existisse antes, mas um teatro insurgente, um teatro que pudesse ocupar qualquer espaço. Isso implicava, também, numa formação distinta. Então, decidimos fazer um exercício autodidata. E o primeiro exercício foi com a comunidade de um grupo de teatro da periferia de Lima. Jovens que nos disseram: “Vocês querem fazer teatro para o povo, então, venham para cá”. E assim foi. Formamos um espaço pedagógico a partir do não saber. E assim temos uma experiência pedagógica totalmente horizontal: não tem professor nem aluno. Todos compartilhamos essa necessidade de ter uma atitude

política pelo conhecimento, um saber em função desse teatro que queríamos fazer: um teatro que dialogasse, que se reconhecesse como parte de uma história cultural e que reconhecesse, também, sua contemporaneidade. Dessa maneira, introduziu-se no grupo uma consciência de revisar cada processo. Ou seja, cada processo de obra gera uma reflexão, um conhecimento e, em alguns casos, teorias sobre o que estamos construindo. Isso foi se organizando, e agora temos um grupo em que os atores e as atrizes realizam oficinas com o objetivo de compartilhar esses conhecimentos. Esses saberes estão abraçados com a diversidade e com o reconhecimento de como uma teatralidade do Yuyachkani gerou reconhecimento da diversidade que somos como pessoas. A diversidade não como caos, mas como riqueza necessária para essa negociação intercultural que é a grande atitude que necessitamos na América Latina. Quer dizer, não somente reconhecer nossas diferenças, mas também termos um chão em comum para nos comunicarmos. Aí surgem semanas intensivas pedagógicas e um laboratório que fazemos para grupos e atores que vêm de todo mundo, sobretudo da América Latina. Essa peça que trouxemos, Discurso de Promoción, por exemplo, não é somente do grupo, mas também de parceiros. Muitos deles são jovens atores formados e outros são pessoas que passaram por outros cursos e que confirmam esse diálogo permanente de investigação.

Como o Yuyachkani borra as fronteiras entre artista e espectador? Qual o papel do público nas ações cênicas do grupo? Eu não poderia imaginar o teatro do Yuyachkani sem os movimentos sociais. Então, esse espectador exigiu um protagonismo, um lugar. Não é o espectador passivo, que compra um ingresso e entra numa sala fechada para assistir a um espetáculo. O espectador está na rua, na ponte, no pátio de um colégio, na igreja. E esse espectador, se a ele não interessar o que apresentamos, vai embora.

Sinto que nós ainda não dialogamos com nossas culturas tradicionais de maneira suficiente
Adriana Vichi 21 | e entrevista

É o espectador transeunte que se interessa quando os temas que você trabalha e as formas com as quais trabalha podem, de alguma maneira, ter a ver com seu imaginário. Então, para mim, e para nosso grupo, o espectador não é um consumidor passivo, que está contemplando algo, mas um espectador que está no mesmo lugar [da ação cênica] e que completa com sua imaginação o que a cena lhe propõe. Eu creio que essa relação da cena com o público dialoga com as festas tradicionais andinas. Isso nos permite definir a dramaturgia do espetáculo, que eu diria que é a organização de uma ação num espaço compartilhado, onde estamos todos e todas num espaço em comum. Essa relação também está na forma como se negocia o corpo do espectador dentro desse espaço compartilhado. Acredito que a pandemia colocou em crise esse relacionamento, porque o corpo como esse lugar de onde nasce o trabalho se tornou um elemento de contágio e, inclusive, podia ser uma ameaça à vida. Acredito que estamos retomando esses vínculos a partir de um cuidado, e pensando que aquilo que importa é esse espaço em comum, e esse vínculo com o espectador é fundamental. Por exemplo: quando eu dirijo, penso como se eu fosse vários espectadores e, a partir daí, posso organizar a ação nesse espaço.

Ou seja, é preciso provocar o espectador?

Permanentemente. Para que, assim, ele saia de seu lugar cômodo, e para relacionar o que tem a ver aquilo a que ele está assistindo com sua realidade. Eu diria que se alguém vê o Yuyachkani a partir das categorias ocidentais, pensaria: “Essa gente nunca fez teatro. Onde está o teatro clássico?” Não está. Então, o que nós fazemos é dar um testemunho de nosso tempo, confessar que vivemos. E nessa confissão, somos testemunhas ativas.

Que futuro o grupo Yuyachkani imagina para as artes cênicas na América Latina?

Eu acredito que na América Latina, em meados do século passado, havia uma resposta a um tipo de teatro. E creio que essa resposta, essa moderna tradição, dialogou com os movimentos sociais que nos formaram e que nos deram uma identidade e uma resposta, essencialmente, política. Porém, eu sinto que ainda não indagamos o suficiente nosso vínculo com as identidades originárias, porque nós somos herdeiros de uma imposição. A língua

chega à América Latina não para dialogar, mas para impor, e esse é um exercício de poder. Então, nós não podemos assumir que o teatro seja um gênero literário – a literatura dramática é apenas um componente. Portanto, essa bandeira de luta de meados do século passado foi muito importante para nos reconhecermos e vermos como dialogam nossas teatralidades com nossas propostas contemporâneas. Eu sinto que aí há o que chamamos de “uma raiz rompida”, uma raiz que foi violentamente desestruturada, e que se impôs um teatro do padre [pai], que é hispânico ou português, no lugar de um teatro da madre [mãe], que é o teatro da pachamama [na língua quéchua quer dizer “mãe-terra”].

E como seria um teatro com base nessa preocupação com a natureza, com a vida na Terra? Um teatro baseado nas ritualidades, em vínculos comunitários e reciprocidade, no vínculo com tudo o que está vivo. Quando falamos de uma teatralidade de convivência, não podemos falar somente dos seres humanos, mas do convívio com todos os seres vivos, com os animais e as plantas. Eu sinto que nós ainda não dialogamos com nossas culturas tradicionais de maneira suficiente, além de achar que o teatro é uma construção cultural historicamente determinada, o que significa que não temos porque pensar no teatro como uma repetição, como uma cultura que impõe valores e que é preciso dar continuidade a esses valores. Cada momento histórico, cada geração, cada comunidade tem todo o direito de indagar sobre sua própria cultura e gerá-la no presente.

Assista ao vídeo com trechos desta Entrevista com o diretor, pesquisador e cofundador do Grupo Cultural Yuyachkani, realizada pela Revista E durante a sexta edição do MIRADA – Festival Ibero-americano de Artes Cênicas, em setembro de 2022, no Sesc Santos.

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Nosso vínculo com o Brasil vem se fortalecendo e se tornou um diálogo permanente

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O disco O HERÓI DAS ESTRELAS E A ANJA ASTRONAUTA , de CELSO SIM , apresenta 11 canções de JORGE MAUTNER e NELSON JACOBINA em arranjos dedicados às crianças de todas as idades, com participações de DENISE ASSUNÇÃO, LIA DE ITAMARACÁ , TULIPA RUIZ e outros.

educação

Na plataforma de educação a distância do Sesc São Paulo estão disponíveis 13 cursos livres, como Consumo, resíduos e sustentabilidade, apresentado pela atriz Thainá Duarte.

REPERTÓRIO ampliar

Cursos livres de educação a distância democratizam acesso ao conhecimento e instigam aprendizado de saberes diversos POR MARIA JÚLIA LLEDÓ

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Matheus José Maria
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Algumas pessoas são guiadas pela curiosidade por novos saberes. Outras testam o interesse por um assunto, o que pode determinar a escolha por uma graduação ou curso de especialização, por exemplo. As razões são inúmeras e as motivações, as mais diversas possíveis. O fato é que há um número crescente de brasileiros que se matriculam em cursos livres de educação a distância (EAD), modalidade que ganha novos adeptos ano após ano. E esse processo foi impulsionado pela pandemia, quando escolas, universidades e instituições culturais tiveram que fechar as portas de suas instalações físicas, voltando seus olhares e investimentos para cursos remotos.

“Com certeza, a pandemia acelerou esse tipo de formação. Curiosamente, o convite para que eu fizesse um curso EAD veio antes da pandemia, no início de 2020.

Naquele momento, esse formato não era tão comum e pretendia dar conta de um público distante das grandes capitais, como possibilidade de pulverização e democratização do conhecimento”, conta a iluminadora cênica Marisa Bentivegna, que realizou o curso Iluminação Cênica, disponível na plataforma EAD do Sesc São Paulo [Leia mais em Multiplicar conhecimento]. “Logo depois, com o início da pandemia, o contato não presencial virou uma necessidade concreta, então, muitos cursos regulares, como em escolas e universidades, e cursos livres, precisaram aderir ao formato online”, relembra.

A relação das pessoas com a internet se intensificou, trazendo uma mudança de hábitos e ampliando a frequência de acessos ao universo digital. Como resultado dessa hiperconexão, muita gente buscou ocupar o tempo livre aprendendo novos conteúdos, segundo observa Leonardo Martins, professor colaborador do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP). “Muitas pessoas, preocupadas

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educação

em ‘não parar a vida’, viram na EAD a oportunidade de continuar se aprimorando. Eu também me engajei nisso”, compartilha Martins, que conduziu o curso Pensando bem: lógica, razão e fake news, disponível na plataforma EAD do Sesc São Paulo.

De acordo com o pesquisador em educação online Márcio Rafael Cruz, essa oferta de cursos remotos também foi incrementada pelo número de professores que ficaram inviabilizados de ministrar aulas presenciais durante a pandemia. “Sem dúvida, o surgimento de mais cursos online seria inevitável. Mas, as condições geradas pela pandemia catalisaram esse cenário por vários motivos: minhas pesquisas sugerem que esse aumento esteja diretamente relacionado, prioritariamente, à possibilidade de gerar renda ao produtor do referido conteúdo. Ou seja, a necessidade também gerou e potencializou a oportunidade”, analisa o especialista, que é doutorando em educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

No curso Construindo o futuro: introdução alimentar para bebês até dois anos, disponível na plataforma de educação a distância do Sesc São Paulo, a nutricionista Rachel Francischi compartilha conhecimentos de nutrição infantil para promover a saúde da criança.

BENEFÍCIOS À VISTA

Aprender um idioma ou uma nova área de conhecimento é uma prática recomendada por especialistas da saúde por estimular conexões através de um processo chamado neuroplasticidade – em regiões cerebrais envolvidas na memória e na atenção. Dessa forma, o interesse que nos move a conhecer conteúdos diversos, que não necessariamente estejam ligados à nossa profissão ou área de estudo, contribui para aumentar nossa reserva cognitiva. Algo essencial no processo de envelhecimento, já que há perda de neurônios com o passar dos

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Ricardo Ferreira

É A CHANCE DE UM JOVEM EXPERIMENTAR UMA ÁREA DE TRABALHO ANTES DE SE DEDICAR A UMA FORMAÇÃO MAIS APROFUNDADA

Marisa Bentivegna, iluminadora cênica e professora

O curso Iluminação cênica, ministrado por Marisa Bentivegna, aproxima os participantes das questões técnicas e artísticas mais relevantes dessa área de atuação.

anos. Por isso, entre outras modalidades de ensino, cursos livres no ambiente digital também estão alinhados à busca por bem-estar e longevidade.

São muitas as opções oferecidas por instituições culturais que procuram encurtar a distância entre quem deseja aprender e especialistas. É o caso do Museu de Arte de São Paulo (Masp), o Museu da Imagem e do Som (MIS), a Casa das Rosas, o Instituto Tomie Ohtake, o Itaú Cultural e a Plataforma Veduca – que hospeda alguns cursos livres da Universidade de São Paulo (USP). A partir de videoaulas gravadas, ou transmitidas ao vivo (em plataformas de videochamadas e lives), desvelam-se conteúdos como: história da arte, cinema e literatura. “A gratuidade de boa parte desses cursos é um incentivo a mais para que as pessoas continuem estudando e aprendendo”, pondera Leonardo Martins.

A iluminadora cênica e professora Marisa Bentivegna também destaca que esses cursos representam a possibilidade de um aprendizado específico em regiões do país onde não existem escolas profissionalizantes. “Também é a chance de um jovem experimentar uma área de trabalho antes de se dedicar a uma formação mais aprofundada”, observa. Para o pesquisador Márcio Rafael Cruz, “esses modelos de curso podem revelar novas formas de entender o desenvolvimento do profissional do futuro”.

Isso porque, ele complementa, “o desenvolvimento de competências e habilidades está cada vez mais diverso, e não apenas nas mãos de instituições de ensino”. Dessa forma, muitos desses cursos servem, inclusive, como “porta de entrada” para quem aspira uma graduação, mestrado ou especialização, mas ainda tem dúvidas.

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FIQUE ATENTO

O ensino de cursos livres a distância também impõe seus desafios. “Como tudo isso é meio novo, nós, professores, normalmente não fomos preparados para o formato virtual. Vamos desenvolvendo a nossa didática adaptada à EAD, predominantemente na base da tentativa e erro”, nota Martins. O professor também aponta que a interação com os alunos é muito mais difícil. “Se na sala de aula vemos os seus rostos e conseguimos inferir se eles estão entendendo ou não, se eles acharam graça ou não de uma piada feita pelo professor etc., no formato EAD, nós costumeiramente não fazemos ideia do que está acontecendo do outro lado da tela”, alerta. Somase ainda, em alguns casos, a necessidade de aulas presenciais. “Em áreas mais técnicas, como a iluminação cênica, é necessária uma experiência presencial complementar para o aprendizado da manipulação dos equipamentos, o que é inviável remotamente”, sinaliza a iluminadora cênica Marisa Bentivegna.

Também é preciso separar o joio do trigo antes de se inscrever naquele curso pelo qual você se interessou. Para isso, busque informações sobre a instituição ou organização que o oferece, pesquise sobre quem vai ministrar as aulas e cheque se o conteúdo oferecido tem como base fontes seguras. “Precisamos ter cuidado nessa escolha. Vemos muitos cursos disponíveis e aqueles que chegam até nós não são, necessariamente, os melhores, mas sim aqueles que fazem mais investimento em tráfego pago. Esse é outro cuidado que precisamos ter”, orienta o pesquisador em educação online Márcio Rafael Cruz.

O professor Leonardo Martins percebe, no retorno que recebe de seus alunos, os benefícios da oferta de cursos livres no formato EAD. “Como a internet torna o acesso mais fácil, nossa expectativa é que pessoas que talvez nunca teriam acesso a esses conteúdos tenham mais chance de estudar e aprender. Eu recebo, com frequência, mensagens de alunos que se inspiraram a partir dali a estudar mais e a fazer um mestrado ou outro aprimoramento. É um trabalho árduo, mas recompensador”, acrescenta.

ESSES MODELOS DE CURSOS PODEM REVELAR NOVAS FORMAS DE ENTENDER O DESENVOLVIMENTO DO PROFISSIONAL

DO FUTURO

Márcio Rafael Cruz, pesquisador em educação online e doutorando em educação pela PUC São Paulo

Na imagem, os atores e palhaços Fernando Sampaio e Marcelo Castro, que juntos a Fernando Paz e Filipe Bregantim da Companhia de Circo e Teatro LaMínima, realizaram o curso Fundamentos de Palhaçaria e Comicidade Física, disponível na plataforma de educação a distância do Sesc São Paulo.

Matheus José Maria
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educação

educação / para ver no sesc

MULTIPLICAR CONHECIMENTO

Em consonância com o caráter de educação permanente que pauta todas as atividades realizadas pelo Sesc São Paulo, a plataforma de educação a distância (EAD) concentra e organiza, desde 2020, diferentes conteúdos em cursos nas áreas de artes visuais e cênicas, cinema, sustentabilidade, arteeducação, lazer, alimentação, música, entre outras. Hoje, mais de 43 mil pessoas estão cadastradas na plataforma, que já recebeu pedidos de universidades para que seu conteúdo seja incluído

Como exercitar o pensamento crítico é uma das questões trabalhadas no curso Pensando bem: lógica, razão e fake news, conduzida pelo professor Leonardo Martins.

como material complementar em cursos de graduação.

“A Plataforma EAD do Sesc São Paulo é um convite para que mais pessoas ampliem seu repertório cultural. São cursos que promovem o primeiro contato do participante com um determinado assunto. Os inscritos também têm acesso a apostilas para que possam replicar o conteúdo apreendido, e esse é outro braço da plataforma. Esperamos que a pessoa que fez um de nossos cursos se sinta

apropriada do conteúdo para poder multiplicá-lo”, explica Cláudia Dias Perez, coordenadora do núcleo de Conteúdo Integrado do Sesc.Digital.

Atualmente, 13 cursos estão disponíveis – quatro deles lançados em 2020, três em 2021 e seis em 2022, nos quais 35 mil pessoas estão matriculadas. Neste mês, mais um curso será lançado: Ciclismo e Lazer, com o cicloativista Willian Cruz, idealizador do portal Vá de Bike. E, para 2023, estão previstos cursos de fotografia e de noções básicas de Língua Brasileira de Sinais (Libras).

Confira alguns dos cursos livres e gratuitos disponíveis na Plataforma EAD do Sesc São Paulo:

Em Noções básicas de desenhos e narrativas de quadrinhos, o desenhista e quadrinista Rafael Coutinho compartilha conceitos básicos e macetes.

Ricardo Ferreira (Pensando bem: lógica, razão e fake news); Reprodução (Noções básicas de desenhos)
Que tal aprender e replicar conteúdos disponíveis na plataforma de educação a distância do Sesc São Paulo?
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ver no sesc / educação

Noções básicas de desenhos e narrativas de quadrinhos

O desenhista e quadrinista Rafael Coutinho convida os alunos para uma viagem pelas etapas de construção de uma HQ: conceitos básicos, materiais, linguagens e as principais técnicas, com demonstrações práticas do roteiro à arte final.

Viola caipira

O instrumentista Ivan Vilela apresenta técnicas e dicas para tocar viola, utilizando elementos e ritmos da música caipira para estimular a prática associada à autonomia, com improvisos e incentivo à composição.

Iluminação cênica

Ministrado pela iluminadora cênica Marisa Bentivegna, o curso

apresenta entrevistas com Chico César, Nelson Baskerville, Marcelo Romagnoli e Cristiane Paoli Quito, especialistas nas áreas de música, teatro e dança. Os relatos são mesclados com informações técnicas sobre refletores e outros equipamentos mais encontrados nos espaços artísticos.

Abordagem triangular e o ensino de arte na educação infantil Como trabalhar as artes visuais com crianças de 3 a 5 anos? O curso tem como eixo norteador a Abordagem Triangular, proposta de ensino de arte para crianças sistematizada, há 30 anos por Ana Mae Barbosa, pioneira na arte-educação. As seis aulas, elaboradas por Ana Mae e Sidiney Peterson Lima, são conduzidas juntamente às arteeducadoras Analice Dutra Pillar, Valéria Peixoto de Alencar e Rita Noguera e o artista Moacir Simplício.

Consumo, resíduos e sustentabilidade

A Fubá Educação Ambiental, startup especializada em criar experiências socioambientais inclusivas, elaborou o curso que tem o objetivo de ajudar os alunos a terem atitudes mais sustentáveis no cotidiano. A apresentação é da atriz Thainá Duarte.

Pensando bem: lógica, razão e fake news

Como o bom uso da racionalidade pode nos ajudar em variadas situações: das conversas cotidianas à tomada de decisão sobre que produto comprar ou em que candidato votar.

O pesquisador Leonardo Martins apresenta o básico sobre interpretação de gráficos e tabelas, probabilidade, causalidade e outras técnicas lógicas conectadas a situações cotidianas.

Ricardo Ferreira (Abordagem triangular); Reprodução (Viola caipira) Pioneira na arte-educação, Ana Mae Barbosa (ao centro), junto aos arte-educadores Sidiney Peterson Lima, Analice Dutra Pillar, Valéria Peixoto de Alencar e Rita Noguera, e o artista Moacir Simplício, conduzem o curso Abordagem triangular e o ensino de arte na educação infantil
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Aprenda técnicas e dicas com o músico e professor Ivan Vilela no curso Viola caipira para

GÊNIO de um ECOS atemporal

Viver no Rio de Janeiro do início do século 20 significava ter grandes chances de adoecer em meio a epidemias de febre amarela, gripe espanhola, peste bubônica e varíola. Esta, por exemplo, vitimou, somente em 1904, cerca de 3.500 moradores da então capital federal. Outras enfermidades ceifavam talentos artísticos cujos destinos eram definidos ao nascer no seio da pobreza e da marginalidade. À população negra estava designada uma existência ainda mais excludente, mesmo com o movimento abolicionista e o governo republicano que emergiam. Esse cenário hostil e desigual viu surgir, porém, Afonso Henriques de Lima Barreto (1881-1922), definido pelo historiador Caio Prado Júnior (1907-1990) como “o maior e mais brasileiro dos nossos romancistas” – e um gênio marcado pelo racismo e pelas tragédias que transpassaram sua trajetória.

“Lima Barreto foi um ferrenho denunciador da discriminação étnica e de classe, do colonialismo cultural, do bacharelismo e de outros males ainda reinantes na sociedade brasileira. Isso é constatado tanto em sua obra ficcional quanto nos artigos e crônicas de sua obra jornalística. E seu posicionamento foi a causa principal do boicote a seu trabalho, por muito tempo, e de sua morte prematura, aos 41 anos”, afirma o pesquisador Nei Lopes. A trajetória do autor de Clara dos Anjos (1948), nascido em 13 de maio de 1881, sete anos antes da promulgação da Lei Áurea é, portanto, pontuada por obstáculos dolorosos que seguem evidenciando sua brilhante resiliência e espírito de vanguarda.

O brilhantismo literário de Lima Barreto e a dura realidade que conduziu sua vida e obra
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Autor desconhecidoDomínio público / Arte: Nortearia

LABIRINTOS PARTIDOS

Filho de João Henriques de Lima Barreto e Amália Augusta Pereira de Carvalho, tipógrafo e professora, respectivamente, o pequeno Afonso foi alfabetizado em casa, pela mãe – que morreu de tuberculose quando o garoto tinha oito anos. Seu primeiro biógrafo, Francisco de Assis Barbosa (1914-1991), autor de A Vida de Lima Barreto (1952), aponta uma particularidade determinante na vida do escritor: João Henriques era próximo aos liberais partidários da monarquia, em especial de Afonso Celso de Assis Figueiredo, o Visconde de Ouro Preto (1936-1912), padrinho do escritor. Tal proximidade permitiu ao jovem ingressar no prestigioso Colégio Pedro II, de alto padrão para a época. Na instituição educativa, pôde sentir, diariamente,

a origem humilde contrastar com a dos colegas secundaristas oriundos da elite carioca – todos brancos.

Anos antes, João Henriques foi nomeado almoxarife das Colônias de Alienados da Ilha do Governador [que funcionaram de 1888 a 1924], obrigando a família a se mudar para as proximidades dos anteriormente chamados manicômios – uma imagem recorrente na vida e obra do escritor, conforme relatou a historiadora e antropóloga Lilia Schwarcz na biografia Lima Barreto –Triste Visionário (Companhia das Letras, 2017). “Em cima de um dos morros da Colônia São Bento se destacava a casa dos Barreto, agora arranjada como um novo lar. (...) O que o encantava, mesmo, era o terreno que cercava a residência e o bambuzal verde. O certo é que os arredores da ilha serviram de inspiração para seu romance mais

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Litografia de Pieter Godfred Bertichem / Acervo Biblioteca Nacional / Domínio público

conhecido, Triste Fim de Policarpo Quaresma (publicado pela primeira vez em 1911, na forma de folhetim). O Curuzu, o lugar para onde o protagonista da história se muda, apresenta muitos paralelos com a imagem que Lima guardou do local de infância”, descreve a autora.

Ao entrar na Escola Politécnica, em 1897, Lima Barreto já colaborava com jornais e outras publicações, como a revista Fon-Fon. O curso de engenharia, no entanto, seria interrompido antes da conclusão. Aos 21 anos, testemunhou um intenso surto psicótico do pai, de quem dependiam financeiramente os três irmãos, menores de idade. A grave doença mental de João Henriques o fazia oscilar entre picos de euforia e meses de profundo silêncio, e representou um trauma na vida do futuro escritor – que mergulharia no alcoolismo pouco tempo depois e experimentaria, ele próprio, duas internações em instituições psiquiátricas.

OLHARES TENAZES

A saída econômica para a família veio com a admissão de Lima para o cargo de escrevente no quartel-general do antigo Ministério da Guerra. O ano era 1903, e o escritor passou a se dedicar ao serviço público à medida em que conquistava visibilidade como jornalista –especialmente pela veia irônica, contundente. Sobre a passagem pelo ensino superior, por exemplo, escreveria uma crônica mordaz, publicada no livro póstumo Bagatelas (1923). “E todos eles, ignorantes e arrotando um saber que não têm, vêm para a vida, mesmo fora das profissões a cujo exercício lhes dá direito o título, criar obstáculos aos honestos de inteligência, aos modestos que estudaram, dando esse espetáculo ignóbil de diretores de bancos oficiais, de chefes de repartições, de embaixadores, de deputados, de senadores, de generais, de almirantes, de delegados, que têm menos instrução do que um humilde contínuo; e, apesar de tudo, quase todos mais enriquecem, seja pelo casamento ou outro qualquer expediente, mais ou menos confessável.”

Lima Barreto assinou centenas de crônicas e contos nos jornais Correio da Manhã, Gazeta da Tarde e Jornal do Commercio até a estreia literária, em 1909, com o romance Recordações do escrivão Isaías Caminha. Na obra, fazia uma sátira aos principais nomes do jornalismo carioca. Entre 1910 e 11, publicou os contos O Homem que Sabia Javanês e A Nova Califórnia, tidos como expoentes do gênero. Nas obras, denunciava os falsos valores da elite política e intelectual, que considerava

cínica, provinciana e vulgar. Tal como Machado de Assis (1839-1908), Lima Barreto somou a literatura à atuação na imprensa. Os escritores possuíam outros pontos em comum: ambos eram afrodescendentes, retratavam um Rio de Janeiro que se modernizava, eram críticos ferrenhos da atividade jornalística, apreciavam a vida boêmia e faziam uso do humor em suas narrativas.

VOZES LIVRES

Seleção de obras, publicadas em vida e postumamente, atesta a importância de Lima Barreto

Recordações do escrivão Isaías Caminha (1909): Em seu romance de estreia, Lima explora temas como racismo e exclusão social. Embora tenha sido publicada em meio a um certo “otimismo” pós-Lei Áurea, a história de Isaías mostra um cotidiano bastante cruel para os negros. Apesar de o protagonista ser um jovem culto, isso não basta para que ele seja inserido na sociedade. Na introdução da versão editada pela Penguin e Companhia das Letras, em 2010, o crítico Alfredo Bosi defende que esse é um dos grandes romances da literatura brasileira.

Diário do hospício & O cemitério dos vivos (1953): Publicada postumamente, em 1953, essa obra é dividida em duas partes (autobiografia e ficção), resultado da experiência de Lima como interno no Hospital Nacional de Alienados. Relançada em 2017 pela Companhia das Letras, a edição conta com notas e imagens inéditas, que oferecem uma nova contextualização do ambiente manicomial, além de incluir, ao final, uma reportagem de Raymundo Magalhães, datada de 1920.

Contos completos de Lima Barreto (Companhia das Letras, 2010): O volume reúne todos os contos publicados em vida por Lima Barreto, resgatados por meio de pesquisa em edições originais, jornais e revistas da época, e mais dezenas de inéditos, retirados de seus manuscritos. A organização, apresentação e notas são da historiadora e antropóloga Lilia Schwarcz.

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ROTAS ANTAGÔNICAS

Para além das convergências, Lima e Machado tiveram prestígio e aceitação social díspares. O autor de Dom Casmurro (1899), um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras (ABL), foi reconhecido, ainda em vida, como um dos nomes fundamentais da literatura em língua portuguesa. Lima Barreto, por sua vez, era visto como ressentido, amargo e problemático. Quando tentou filiar-se à mesma ABL, em 1917, teve o anúncio da candidatura rejeitado antes mesmo de se tornar oficial, em evidente boicote. As diferenças entre duas figuras tão potentes se tornaram explícitas em 1921, quando o escritor Austregésilo de Athayde (1898-1993) assinou uma carta aberta –elogiosa – destinada a Lima Barreto. Publicado no periódico A Tribuna, Athayde procurava, em seu texto, delimitar distinções entre as duas obras.

A resposta de Lima Barreto, entretanto, foi categórica: “Gostei que o senhor me separasse de Machado de Assis. Não lhe negando os méritos de grande escritor, sempre achei no Machado muita secura de alma, muita falta de simpatia, falta de entusiasmos generosos, uma porção de sestros pueris. Jamais o imitei e jamais me inspirou. Que me falem de Maupassant, de Dickens, de Swift, de Balzac, de Daudet – vá lá; mas Machado, nunca! Até em Turguêniev, em Tolstói podiam ir buscar os meus modelos; mas, em Machado, não! (...) escrevo com muito temor de não dizer tudo o que quero e sinto, sem calcular se me rebaixo ou se me exalto”, desabafou Lima. A carta-resposta, publicada na década de 1940 na Revista do Brasil, é parte do acervo de missivas do Instituto Moreira Salles (IMS).

A FLOR E O ESPINHO

Após a primeira internação, em 1914, Lima Barreto seria aposentado compulsoriamente do serviço público. Àquela altura, era conhecido por episódios desencadeados pelo alcoolismo. Circulava pelo subúrbio carioca e pelos cafés literários com a mesma destreza, apesar do estigma dado aos portadores de transtornos mentais à época. No final de 1919, passou a se corresponder com as principais figuras do modernismo em São Paulo, como Mário de Andrade (1893-1945) e Di Cavalcanti (18071976). Já com Monteiro Lobato (1882-1948) estabeleceu uma troca de cartas consistente a partir de 1918.

Em 1920, um novo surto. Levado ao Hospital Nacional de Alienados [em atividade entre 1841 e 1944], às vésperas do Natal, permaneceu internado por dois meses. Ao deixar a instituição de saúde, Lima voltou a publicar na imprensa, escrevendo sobre questões de seu tempo. Em seus textos, ele criticava o futebol [herança dos ingleses], os estrangeirismos na língua portuguesa [provenientes do inglês e do francês] e os projetos de reforma urbana iniciadas pelo presidente Rodrigues Alves (1848-1919).

Mesmo não participando da Semana de Arte Moderna de 1922, Lima foi convidado pelo historiador e sociólogo Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982) para resenhar a revista Klaxon, dedicada à difusão das ideias fomentadas pelos modernistas paulistas. A crítica –encarada como negativa – desencadeou forte reação. Na edição seguinte da Klaxon, ele foi chamado, em tom pejorativo, de “escritor de bairro”, em texto cuja autoria é atribuída a Mário de Andrade. Uma injustiça final entre todas as que experimentou Lima Barreto.

Lima Barreto foi um ferrenho denunciador da discriminação étnica e de classe, do colonialismo cultural, do bacharelismo e de outros males ainda reinantes na sociedade brasileira
Nei Lopes, pesquisador
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PASSADO E FUTURO

100 Anos Sem Lima Barreto, no Sesc Mogi das Cruzes, lança luz sobre o legado do escritor

Lima Barreto inovou em estéticas e temáticas que anteciparam, em algumas décadas, a crítica elaborada pelo modernismo da Semana de 1922. No centenário do eventomarco das artes no país, o legado do literato carioca também vem sendo celebrado e recuperado por estudiosos do pensamento e da vasta produção do autor. No Sesc Mogi das Cruzes, o projeto 100 Anos Sem Lima Barreto reúne diversas ações até dia 9/12.

MOGI DAS CRUZES

Lima e os novos Barretos Composto por artistas mogianos – Jô Freitas, Aline Piovan, Juruá, Pamela Carmo, Poeta Seu Zé, Edvan Mota, Luan Charles e Helô Ferreira –, o sarau discute a importância do escritor no contexto atual. Com microfone aberto ao público, os artistas navegam pela poesia e a música de maneira cenopoética para evidenciar os novos

“Barretos” partindo das perguntas: Quem são os jovens “barretianos”? Como as obras do escritor refletem hoje? 2/12, sexta, às 20h. GRÁTIS.

Lima Barreto na ideia e brasas serenas no lápis Conduzida pelo escritor e historiador Allan da Rosa, a oficina online instiga uma reflexão sobre projetos nacionais, sonhos, lucidez e delírios a partir das análises políticas, crônicas, críticas literárias e trechos dos diários de hospício escritos por Lima Barreto. 6 a 9/12, terça a sexta, das 19h30 às 21h30. GRÁTIS Inscrições online.

Clara dos Anjos, de Lima Barreto Com base no romance de 1948, o Clube da Leitura de Sesc Mogi das Cruzes discute como se constrói uma personagem para alertar sobre os riscos da ingenuidade numa sociedade

racista e injusta. O encontro é conduzido pelo poeta e escritor Cuti, pseudônimo de Luiz Silva. 9/12, sexta, das 19h às 22h. GRÁTIS. Inscrições online. Rua Rogério Tacola, 118, Socorro, Mogi das Cruzes. Programação: sescsp.org. br/100anossemlima

SESC DIGITAL

Tragam-me a cabeça de Lima Barreto

O espetáculo protagonizado por Hilton Cobra começa após a morte de Lima Barreto e acompanha uma imaginária sessão de autópsia na cabeça do escritor, conduzida por médicos eugenistas, defensores da higienização racial no Brasil. O registro em vídeo é resultado da live realizada pelo Sesc São Paulo no dia 12/7/2020, transmitida pelo canal do Sesc São Paulo no YouTube.

Assista: bit.ly/cabeca-lima

Anubis
Integrantes do Sarau Lima e os novos Barretos apresentam-se no Sesc Mogi das Cruzes.

FACES DE UM UTÓPICO

O legado do antropólogo, educador e pensador Darcy Ribeiro segue vivo no ano do centenário de seu nascimento

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Bob Wolfenson / Acervo Fundação Darcy Ribeiro

Ao lado: Berta Ribeiro com indígenas Kadiwéu Abaixo: Darcy Ribeiro entre indígenas Urubu-Ka’apor

Acervo Fundação Darcy Ribeiro

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Comida, casa e remédio sintetizam a utopia brasileira singela, descrita pelo antropólogo, educador, escritor e político mineiro Darcy Ribeiro (1922-1997). “O orgulho como povo. O espírito nacional, a criatividade e a alegria, isso já foi feito”, disse o autor do clássico O Povo Brasileiro (Companhia das Letras, 1995), ao resumir seu pensamento sobre o país e seus habitantes. Cem anos após o nascimento desse intelectual, mas também homem de ação, seu pensamento e legado continuam vivos, seja na defesa dos povos indígenas, na luta pela educação pública e de qualidade, e no desejo por um Brasil menos desigual. Os principais momentos de sua vida, assim como trechos de sua obra, estão, agora, reunidos na exposição Utopia Brasileira – Darcy Ribeiro 100 Anos, que o Sesc 24 de Maio apresenta até junho de 2023 [Leia mais em Pensador do Povo Brasileiro].

Darcy Ribeiro criou o Museu do Índio com o marechal Cândido Rondon, no Rio de Janeiro, em 1953; desenhou, no governo de Juscelino Kubitschek, um plano nacional para a educação; criou a Universidade de Brasília (UnB), em 1962, tendo sido o primeiro reitor da instituição de ensino; e foi ministro da Educação e ministrochefe da Casa Civil na gestão de João Goulart, período em que foi preso e exilado pela ditadura militar até 1976 – recebendo anistia três anos depois.

Já na redemocratização, idealizou os Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs), no governo estadual de Leonel Brizola, no Rio; sugeriu a criação do Sambódromo da Marquês de Sapucaí (oficialmente chamado Passarela Professor Darcy Ribeiro) em parceria com o arquiteto Oscar Niemeyer; propôs a Lei de Diretrizes e Bases da

Educação (LDB), no primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso; e defendeu a reforma agrária.

Segundo a curadora da exposição Utopia Brasileira, Isa Grinspum Ferraz, que foi assistente de Darcy Ribeiro por uma década e dirigiu a série em dez episódios, O Povo Brasileiro (2000), disponível no catálogo do SescTV, ele pertence a uma geração de humanistas da segunda metade do século 20 – da qual fazem parte nomes como Lina Bo Bardi, Glauber Rocha e Celso Furtado. Pensadores que acreditavam na construção de um projeto político e cultural amplo para o Brasil e a América Latina. “Ailton Krenak [líder indígena e ambientalista] diz que mataram Darcy várias vezes em vida, com o exílio e apagando todo o pensamento dele, tão forte e vital. Ele era um modernista, um tropicalista, que refletiu profundamente sobre o que é ser um país independente de verdade, e não colonizado, a serviço de outras nações”, afirma Isa.

Foi na convivência com diferentes povos, inclusive, que Darcy conduziu pesquisas para fomentar o conhecimento e a proteção dos povos originários, o que acabou contribuindo para a criação do Parque Indígena do Xingu, no Mato Grosso, em abril de 1961. “Polêmico, amado e perseguido, respeitado e contestado, traduzido no mundo todo, Darcy continua relevante em um país que, no século 21, ainda expõe as fraturas profundas de sua formação social. Ele foi um homem que tinha a utopia de um Brasil com justiça social, sem desigualdades, com casa, comida e escola boa, que aceite suas diferenças. Um país que ainda queremos”, aponta a curadora. Nas palavras do próprio antropólogo: “Tenho tão nítido o que o Brasil pode ser, e há de ser, que me dói demais o que o Brasil é”.

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O antropólogo se despede da mãe, Dona Fininha, em sua partida para o segundo exílio, em 1969.
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Darcy Ribeiro na praia de Copacabana, Rio de Janeiro, de volta ao Brasil, em 1976, depois do exílio.
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Acervo Fundação Darcy Ribeiro (esquerda); Ayrton Camargo / Tyba (direita)

Cortesia da artista e Mendes Wood DM São Paulo / Foto: Bruno Leão

Orbis Descriptio com Continentes n.II, de Anna Bella Geiger (2015). Acervo Fundação Darcy Ribeiro
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Arte plumária dos Urubu-Ka’apor, de Georgette Dumas (1957).
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Anoã, de Kadiwéu Grafismos Kadiwéu em papel (1948).

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Escultura de Homem com motivos andinos em cerâmica [Leia mais em Pensador do Povo Brasileiro]. To be continued... (Latin American Puzzle), de Regina Silveira.
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Coleção da artista / Cortesia Luciana Brito Galeria

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Acervo do Museu do Índio / FUNAI Brasil
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Darcy Ribeiro com indígenas do povo Kadiwéu, em 1947 [Leia mais em Pensador do Povo Brasileiro].

para ver no sesc / gráfica

PENSADOR DO POVO BRASILEIRO

Exposição revela os ideais de Darcy Ribeiro, com material artístico e pessoal do pensador

Até 25 de junho de 2023, a exposição Utopia Brasileira – Darcy Ribeiro 100 Anos ocupa o quinto andar do Sesc 24 de Maio, em homenagem ao centenário de nascimento e à atualidade do legado desse pensador humanista. Por meio do diálogo entre fotos, vídeos, objetos e documentos originais [como cartas trocadas com o escritor Guimarães Rosa e o antropólogo e filósofo francês Claude Lévi-Strauss], além de instalações, obras de arte, depoimentos e textos – a maior parte da Fundação Darcy Ribeiro –, a mostra busca trazer para a atualidade a vida e a obra desse multifacetado brasileiro utópico. “Essa não é uma mostra sobre um homem morto, mas sobre o Brasil de hoje, com uma utopia que ainda não se realizou”, destaca a curadora Isa Grinspum Ferraz.

Para o diretor do Sesc São Paulo, Danilo Santos de Miranda, Darcy Ribeiro se apresenta como uma figura marcante a pensar a nação. “Entre seus legados, está a tentativa de repovoar imaginários a partir de narrativas ainda não contadas ou fraturadas. A exposição pretende, portanto, que o público entre em contato com a trajetória desse pensador e do país que ele buscou interpretar, revisitando ambos a partir de um ponto de vista imerso na atualidade”, afirma.

24 DE MAIO

Utopia Brasileira – Darcy Ribeiro 100 Anos

Curadoria: Isa Grinspum Ferraz. Até 25/6/2023. Terça a sábado, das 9h às 21h. Domingos e feriados, das 9h às 18h. GRÁTIS Recursos de acessibilidade: sescsp.org.br/24demaio Visitas mediadas para grupos: agendamento.24demaio@sescsp.org.br

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GRAFIAS

históricas

Cartas,

Num mundo onde a maioria dos textos é digitada, imagine conhecer os contornos da caligrafia de Machado de Assis (1839-1908), as claves da partitura original de Chega de Saudade, canção composta por Tom Jobim (1927-1994), ou um esboço de Michelangelo (1475-1564) para calcular as medidas de um bloco de mármore em sua primeira grande encomenda arquitetônica.

A partir do contato com papéis pessoais e letras cursivas de personalidades brasileiras e internacionais, é possível mergulhar num universo íntimo, repleto de sentimentos, paixões, hesitações e vulnerabilidades. Por trás desses rascunhos, processos criativos, métodos de trabalho e bastidores de eventos históricos, revelam-se a humanidade presente em cada traço e as biografias escondidas nas entrelinhas de cada caligrafia.

geralmente não tem acesso ao processo, só ao resultado. E é por isso que há realmente uma magia quando o universo de quem escreve é revelado, e o leitor consegue mergulhar na perspectiva do autor, situar-se ao lado dele para compreender o processo que estava em curso”, analisa o pesquisador em filologia e história da língua portuguesa Phablo Fachin, professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP).

Manuscritos de Sigmund Freud, Noel Rosa, Tom Jobim, Santos Dumont, Marie Curie, Simone de Beauvoir e outras personalidades da história mundial podem ser vistos na exposição A Magia do Manuscrito, em cartaz no Sesc Avenida Paulista.

“Um manuscrito [do latim manu scriptus, ou escrito à mão] não é feito, originalmente, para ser publicado ou divulgado, apenas lido. Ele nasce de um contexto compartilhado somente entre quem escreve e quem o lerá naquele momento. O leitor final

Especialista em textos redigidos em português entre os séculos 14 e 19, em Portugal e no Brasil, Fachin explica que um filólogo serve para conhecer a história dos textos, dos autores, copistas e editores, bem como dos sentidos escondidos em suas entrelinhas, materialidades e formas de transmissão. “A escrita também tem uma história. E, para cada século, há certos modelos ensinados e padronizações. Ao pesquisar manuscritos, podemos saber a identidade de quem escreveu, em que circunstância e quem foi silenciado, por exemplo. Para um crítico, uma rasura é um pesadelo, mas, para mim, é uma beleza: ela revela um processo”, afirma Fachin, que também é autor

Acervo Pedro Corrêa do Lago
autógrafos e dedicatórias escritos à mão propõem um olhar possível por entre frestas do tempo, borrando a fronteira entre documento e obra de arte
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artes visuais

HÁ CARTAS DE AMOR, DE RUPTURA, DE CONDENAÇÃO À MORTE, DE PERDÃO.

POR TRÁS DESSES PAPÉIS,

EXISTIU GENTE DE CARNE E OSSO

do livro Descaminhos e Dificuldades: Leitura de Manuscritos do Século XVIII (Trilhas Urbanas, 2008).

Manuscritos de Tom Jobim a Oscar Niemeyer, de Santos Dumont a Pelé, passando por Ayrton Senna, Ronaldo Nazário, Grande Otelo, Nelson Mandela, Martin Luther King Jr., Marie Curie, Simone de Beauvoir e outras figuras de relevância mundial estão na exposição A Magia do Manuscrito, em cartaz no Sesc Avenida Paulista [Leia mais em Letras do tempo]. O acervo foi organizado em seis categorias: Literatura, Artes Visuais, Música, Entretenimento e Esporte, Ciência e Filosofia, e História [Antiga e Moderna, considerando, desta, apenas o século 20]. O documento mais antigo da coleção é um pergaminho de pele de cabra escrito em latim, no ano de 1153, e assinado por um papa e quatro cardeais.

Já os objetos mais recentes são uma fotografia autografada pelo ator Daniel Radcliffe vestido de Harry Potter (2003), uma foto assinada e uma carta-autógrafo da atriz Fernanda Montenegro (2018), além de uma imagem do cantor Caetano Veloso, de 1982, e um manuscrito-autógrafo com a letra da música Gravidade

(1975), ambos assinados pelo artista baiano em 2022, quando completou 80 anos.

Expostos lado a lado, os manuscritos também dialogam entre si. “Há uma conversa entre os autores [de diferentes épocas e correntes artísticas ou históricas]. Albert Einstein, por exemplo, criticava a teoria de Freud, e agora os dois estão dispostos em sequência”, destaca Fachin.

DE HOBBY A PROFISSÃO

Dono de uma das maiores coleções particulares de manuscritos do mundo ocidental, o curador da exposição A Magia do Manuscrito, Pedro Corrêa do Lago, começou a compor seu acervo ainda na préadolescência, há mais de 50 anos. “Colecionar manuscritos é algo que enriquece muito a minha vida, com o qual aprendo e me divirto. A busca é incessante e, quando encontro algo que estava procurando há muito tempo, e vejo que posso pagar por isso, é maravilhoso. Levo para casa, estudo, leio livros sobre o assunto, coloco cada documento em seu contexto histórico”, conta o curador, que compilou parte de sua coleção no livro A Magia

Acervo Pedro Corrêa do Lago
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Manuscritos da coleção particular de Pedro Corrêa do Lago: o acervo teve início há mais de meio século.

do Manuscrito (Taschen, 2021), e acaba de lançar Marcel Proust: Uma Vida de Cartas e Imagens (Éditions Gallimard, 2022), ainda sem tradução para o português.

Lago explica que a exposição que o Sesc realiza neste ano foi concebida, originalmente, para a mostra The Magic of Handwriting, inaugurada em Nova York (EUA), no verão de 2018. Mais de 85 mil visitantes viram de perto os 140 manuscritos dispostos em um mobiliário especial, projetado pelos cenógrafos Daniela Thomas e Felipe Tassara, que também veio para o Brasil. Por aqui, entraram outros manuscritos de nomes brasileiros como Tiradentes, Luiz Gama, Di Cavalcanti, Candido Portinari e Sebastião Salgado, além de artistas modernistas, escritores (Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto e Jorge Amado), músicos (Chiquinha Gonzaga, Gal Costa, Chico Buarque e Villa-Lobos), atores, atletas, políticos e outros.

“Há cartas de amor, de ruptura, de condenação à morte, de perdão. Por trás desses papéis, existiu gente de carne e osso. São pedaços de vida que estão registrados e chegaram até as minhas mãos. Assim, é possível estabelecer um contato direto com alguém que já morreu, às vezes antes mesmo de nós nascermos, como se fosse uma fração do tempo daquela pessoa a que temos acesso, capaz de conectar gerações”, destaca Lago, que ainda sonha em conseguir uma carta, ou documento, do artista plástico Arthur Bispo do Rosário (1909-1989).

MANUSCRITOS DO FUTURO

O colecionador Pedro Corrêa do Lago acredita que as próximas gerações vão escrever e pesquisar de outra forma, buscando na “nuvem” e-mails e documentos importantes, perdidos nos servidores. “Mas, um texto digitado não pode virar um manuscrito, porque pode ser reproduzido ao infinito. Já há escolas estadunidenses, inclusive, que não ensinam mais os alunos a escrever com letra cursiva: apenas letra de forma ou digitação no computador. As novas gerações escrevem cada vez menos, tanto que autógrafos e textos à mão assinados por Steve Jobs (1955-2011) [fundador da Apple], por exemplo, são raros. Porém, enquanto as pessoas escreverem, haverá manuscritos e haverá procura”, prevê.

Mesmo vivendo num mundo em que, cada vez mais, perde-se o hábito de manter um diário, de escrever cartões de aniversário ou bilhetes apaixonados, o filólogo e professor Phablo Fachin é otimista quanto ao futuro: “Meus filhos vivem conectados, porém o texto escrito para eles ainda é muito forte. Mandam recados para mim, desenham, deixam a sua marca, o seu registro, o seu legado. A criança se constrói pela escrita, antes mesmo da alfabetização. E nem por isso vamos negar a modernidade, as novas tecnologias, ou deixar de entender que tudo faz parte de um processo, e que cada dimensão e manifestação da linguagem têm as suas potencialidades”. Como diz o provérbio latino, verba volant, scripta manen t, ou seja: “as palavras verbalizadas voam para longe, enquanto as escritas permanecem”.

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LETRAS DO TEMPO

Exposição em cartaz no Sesc Avenida Paulista reúne cerca de 180 manuscritos de grandes nomes da humanidade, percorrendo um arco temporal que materializa a história

Por meio de fragmentos de histórias e memórias, cerca de 180 documentos da coleção do curador Pedro Corrêa do Lago são capazes de transmitir ao público do século 21 o poder do papel, da caneta e da escrita ao longo da história. Com visitação gratuita, a exposição A Magia do Manuscrito ocupa o quinto andar do Sesc Avenida Paulista até janeiro de 2023.

Segundo Juliana Braga de Mattos, gerente da Gerência de Artes Visuais e Tecnologia do Sesc São Paulo, essa exposição faz um arco histórico e social curioso, apresentando uma pequena parte

da preciosa coleção de Lago. “Para além de seu valor documental histórico, esses manuscritos têm mesmo algo mágico: materializam um olhar possível por entre frestas no tempo, presentes no ânimo da caligrafia, na energia dos pensamentos expressos em cartas, no preservar cuidadoso, em meio a histórias individuais de nossas memórias coletivas”, explica.

Paralelamente à mostra, o Sesc Avenida Paulista também realiza, no sexto andar da unidade, uma série de atividades educativas, de oficinas a performances, a fim de ampliar o olhar do público sobre o tema

e instigar outras possibilidades de interpretação. Os visitantes podem, ainda, fazer o próprio manuscrito na ação Escreva uma carta para, que teve início em 28 de setembro, quando a exposição foi inaugurada. Também é feito outro convite: as pessoas podem deixar um telegrama, lembrete, haicai, bilhete, poema, recado, carimbo ou texto datilografado à máquina – e endereçá-lo (ou não) a alguém. A exposição é realizada pelo Sesc São Paulo e Ministério do Turismo, com apoio cultural do Instituto Levy & Salomão.

SESC AVENIDA PAULISTA

A Magia do Manuscrito

Curadoria: Pedro Corrêa do Lago Até 15/1/2023. Terça a sexta, das 10h às 21h30. Sábados, domingos e feriados, das 10h às 18h30. Grátis. Recursos de acessibilidade:

Carol Vidal
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coragem SOBRE A

Palavra que vem do latim (coraticum), mas que se moldou no português por influência da língua francesa (courage), a coragem – cujo significado literal é “ação do coração” – navega nas águas turbulentas do medo, sentimento que domina o cenário contemporâneo. Enquanto isso, convive -se com a sensação de que a tal bravura perante os desafios sociais, econômicos e políticos esconde-se, hoje, embaixo da cama. Afinal, que virtude é essa que parece nos faltar justo quando mais precisa mos? E como despertar em si a coragem?

Essas e outras questões foram levadas à 33ª edição do Ciclo Mutações: Sobre a coragem e outras virtu des, realizada pelo Centro de Pesquisa e Formação do Sesc São Paulo (CPF) e pela Artepensamento, entre junho e agosto deste ano. Com curadoria e concepção do filósofo, jornalista e professor Adauto Novaes, o ciclo contou com a participação

de pensadores de diversas áreas, lançando suas perspectivas – histórica, filosófica, psicanalítica, entre outras – sobre o assunto. Neste Em Pauta, compartilhamos excertos de dois pensadores que participaram do ciclo.

No primeiro, a filósofa Marcia Sá Cavalcante dis socia a virtude do que parece ser o oposto da cora gem, a covardia, e ainda questiona seu propósito: “Qual o sentido de se falar em coragem num mundo que não faz mais sentido, ou seja, num mundo que parece ter perdido não só um sentido de mundo, mas o sentido do que seja sentido?”. E no segundo artigo, Adauto Novaes reforça a simbiose entre co ragem e medo. “Chegamos, enfim, a um paradoxo: não existe coragem sem medo. Para ser corajoso é preciso ter medo. Lemos em Jankélévitch [Vladi mir Jankélévitch, filósofo francês (1903-1985)] que aqueles que nada temem não são corajosos, mas cegos”, assinala o autor.

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pauta

A anarquia da coragem

Como epígrafe, um diálogo fictício

O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem, escreve Guimarães Rosa

...Viver não é coragem, saber que se vive é coragem.. [...] a coragem de ser o outro que se é, escreve Clarice Lispector

Como pensar a coragem hoje? A pergunta proposta é corajosa, pois desafia o sentimento espalhado de que hoje não faz mais sentido falar em coragem e seus heroísmos. Qual o sentido de se falar em coragem num mundo que não faz mais sentido, ou seja, num mundo que parece ter perdido não só um sentido de mundo, mas o sentido do que seja sentido?

Como falar de coragem num mundo onde o sentido se esvazia pelo modo como circula e se comunica tor nando todo sentido ambíguo e vazio quando voltado contra si mesmo? Como falar de coragem num mundo onde os próprios discursos sobre a coragem desen corajam a coragem tão logo se reproduzem e auto propagam em memes e mensagens sem fim, banali zando-se em jargões e chavões sobre a coragem? Por outro lado, como não falar em coragem num mundo que lida cotidianamente com as questões mais peri gosas e mais desesperadas: os múltiplos extermínios, a fome crescente, a miséria expansiva, o desemprego massivo, a exclusão mutiladora, a opressão econô mica, social, política, sexual, afetando toda a Terra e suas formas de vida, humanas, não humanas, pós -humanas, com uma força que excede todas as formas conhecidas de força de combate e resistência?

Se Descartes tem alguma razão ao dizer que “...é nos assuntos mais perigosos e mais desesperados que

mais se empregam ousadia e coragem...” [As Paixões da Alma, livro III, art. 173, em Os Pensadores], não será no mundo atual, tão perigoso e desesperado, que se deveria empregar com todo vigor não só uma fala da coragem, mas uma prática da coragem? Mas como en tender que num mundo devastado por tantos incên dios - da Amazônia a museus e catedrais, dos solos fí sicos aos espirituais, conceituais, sensíveis, políticos e éticos sobre os quais história e natureza se viram confrontados ao longo dos séculos - os ecos da pala vra coragem se percam na intensidade de uma apatia e desencorajamento ativos? Como compreender que hoje se tenha tanto medo da coragem, um medo que gera “o hábito que temos de olhar através das grades da prisão, o conforto que traz segurar com as duas mãos as barras frias de ferro”, como Clarice Lispector descreveu “o medo da libertação”? [O Medo da Liber tação em A Descoberta do Mundo (1984)].

Por um lado, nunca dizer “coragem” pareceu tão im potente frente ao perigo e ao desespero; por outro, nunca foi tão urgente dizer: “coragem”. Para dizer “coragem” é preciso ademais separar o dizer da cora gem com dois pontos, os “dois pontos à espera”, como os definiu também Clarice Lispector [É como se a vida dissesse o seguinte: e simplesmente não houvesse o se guinte. Só os dois pontos à espera em Água Viva (1973)], os dois-pontos de uma tomada de fôlego, o fôlego da espera de um fôlego.

Atentando para a necessidade desses dois pontos do fôlego da espera ao se dizer “Coragem”, pode-se es cutar que a agonia da coragem hoje está sobretudo ligada a uma outra agonia, a agonia da “espera”. Des cartes talvez também tenha razão ao dizer ainda que, para se empregar ousadia e coragem nos “assuntos mais perigosos e desesperados”, “é preciso que se es pere ou até que se tenha certeza de que o fim propos to será logrado, para opor-se com vigor às dificulda des com que nos deparamos” [frase retirada do texto As Paixões da Alma, livro III, em Os Pensadores].

A explicação cartesiana para o não emprego da co ragem nos assuntos mais perigosos e desesperados é a falta de espera e esperança, e ainda da certeza do que se quer alcançar e de que aquele a ser alcança do pode ser alcançado. O que Descartes não poderia

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pensar é, contudo, que hoje não cabe mais opor cora gem somente ao medo ou à covardia, mas também à apatia, ao desencorajamento e até mesmo às ideias e ideais que ressoam na palavra “coragem”. E, sobretu do, que a incapacidade de esperar ou de assegurar -se de que o fim proposto será logrado reside, antes de tudo, na falta do fim a se propor.

Que fim poderia se propor quando, por toda parte, o mundo se confronta com a ameaça e o perigo do seu fim – seja o fim do mundo natural ou do mundo histó rico? Que fim a se propor e a esperar quando o fim de uma finalidade não mais se distingue do fim de um aniquilamento, quando a lógica da instrumentaliza ção, eficácia e finalidade de tudo, a lógica do niilismo ativo do capitalismo global tende a pôr fim a tudo? Que fim propor se o sentido do fim dificilmente se distingue do fim da possibilidade de um sentido e um princípio capazes de orientar e fundamentar o pen samento e a ação? “O que é permitido esperar?” [Was darf Ich hoffen?], perguntou Kant sem imaginar que um dia essa pergunta se viria privada de sentido, uma vez que, diante do fim do mundo dos sentidos e dos sentidos de mundo, parece que não há o que nos permita esperar.

Mas por que a espera de um fim preciso e definido seria a condição para empregar a coragem nos as suntos mais perigosos e desesperados? Por que a coragem para pensar e agir nos assuntos mais peri gosos e desesperados precisa da espera e certeza de

Como falar de coragem num mundo onde os próprios discursos sobre a coragem desencorajam a coragem tão logo se reproduzem e autopropagam em memes e mensagens sem fim, banalizando-se em jargões e chavões sobre a coragem?

um fim preciso e definido? Se admitirmos que o dis curso manipulador e ideológico do “fim do mundo” encobre que em questão está não o fim “de” mundo, mas o fim de “um” mundo de sentido, que fazemos a experiência de uma mutação da história do mundo e do mundo da história, será preciso considerar que nada há o que esperar, seja um mundo depois do fim do mundo, seja um nada depois do fim do mundo. Em questão está a coragem de nada esperar quando nos damos conta de que em jogo está uma mutação do mundo e de todos os seus sentidos e direções, uma mutação genética e histórica da sensibilidade e de todas as formas de inteligibilidade.

Mutação não é o mesmo que transformação e me tamorfose. Enquanto transformação e metamor fose podem ser intuídas ou previstas, já que são compreendidas como passagem de uma forma para outra que, não obstante nova, mantém alguma se melhança ou laço com a forma passada e superada, a mutação expõe todo sopro de vida para o imprevisí vel e impossível, para o que não se deixa reconhecer, assimilar ou identificar, para o informe e sem forma. Pode-se assim dizer que toda mutação implica um mutismo e uma dificuldade de reagir frente ao que ultrapassa todo horizonte de possibilidade e de com preensibilidade.

A questão que se coloca, então, é como pensar a co ragem num tempo de mutação, ou seja, num tempo que se apreende como perda de todos os princípios, sentidos e valores que sustentavam experiência de mundo, enquanto experiência da perigosa e deses perada relação entre teoria e prática, entre pensa mento e ação. (...)

Marcia Sá Cavalcante é professora titular de fi losofia na Universidade de Södertörn (Suécia). Autora de diversas obras, publicadas em dife rentes idiomas, como: Lovtal till intet: essäer om filosofisk hermeneutik (Elogio ao Nada: Ensaios de Hermenêutica Filosófica), de 2006, e Att tänka i skisser: essäer om bildens filosofi och filosofins bil der (Pensar por Esboços: Ensaios sobre a Filosofia da Imagem e as Imagens da Filosofia), de 2011.

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Sobre a coragem e outras virtudes

Medo, não, mas perdi a vontade de ter coragem (Guimarães Rosa – Grande Sertão Veredas)

OBSERVAÇÃO PRELIMINAR

Logo depois da Segunda Guerra, em artigo para o jornal Combat, Albert Camus escreve: “O Século 17 foi o século das matemáticas, o século 18 o das ciên cias físicas, e o século 19 o da biologia. Nosso século 20 é o século do medo”.

Camus reconhece não ser muito “científico” o que diz – o medo sempre dominou o homem, e o que acon teceu na Idade Média é bom exemplo – mas deve-se reconhecer que o medo passou a ser hoje uma das mais eficazes armas “invisíveis” da política. No pre fácio às Cartas Persas, Paul Valéry escreve: “Um tira no de Atenas, que foi um homem profundo, dizia que os deuses foram inventados para punir os crimes secretos”. Eles são os únicos seres que não precisam existir para reinar, como escreveu Baudelaire. Rou sseau vai além: sob a vontade absoluta do senhor, os homens “tornam-se iguais porque nada são”.

É certo que os “crimes secretos” são inventados pelos tiranos e os deuses são os mensageiros do medo! Si lenciosas, as paixões do medo governam os homens impedindo-os, ao mesmo tempo, de se governarem. O tirano joga o seu jogo. Resta ao homem criar o seu jogo contra o tirano. Mas, muitas vezes acontece o contrá rio e o medo se desdobra no seu interior: ele passa a ter medo não apenas do tirano, mas, principalmente, do medo de si. Vemos, assim, uma guerra particular – a luta do medo interior contra o medo – que tanto pode atrofiar o trabalho do espírito quanto resultar em cólera, violência contra si e contra o outro.

Diante da mecânica do progresso apenas material, é difícil admitir uma sociedade sem tirania e sem medo,

mas que pelo menos ela exista sem o consentimento do espírito. Este é o primeiro gesto de coragem. Mas a coragem hoje tende a desaparecer, valores são anu lados e “sentimentos que pareciam inquebrantáveis por terem resistido a vinte séculos de vicissitudes, transformaram-se em ruínas”. Diante das ruínas, é preciso seguir o que nos propõe Char: não ter medo, isto é, ter a coragem de nomear as coisas que nos pa recem impossíveis de descrever. Muitos pensadores opõem a covardia à coragem. É verdade.

A covardia se manifesta hoje de maneira evidente e forte na apatia diante das coisas do mundo. Mas os seres são constituídos por uma natureza de uma audácia singular: quando pensamos na coragem, eles não se reduzem nem à virtude do guerreiro da Antiguidade e à ética do combatente e muito menos à virtude viril – os chamados valores masculinos, como analisa Francis Wolff. Existe a virtude do sa ber e da ação: diante de um mundo em decomposi ção, muitos buscam uma resposta à velha questão: por que é assim e não de outra maneira?

A primeira resposta, a mais profunda, é dada pelo poeta: não me disfarço, não procuro a máscara “porque Eu sou reação ao que sou”. O primeiro mo vimento dessa reação consiste na ideia do saber porque todo pensamento já estabelecido “é menor que o próprio pensar”. Assim, lemos nos Cahiers de Paul Valéry, saber o que se é consiste no momento primordial do que vai ser “aquilo que sou”.

Não deixa de ser interessante a sequência proposta por Camus – matemática, ciências físicas, biologia – o que vai resultar no tão discutido domínio da tec nociência, da biotecnologia e do numérico digital, tríade que comanda as mutações hoje. Mas Valéry já havia antecipado este diagnóstico ao afirmar que a evolução da física tende a trocar o saber pelo po der: “A entrada em cena da teoria da energia e a da aplicação dos cálculos estatísticos à física marca uma época do espírito. Porque estas teorias consagram o abandono da pretensão de conhecer o universo físi co em si, e manifestam a resignação ao trocar o saber pelo poder. Não se trata mais de penetrar o íntimo das coisas, mas de se limitar às suas manifestações finitas, isto é, sensíveis e tangíveis – ou numeráveis”.

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A ciência, a partir do século 17, pariu um tipo parti cular de medo. Ora, sabemos que a coragem é a virtu de que pode derrotar o medo. “A coragem – diz Alain – vai diretamente e por princípio contra estes aban donos de si... E a ação, mesmo imprudente, é muitas vezes necessária contra o próprio medo: nesses ca sos, é na calma sem cólera que se reconhece a cora gem”. Mas, ao falar também do século do medo e da indiferença, a primeira pergunta é: Qual a respon sabilidade do homem no mundo contemporâneo, se a técnica é pensada como a história que substitui o homem como sujeito da história? Como diz Günther Anders no livro de ensaios A Obsolescência do Ho mem: “Fomos destronados, escreve ele, e pusemos em nosso lugar outro sujeito da história, ou melhor, o único outro Sujeito possível da história, a técnica.”

Ao ler Anders, impossível não lembrar o que diz Heidegger sobre o Ser e o esquecimento do Ser: para ele, “o Ser torna-se simples objetividade para a ciên cia e hoje simples fundo de reserva para o domínio técnico do mundo”. É certo de que estamos no limite de nos excluirmos da história através, entre outros mecanismos, de uma irresistível vontade de cultivar a “paixão da ausência” de tudo o que acontece.

Com desconfiança diante de tanta certeza de An ders, podemos retraduzir o que ele escreve de maneira menos conclusiva. Devemos pensar, por exemplo, que o Ser da humanidade – suas ações, paixões, desejos e afetos – depende hoje da tecno ciência, mas não totalmente, o que vale reconhecer no homem ainda certa potência, mesmo que muito

fragilizada. Neste sentido, Valéry é mais preciso: “Pode-se dizer que tudo o que sabemos, isto é, tudo o que podemos, acabou por se opor a tudo o que somos”. Eis o lado positivo da ciência-poder, a pos sibilidade de sermos diferentes do que somos, ter coragem para sermos diferentes. “Opor” equivale dizer que existe outro lado em luta, não quer dizer domínio absoluto e definitivo.

A frase de Valéry é cheia de nuances e nos leva a muitas interpretações; pensemos, a partir dela, a co ragem, ligada às ideias de sabedoria e poder, elemen tos indissociáveis, porque não basta saber, é preciso também ter potência – ou poder – para o exercício da coragem: muitas vezes o corajoso sabe e quer, mas não pode – saber não é poder; muitas vezes, o homem sabe e pode, mas não quer, e aí entra a figura do oposto da coragem, a covardia: por medo, por in teresse ou por egoísmo, não quer ver e agir.

Vemos hoje que a política se estrutura não apenas se utilizando da repressão, mas também pelo de sencorajamento. A perda da coragem de revoltar -se atinge não só a política, mas também os afetos e as disposições subjetivas, criando seres indife rentes a tudo. Em síntese: chegamos, enfim, a um paradoxo: não existe coragem sem medo. Para ser corajoso é preciso ter medo. Lemos em Jankélévit ch que aqueles que nada temem não são corajosos, mas cegos. Mais ainda: para ele, ao acreditar no Sofista, a coragem não existe sozinha, isolada de outros valores – ou melhor, a coragem só se tor na coragem se se construir, num laço indelével, com a justiça, a sabedoria e a prudência. (...)

Adauto Novaes é jornalista e professor. Foi di retor do Centro de Estudos e Pesquisas da Fun dação Nacional de Arte, Ministério da Cultura, por duas décadas. Os ciclos de conferências que organizou resultaram em livros de ensaios, como Tempo e História (1992), vencedor do prêmio Jabuti de 1993, na categoria ciências humanas, além de Rede Imaginária: Televisão e Democracia e O Homem-Máquina, editados pela Companhia das Letras, e A condição humana (Agir e Edições Sesc São Paulo, 2009).

Assista a todos os vídeos do Ciclo Mutações: Sobre a coragem e outras virtudes, realizado pelo Centro de Pesquisa e Formação do Sesc São Paulo (CPF) e pela Artepensamento, entre junho e agosto deste ano.

A perda da coragem de revoltar-se atinge não só a política, mas também os afetos e as disposições subjetivas, criando seres indiferentes a tudo.
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pauta

SAGRADO canto

Rodrigues fala sobre o começo da carreira em corais, o papel do teatro em sua trajetória e a participação no espetáculo Uma Leitura dos Búzios

Quando criança, o movimento físico, e voluntário, de abrir a boca vinha acompanhado da articulação de poesias e melodias. É que foi pela música que a cantora e atriz baiana Virgínia Rodrigues primeiro se comunicou com o mundo. Nascida em Salvador, em 1964, cantou em casa, na escola, depois em coros católicos e protestantes, e em procissões da Semana Santa, até ser convidada pelo encenador Márcio Meirelles para participar do Bando de Teatro Olodum, em 1994. Com o grupo, se apresentou em Zumbi e Bye Bye Pelô. Nesse último, conheceu Caetano Veloso que, surpreendido pela voz e atuação da artista, produziu o primeiro disco solo de Virgínia, Sol Negro (1997), que fez sua voz reverberar.

De lá para cá, Virgínia lançou mais cinco álbuns, sendo o mais recente Cada voz é uma mulher (2019), com composições de artistas brasileiras, moçambicanas, cabo

verdianas, angolanas e portuguesas. Atualmente, lapida seu novo projeto, Poesia e nobreza, disco e show com músicas de Paulinho da Viola e do parceiro musical de longa data Tiganá Santana, e ainda integra o espetáculo Uma Leitura dos Búzios, em cartaz no Sesc Vila Mariana. Dirigido por Márcio Meirelles, no espetáculo sobre a Revolta dos Búzios – mais conhecido como Conjuração Baiana (1798) –, ela contracena com jovens atores. Neste Encontros, registrado no intervalo de um dos ensaios da peça, Virgínia Rodrigues fala sobre o início da carreira, o reencontro com o diretor e com o tablado, além de ancestralidade e do reconhecimento do protagonismo do povo negro.

DO ALTAR AO TABLADO

A música sempre foi muito forte na minha vida. A minha formação musical é em coral de igreja.

Eu cantava no Coro de Câmara da Bahia e no Mosteiro de São Bento, mas, bem antes disso, fui protestante numa época e cantei no coral das igrejas. Isso tudo já adulta. Mas, a primeira vez que cantei em público, eu era criança. Foi numa festa na escola que a professora, ao descobrir esse meu lado, me botou pra cantar para as mães – Mamãe, estou tão feliz, interpretada e imortalizada na voz de Agnaldo Timóteo. Essa foi a primeira música que eu cantei, quando eu tinha seis anos. O que me levou à igreja sempre foi a música. Agora, foi Márcio Meirelles quem me levou ao palco. Ele me descobriu, inclusive, na igreja, quando eu estava cantando Oratório de Santo Antônio. O que eu sou mesmo é cantora. Mas, no palco [quando eu canto], a interpretação está presente. Ou seja, a cantora tem que interpretar porque existe uma poesia [na música]. Eu sou muito ligada à poesia quando

Virgínia
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Pico Garcez

escolho a música, mais até do que na melodia. Acho que acabo sendo uma atriz cantante.

CANTAR O COTIDIANO

Eu sempre abri a boca cantando. Nunca entendi isso de “ela tem uma voz potente”. Vou ser sincera. Eu abria a boca e cantava porque cantar sempre me fez muito bem. Eu cantava até na cozinha das brancas, quando era empregada doméstica. Então, eu cantava porque, primeiro, cantar pra mim sempre foi um desabafo. Segundo, porque eu gostava de cantar mesmo, e cantar distraía minha cabeça. Então, eu cantava lavando pratos, areando panela, fazendo comida. Até hoje eu tenho esse hábito na minha casa, quando estou só. Para mim, isso sempre foi normal. Eu via as pessoas falando [da minha voz], a minha avó falava, quando era viva, as amigas de minha avó, as pessoas falavam para minha mãe. Eu também fazia muita serenata para amigos e colegas do bairro onde eu morava.

ANCESTRALIDADE PRESENTE

Eu procuro nunca esquecer de onde eu vim, quem eu sou, e falar do meu povo, da minha ancestralidade e dos meus ancestrais. Agora, aos 58 anos, eu sei que faço isso com clareza, mas eu já fazia isso antes, sem perceber. Até um dia em que o Caetano, o próprio Márcio Meirelles e algumas pessoas começaram a me falar isso: que eu trazia essa ancestralidade na minha voz, mas eu não percebia. Quando canto, por exemplo, uma música que não é ponto de candomblé, mas que fala de nkisi [termo que provém da língua africana quimbundo e que,

EU PROCURO NUNCA ESQUECER DE ONDE EU VIM, QUEM EU SOU, E FALAR DO MEU POVO, DA MINHA ANCESTRALIDADE E DOS MEUS ANCESTRAIS

em muitas línguas bantas, pode se referir a um espírito, um amuleto], eu canto com nkisi. Quando canto Mama Kalunga e Massemba, que falam de ancestrais que vieram ao Brasil, eu canto pensando naquele povo que estava no navio negreiro: no meu povo e na situação deles ali, naquele navio negreiro. Então, eu canto esse sentimento.

PARCERIAS NO CAMINHO

Fui apresentada a Caetano pelo Márcio Meirelles, quando Caetano foi ver o Bando de Teatro Olodum. Estávamos ensaiando a peça Bye Bye Pelô, que foi meu primeiro espetáculo no Bando. Era um ensaio aberto para o público – Márcio gosta muito de fazer assim –, e Caetano estava lá com uma filmadora. Minha personagem ficava o tempo inteiro calada. Ele não devia estar entendendo nada: aquela mulher preta, gorda, sentada no palco, enquanto todo mundo tinha texto e se pronunciava. Menos eu. Aí, no final [do espetáculo], eu saio desse lugar e canto uma música chamada Verônica, que é uma canção da igreja católica que

fala: “Ó vós todos que passam por esta estrada, vejam se há dor semelhante à minha dor”. E Caetano me conheceu nessa hora. Ele ficou muito emocionado porque essa música, na Bahia, é tocada na Semana Santa e Caetano a ouvia na infância, em Santo Amaro da Purificação. Depois disso, foi Caetano quem fez a produção artística dos meus três primeiros discos – Sol Negro (1997), Nós (2000) e Mares Profundos (2004). Foi ele quem formou minha primeira banda, quem me levou para gravar em estúdio.

LEITURA DOS BÚZIOS

Eu fiquei muito feliz [com o convite para o espetáculo Uma Leitura dos Búzios]. Entrevistei o Márcio [em maio deste ano] no programa Terças com Virgínia, no meu Instagram. Ele, brincando comigo, falou: "Vou te trazer de volta para o teatro". Eu disse: "Tá bom, Márcio Meireles, tá bom". Levei na brincadeira. Aí, três meses depois, ele me liga dizendo que estava falando sério. Estou muito feliz, porque, primeiro, sempre gostei de trabalhar com o Márcio. No palco, tudo o que aprendi

e | 68 encontros

VILA MARIANA

Uma Leitura dos Búzios Direção: Márcio Meirelles Até 29/01/2023. Quinta a sábado, 21h. Domingos, 18h. Rua Pelotas, 141 – Vila Mariana, São Paulo (SP) sescsp.org.br/vilamariana

devo a ele. Foi ele quem me ensinou e me tornou uma profissional. Foi a partir daí que eu tive consciência do que é o palco, porque, antes, eu só tinha a experiência do que era cantar em um altar de igreja. E vou te falar, teatro é trabalho. Acho que porque demanda mais horas. Ainda mais com Márcio, que só gosta de trabalhar com elenco grande. Minha personagem é uma mulher negra africana cantando uma música para Exu, enquanto, atrás dela, passa uma procissão católica. Essa mistura está boa. As trocas com o elenco também têm sido de uma energia boa. Tem gente experiente e muitos jovens talentosos: baianos que vivem em São Paulo, outros na Bahia, e que precisam ser vistos. Precisa-se dar trabalho para essas pessoas que têm muito a dizer e contribuir. Precisamos deles como incentivo e luz para outros jovens que estão aí, querendo se encontrar.

REVISÃO HISTÓRICA

Falar da história do nosso povo, da nossa ancestralidade, é não deixar que seja esquecida. Por isso [o espetáculo Uma Leitura dos Búzios] é muito importante. Porque

querem que [a Conjuração Baiana] seja esquecida e, principalmente, querem nos calar. E a gente decidiu que não vai ficar calado. A gente decidiu que vai falar, porque as pessoas precisam saber que nós não temos nada para nos envergonhar. Estamos falando de coisas que as pessoas deveriam se envergonhar, e de pessoas que fizeram isso com a nossa ancestralidade e que querem esquecer porque, na verdade, eles queriam nos anular. Decidiram nos matar, mas a gente decidiu que não vai morrer, porque não quer. E isso incomoda muito.

TODOS OS PÚBLICOS

Espero que venha todo mundo, não só o povo negro, mas também os brancos. Quero que venha todo mundo para conhecer. [Uma leitura de búzios] tem a questão de nacionalizar [a Conjuração Baiana], como o Márcio fala, mas, até na nossa Bahia, o povo não conhece a verdadeira história brasileira. É incrível e vergonhoso. O que eles ensinavam na minha época na escola: “Quem descobriu o Brasil”. Até eu crescer e descobrir que o Brasil não foi descoberto,

mas invadido. “Quem libertou os escravos?” Até descobrir que os negros que foram escravizados não foram libertados. Nunca houve, de fato, uma abolição. Hoje, eu acho que nós queremos saber. Eu nasci em 1964 e cresci vendo que o povo negro ainda ficava meio escondidinho, meio assim... Escondia suas crenças, né? Ninguém podia saber. O povo era muito retraído. Era como se nosso povo estivesse sufocado e não aguentasse mais até ter tomado consciência de que viveu o tempo inteiro uma falsa abolição, de que viveu o tempo inteiro escondido e agora quer essa abolição de verdade.

Ouça, em formato de podcast, a conversa com a convidada.

A mediação é da jornalista e editora da Revista E, Adriana Reis Paulics. Virgínia Rodrigues esteve presente na reunião virtual do Conselho Editorial da Revista E no dia 26 de outubro de 2022.

Isabel Almeida / Alma Preta Jornalismo
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A AVÓ DO MUNDO

Megaron, sobrinho de Raoni, contemplava infinitamente o céu e, com seus olhos de águia, penetrava o universo como quem busca o ponto certo e focal, a definição de uma resposta aos problemas sociais, políticos, étnicos e existenciais dos povos indígenas unidos pela linha da vida e a linha dos clãs do povo Xinguano, escolhido propositalmente pelo Universo para fazer acontecer as mudanças que precisam acontecer na Terra.

Os invasores destruíam o meio ambiente Xinguano, do Brasil e do mundo. Precisava de um basta!

O comando estelar no universo, unido à força das luas crescente e cheia, foi captado pelo guerreiro Kayapó e seu povo, e ajudado pela força da avó ou mãe do mundo, da mulher que não precisa estar presente em nada ou em nenhum lugar porque ela já está em todos os lugares em alma e força espiritual. Ela está viva no espírito, no coração, na cultura e na língua dos guerreiros e guerreiras para que ela possa fazer exercer e abastecer a grande transformação, que virá cedo ou tarde. Ela é decidida. Ela existe como a Grande Mãe, a Grande avó do mundo. Ela não é carne e osso e ela é carne e osso e mais alma, essência, vida, espírito e luz.

A humanidade pode vê-la e ouvi-la, basta um fio de luz que ligue a existência terrestre a ela e permita, através da alma e coração, o acesso do amor entre os povos.

POR ELIANE POTIGUARA ILUSTRAÇÕES LUYSE COSTA
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É só ouvir! E para os mais sensitivos, senti-la ou vê-la através dos tempos e da história é um presente divino. Ela é a mulher que percorre por debaixo dos leitos dos rios, é a mulher que cria o leite quente para saciar a fome dos desesperados e despossuídos. É a mulher que ao mesmo tempo nasce, morre e nasce de novo para perpetuar as gerações indígenas deste país. É a mulher que possui o casco duro nos pés pelas andanças! É a mulher cuja voz ecoa no passado e no presente! É a força da mulher. Ela troca de pele todos os dias...

No norte do planeta, montados a cavalo e montados à Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho) e à Declaração Universal dos Direitos Indígenas, entre outros instrumentos jurídicos, olhares de lince e cabelos negros bisbilhotam ações dos governos e tratados.

Esses instrumentos jurídicos foram trabalhados arduamente por guardiões do fogo criativo e assimilados por líderes políticos que convocam Assembleias para

que esse “tempo” utilizado pelos ancestrais não seja desperdiçado pelo descrédito.

Tempo para os ancestrais tem um significado muito superior ao significado que levamos na Terra. É outra dimensão a ser incorporada aos que sabem.

As famílias espirituais da flora, fauna, mares, rios, cachoeiras, montanhas, serras, morros, cavernas, vales, seres encantados e animais do céu, das águas e das terras e de todas as espécies, enfim, toda a biodiversidade da Terra escolheu a dedo os líderes indígenas pontuais e geográficos para assegurar as leis que definem, garantem e fortalecem a política dos povos indígenas do Brasil e do mundo.

Um homem jovem sentado em seu barco, ora em seu cavalo, ora em seu jumento, proseia em suas preces e é abençoado pela Mãe Terra. É a Pachamama para os que vivem nas três Américas, a mãe natureza, as benzedeiras, as curandeiras e pajés disfarçadas pelo grande poder estelar cósmico da categoria “indígenas”.

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Povos indígenas! Sigam os sinais que são apresentados para a fortaleza futura e para garantir a cultura e espiritualidade. Farejem como animais! Unam-se fortes pelo objetivo único comunitário: nações, grupos, etnias ou comunidades com ou sem Rio+20 ou + 100 anos.

Só existe um inimigo: aquele que não deseja ver a sua prole prosperar. Na fé e confiança, ouçam a voz que sai das entranhas da Terra. “Eu moro, miro e admiro sobre uma copa de árvore robusta numa casa branca iluminada pela luz eterna, e quero o reflorestamento da Terra. Ali faço ninho com as irradiações das luas crescentes e cheias, e recebo ordens do comando estelar”, diz a avó do mundo disfarçada em pajé, aquela que anda por baixo do leito dos rios e espia o mundo.

Ela diz: “Aquele que crê em mim ajudará na evolução de uma nova mentalidade da juventude indígena”. Dizem que ela é uma bruxa! Ela é apenas a “mulher que sabe”, a que possui o olhar desconfiado das sábias!

Megaron continua a olhar para o infinito e sente as evocações do espaço e coloca na prática os enunciados dos que sabem, homens ou mulheres, pois ele atingiu o significado dos gêneros do planeta Terra.

Eliane Potiguara, da etnia Potiguara, é escritora e poeta. Seu livro carro-chefe é Metade Cara, Metade Máscara (Global, 2004), reeditado em 2019, pela Grumin. Já recebeu o prêmio Pen Clube, da Inglaterra, e do Fundo Livre de Expressão, dos Estados Unidos, pelo título A Terra é a Mãe do Índio. Possui vários livros infantis e textos, além de obras de poesias em antologias nacionais e internacionais. Ainda neste ano, deve publicar seu oitavo livro.

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CÊNICO LEGADO

Aos 40 anos de carreira, completados em 2021, a atriz Julia Lemmertz celebra a vida, a família, os trabalhos em diferentes linguagens e sua mais nova paixão: mexer com a terra. Desde o início da pandemia, em seu sítio no interior paulista, ela planta, colhe, cultiva uma horta e produz mel. “É um motor [para mim], e acho que não vou deixar de ser atriz, mas é transformador olhar para a vida através da natureza, pôr a mão na massa. Descobri o meu lugar assim”, revela.

Outro espaço em que ela se sente em casa é o teatro. Entre setembro e outubro deste ano, Julia esteve em cartaz no Sesc Bom Retiro e no Sesc Guarulhos com a peça Tudo, escrita em 2009 pelo dramaturgo argentino Rafael Spregelburd, com tradução, adaptação e direção de Guilherme Weber. Em cena com Vladimir Brichta, Dani Barros, Claudio Mendes e Márcio Vito, Julia diz que o espetáculo – que toca em questões como burocracia, arte e religião – foi erguido em apenas 45 dias, para estrear em 1º de abril, no Festival de Curitiba. Logo depois, fez temporada no Rio de Janeiro.

Neste Depoimento, a atriz gaúcha, que consolidou sua carreira em terras cariocas, fala sobre teatro, latinidades e os 40 anos de carreira.

início

Quando comecei minha carreira, fazia de tudo o que pintava na frente, porque eu tinha que trabalhar, queria aprender. Eu vinha de uma família de atores: meu pai [Lineu Dias] foi ator e intelectual de teatro, minha mãe foi atriz. Mas isso não me dava credenciais para ser atriz. [No começo] era uma vontade meio escondida, porque meus pais eram tão geniais que eu falava: “Como é que eu vou ser atriz com esses pais?” Então [pensei em] ser outra coisa: veterinária, fonoaudióloga. Mas eu realmente queria fazer aquilo [atuar]. Fui trilhando meu caminho, errando, acertando, estudando à medida que dava. Conheci o Antunes [Filho] quando era criança, era meu “tio”, praticamente. Era um cara que eu amava, como uma pessoa que eu conhecia desde muito pequena. E aí fui vendo que era aquele [grande] diretor. Só que, quando o CPT [Centro de Pesquisa Teatral do Sesc] surgiu, eu já estava na lida fazendo tudo ao mesmo tempo: teatro, televisão, cinema, filhos. Tive a minha primeira filha [Luiza Lemmertz] com 24 anos. Não dava tempo de parar a vida. Minha formação foi muito na prática, então estou sempre correndo atrás, porque me sinto em formação sempre.

Ao celebrar quatro décadas em cena, Julia Lemmertz fala sobre dedicação ao teatro, novo espetáculo e próximos passos
Anderson Rodrigues 75 | e
depoimento

tudo [A peça] obviamente não é sobre tudo, mas é sobre muita coisa. Ela dialoga com o presente, em que estamos colapsando. Em cada uma das questões que coloca [burocracia, arte e religião], engloba muitas outras. [Há] uma discussão gigante sobre valores, sobre como funciona a nossa sociedade, como a arte vira negócio. São provocações que ele [o autor] faz. Quem assiste ao espetáculo, não necessariamente tem as perguntas respondidas, [mas consegue entendê-las] dentro do seu universo, da sua capacidade, do seu mundo de interpretação e percepção. É muito interessante o efeito que [esse texto] tem no público.

farsa

Acho que essa é uma definição brilhante [de que a peça é uma

comédia em ritmo de farsa, com valor de manifesto contra os costumes, nas palavras do diretor]. É exatamente isso, é uma farsa no sentido de que são três fábulas, só que sem animais. Mas são fabulares, porque estamos ali contando uma história para falar de muitas outras coisas. E, quando ele fala em comédia, tem aquela frase boa [popularizada pelo dramaturgo português Gil Vicente (1465-1536)], que diz: “Rindo a gente castiga os costumes”. A gente fala de costumes que são comuns na América Latina. A partir daí, o Guilherme [Weber] quis falar sobre a nossa seara. O público fica meio confuso, porque às vezes está rindo e fala: “Estou rindo disso, será que pode?” É ter essa sacação de que você está num momento de muitos desencontros com as suas próprias colocações, ideologias,

com o que acha errado. A gente está [na peça] nesse lugar do caos.

narradores

Na peça original, o narrador era só uma voz, não estava presente ali. E o Guilherme escolheu fazer todos os narradores presentes, o que tornou o espetáculo mais interessante, mais maluco. Na primeira cena, também tem a história do dinheiro, é uma cena criada [para a versão brasileira], porque a discussão era sobre o dinheiro argentino. [Falamos de réis, cruzeiro, cruzeiro novo], cruzado, cruzeiro real, real. Mudou tanto, [foi] tão caótico. Além disso, na montagem do Rafael [Spregelburd] tinha mesa, cadeira, e a gente optou por fazer sem nada [de cenografia], para dar essa sensação de que toda a ação está no corpo. Ele personifica toda a forma de se

Flavia Canavarro depoimento

A COISA MAIS PARECIDA COM A VIDA É FAZER TEATRO, PORQUE VOCÊ ESTÁ VIVO E PRESENTE NO AQUI AGORA

por ele em 2019. Planejamos fazer uma leitura naquele momento, mas ficou para depois.

latinidades

[O Brasil age] como se não fosse América Latina. O fato de a gente ter a língua portuguesa faz com que pareça que a gente não faz parte [de uma mesma região]. Somos um país continental, gigante, que abarca muita coisa e que não se leva a sério também. Acho que os argentinos, os chilenos, todos se levam muito a sério. Então, confrontar isso, falar sobre isso, sob um olhar argentino, faz com que a gente una a nossa galhofice com um olhar crítico. [A peça] é um espelho, mas uma crítica também. Uma forma de falar: “Olha, isso aqui não está bom, olha de onde viemos. E para onde vamos?”

questionada. Sempre tentando ser o melhor de você ali, diariamente. E não adianta fazer um dia bom, isso não garante que o dia seguinte não possa ser um desastre. Não é a busca pela perfeição, porque a perfeição não existe, mas você também não pode se acomodar com aquilo, porque a repetição pode te dar um certo conforto. [O piloto automático] existe, mas não pode. A coisa mais parecida com a vida é fazer teatro, porque você está vivo e presente no aqui agora. Às vezes, vivendo coisas com que você jamais sonhou. No entanto, está ali defendendo aquilo, falando aquelas palavras, tendo aquela emoção. É fascinante. Não é que eu prefira o teatro, mas ele me dá muito em troca.

40 anos

colocar na vida e no mundo. Cada corpo fala por si e tem uma história.

diretor

Eu sou apaixonada pelo Guilherme [Weber]. É uma pessoa adorável, um cara inteligentíssimo, culto, engraçado, divertido. Um grande ator. Ele tem todas as melhores e maiores qualidades. É um diretor apuradíssimo, um cara sensibilíssimo. Como ator, ele entende profundamente os nossos caminhos, percalços, dificuldades. É muito generoso nesse lugar da paciência e do estímulo. Trabalhar com ele é um sonho, uma beleza. Esse espetáculo é tudo isso por causa do Guilherme, pelo que ele incita na gente. Ele é muito hábil e dá muita liberdade para todo mundo. Então, é lindo ver ele despertando o melhor de cada um. Fui apresentada a esse texto

Há personagens erradíssimos e controversos falando coisas muito importantes. Existe uma sintonia fina entre a crítica e o deboche. A particularidade de cada fábula é fazer com que ela chegue a um lugar de profundidade, de espelhar um momento que não existe só agora, ele vem sendo construído, é atávico.

tablado

Eu realmente gosto de fazer tudo [teatro, novela, cinema, série], de interpretar bons papéis. Mas acho que, talvez, o teatro seja um lugar de maior aprendizado para mim, onde eu me sinto fazendo algo braçal. É físico, intelectual, espiritual, sensível. Um espaço de sentimento e de crescimento pessoal, é muita coisa junta.

Não é que o teatro seja o meu lugar preferido - às vezes dói, é difícil, conturbado, violento. Tudo isso. Mas é sempre prazeroso e transformador. Você está sempre no fio da navalha, sendo desafiada,

No meio da pandemia, completei 40 anos de carreira. Percebi de um jeito meio tosco, porque comecei a postar trabalhos antigos meus no Instagram, para falar sobre arte e cultura, e publiquei uma foto do primeiro espetáculo que fiz em São Paulo, Lição de Anatomia. Eu tinha 19, 20 anos. Tirei foto da foto, era uma imagem física e, quando olhei, estava ali: 1981. Falei: “Ih, caramba, 40 anos!” Aí me dei conta de que eu estava fazendo 40 anos [de carreira] naquele momento. Comemorei internamente e falei: “Oba, que bom, estou aqui, 40 anos depois ainda sou atriz, estou trabalhando, descobrindo coisas. Ainda tem tanta coisa para fazer”. [O mais] importante é você estar ativa, na luta, na busca das coisas. Ainda há tanto por fazer, né? Naquele momento, comemorei por estar viva, não ter pego Covid-19, não ter perdido ninguém da família. Eu estava preocupada com o entorno, com o mundo, com o planeta, com tudo.

77 | e depoimento

ALMANAQUE

Vitrine cultural

Visitar um museu ou espaço cultural pode ser uma experiência enriquecedora, capaz de atrair pela estética, causar estranhamento ou suscitar reflexões diversas. Para além da fruição artística proporcionada pelas exposições e atividades educativas, o público também pode encontrar nesses lugares livrarias ou lojas que são uma extensão do que acabou de vivenciar. Um cantinho convidativo para uma conversa, uma leitura, ou que se materializa em souvenir para levar para casa uma lembrança daquele lugar-momento. Neste Almanaque, indicamos cinco espaços expositivos da capital paulista que expandem a experiência artística com livrarias e lojas.

Logo na entrada do Museu da Imagem e do Som, é possível conhecer a Lojinha do MIS, que comercializa publicações e objetos referentes às mostras que estão, ou que estiveram, em cartaz.

Para além de exposições e acervos de arte, cinco espaços culturais da capital paulista mantêm livrarias e lojas abertas ao público
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DE BOWIE A BURTON

Se você já visitou as populares exposições do Museu da Imagem e do Som (MIS), que celebraram o legado de David Bowie, Tim Burton, Castelo Rá-Tim-Bum, Renato Russo e Silvio Santos, entre outros, certamente passou, logo na entrada do espaço, pela Lojinha do MIS. Há uma década,

BRASILIDADE NA VEIA

Quem deseja conhecer o Acervo em Transformação do Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (Masp), pode aproveitar para dar um pulo na Masp Loja, localizada no primeiro subsolo. Criado em 1993 e reformulado em 2016, o espaço reúne dois mil itens diversos, como cartõespostais, ímãs, marcadores de páginas, pôsteres, jogos educativos e peças de artesanato de 20 etnias indígenas. Nessa conta estão incluídos 800 títulos de livros, catálogos e antologias – sobre teoria e história da arte, arquitetura, design, fotografia, cinema, teatro e dança – publicados pelo próprio museu ou por outras editoras. A seleção tem curadoria da historiadora e crítica de design Adélia Borges, que busca valorizar a brasilidade e dialogar com as temáticas das exposições em cartaz. O acesso é livre nos dias de gratuidade do museu, mas é preciso reservar ingresso no site masp.org.br. Confira mais informações e acesse o catálogo digital: masploja.org.br

Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (Masp)

Av. Paulista, 1.578, Bela Vista, São Paulo (SP)

A loja do Masp tem acesso livre nos dias de gratuidade do museu.

o local comercializa publicações e produtos exclusivos do museu e de suas mostras, como canecas, catálogos, camisetas, bottons, lápis e marca-páginas, além de CDs, DVDs e livros de arte. Até 11/12, está em cartaz no MIS a exposição Arte É Bom, que oferece ao público a proposta de experimentar a arte contemporânea por meio de instalações, objetos

manipuláveis e atividades imersivas. A curadoria é de Daniela Thomas e Têra Queiroz. Saiba mais: instagram.com/lojinha.mis e museumstore.com.br (catálogo virtual).

Museu da Imagem e do Som (MIS) Av. Europa, 158, Jd. Europa, São Paulo (SP)

Victoria Negreiros (Masp); Cinthia Bueno (MIS)
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ALMANAQUE

ARTE NO PÁTIO

Há exatamente um ano, a Pinacoteca de São Paulo ganhou uma loja física em sua área externa. No Pina_Loja, são vendidos livros, postais, agendas, canetas, xícaras, sacolas e até guarda-chuvas personalizados, entre outros itens de coleções exclusivas. Os produtos mais procurados pelo público, que não precisa ter ingresso para acessar o local, são os catálogos das exposições – como Adriana Varejão: Suturas, Fissuras, Ruínas, que ficou em cartaz entre março e agosto deste ano –, além de publicações sobre a arquitetura do prédio e a obra de artistas modernistas, como Tarsila do Amaral, Candido Portinari e Anita Malfatti. Há, ainda, a opção da loja virtual. Conheça: pinacoteca.org.br/loja

Pinacoteca de São Paulo

Praça da Luz, 2, Bom Retiro, São Paulo (SP)

Aberta há um ano, a Pina_Loja fica na área externa da Pinacoteca.

LETRAS NA INDEPENDÊNCIA

Para além da Cidade Universitária, a Editora da Universidade de São Paulo (Edusp) tem livrarias no Museu de Arte Contemporânea da USP (MAC) e no Museu do Ipiranga. A unidade no MAC-USP – complexo projetado por Oscar Niemeyer com um acervo de dez mil obras – fica situada no mezanino e foi inaugurada em 2018. Reúne livros dedicados principalmente à arte e arquitetura, com volumes publicados tanto pela Edusp quanto por outras editoras brasileiras. Já no Museu do Ipiranga, o espaço está próximo à bilheteria e foi aberto em

A livraria da Edusp no Museu do Ipiranga, está localizada dentro da instituição, ao lado da bilheteria.
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Levi Fanan (Pinacoteca); Alex Gomes (Edusp); Matheus José Maria (Sesc)

setembro de 2022, com títulos de arquitetura e urbanismo, arqueologia, história do Brasil e da América Latina, artes, culturas indígenas e africanas, ciências sociais, literatura e crítica literária. Confira: edusp. com.br e museudoipiranga.org.br

Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC-USP)

Av. Pedro Álvares Cabral, 1.301, Ibirapuera, São Paulo (SP)

Museu do Ipiranga Rua dos Patriotas, 20, Ipiranga, São Paulo (SP)

EXPERIÊNCIA PROLONGADA

Inaugurada em 2003, no Sesc Bertioga, a Loja Sesc se expandiu e hoje está presente em 40 unidades espalhadas pelo estado de São Paulo, além do ambiente digital. Por meio de seus produtos, busca prolongar a experiência vivida dentro do Sesc com itens como bolsas, camisetas, CDs

de música popular, livros e flipbooks (livretos que, ao serem folheados, dão a impressão de movimento), entre outros artigos desenvolvidos a partir de elementos arquitetônicos e obras de arte. Até janeiro de 2023, a Loja Sesc promove a campanha Leve o Sesc com Você, oferecendo descontos de até 70% em livros, CDs e DVDs. Mais detalhes: sescsp.org.br/loja

Loja Sesc na unidade Mogi das Cruzes.
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PANC’s, pelúcias e especiarias

Acordo bem mais cedo do que gostaria, num domingo frio de novembro, as pernas ainda doloridas de tanto caminhar e dançar. Impactada por uma apresentação de música popular brasileira, durante a qual trabalhei na noite anterior junto a uma equipe empolgada, gravando cada momento e imaginando o que documentar, o que perguntar, como entrevistar. A cabeça ferve de tanta ideia e do muito que aprendi.

Um pouco mais cedo, no dia anterior, me lembro de estar com os colegas na comedoria do Sesc Vila Mariana e olhar com carinho as mães lendo para seus pequenos e mostrando as fotos de cada planta alimentícia não convencional (chamadas PANC, que eu falo como se dissesse PUNK, só para me dar a sensação de contracultura da taioba). A minha senha é chamada e vou buscar meu chapéu de couro, que é uma alegria em forma de comida, juntando banana, açúcar, canela e queijo coalho.

Mais cedo ainda, logo ao chegar, famílias brincavam no espaço da unidade, com cordas, bambolês e bolas. Aquela farra misturada naquele espaço amplo e claramente democrático. Vi de cima, enquanto subia a rampa para o atendimento e para a Loja Sesc, minha parada obrigatória nas unidades, onde passo para buscar a coruja dos Bichos Lúdicos (parece que só falta ela aqui em casa, nossa galera peluda já conta com o macaco, a vaca e o ouriço).

Eu fico com a sensação de que basta passar nesse lugar, respirar, se conectar, e algo muda dentro da gente. Me faz lembrar da pioneira em arte-educação Ana Mae Barbosa, em entrevista ao projeto Conexão, que afirmava: “arte não se ensina, se contamina”. Fico pensando que o melhor jeito de ensinar deve ser este contaminar, criar um interesse real e com todos os sentidos pelo que vai ser dito. Na contramão desse pensamento, me lembrei da aula introdutória que tive na escola sobre “as grandes navegações portuguesas”, ensinadas em

1990 do ponto de vista colonizador, em que o professor nos obrigou a decorar que o que movimentava aquilo tudo eram especiarias. Rolou um “repitam comigo”, e eu repetia “especiarias” com os poucos alunos que bravamente se encontravam acordados. Juro que quando descobri o que eram especiarias, alguns anos depois, imaginei que a comida não devia ter graça alguma e os exploradores preferiram se lançar no grande NADA que era o desconhecido oceano, e nunca mais voltar pra casa, só pra poderem ativar as papilas gustativas.

Eu era bem nova e fiquei imaginando um mundo paralelo no qual aquele mesmo professor entraria na sala de aula com um prato de comida sem sal nem tempero, provocando a sala para provar. E depois, oferecendo a mesma comida, plenamente temperada. Para a taurina aqui, seria um exemplo perfeito sobre o qual Ana Mae Barbosa nos falou em 2018. Estimula os sentidos, parte de um princípio conhecido por quem recebe a mensagem, fala e é ouvido. Conecta.

Em 2020 veio a pandemia. A vida virou uma coleção de janelas quadradas, conectadas a distância. Dentro de uma janela retangular dessas, para cerca de 50 mil pessoas, estava o EAD do Sesc São Paulo. Um dia, li numa nota no jornal que um chef de cozinha da cidade estava passando seus dias de pandemia aprendendo viola caipira num curso online. Depois fui surpreendida por uma mensagem animada vinda de um grupo de mães indicando o curso de introdução alimentar para bebês. E assim, sem pestanejar, eu sinto que a vontade de aprender é o que nos conecta.

Cláudia Dias Perez é bacharel em rádio e televisão pela Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP), com MBA em marketing digital pela ESPM. Atua como coordenadora do Núcleo de Conteúdo Integrado do Sesc.Digital.

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DEZEMBRO 2022 AF_EM-CARTAZ-Dezembro2022.indd 1 23/11/22 19:23 RETIRE GRATUITAMENTE SEU GUIA NAS UNIDADES DA CAPITAL E GRANDE SÃO PAULO Confira a programação completa: www.sescsp.org.br Fique por dentro do que é destaque na programação deste mês!

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