Revista E - fevereiro/2023

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Revista E | fevereiro de 2023 nº 08 | ano 29

Construir pontes Educador português José Pacheco reflete sobre projetos pedagógicos

Chico Felitti Jornalista fala sobre apuração investigativa em livros e podcasts

Sonia Braga Fotobiografia narra em imagens a carreira da atriz dentro e fora do Brasil

Oralidade O valor das histórias de vida como patrimônio cultural

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ATÉ 25 DE JUNHO

SESC 24 DE MAIO

Exposição oferece um mergulho na obra de Darcy

Ribeiro, antropólogo, educador, ensaísta e político.

Curadoria de Isa Grinspum Ferraz

Visitação

Terça a sábado, 9h às 21h

Domingos e feriados, 9h às 18h

Sesc 24 de Maio

Rua 24 de Maio, 109, São Paulo - SP

/24demaio

sescsp.org.br

as

topia brasileira

DARCY RIBEIRO 100 ANOS

CAPA: Intervenção visual Ginga Tropical (2021), do artista Jota Aracê. A pintura sobre azulejos é inspirada nos elementos da fauna e flora brasileiras e convida à contemplação e interação. A obra pode ser visitada no mezanino do parque aquático do Sesc Araraquara.

Foto: Marcela Campos

Leia também a revista em versão digital na sua plataforma favorita:

Legado cultural

Portal do Sesc (QR Code ao lado)

APP Sesc São Paulo para tablets e celulares

Legendas Acessibilidade

Desde 1946, o Sesc – Serviço Social do Comércio está presente no cotidiano da população, ampliando seu alcance e seguindo no propósito de motivar e possibilitar experiências múltiplas aos trabalhadores do comércio de bens, serviços e turismo, a seus familiares, bem como a toda a comunidade. Com ampla e sólida ação cultural, contribui para a promoção da qualidade de vida das pessoas, com programações nos campos da cultura, do lazer, do turismo, dos esportes, da saúde e alimentação.

Em São Paulo, está presente no cotidiano de seu público, ofertando atividades diversas realizadas nos centros culturais e esportivos espalhados pelo estado e, de maneira cada vez mais ampliada, no ambiente digital, expandindo as fronteiras territoriais.

Em estabelecimentos de uso coletivo é assegurado o acompanhamento de cão-guia. As unidades do Sesc estão preparadas para receber todos os públicos.

Trata-se de uma iniciativa inovadora, ancorada em princípios e valores como o da sustentabilidade e o da acessibilidade universal, garantindo a presença e o protagonismo de seus frequentadores e proporcionando, assim, o encontro de ideias, a ampliação de repertórios múltiplos e o contato com o novo, construindo, portanto, um legado cultural.

Abram Szajman

Presidente do Conselho Regional do Sesc no Estado de São Paulo

Somos feitos de nossas histórias

De geração em geração, a prática de contar e ouvir histórias constrói aquilo que se estende por História". A oralidade, mãe das narrativas, é o cimento da memória e ajuda a entender a formação cultural humana. Cultural não no sentido de expressão artística, mas de preservação do imaginário – individual e coletivo – e fortalecimento do senso de pertencimento e integração social.

Como já disse o contador de histórias Cristino Wapichana, “é a oralidade que dá voz a todas as coisas”. Para valorizar os causos cotidianos como registro histórico e herança cultural, uma das reportagens deste mês destaca o legado imaterial das histórias orais, das tantas e tão ricas experiências humanas, por vezes invisibilizadas pela "História oficial".

É isso que a Revista E busca: contar histórias plurais e ampliar o número de autores das narrativas históricas. Nesta edição, além da reportagem principal, propomos um passeio, em imagens, pelo legado de uma atriz que dedica sua carreira a interpretar histórias de outras vidas; conhece a trajetória de um jornalista especializado em farejar memórias silenciadas; lê o depoimento de um cenógrafo que instiga a imaginação do público ao forjar outros mundos no palco; e aprende a construir pontes com um educador responsável por projetos pedagógicos inclusivos e cooperativos.

Vire a página para descobrir outras histórias de vida. Boa leitura!

SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO – SESC

Administração Regional no Estado de São Paulo

Av. Álvaro Ramos, 991 – Belenzinho

CONSELHO REGIONAL DO SESC EM SÃO PAULO

Presidente: Abram Abe Szajman

Diretor Regional: Danilo Santos de Miranda

Efetivos: Arnaldo Odlevati Junior, Benedito Toso de Arruda, Dan Guinsburg, Jair Francisco Mafra, José de Sousa Lima, José Maria de Faria, José Roberto Pena, Manuel Henrique Farias Ramos, Marco Antonio Melchior, Milton Zamora, Paulo Cesar Garcia Lopes, Paulo João de Oliveira Alonso, Paulo Roberto Gullo, Rafik Hussein Saab, Reinaldo Pedro Correa, Rosana Aparecida da Silva, Valterli Martinez, Vanderlei Barbosa dos Santos

Suplentes: Aguinaldo Rodrigues da Silva, Aldo Minchillo, Antonio Cozzi Junior, Antonio Di Girolamo, Antonio Fojo Costa, Antonio Geraldo Giannini, Célio Simões Cerri, Cláudio Barnabé Cajado, Costabile Matarazzo Junior, Edison Severo Maltoni, Omar Abdul Assaf, Sérgio Vanderlei da Silva, Vilter Croqui Marcondes, Vitor Fernandes, William Pedro Luz

REPRESENTANTES JUNTO AO CONSELHO NACIONAL

Efetivos: Abram Abe Szajman, Ivo Dall’Acqua Júnior, Rubens Torres Medrano

Suplentes: Álvaro Luiz Bruzadin Furtado, Marcelo Braga, Vicente Amato Sobrinho

CONSELHO EDITORIAL | Revista E

Adauto Fernando Perin, Adriano Ladeira Vannucchi, Alessandra Goncalves da Silva, Alessandro Souza Santos, Alex Siciliani Anastacio Cruz, Aline Ribenboim, Ana Carla de Assis Ribeiro, Ana Carolina Garcez de Castro, Ana Paula Fraay Moyses Henriques, Bruna Marcatto da Rocha, Camila Freitas Curaçá, Camila Vitale Nascimento, Carla Lira Mendes dos Santos, Carlos Daniel Dereste, Caroline Souza de Freitas, Cinthya de Rezende Martins, Clovis Ribeiro de Carvalho, Danilo Cava Pereira, Danny Abensur, Edson Martins Moraes, Érika Mourao Trindade Dutra, Estevão Denis Silveira, Fabrício Floro, Fernanda Porta Nova, Fernando Hugo da Cruz Fialho, Flavia Teixeira S. Coelho, Francis Marcio Alves Manzoni, Geraldo Soares Ramos Junior, Gislene Lopes Oliveira, Ivan Lucas Araujo Rolfsen, Jacy Helena Almeida Silva, Jose Goncalves da Silva Junior, Jose Mauricio Rodrigues Lima, Jucimara Serra, Julia Parpulov Augusto dos Santos, Juliana Grotti Vidal Torres, Karla Priscila Vieira Carrero, Livia Vertuan dos Santos, Marcel Antonio Verrumo, Marcelo Dias de Carvalho, Marcos Ribeiro de Carvalho, Margarete Regina Chiarella, Maria Rizoneide Pereira dos Santos, Mariana Lins Prado, Marina Reis, Monique Mendonça dos Santos, Paco Sampaio, Patricia Maciel da Silva, Paulo Henrique Souza Cavalcante, Poliana de Moura Queiroz, Poliana Pazete de Paula, Rafaela Ometto Berto, Regiane Gomes da Conceição, Rejane Pereira da Silva, Renan Cantuario Pereira, Renata Barros da Silva, Renata Mesquita Ribeiro, Ricardo Carrero da Costa, Ricardo Lemos Antunes Ribeiro, Romeu Marinho C. Ubeda, Ronaldo Domingues de Araujo, Silvana Almeida Santos, Sofia Calabria y Carnero, Tais Cardoso Barato, Tais Ribeiro Martins, Thais Cristina Kruse, Thais Ferreira Rodrigues, Valeria Mantovani de Andrade Alves, Vitor Penteado Franciscon

Coordenação-Geral: Aurea Leszczynski Vieira Gonçalves

Editora-Executiva: Adriana Reis Paulics • Projeto Gráfico e Diagramação: Bruno Thofer e Larissa Ohori • Ilustrações: Pedro Franz • Edição de Textos: Adriana Reis Paulics, Guilherme Barreto e Maria Júlia Lledó • Revisão de Textos: Cláudio Leite • Edição de Fotografia: Adriana Vichi • Repórteres: Luna D’Alama, Manuela Ferreira e Maria Júlia Lledó • CoordenaçãoExecutiva: Marcos Ribeiro de Carvalho e Fernando Fialho • Coordenação

Editorial Revista E: Adriana Reis Paulics, Guilherme Barreto e Marina Pereira • Propaganda: Daniel Tonus, José Gonçalves Júnior e Renato Perez de Castro • Arte de Anúncios: Felipe Castro, Jucimara Serra, Nilton Bergamini e Pablo Perez Sanches • Supervisão Gráfica: Rogerio Ianelli • Finalização: Bruno Thofer e Larissa Ohori • Criação Digital Revista E: Ana Paula Fraay • Circulação e Distribuição: Nelson Soares da Fonseca

Jornalista Responsável: Adriana Reis Paulics (MTB 37.488)

A Revista E é uma publicação do Sesc São Paulo, sob coordenação da Superintendência de Comunicação Social

Distribuição gratuita

Nenhuma pessoa está autorizada a vender anúncios

Esta publicação está disponível para retirada gratuita nas unidades do Sesc São Paulo e também em versão digital, em sescsp.org.br/revistae e no aplicativo Sesc SP para tablets e celulares (Android e IOS).

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Entre os destaques da programação do mês, estreia do espetáculo Namíbia, não!, no Sesc Bom Retiro

Reconhecido por projetos pedagógicos inovadores, educador português José Pacheco relembra começo da carreira e reflete sobre desafios da educação A importância da valorização de relatos orais como patrimônio sociocultural e registro histórico

O fantástico e assombroso universo que inspirou os traços do centenário artista japonês Mizuki Shigeru (1922-2015)

Protagonismo feminino cresce entre jogadoras e criadoras de jogos de tabuleiro e cartas

dossiê entrevista memória bio gráfica tecnologias e artes

Livro reúne imagens pessoais e profissionais da atriz Sonia Braga, protagonista de emblemáticos personagens no cinema e na televisão

p.54 p.11 p.16 p.24 p.34 p.40

SUMÁRIO
Namíbia, Não!
/
Foto: Caio Lírio (Dossiê); *aguardando (Bio); Luciana Avellar (Gráfica)

Juventudes plurais nas artes - Artigos refletem sobre visibilidade e desafios no caminho de jovens artistas

Faro do jornalista Chico Felitti traz à tona personagens marginalizadose polêmicos - em livros, podcasts e reportagens

No mês do Carnaval, conheça redutos do samba nas cinco regiões da capital paulista

em pauta encontros inéditos depoimento almanaque P.S.

p.60

p.66 p.70 p.74 p.78 p.82

Márcio Medina Rafael Gallo Carla Lira Santos
Matheus José Maria (Encontros); Pedro Franz (Inéditos); Camila
(Depoimento)
Svenson

Os melhores do ano, na opinião do público e da crítica.

Está chegando o 49º Festival Sesc Melhores Filmes. Você pode eleger quais produções e artistas nacionais e internacionais mais se destacaram no cinema em 2022.

PARTICIPE DE 1 A 28 DE FEVEREIRO:

Inaraí, No compasso do criador, Recado à minha amada (Lua vai). Esses e outros sucessos do pagode dos anos 90 fizeram parte do repertório do show Salgadinho Experience, com o ex-vocalista da banda Katinguelê, em janeiro, no Sesc Pompeia.

9 | e
Ivan Cruz
em cena

RIO VOZES DE

de

A fragilidade do Rio São Francisco e as ameaças às comunidades tradicionais

Estreia

25 de fevereiro

22h Assista também em sesctv.org.br/doc

Documentário Andrea Santana e Jean-Pierre Duret
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Crédito: Tiago Santana e Jean-Pierre Duret

Caia na folia!

Neste mês, as unidades do Sesc São Paulo voltam a celebrar o Carnaval com shows, cortejos, oficinas, fanfarras, rodas de samba, bailes e vivências que contemplam expressões culturais de todo o país.

Com o tema Corpo Brincante, o Carnaval do Sesc Vila Mariana convida o público a experimentar este instrumento, o nosso corpo, para se mexer e brincar em shows e oficinas gratuitas. Entre os destaques da programação, estão as oficinas Confecção de Ombreiras e Construção de Instrumentos Musicais Recicláveis, além do show Coco de Oyá convida Fuzaka

Segundo Kelly Adriano, gerente do Sesc Vila Mariana, “Nossa programação de Carnaval destaca os festejos populares brasileiros e o corpo brincante, em sua inventividade e contemporaneidade, com oficinas, vivências e shows que celebram o coco, cavalo marinho, caboclinho, maracatu, entre outras expressões culturais. Depois de dois anos sem carnaval, celebraremos, de portões abertos, o retorno desta importante festa popular!".

O Sesc Avenida Paulista, por sua vez, usa a hashtag #saudadescarnaval para oferecer uma programação que

celebra a retomada de purpurina, confetes e máscaras. Entre as atividades, tem a oficina Figurinos e adereços criativos, com o uso de materiais reciclados, e o show Carnaval para pequenos foliões, com a Orquestra Modesta.

Para quem prefere aproveitar em casa, a plataforma Sesc Digital estreia o webdocumentário No ABC do Samba, que compila histórias

e memórias de quatro escolas de samba de São Caetano e Santo André, e o Selo Sesc lança, dia 17/2, nas plataformas de streaming e no Sesc Digital, o álbum Talismã: Negro Maravilhoso!, com três músicos representantes das Velhas Guardas de São Paulo: Ideval Anselmo, Marco Antonio e Zé Maria.

Confira a programação completa: sescsp.org.br

"Nossa programação de Carnaval destaca os festejos

e o corpo brincante, em sua inventividade e contemporaneidade, com oficinas, vivências e shows que celebram o coco, cavalo marinho, caboclinho, maracatu, entre outras expressões culturais. Depois de dois anos sem Carnaval, celebraremos, de portões abertos, o retorno desta importante festa popular!"

Kelly Adriano, gerente do Sesc Vila Mariana

Ô abre alas para a programação do Sesc São Paulo, que neste ano volta a celebrar o Carnaval com atividades presenciais
Coco de Oyá / Foto:
José de Holanda
populares brasileiros
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DROPANDO NA RAMPA

Manobras de paraskate dominam as pistas de duas unidades do Sesc São Paulo neste mês. No Campo Limpo, um torneio gratuito reúne praticantes de skate e paraskate, nas categorias masculina e feminina, entre os dias 4 e 5/2. Também participam da competição atletas da Associação Brasileira de Paraskate (ABPSK), órgão que atua na

popularização da prática e na defesa da inclusão do paraskate como modalidade paralímpica, tal como conquistado pelo skate a partir de Tóquio 2020. Mas, atenção: as vagas para participar do torneio são limitadas e sujeitas à disponibilidade. Também no dia 4/2, o Sesc Florêncio de Abreu leva ao Centro da capital paulista o paraskatista Og de

Souza, vice-campeão no Mundial da Alemanha, para uma apresentação esportiva no Vale do Anhangabaú. Ambas as atividades fazem parte da programação do Sesc Verão 2023, que até 12/2 incentiva as pessoas a se movimentarem em mais de 1.300 atividades em todo o estado de São Paulo. Saiba mais: sescsp.org.br/sescverao.

CONTAS EM DIA

Se entre as resoluções de ano-novo, você prometeu organizar sua vida financeira, mas ainda não começou a fazer isso, o Sesc São Paulo pode ajudar. A partir do dia 28/2, nossa plataforma de ensino a distância disponibiliza o curso Mentalidade Financeira, com seis aulas gratuitas que ensinam técnicas para calcular o custo de vida, fazer diagnóstico financeiro, quitar dívidas, priorizar gastos essenciais e poupar para dar os primeiros passos no universo dos investimentos. Quem conduz os vídeos é a comunicadora e consultora financeira Amanda Dias, criadora do Grana Preta, projeto de emancipação econômica voltado a pessoas de baixa renda. Inscreva-se: sescsp.org.br/ead.

Pablo Vaz (paraskate); Recheio Digital (Mentalidade Financeira)
O paraskatista paulistano Vinicios Sardi também participa da programação do Sesc Verão neste mês. Amanda Dias, do canal Grana Preta, conduz as aulas do curso online Mentalidade Financeira
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Distopia acentuada

Em um futuro distópico, os advogados André e Antônio são surpreendidos por uma Medida Provisória do governo brasileiro, que obriga todos os cidadãos com características físicas que indiquem ascendência africana a regressar a seus supostos países de origem sob o pretexto de "corrigir" o erro histórico da escravização. Esse é o enredo do espetáculo Namíbia, não!, que entra em cartaz a partir do dia 24 deste mês, no teatro do Sesc Bom Retiro. A peça, fruto da obra de mesmo nome, escrita por Aldri Anunciação e que comemora 10 anos, inspirou o filme Medida Provisória (2020), dirigido por Lázaro Ramos, que também assina a direção do espetáculo. Saiba mais: sescsp.org.br/bomretiro.

TRUCAGEM DE CINEMA

Para celebrar o uso da gambiarra a serviço da arte cinematográfica amadora, o Sesc 24 de Maio é ocupado pelas forças da ficção científica na edição 2023 do especial Cinetruque. O projeto oferece uma série de cursos, oficinas e vivências gratuitas inspiradas no universo da produção de vídeos e filmes caseiros. As atividades ensinam truques de

roteiro, sonoplastia, concept art, filmagem, edição e até de criação de instrumentos musicais. Em fevereiro, o Cinetruque tem como foco maquiagem de efeitos visuais e objetos de cena. Também estão programadas sessões de RPG temáticos para inspirar o público a embarcar nessa viagem de volta para o futuro. Confira: sescsp.org.br/cinetruque.

Siga o ritmo

A partir deste mês, o Centro de Música do Sesc São Paulo abre inscrições para mais de 75 cursos voltados ao desenvolvimento da pesquisa, prática e criação musical. Em aulas realizadas entre

março e julho, os interessados mergulham no universo da música a partir de práticas de canto e instrumentos, além de cursos livres, palestras, oficinas, vivências e apresentações. Criado há mais de 40 anos, o

Centro de Música do Sesc está presente em três unidades: Consolação, Vila Mariana e Guarulhos. Conheça a lista de cursos disponíveis e inscrevase a partir do dia 14/2: sescsp. org.br/centrodemusica.

Anita Cavaleiro (trucagem cinematográfica) No Sesc 24 de Maio, o projeto Cinetruque reúne uma série de cursos, oficinas e vivências gratuitas.
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FAÇA SUA CREDENCIAL PLENA

Pessoas que trabalham ou se aposentaram em empresas do comércio de bens, serviços ou turismo podem fazer gratuitamente a Credencial Plena do Sesc e ter acesso a muitos benefícios. São aceitos registro em carteira profissional (com contrato de trabalho ativo ou suspenso), contrato de trabalho temporário, termo de estágio e de jovem aprendiz, e pessoas desempregadas dessas empresas até 24 meses.

Para fazer ou renovar a Credencial Plena de maneira online e de onde estiver, baixe o app Credencial Sesc SP ou acesse centralrelacionamento.sescsp. org.br. Se preferir, nesses mesmos locais é possível agendar horário para ir presencialmente a uma das Unidades (compareça com a documentação necessária).

A Credencial Plena é o acesso para trabalhadores e dependentes ao uso dos serviços e programações nas Unidades do Sesc.

Sobre a Credencial Plena:

• É gratuita

• Tem validade de até dois anos

• Pode ser utilizada nas Unidades do Sesc em todo o Brasil

• Prioriza os acessos às atividades do Sesc

• Oferece descontos nas atividades e serviços pagos

Consulte a relação de documentos necessários

Faça a sua Credencial Plena online! Baixe o app Credencial Sesc SP ou acesse centralrelacionamento. sescsp.org.br

PARA FAZER OU RENOVAR A CREDENCIAL PLENA DO SESC SÃO PAULO
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Ricardo Ferreira

FEVEREIRO

Atividades para todos os públicos, com diversas modalidades.

Em todas as unidades do Sesc São Paulo. AGORA!

Participe e compartilhe nas redes #sescverão #pratiqueondeestiver

MAIS @ESPORTESESCSP /SESCSP SESCSP.ORG.BR/SESCVERAO
QUANDO? SAIBA

Construtor de pontes

Reconhecido mundialmente por projetos e métodos inovadores, educador português José Pacheco reflete sobre mudanças e desafios da área

POR MARIA JÚLIA LLEDÓ FOTOS ADRIANA VICHI

Nascido em 1951, num cortiço na cidade do Porto, em Portugal, José Pacheco enfrentou preconceitos e atravessou obstáculos até se tornar um dos nomes mais importantes da educação. De eletricista e engenheiro ao magistério, na década de 1970, sempre foi acompanhado pela avidez por novos conhecimentos e por uma inquietação para com diferentes formas de aprender e ensinar. Sua atuação à frente da Escola da Ponte, em sua cidade natal, revolucionou as bases educacionais no século 20 e perdura até hoje. Com Fazer a Ponte , projeto pedagógico que Pacheco coordenou de 1976 a 2004, ele propõe um método em que não existem salas de aula convencionais, que descentraliza o professor, dá autonomia e responsabilidade aos estudantes e adota uma filosofia de inclusão e cooperação.

Com isso, a Escola da Ponte inspirou iniciativas no Brasil – como a Escola Municipal Desembargador Amorim Lima, na cidade de São Paulo – e em outros países. Foi aqui, aliás, que o professor e pesquisador decidiu criar novas raízes em 2005, e onde realiza, desde então, novos projetos e consultorias na área da educação. Autor de mais de 50 livros sobre o tema, como Sozinhos na Escola (2003), Dicionário de Valores (2012) e Inovar é assumir um compromisso ético com a educação (2019), José Pacheco esteve no Sesc Pompeia, em novembro de 2022, quando participou da Jornada Curumim – Educar para a Convivência e Cidadania, e compartilha seu percurso nesta entrevista à Revista E.

Como foi sua relação com a escola na infância, e como ela determinou sua escolha pela carreira de professor?

17 | e entrevista

Nasci em um cortiço, num tempo em que a cada cinco nascidos, quatro morriam antes dos quatro anos de idade. Ou seja, era um lugar onde a esperança de vida era breve, onde morria muita gente muito jovem, e onde a esperança de uma profissão era vaga. O máximo que poderíamos ter era um curso profissionalizante. E mesmo esse, talvez 10% o fizessem. Então, quando eu tinha entre nove e dez anos, o CDE [Movimento Democrático Português/ Democrática Eleitoral] lançou um projeto destinado a tentar perceber se uma criança de um cortiço, dando-lhe outras condições, se desenvolveria [intelectualmente]. Então, foram aos cortiços da cidade do Porto e tiraram os melhores alunos da quarta série. Fui salvo. Tive os melhores professores, porque eles colocaram os melhores professores daquela época para essa turma, eram os melhores alunos em todo lugar. Depois, eu precisei fazer um curso profissionalizante. Tirei a carteira de eletricista e trabalhei para estudar e entrar na universidade. Naquele tempo, muita gente me procurava para eu ajudar-lhes naquilo que seria o prévestibular. Eu me perguntava porque eles não aprendiam na escola e aprendiam cá comigo, que não era professor.

Foi nesse momento que decidiu mudar de profissão?

Na verdade, eu estava prestes a ser engenheiro e, um dia, uma professora me disse que eu tinha muito jeito para ensinar crianças. Aí, aceitei ir com ela a uma palestra de um professor, mas eu fiquei na porta. O homem começou a falar: “Tenho 50 anos e durante 20 dei aulas. Quando um aluno não sabia, eu batia nele. Há 10 anos, um aluno

não soube me dar a resposta, eu bati, mas a criança sustentou o choro, olhou para mim e disse: ‘Professor, por que é que tu nos bates? Por que é que não nos ensina?’. Fui para casa e não consegui dormir. No dia seguinte, fui falar com a criança e, desde então, mudei totalmente”. Eu o escutei até o fim e, no dia seguinte, fui até a escola onde dava aulas. Fui ver o que ele fazia. Hoje eu sei: ele fazia [a pedagogia de] Maria Montessori [1870-1952, médica italiana pioneira ao defender a capacidade da criança de aprender por si, retirando do professor o papel de provedor de conhecimento]. Ele fazia uma série de coisas que, naquela altura, eu não entendia. Fiquei a olhar para aquilo e fui me matricular no magistério, em 1970. Então, hoje, digamos que eu estou a pagar uma dívida muito grande ao meu cortiço, às pessoas que morreram sem nunca poder ser. E quando me perguntam porque fui para a educação, eu respondo: Nós vamos para a educação por uma de duas razões: por amor ou por vingança. Eu fui por vingança e fiquei por amor."

Como foi o começo da carreira como educador? Havia espaço para que adotasse outras práticas pedagógicas, como a de Maria Montessori, que o inspirou?

Eu fui combatente contra o fascismo operacional da revolução antes da revolução [a Revolução dos Cravos aconteceu em 25 de abril de 1974, em Portugal, que vivia em uma ditadura desde 1926, regime que ganhou ares fascistas com a ascensão de António Salazar (1889-1970) ao poder, em 1932]. Fui perseguido pela polícia política, perdi muitos amigos na tortura e no exílio, e precisei fugir. Fui para a África, dei aulas em Guiné-Bissau e Cabo Verde, até que um dia pensei: "[a polícia política] já havia se esquecido de mim". Voltei a Portugal para ser professor, concluí o magistério e fui trabalhar numa escola. No primeiro dia, estavam a montar as turmas, e a professora mais antiga tinha prioridade na escolha.

Aí, eu lhe perguntei: “Qual é o critério? Fica com uns, dá-me outros?”. E ela disse: “É que eu não sei trabalhar com esses. Esses que lhe dou, você é o mais jovem e tem que aceitar, porque são filhos de bandidos”. Subiu-me uma irritação tão grande, que eu disse: “A senhora não sabe trabalhar com eles, então vá aprender”. Azar duplo: ela era a mulher do diretor e o diretor era informante da polícia política. Dez dias depois, bem contra vontade, fui incorporado no Exército. Todos os meus colegas professores foram para a retaguarda da guerra, e eu, que sou o único estrábico, fui para... atirador de infantaria.

Em 1976, você deu início a um trabalho que transformou a Escola da Ponte, uma

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Nós vamos para a educação por uma de duas razões: por amor ou por vingança. Eu fui por vingança e fiquei por amor
entrevista

instituição pública na cidade do Porto, em Portugal, proposta que é considerada um divisor de águas na história da educação no século 20. Como foi esse momento?

Eu tive o privilégio de protagonizar essa história. Foi assim: Engenheiro, ou quase engenheiro, que vai para a educação. Naquela época, todo mundo ia para a educação. Iam advogados, médicos, padres, químicos, físicos. Eu tinha tido aulas e fui dar aula. Eu não sabia ser professor, eu sabia dar aula. Mas não demorou muito e eu entrei na minha primeira crise profissional. Quando comecei, compreendi que dando aula eu não ensinava a todos. Então, uma crise moral se instalou. Eu não compreendia porque eles não aprendiam, se eu dava aula tão bem dada. Aí eu fui procurar saber. E então, encontrei Maria Montessori, Célestin Freinet (1896-1966), Jean Piaget (1896-1980), Rudolf Steiner (1861-1925)… Enfim, peguei aquilo tudo e vesti a minha sala de aula – era uma “árvore de Natal”, porque estava enfeitada de projetos. Mas continuava a ser aula e eu continuava sozinho. Até que chego à Ponte e a diretora me diz: “Ainda bem que chegou um homem.” Achei estranho, eram muitas mulheres, e eu fui o único homem durante 30 anos. Disse à diretora: “Mas, por quê?”.

Ela disse: “É que nós temos uma ‘turma de lixo’”. A “turma de lixo” era formada por jovens que já tinham passado seis anos na escola e estavam na primeira série. Eles tinham 15 anos e, no ano seguinte, iriam embora analfabetos e sem um diploma. Ela me disse: “Eles são violentos, bateram e mandaram sua colega para o hospital.” Na primeira aula, começo a instalar as minhas bugigangas e pergunto porque eles ainda estão na primeira série. “Olha, professor, nós já tivemos seis professores. Todos eles ensinam muito bem, mas a gente é burro, sabe? Não tem cabeça para aprender.” E perguntei como é que os outros lhes ensinaram. “Ensinam todos da mesma maneira: a... e... i... o... u...". Olhei para eles e senti um estremecer em mim. Eu só sabia ensinar daquela maneira. Nunca tinha percebido que havia alunos que não aprendiam. Entrei na minha segunda crise.

O que fez para atravessar esse momento?

Naquele momento, eu levantei a hipótese de deixar de ser professor. Porque eu só sabia trabalhar daquela maneira, e ensinar a ler daquela maneira. Mas se eu continuasse a ensiná-los daquela maneira, eles iriam aprender? Não. Então, ou aprendia ou ia embora da profissão. Porque, se eu continuasse a ensiná-los da maneira que eu sabia que eles não iriam aprender, seria antiético. Já não era uma questão moral, era uma questão ética. Fui para casa, falei com a minha companheira, voltei à escola e perguntei se havia alguém que quisesse fazer equipe comigo, porque eu precisava aprender a ensinar a ler. Houve duas

educadoras. Eu fiquei com alfabetização linguística. A cada semana, um de nós podia sair duas vezes [da sala de aula]. Foi nesse momento que percebi que eu não podia continuar em sala de aula, e deixamos de lecionar centrando no professor. Foi a primeira vez no mundo, na educação, que uma escola pública passa do paradigma da instrução, da sala da aula-professor-turma, para o paradigma da aprendizagem, que Maria Montessori e toda aquela gente tinha dito no princípio do século. Que Lourenço Filho (1897-1970), Anísio Teixeira (1900-1971), Darcy Ribeiro (1922-1997) e tantos outros já tinham dito. Foi a primeira vez, ainda que com 50 anos de atraso.

Quais foram suas referências para desenvolver o que viria a ser o projeto pedagógico Fazer a Ponte, no qual não há turmas e classes, mas grupos com estudantes de diferentes idades e interesses em comum?

Fui aprender a ensinar a ler. Aprendi, por exemplo, psicologia da aprendizagem, psicologia da linguagem, psicologia de processos cognitivos, psicologia social. Depois, fui aprender outras abordagens metodológicas da iniciação à leitura e escrita. Não havia apenas o método fônico. Descobri mais 24 e dava a cada um aquilo que ele precisava. Descobri que uma criança com quatro anos já sabe ler, entra na escola e fica analfabeta. Ela entra na escola, é metida numa turma com uma professora, uma boa profissional, mas que ensina todos ao mesmo tempo, desprezando o ritmo de cada um. E ao fim de um tempo, diz à direção: “Olha, este não acompanha.” Não acompanha o quê? Ela ensina todos seguindo o mesmo método, quando cada um aprende a seu modo. Encontrei uma criança que sabia

19 | e entrevista
Se a sociedade não muda a educação, a educação não muda as pessoas e as pessoas não mudam a sociedade

400 palavras aos cinco anos de idade, entrou na escola e teve problemas porque a professora queria que ela aprendesse o “a-e-i-o-u”. Aprendi também outra coisa: que não há idade para aprender a ler, já ensinei a ler homens e mulheres aos 90 anos. Aquela turma que não sabia ler me levou a perceber que eu não deveria continuar sozinho em sala de aula. Aquela turma me levou a entender que para aprender a ler, a escrever, é preciso especialistas, mas no contexto de equipe.

Depois de 30 anos à frente da Escola da Ponte, você decidiu se mudar para o Brasil, em 2005,

e se dedicar a outros projetos pedagógicos. O que o motivou a fazer essa mudança?

Foi um senhor chamado Rubem Alves [(1933-2014), educador, teólogo e escritor brasileiro], que visitou a Ponte e me trouxe para cá. Quando eu cheguei, eu vinha muito etnocêntrico, europeu, com a mania de que eu tinha inventado a roda, a Escola da Ponte, a escola com que sempre sonhei e tal. Eu era um vaidoso. Aí eu fui para o chão da escola, vi professores que ganham muito mal, que têm o estatuto depreciado, mas que têm um amor tão grande, uma intuição pedagógica tão grande e uma

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O professor José Pacheco coordenou a mesa Projetos Temáticos Transversais, na Jornada Curumim –Educar para a Convivência e Cidadania, realizada em novembro de 2022, no Sesc Pompeia.

dedicação tão grande. Até que li Anísio Teixeira, Nise da Silveira (1905-1999), Lourenço Filho, Milton Santos (1926-2001), Florestan Fernandes (1920-1995), Darcy Ribeiro, Paulo Freire (1921-1997), Lauro de Oliveira Lima (1921-2013), e se abriu tudo o que era novo e eu descobri que o futuro da educação está no [hemisfério] sul. Decidi ficar. Estou aqui há 20 anos, não entendo nada do Brasil, mas vou entendendo um pouquinho da educação. Não entendo o Brasil, porque, como disse Darcy Ribeiro, “o Brasil não é para amadores”. E realmente, quanto mais eu conheço o país, menos o entendo. Mas eu fico encantado com esse mistério. Vou a Portugal, tenho lá meus netos, meus filhos, meus amigos e tenho muitos projetos com ex-alunos que agora são prefeitos de cidades, são diretores, e me pedem para ir lá, mas é aqui que eu vou ficar.

Durante a pandemia, a imersão da sociedade no ambiente digital se acelerou e, com isso, uma geração de crianças e adolescentes tiveram, exclusivamente, aulas online. Nesse cenário, cresceram evasão escolar, dificuldades de aprendizado e danos à saúde mental. Que reflexão você faz sobre os efeitos desse período para a educação?

Para muitos professores, o digital surge como uma necessidade quando os prédios das escolas fecham. Este modelo de 99% das escolas provém do militarismo prussiano: filas, disciplina imposta, punições. Nasce também na França, nos conventos, a sala de aula com uma monja sozinha, “a tia”. Nasce na primeira Revolução Industrial, por isso a padronização do tempo, a aula que dura 50 minutos mais um intervalo para apanhar Sol, como nas prisões. Quando vem a segunda Revolução Industrial, o 2.0, na década de 1980, o computador é utilizado nas escolas em laboratórios. Ou seja, ele é utilizado para ensinar. E o

que foi que nós fizemos na Ponte? No computador, criouse uma intranet e cada um [dos estudantes] utilizava quando queria fazer uma pesquisa. Quando vem o 3.0, a internet da década de 1990, o que as escolas fizeram? O ensino a distância, algo que, na minha opinião, é tão inútil quanto o ensino presencial. E o que nós fizemos na Ponte? Começamos a utilizar a internet não para o ensino a distância, mas para a aprendizagem presencial e a distância. Ou seja, quando começou a pandemia, os projetos que eu acompanhava continuaram porque eles têm o presencial e o a distância simultaneamente. Eles não se excluem. Surge um conceito novo: que as escolas não são prédios, são pessoas. E eu entro em outra crise porque percebo que o centro não é o aluno. Só que nós estamos em 2022 [quando foi realizada esta entrevista], e 99% das escolas ainda têm o professor como centro, mesmo que digam que o centro é o aluno. Ou seja, nem sequer conseguiram alcançar aquilo que a Ponte fez há 46 anos.

Sendo assim, a escola não teria nem o professor nem o aluno como centro?

O centro é a relação. O centro é o vínculo cognitivo, afetivo, emocional, estético, ético, espiritual que se contrai com alguém, com algo. O triângulo da aprendizagem, mediador e objeto no contexto de uma comunidade. Ninguém aprende sozinho. E quando Carlos Rodrigues Brandão, educador e grande amigo, disse, antes de Paulo Freire, que a educação não muda a sociedade, a educação muda as pessoas e as pessoas é que mudam a sociedade, escapou um pormenor: se a sociedade não muda a educação, a educação não mudará as pessoas e as pessoas não mudarão a sociedade. Entraremos num círculo vicioso? Onde pode ser rompido esse círculo vicioso? Na família? Na sociedade? Não, elas reproduzem o modelo. Ele pode ser rompido na escola. A escola considerada como uma

21 | e entrevista
(...) Quem quiser ser professor, não precisa de um curso de quatro anos, basta uns meses nessas comunidades [indígenas]. Eles aprendem como é que a criança se desenvolve. É uma lição de pedagogia que o brasileiro nem entende que tem dentro de si

nova construção social. O modelo em que o centro é o professor hierárquico e autoritário. É o sujeito de aprendizagem no contexto de um projeto coletivo, o que poderemos chamar de comunidade de aprendizagem.

E como você vê, principalmente depois da pandemia, a presença da inteligência artificial e de outros aparatos tecnológicos como aliados da educação?

Num congresso recente, se apresentou um robô que substitui o professor na sala de aula. Afinal, “o robô é mais barato”. Onde chegamos! E há robôs nas universidades americanas que transmitem conteúdo a distância. Já viram o risco que nós estamos correndo? De ver as crianças se defrontarem com uma máquina que não pensa, que não sente, que não dialoga? Quando a aprendizagem acontece? Na interação, no diálogo e em comunidade.

Como seria esse novo modelo de educação que desloca o estudante do centro para que o foco esteja no vínculo entre ele e o professor?

Eu tenho de ajudar a idealizá-lo. Espero que isso aconteça dentro de cerca de dois anos, uma nova construção social que substitua essa que vem do século 18 e 19, porque essa não serve. Basta ver a guerra na Ucrânia e todos os tipos de violência nas ruas. Estamos na protohistória da humanidade, porque este modelo, como diria Montessori, um modelo que incita a competitividade, é a origem remota de todas as guerras. Não precisamos de competitividade, precisamos de cooperação, de colaboração, de fraternidade. Eu quero passar para o Brasil aquilo que o país me deu e, depois, partir descansado. Então, o que vai acontecer é uma síntese daquilo que o Brasil tem como potencial para uma nova construção social. E esse novo modelo que estou criando vai acontecer a partir de quatro premissas.

Quais seriam essas premissas?

Primeira: quando eu fui para as comunidades Xavante, Pataxós, Tupinambá, passei meses inteiros lá e percebi que quem quiser ser professor, não precisa de um curso de quatro anos, basta uns meses nessas comunidades. Eles aprendem como é que a criança se desenvolve.

É uma lição de pedagogia que o brasileiro nem entende que tem dentro de si. Segunda premissa: quando visitei os quilombos, me apercebi de que os africanos escravizados durante 300 anos introduziram no Brasil algo a que se deu o nome “ubuntu”. E que sabem ser preciso uma tribo inteira para educar uma criança. A terceira premissa está no caldo cultural da miscigenação de portugueses, italianos, alemães, japoneses e outras nacionalidades que aqui convergem. E finalmente, a quarta premissa: 75% dos alunos brasileiros vivem em favelas. Onde é que está a maior solidariedade e autonomia no país? Nas favelas. Elas sobrevivem a partir da cooperação. E eu trabalhei em favela, nasci numa favela, sei muito bem qual é a cultura de cooperação para sobreviver. Então, essas quatro premissas me levaram a constituir um protótipo e ele vai acontecer no estado do Rio de Janeiro e poderá ser replicado em outras partes do país. E quando me perguntam: “Ó, Zé Pacheco, o que vais fazer no Brasil?", respondo: no chão da escola brasileira é que eu aprendo.

Assista ao vídeo com trechos da Entrevista com o educador José Pacheco, gravada durante a Jornada Curumim – Educar para a Convivência e Cidadania, realizada em novembro de

2022, no Sesc Pompeia. Saiba mais sobre o programa Curumim: sescsp.org.br/curumim.

Quando a aprendizagem acontece?
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Na interação, no diálogo e em comunidade

RETOMAR TRABALHOS COM A ORALIDADE É UMA FORMA DE DEMOCRATIZAR A HISTÓRIA, DE RECONHECER CADA SUJEITO

COMO UM AGENTE HISTÓRICO

Suzana Ribeiro, professora e historiadora

histórico e valorizar o cotidiano como produtor de permanências e mudanças históricas”, ressalta a pesquisadora, que também é diretora da Fala Escrita, iniciativa que, desde 2007, desenvolve projetos de história oral e, com eles, organiza livros, exposições e acervos que refletem sobre memória e identidade.

Nas últimas décadas, mais ações como essa desdobram-se pelo país, a exemplo da iniciativa pioneira do Museu da Pessoa, criado em 1991 [Leia Valorizar Memórias], e do premiado podcast Negra Voz, do jornalista Tiago Rogero, sobre a herança africana e os grandes feitos de negras e negros do passado e do presente no país. “Na escola, ao se ensinar sobre pessoas negras nos períodos da colônia e do Império no Brasil, elas só aparecem como escravizadas no tronco. Ignora-se que, mesmo nessa condição, muitas estavam resistindo, formando quilombos, professando sua fé, formando famílias, aprendendo a ler, ensinando outros”, disse Rogero em entrevista à edição de janeiro de 2023 da Revista E

e que hoje a gente praticamente nem vê mais. a renda não era suficiente para isso, mas eu facilidade, oferecer uma coisa melhor para eles, para nós. eu fazia faxina no prédio todo, dos a partir das 10 horas da noite as atendentes iam embora, aí eu assumia o serviço de atendente. auxílio à telefonista. ele tirava o telefone do gancho caía uma chapinha na mesa dele que ligava crio os meus dois filhos sozinha. a gente brincava muito. eu gostava muito de brincar com da mudança foi a falta de recursos mesmo. meu pai adoeceu, ele teve problema de cabeça, conta de turmas que trabalhavam na lavoura, na colheita de abóbora, batata, colheita de uberlândia nessa época. então ele era o carroceiro de preferência dessas empresas, transportando simples, coisa simples, compreendeu? coisa que se você vai analisar é essas casas de casebre colocar alguns no mercado, mas a gente tinha que vender o restante. e esse restante eu tinha escreve o nome nem para votar. a minha mãe, a gente tentou ajudá-la e ela conseguiu aprender filhos, mais uma casa, e mantê-los na escola. então, a gente dividia a responsabilidade. durante casa. e como que eu ganhava isso? era por meio desse serviço que eu disse. quando meu pai que era buscar alguma coisa na vida para eu ajudar meus pais. porque eu não queria ver meus tirar defeito dos telefones e instalar telefones novos nas casas. à noite, encerrava o expediente mas da meia-noite em diante ninguém mais chamava. porque o serviço era semi-automático, eu atendia, com a pega a, e conectava ele com a pega b, através de um circuito que saía de árvores, vivia caindo das árvores. eu apanhei muito da minha mãe, porque eu era muito levada, ele sumiu, desapareceu. foi quando minha mãe veio para uberlândia, porque aqui estava quando ele veio para o brasil, o primeiro serviço dele foi trabalhar na estrada de ferro mogiana. época, o que tinha? eles chamavam de pau-a-pique, era de adobo, era de barro. ela tinha então, partiu para outras fases. quando nós mudamos para a cidade que eu estou dizendo, gente colocava naquelas cestas de bambu, e eu vendia aquilo na rua. eu saía o dia todo, vendendo, sempre eles trabalharam em um serviço braçal, na lavoura mesmo. carpir em roça, plantar sempre tinha a responsabilidade dentro de casa de comprar as coisas, de ajudar na cesta básica fábrica de biscoitos, o biscoito caseiro, a gente assava naquele forno caseiro mesmo, na folha gente tinha passado os outros anos. não que não compensou, porque até então se nós existimos eu pegava das 10 horas da noite até 7:00 horas da manhã. eu ficava no plantão, que era um ele ligava e a atendente conectava com a cidade. o cliente não tinha condições de fazer ligações essa linha dava, na época, mais ou eu não fui casada no papel. eu tive um relacionamento bem da pá virada. nós viemos de tupaciguara para uberlândia quando eu tinha 8 anos de idade, avô morava em um sítio no bairro saraiva. no início a gente morava lá, depois nós fomos morar estação da mogiana para várias empresas de uberlândia, como casa póvoa, joaquim fonseca sala muito grande onde fazia-se as refeições, dos dois lados mais dois quartos e uma área queijo. a minha responsabilidade era vender os biscoitos e os pães de queijo na cidade. nós que eu pegava no supermercado. meus pais sempre foram de família muito pobre, muito humilde. lidade, porque nós éramos em sete, depois passamos para nove, e a renda que meu pai tinha era o querosene, que a gente não tinha energia, essa cota era minha, eu tinha que comprar a gente praticamente nem vê mais. a renda não era suficiente para isso, mas eu já tinha uma uma coisa melhor para eles, para nós. eu fazia faxina no prédio todo, dos serviços gerais. eu horas da noite as atendentes iam embora, aí eu assumia o serviço de atendente. às vezes, até ele tirava o telefone do gancho caía uma chapinha na mesa dele que ligava uma campainha, filhos sozinha. a gente brincava muito. eu gostava muito de brincar com as crianças, eu andava falta de recursos mesmo. meu pai adoeceu, ele teve problema de cabeça, ficou meio maluco. que trabalhavam na lavoura, na colheita de abóbora, batata, colheita de uva e várias atividades, época. então ele era o carroceiro de preferência dessas empresas, transportando as mercadorias. compreendeu? coisa que se você vai analisar é essas casas de casebre que a gente vê hoje. mas a gente tinha que vender o restante. e esse restante eu tinha que sair com uma sacola a minha mãe, a gente tentou ajudá-la e ela conseguiu aprender a ler e escrever, então ela na escola. então, a gente dividia a responsabilidade. durante todo esse tempo até eu me casar, era por meio desse serviço que eu disse. quando meu pai decidiu que nós trabalharíamos com para eu ajudar meus pais. porque eu não queria ver meus pais sofrer a vida toda na lavoura telefones novos nas casas. à noite, encerrava o expediente e ia para a minha casa tranqüilo. mais chamava. porque o serviço era semi-automático, se o cliente quisesse utilizar a rede ele com a pega b, através de um circuito que saía de paranaíba e seguia por uma linha física muito da minha mãe, porque eu era muito levada, muito capeta, eu fugia de casa, uma infância mãe veio para uberlândia, porque aqui estava meu avô, o pai dela. e eles ajudaram a criar a dele foi trabalhar na estrada de ferro mogiana. depois foi carroceiro transportando mercadorias era de adobo, era de barro. ela tinha na frente uma sala, ao lado um quarto, no meio uma para a cidade que eu estou dizendo, meu pai montou para nós uma fábrica de biscoito e pão aquilo na rua. eu saía o dia todo, vendendo, quando não era o pão de queijo, era a mexerica mesmo. carpir em roça, plantar arroz, plantar milho, de sol a sol, o ano todo. e a gente tinha coisas, de ajudar na cesta básica mensal. eu tinha minha cota, por exemplo, o arroz e o açúcar. forno caseiro mesmo, na folha de bananeira, era aquele biscoitão redondo que a gente fazia porque até então se nós existimos era porque compensou. mas a gente queria dar uma facilidade, ficava no plantão, que era um plantão virtual. se chamassem, eu estava dentro da empresa. não tinha condições de fazer ligações sozinho. um ddd, por exemplo, ele tinha que pedir auxílio no papel. eu tive um relacionamento de muitos anos e tive meus filhos. hoje eu sou sozinha, dia quando eu tinha 8 anos de idade, porque o meu avô materno morava aqui. o motivo da morava lá, depois nós fomos morar em outra casa. meu pai, quando em portugal, tomava casa póvoa, joaquim fonseca e silva, teixeira costa, que eram empresas que tinham em uberlândia dois quartos e uma área que descia assim onde era a cozinha. mas uma casa muito simples, de queijo na cidade. nós não tínhamos uma clientela definida. nós conseguimos colocar alguns família muito pobre, muito humilde. meus pais são analfabetos, meu pai não escreve o nome nove, e a renda que meu pai tinha não era suficiente para manter os nove filhos, mais uma era minha, eu tinha que comprar isso. eu tinha que colocar isso dentro de casa. e como que para isso, mas eu já tinha uma meta definida que eu queria alcançar, que era buscar alguma prédio todo, dos serviços gerais. eu terminava a faxina e ia para a rua tirar defeito dos telefones o serviço de atendente. às vezes, até meia-noite tinha serviço mesmo, mas da meia-noite mesa dele que ligava uma campainha, aí o atendente atendia, no caso, eu atendia, com a muito de brincar com as crianças, eu andava de bicicleta, eu subia nas árvores, vivia caindo problema de cabeça, ficou meio maluco. não é... para falar a verdade, ele sumiu, desapareceu. batata, colheita de uva e várias atividades, vamos dizer assim. quando ele veio para o brasil, empresas, transportando as mercadorias. a casa naquela época, o que tinha? eles chamavam casas de casebre que a gente vê hoje. mas dali, a gente, então, partiu para outras fases. quando restante eu tinha que sair com uma sacola vendendo. a gente colocava naquelas cestas de conseguiu aprender a ler e escrever, então ela consegue. e sempre eles trabalharam em um dade. durante todo esse tempo até eu me casar, eu sempre tinha a responsabilidade dentro meu pai decidiu que nós trabalharíamos com essa fábrica de biscoitos, o biscoito caseiro, ver meus pais sofrer a vida toda na lavoura igual a gente tinha passado os outros anos. não diente e ia para a minha casa tranqüilo. à noite, eu pegava das 10 horas da noite até 7:00 horas se o cliente quisesse utilizar a rede telefônica, ele ligava e a atendente conectava com a cidade. paranaíba e seguia por

Compreender e valorizar a oralidade como um documento histórico não só permitiu a organização das práticas de história oral e de movimentos de pesquisa, publicações e outros suportes, como também ecoou uma pluralidade de vozes. “Dessa maneira, [essas narrativas de vida] representam melhor a diversidade de pessoas que compõem a população de cidades como São Paulo e países como o Brasil. Digo mais; qualquer história de cidades ou países que não seja plural, é parcial e excludente”, acrescenta a pesquisadora Suzana Ribeiro.

O artista, museólogo e fundador do Museu Afro Brasil, Emanoel Araújo (1940-2022), também deixou seu depoimento no acervo do Museu da Pessoa: "Puxa vida, tudo isso feito por uma pessoa? Com o parco dinheiro que tem do seu trabalho? Puxa vida! Eu acho que tiro o chapéu para mim mesmo".

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Adenor Gondin/Acervo de entrevistados Museu da Pessoa
memória

eu já tinha uma meta definida que eu queria alcançar, que era buscar alguma coisa na vida para eu ajudar meus pais. porque eu não queria ver meus pais sofrer dos serviços gerais. eu terminava a faxina e ia para a rua tirar defeito dos telefones e instalar telefones novos nas casas. à noite, encerrava o expediente e ia para a atendente. às vezes, até meia-noite tinha serviço mesmo, mas da meia-noite em diante ninguém mais chamava. porque o serviço era semi-automático, se o cliente ligava uma campainha, aí o atendente atendia, no caso, eu atendia, com a pega a, e conectava ele com a pega b, através de um circuito que saía de paranaíba e seguia as crianças, eu andava de bicicleta, eu subia nas árvores, vivia caindo das árvores. eu apanhei muito da minha mãe, porque eu era muito levada, muito capeta, cabeça, ficou meio maluco. não é... para falar a verdade, ele sumiu, desapareceu. foi quando minha mãe veio para uberlândia, porque aqui estava meu avô, o pai dela. e uva e várias atividades, vamos dizer assim. quando ele veio para o brasil, o primeiro serviço dele foi trabalhar na estrada de ferro mogiana. depois foi carroceiro transportando as mercadorias. a casa naquela época, o que tinha? eles chamavam de pau-a-pique, era de adobo, era de barro. ela tinha na frente uma sala, ao lado casebre que a gente vê hoje. mas dali, a gente, então, partiu para outras fases. quando nós mudamos para a cidade que eu estou dizendo, meu pai montou para nós tinha que sair com uma sacola vendendo. a gente colocava naquelas cestas de bambu, e eu vendia aquilo na rua. eu saía o dia todo, vendendo, quando não era aprender a ler e escrever, então ela consegue. e sempre eles trabalharam em um serviço braçal, na lavoura mesmo. carpir em roça, plantar arroz, plantar milho, de durante todo esse tempo até eu me casar, eu sempre tinha a responsabilidade dentro de casa de comprar as coisas, de ajudar na cesta básica mensal. eu tinha minha pai decidiu que nós trabalharíamos com essa fábrica de biscoitos, o biscoito caseiro, a gente assava naquele forno caseiro mesmo, na folha de bananeira, era aquele meus pais sofrer a vida toda na lavoura igual a gente tinha passado os outros anos. não que não compensou, porque até então se nós existimos era porque compensou. expediente e ia para a minha casa tranqüilo. à noite, eu pegava das 10 horas da noite até 7:00 horas da manhã. eu ficava no plantão, que era um plantão virtual. se chamassem, semi-automático, se o cliente quisesse utilizar a rede telefônica, ele ligava e a atendente conectava com a cidade. o cliente não tinha condições de fazer ligações sozinho. um de paranaíba e seguia por uma linha física até uberlândia. essa linha dava, na época, mais ou eu não fui casada no papel. eu tive um relacionamento de muitos anos levada, muito capeta, eu fugia de casa, uma infância assim bem da pá virada. nós viemos de tupaciguara para uberlândia quando eu tinha 8 anos de idade, porque meu avô, o pai dela. e eles ajudaram a criar a gente. meu avô morava em um sítio no bairro saraiva. no início a gente morava lá, depois nós fomos morar em outra mogiana. depois foi carroceiro transportando mercadorias da estação da mogiana para várias empresas de uberlândia, como casa póvoa, joaquim fonseca e silva, na frente uma sala, ao lado um quarto, no meio uma outra sala muito grande onde fazia-se as refeições, dos dois lados mais dois quartos e uma área que descia dizendo, meu pai montou para nós uma fábrica de biscoito e pão de queijo. a minha responsabilidade era vender os biscoitos e os pães de queijo na cidade. nós não tínhamos vendendo, quando não era o pão de queijo, era a mexerica e a laranja, que eu pegava no supermercado. meus pais sempre foram de família muito pobre, muito humilde. plantar arroz, plantar milho, de sol a sol, o ano todo. e a gente tinha responsabilidade, porque nós éramos em sete, depois passamos para nove, e a renda que meu pai básica mensal. eu tinha minha cota, por exemplo, o arroz e o açúcar. na época era o querosene, que a gente não tinha energia, essa cota era minha, eu tinha que folha de bananeira, era aquele biscoitão redondo que a gente fazia e que hoje a gente praticamente nem vê mais. a renda não era suficiente para isso, mas eu já existimos era porque compensou. mas a gente queria dar uma facilidade, oferecer uma coisa melhor para eles, para nós. eu fazia faxina no prédio todo, dos serviços um plantão virtual. se chamassem, eu estava dentro da empresa. a partir das 10 horas da noite as atendentes iam embora, aí eu assumia o serviço de atendente. às ligações sozinho. um ddd, por exemplo, ele tinha que pedir auxílio à telefonista. ele tirava o telefone do gancho caía uma chapinha na mesa dele que ligava uma campainha, de muitos anos e tive meus filhos. hoje eu sou sozinha, crio os meus dois filhos sozinha. a gente brincava muito. eu gostava muito de brincar com as crianças, eu idade, porque o meu avô materno morava aqui. o motivo da mudança foi a falta de recursos mesmo. meu pai adoeceu, ele teve problema de cabeça, ficou meio morar em outra casa. meu pai, quando em portugal, tomava conta de turmas que trabalhavam na lavoura, na colheita de abóbora, batata, colheita de uva e várias fonseca e silva, teixeira costa, que eram empresas que tinham em uberlândia nessa época. então ele era o carroceiro de preferência dessas empresas, transportando área que descia assim onde era a cozinha. mas uma casa muito simples, coisa simples, compreendeu? coisa que se você vai analisar é essas casas de casebre que a não tínhamos uma clientela definida. nós conseguimos colocar alguns no mercado, mas a gente tinha que vender o restante. e esse restante eu tinha que sair com humilde. meus pais são analfabetos, meu pai não escreve o nome nem para votar. a minha mãe, a gente tentou ajudá-la e ela conseguiu aprender a ler e escrever, tinha não era suficiente para manter os nove filhos, mais uma casa, e mantê-los na escola. então, a gente dividia a responsabilidade. durante todo esse tempo até comprar isso. eu tinha que colocar isso dentro de casa. e como que eu ganhava isso? era por meio desse serviço que eu disse. quando meu pai decidiu que nós trabalharíamos uma meta definida que eu queria alcançar, que era buscar alguma coisa na vida para eu ajudar meus pais. porque eu não queria ver meus pais sofrer a vida toda na eu terminava a faxina e ia para a rua tirar defeito dos telefones e instalar telefones novos nas casas. à noite, encerrava o expediente e ia para a minha casa tranqüilo. até meia-noite tinha serviço mesmo, mas da meia-noite em diante ninguém mais chamava. porque o serviço era semi-automático, se o cliente quisesse utilizar a campainha, aí o atendente atendia, no caso, eu atendia, com a pega a, e conectava ele com a pega b, através de um circuito que saía de paranaíba e seguia por uma linha andava de bicicleta, eu subia nas árvores, vivia caindo das árvores. eu apanhei muito da minha mãe, porque eu era muito levada, muito capeta, eu fugia de casa, uma maluco. não é... para falar a verdade, ele sumiu, desapareceu. foi quando minha mãe veio para uberlândia, porque aqui estava meu avô, o pai dela. e eles ajudaram a criar atividades, vamos dizer assim. quando ele veio para o brasil, o primeiro serviço dele foi trabalhar na estrada de ferro mogiana. depois foi carroceiro transportando mercadorias mercadorias. a casa naquela época, o que tinha? eles chamavam de pau-a-pique, era de adobo, era de barro. ela tinha na frente uma sala, ao lado um quarto, no meio mas dali, a gente, então, partiu para outras fases. quando nós mudamos para a cidade que eu estou dizendo, meu pai montou para nós uma fábrica de biscoito sacola vendendo. a gente colocava naquelas cestas de bambu, e eu vendia aquilo na rua. eu saía o dia todo, vendendo, quando não era o pão de queijo, era a mexerica consegue. e sempre eles trabalharam em um serviço braçal, na lavoura mesmo. carpir em roça, plantar arroz, plantar milho, de sol a sol, o ano todo. e a gente tinha casar, eu sempre tinha a responsabilidade dentro de casa de comprar as coisas, de ajudar na cesta básica mensal. eu tinha minha cota, por exemplo, o arroz e o açúcar. com essa fábrica de biscoitos, o biscoito caseiro, a gente assava naquele forno caseiro mesmo, na folha de bananeira, era aquele biscoitão redondo que a gente lavoura igual a gente tinha passado os outros anos. não que não compensou, porque até então se nós existimos era porque compensou. mas a gente queria dar uma tranqüilo. à noite, eu pegava das 10 horas da noite até 7:00 horas da manhã. eu ficava no plantão, que era um plantão virtual. se chamassem, eu estava dentro da empresa. telefônica, ele ligava e a atendente conectava com a cidade. o cliente não tinha condições de fazer ligações sozinho. um ddd, por exemplo, ele tinha que pedir auxílio física até uberlândia. essa linha dava, na época, mais ou eu não fui casada no papel. eu tive um relacionamento de muitos anos e tive meus filhos. hoje eu sou sozinha, infância assim bem da pá virada. nós viemos de tupaciguara para uberlândia quando eu tinha 8 anos de idade, porque o meu avô materno morava aqui. o motivo a gente. meu avô morava em um sítio no bairro saraiva. no início a gente morava lá, depois nós fomos morar em outra casa. meu pai, quando em portugal, tomava mercadorias da estação da mogiana para várias empresas de uberlândia, como casa póvoa, joaquim fonseca e silva, teixeira costa, que eram empresas que tinham em outra sala muito grande onde fazia-se as refeições, dos dois lados mais dois quartos e uma área que descia assim onde era a cozinha. mas uma casa muito simples, pão de queijo. a minha responsabilidade era vender os biscoitos e os pães de queijo na cidade. nós não tínhamos uma clientela definida. nós conseguimos colocar mexerica e a laranja, que eu pegava no supermercado. meus pais sempre foram de família muito pobre, muito humilde. meus pais são analfabetos, meu pai não escreve o tinha responsabilidade, porque nós éramos em sete, depois passamos para nove, e a renda que meu pai tinha não era suficiente para manter os nove filhos, mais uma açúcar. na época era o querosene, que a gente não tinha energia, essa cota era minha, eu tinha que comprar isso. eu tinha que colocar isso dentro de casa. e como fazia e que hoje a gente praticamente nem vê mais. a renda não era suficiente para isso, mas eu já tinha uma meta definida que eu queria alcançar, que era buscar facilidade, oferecer uma coisa melhor para eles, para nós. eu fazia faxina no prédio todo, dos serviços gerais. eu terminava a faxina e ia para a rua tirar defeito dos empresa. a partir das 10 horas da noite as atendentes iam embora, aí eu assumia o serviço de atendente. às vezes, até meia-noite tinha serviço mesmo, mas da meia-noite auxílio à telefonista. ele tirava o telefone do gancho caía uma chapinha na mesa dele que ligava uma campainha, aí o atendente atendia, no caso, eu atendia, com sozinha, crio os meus dois filhos sozinha. a gente brincava muito. eu gostava muito de brincar com as crianças, eu andava de bicicleta, eu subia nas árvores, vivia caindo das da mudança foi a falta de recursos mesmo. meu pai adoeceu, ele teve problema de cabeça, ficou meio maluco. não é... para falar a verdade, ele sumiu, desapareceu. conta de turmas que trabalhavam na lavoura, na colheita de abóbora, batata, colheita de uva e várias atividades, vamos dizer assim. quando ele veio para o brasil, uberlândia nessa época. então ele era o carroceiro de preferência dessas empresas, transportando as mercadorias. a casa naquela época, o que tinha? eles chamavam simples, coisa simples, compreendeu? coisa que se você vai analisar é essas casas de casebre que a gente vê hoje. mas dali, a gente, então, partiu para outras fases. quando alguns no mercado, mas a gente tinha que vender o restante. e esse restante eu tinha que sair com uma sacola vendendo. a gente colocava naquelas cestas de bambu, nome nem para votar. a minha mãe, a gente tentou ajudá-la e ela conseguiu aprender a ler e escrever, então ela consegue. e sempre eles trabalharam em um serviço uma casa, e mantê-los na escola. então, a gente dividia a responsabilidade. durante todo esse tempo até eu me casar, eu sempre tinha a responsabilidade dentro de que eu ganhava isso? era por meio desse serviço que eu disse. quando meu pai decidiu que nós trabalharíamos com essa fábrica de biscoitos, o biscoito caseiro, a gente alguma coisa na vida para eu ajudar meus pais. porque eu não queria ver meus pais sofrer a vida toda na lavoura igual a gente tinha passado os outros anos. não que telefones e instalar telefones novos nas casas. à noite, encerrava o expediente e ia para a minha casa tranqüilo. à noite, eu pegava das 10 horas da noite até 7:00 horas em diante ninguém mais chamava. porque o serviço era semi-automático, se o cliente quisesse utilizar a rede telefônica, ele ligava e a atendente conectava com pega a, e conectava ele com a pega b, através de um circuito que saía de paranaíba e seguia por uma linha física até uberlândia. essa linha dava, na época, mais caindo das árvores. eu apanhei muito da minha mãe, porque eu era muito levada, muito capeta, eu fugia de casa, uma infância assim bem da pá virada. nós viemos de desapareceu. foi quando minha mãe veio para uberlândia, porque aqui estava meu avô, o pai dela. e eles ajudaram a criar a gente. meu avô morava em um sítio no bairro saraiva. brasil, o primeiro serviço dele foi trabalhar na estrada de ferro mogiana. depois foi carroceiro transportando mercadorias da estação da mogiana para várias empresas chamavam de pau-a-pique, era de adobo, era de barro. ela tinha na frente uma sala, ao lado um quarto, no meio uma outra sala muito grande onde fazia-se as refeições, quando nós mudamos para a cidade que eu estou dizendo, meu pai montou para nós uma fábrica de biscoito e pão de queijo. a minha responsabilidade era vender de bambu, e eu vendia aquilo na rua. eu saía o dia todo, vendendo, quando não era o pão de queijo, era a mexerica e a laranja, que eu pegava no supermercado. um serviço braçal, na lavoura mesmo. carpir em roça, plantar arroz, plantar milho, de sol a sol, o ano todo. e a gente tinha responsabilidade, porque nós éramos em dentro de casa de comprar as coisas, de ajudar na cesta básica mensal. eu tinha minha cota, por exemplo, o arroz e o açúcar. na época era o querosene, que a gente não a gente assava naquele forno caseiro mesmo, na folha de bananeira, era aquele biscoitão redondo que a gente fazia e que hoje a gente praticamente nem vê mais. que não compensou, porque até então se nós existimos era porque compensou. mas a gente queria dar uma facilidade, oferecer uma coisa melhor para eles, para horas da manhã. eu ficava no plantão, que era um plantão virtual. se chamassem, eu estava dentro da empresa. a partir das 10 horas da noite as atendentes iam embora, cidade. o cliente não tinha condições de fazer ligações sozinho. um ddd, por exemplo, ele tinha que pedir auxílio à telefonista. ele tirava o telefone do gancho caía por uma uberlândia.

Natt Fejfar

memória / para ver no sesc

VALORIZAR MEMÓRIAS

Exposição no Sesc Bom Retiro reúne depoimentos que fazem parte do acervo do Museu da Pessoa e convida o público a compartilhar a própria história

Composta por uma seleção de testemunhos presentes em suporte audiovisual no acervo do Museu da Pessoa, a exposição Qual é o seu legado? – 30 anos do Museu da Pessoa no Brasil, em cartaz no Sesc Bom Retiro até abril, reforça o objetivo da instituição: tornar a história de toda e qualquer pessoa um patrimônio da humanidade. Parceiro do Sesc São Paulo desde os primeiros anos de atuação, este que é um museu virtual e colaborativo de histórias de vida,

preserva 18 mil depoimentos e 60 mil fotos e documentos digitalizados. Um acervo que já foi visitado, nos últimos três anos, por dois milhões de pessoas.

“Acho que esta exposição tem muitas portas de entrada. Uma permite que o visitante identifique como pessoas comuns podem aportar tantos saberes e perspectivas sobre a sociedade contemporânea brasileira. Mas existe também um desejo pela

emoção, pela construção de pontes e identificação entre os visitantes e o acervo. Algo que permita com que cada pessoa ‘se veja’ na exposição. Por fim, há uma tentativa de ampliar a compreensão sobre o que é e para que serve uma iniciativa chamada Museu da Pessoa”, explica a historiadora, fundadora e curadora do museu, Karen Worcman.

A mostra foi pensada por uma curadoria tripla, da qual fazem

Alexandre Nunis
Abertura da exposição Qual é o seu legado? – 30 anos do Museu da Pessoa no Brasil, realizada em dezembro de 2022, no Sesc Bom Retiro. A mostra gratuita fica em cartaz até 2 de abril.
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para ver no sesc / memória

parte a educadora Bel Santos Mayer (Vidas Negras), o escritor Cristino Wapichana (Vidas Indígenas) e o escritor Diógenes Moura (acervo imagético do Museu da Pessoa), e está dividida em três eixos: “o indíviduo” – para que o público conte qual o seu legado sob sua perspectiva; “o Museu da Pessoa” – que apresenta o que significa o trabalho realizado nas últimas três décadas; e “a sociedade”.

“Ao realizar a exposição Qual é o seu legado? – 30 anos do Museu da Pessoa no Brasil, o Sesc estimula o debate sobre as possibilidades e as funções dos museus na contemporaneidade e propõe uma imersão em depoimentos e acervos pessoais e familiares, explorando identidades e subjetividades. Trata-se de uma oportunidade de construir, junto com o público, um olhar mais profundo sobre o nosso legado e o legado dos outros,

desnaturalizando e complexificando simbologias e culturas nacionais”, disse o diretor do Sesc São Paulo, Danilo Santos de Miranda.

Os visitantes podem contar suas próprias histórias em uma cabine de autodepoimentos. Para isso, guiam-se pela pergunta: “Qual é o seu legado?”.

Qual é seu legado? –30 anos do Museu da Pessoa no Brasil

Até 2/4, terça a sexta, das 9h às 20h; sábado, das 10h às 20h; domingos e feriados, das 10h às 18h. GRÁTIS sescsp.org.br/bomretiro.

Acessibilidade:

BOM RETIRO
Alexandre Nunis 33 | e

entre

e MONSTROS HERÓIS

POR MANUELA FERREIRA

Pelas ruas da pequena cidade de Chofu, na província japonesa de Tóquio, estão espalhadas estátuas de seres imaginários inspirados no rico folclore asiático. Os personagens também são vistos no cemitério local, adornando – e protegendo – a sepultura de seu criador, o mais famoso morador do município. Mizuki Shigeru (1922-2015), o ilustre habitante daquela cova, fez de Chofu o seu refúgio. Um lugar onde se dedicou, ao longo de quase sete décadas, a enfrentar as profundas marcas causadas pelos horrores que testemunhou no fronte da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Cenários e lembranças que também levaram o quadrinista e folclorista a se tornar um dos mais respeitados mangakás – autores de mangá, os quadrinhos japoneses – de seu país, e referência mundial no gênero. As memórias dos encontros com a morte são um tema recorrente no abrangente trabalho de Shigeru – e mais do que confrontála, o artista fez de suas criações uma ode à vida.

Na página ao lado e nesta, página do livro NonNonBa, obra-prima de Shigeru Mizuki, inspirada, em grande parte, na própria infância do autor, e originalmente publicada em 1977, no Japão.

“Mizuki Shigeru começou a publicar obras para kamishibai [histórias ilustradas apresentadas ao público em pequenos palcos portáteis sobre rodas] em 1951 e, em 1958, teve seu primeiro mangá publicado. Entretanto, não tratavam da temática de guerra, mas sim de temas de aventura e ficção científica, muitas vezes utilizando, de maneira não autorizada, personagens famosos de

O fantástico e assombroso universo que inspirou os traços do artista japonês
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Nonnonba
por Shigeru Mizuki © 2017 Mizuki Productions. Todos os direitos reservados. Publicado no Brasil pela Devir Livraria Ltda. Todos os direitos reservados.

histórias em quadrinhos dos Estados Unidos”, conta o escritor e historiador da arte Rafael Machado Costa. A partir do final dos anos 1950, Mizuki se voltou às histórias de terror e fantasia. “Foi só na metade da década de 1960 que ele passou a publicar, de forma mais estável, mangás sobre a guerra, vários deles publicados na revista alternativa Garo, berço de muitos dos quadrinhos japoneses experimentais e de vanguarda do período.”

PODER ANCESTRAL

O artista, cujo nome de batismo é Mura Shigeru, nasceu na cidade de Osaka e cresceu na litorânea Sakaiminato. A mudança de ares foi a alternativa encontrada pelos pais, Ryoichi e Kotoe, para oferecer qualidade de vida e educação aos três filhos. A aptidão do garoto para escrever e desenhar se fez notar já nos primeiros anos escolares, época em que os professores de artes o consideraram um prodígio. A infância moldaria, ainda, um dos temas de investigação fundamentais na trajetória artística do autor. “Mizuki, quando criança, teve contato muito próximo com Kageyama Fusa, uma idosa que atuava como algo que poderia se aproximar do nosso conceito de benzedeira, realizando orações e ritos religiosos. Kageyama –que era chamada por Mizuki pelo apelido carinhoso Nonnonbaa – era uma pessoa bastante pobre, mas tinha um profundo conhecimento sobre cultura e narrativas tradicionais japonesas”, explica Rafael Machado Costa.

Foi de Kageyama que Mizuki Shigeru recebeu suas primeiras lições sobre os relatos históricos ancestrais.

Anos mais tarde, tais referências seriam retratadas, principalmente, sob a forma dos exuberantes youkais (espíritos da natureza), que aparecem em grande número em seus mangás. “As pesquisas e trabalhos de Mizuki sobre as guerras e os youkais não são duas facetas do seu trabalho, mas sim uma única produção. Como ele próprio dizia, 'é somente em tempos de paz que os youkais se permitem serem vistos'”, reflete o pesquisador Alexandre Linck.

Na sua visão, o quadrinista adentrava no imaginário japonês, antes de tudo, com o propósito de estudálo. “Parecia intrigar a ele como uma mesma cultura é capaz de tanta criatividade poética e também de horror. Contudo, Mizuki foi além, explorando também mitos e lendas de culturas do mundo todo”, analisa Linck, que cita como obras primordiais do autor as séries GeGeGe no Kitaro (publicada entre 1965 e 1986) e Showa: Uma história do Japão (1988), ambas ainda inéditas no Brasil. “É difícil demarcar qual é o seu principal trabalho, pois muito do que ele produziu é bastante inacessível no Ocidente”, pontua. Dois títulos, porém, estão disponíveis em português: Marcha para Morte (Devir, 2019) e NonNonBa (Devir, 2018).

FACES DO ABSURDO

Quando jovem, Mizuki Shigeru realizava trabalhos variados, como entregador de jornais e pintor de paredes, enquanto candidatava-se, sem sucesso, a instituições de ensino superior. Até que, em 1942, aos 20 anos, foi convocado pelo exército japonês após a eclosão da Guerra do Pacífico (1937-1945) – operação travada no contexto da Segunda Guerra Mundial, quando o Japão invadiu e atacou possessões britânicas e bases militares norte-americanas. Mesmo acometido por uma grave miopia, o quadrinista foi obrigado a servir em Nova Guiné, país insular situado na Oceania. Jamais se acostumaria às funções na tropa, sendo alvo constante de advertências e de violência física dos superiores. Presenciou execuções de companheiros de regimento, decapitações de combatentes inimigos e atuou em missões suicidas. Ao contrair malária – e afetado pelos delírios ocasionados pela febre característica da doença – foi levado para um hospital de campanha da cidade de Rabaul certo de que seria “esquecido”.

Dias depois, quando ainda estava internado, a unidade médica foi atingida por um bombardeio aéreo. Com a explosão, perdeu o braço esquerdo. A amputação do membro, sem uso de anestesia, adicionaria mais

Se você já viu uma
criança jogar uma carta de Pokemon ou Digimon, ou assistiu a filmes como Meu amigo Totoro (1988) ou A viagem de Chihiro (2001), então você viu a mão de Mizuki
Zack Davisson, escritor
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Página do livro Marcha para a Morte! (Devir, 2018) – Mizuki Shigeru traz a própria experiência que teve ao servir o Exército neste enredo sobre a Segunda Guerra Mundial, quando soldados de uma companhia da infantaria japonesa são ordenados a morrer em nome do país ou serão executados ao regressar da batalha. Marcha para a morte! por Shigeru Mizuki

© 2018 Mizuki Productions. Todos os direitos reservados. Publicado no Brasil pela Devir Livraria Ltda. Todos os direitos reservados.

sofrimento à experiência como soldado, já permeada por reflexões sobre morte, crises existenciais e total ojeriza ao conflito. Após retornar ao Japão, continuou trabalhando em ofícios distintos, como vendedor de peixe, tintureiro, pintor de cerâmicas e artista kamishibai. Novas mudanças, no entanto, ocorreram a partir de 1960, ano em que se casou com Nunoe, companheira de toda a vida. Juntos, tiveram duas filhas: Naoko Haraguchi e Etsuko Mura. Na mesma época, Mizuki passou a produzir e publicar mangás do personagem Kitarou – um menino youkai. As encantadoras figuras do universo de Kitarou – como Kitaro (seu pai), Medama-oyaji (um youkai-múmia, que morre de doença, mas ressuscita apenas com os olhos) e Nezumi-otoko (o homem rato) – atravessam gerações como um marco cultural e uma das obras-primas do mangá.

RUÍNAS E CONSTRUÇÕES

Kitarou aparece, inicialmente, em publicações restritas ao mercado de locadoras de livros, e depois o personagem vai se popularizando com as contribuições narrativas e visuais de Shigeru, conforme detalha Rafael Machado Costa. “Após desenvolver algumas histórias em que Kitarou encontrava com criaturas fantásticas e míticas, tanto da cultura chinesa como da ocidental [como vampiros e lobisomens], Mizuki inseriu, gradualmente, outros personagens das histórias que ouvira de Kageyama, usando Kitarou para apresentá-los aos leitores”, completa o historiador.

Para além do resgate do imaginário tradicional japonês, o artista incutiu alguns dos parâmetros artísticos de um “novo Japão” que emergia após a derrota na guerra – ao passo que não aceitava revisionismos históricos favoráveis ao papel do próprio país no conflito bélico, que considerava catastrófico. Pacifista, o autor também produziu diversas histórias em quadrinhos em que criticava o nacionalismo japonês dos anos 1930 e 40. Condenava, ainda, a futilidade da guerra, na qual oficiais de alta patente, vindos de famílias tradicionais e nobres, em tentativas de alcançarem status idealizados como heróis, usavam os jovens soldados de famílias modestas e pobres – incapazes de entender por quê pegavam em armas – como se fossem descartáveis.

O artista, portanto, deixou um legado importante para evitar que o imaginário tradicional japonês fosse ofuscado diante da crescente urbanização e industrialização que o seu país natal enfrentou na segunda metade do século passado – somando a esse aspecto, também, a expansão das novas mídias. “Ao

inserir esses personagens, seres e entidades em suas histórias em quadrinhos – que posteriormente foram adaptadas para animação, cinema e videogame –Mizuki os reintroduziu na cultura popular japonesa mais recente, permitindo que alcançassem um público urbano mais jovem”, ressalta Rafael Machado Costa.

Nas palavras do escritor e tradutor Zack Davisson, em artigo publicado no jornal The Comics Journal, de 9 de dezembro de 2015, a influência de Shigeru na cultura pop “é tão onipresente que chega a ser invisível” “Se você já viu uma criança jogar uma carta de Pokemon ou Digimon, ou assistiu a filmes como Meu amigo Totoro (1988) ou A viagem de Chihiro (2001), então você viu a mão de Mizuki. Aquelas batalhas entre monstros e robôs gigantes dos [filmes] Círculo de Fogo (2013), Godzilla e da [série] Neon Genesis Evangelion? (1995). Aconteceu primeiro nas páginas de Kitarou”, escreveu.

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Originalmente publicado em 1977, no Japão, NonNonBa é a obra-prima de Shigeru Mizuki, inspirado em grande parte na própria infância do autor.

MAESTRO DO SOBRENATURAL

Vertente antropológica da obra de Mizuki Shigeru foi foco de curso no Sesc São Paulo

Na avaliação do escritor e historiador da arte Rafael Machado Costa, são inúmeras as contribuições deixadas por Mizuki Shigeru enquanto folclorista. “Mizuki investigou os youkais de maneira ativa, visitando diferentes regiões do Japão, recolhendo narrativas orais e as registrando, pesquisando em textos e pinturas antigas em templos xintoístas e outras bibliotecas, e compilando esse material nos vários livros e enciclopédias que escreveu e desenhou sobre o tema”.

O quadrinista também se dedicou aos estudos do que chamava de youkai estrangeiros que, segundo o historiador, são "compostos por entidades e seres fantásticos presentes nas culturas de outros povos – que incluía até mesmo os encantados da cultura brasileira, como o Saci-Pererê”, complementa.

Esta vertente antropológica do legado do artista foi um dos temas do curso Mizuki Shigeru: os youkais e a sociedade japonesa, que Rafael conduziu no Centro de Pesquisa e Formação do Sesc São Paulo, entre novembro e dezembro de 2022. Em seu canal no YouTube, Ilha Kaijuu, Rafael apresenta – e faz críticas – a mangás e outras histórias em quadrinhos. Saiba mais: youtube.com/ilhakaijuu.

Imagem do

NonNonBa (1977), uma obra sobre a infância e o amadurecimento.

livro
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Nonnonba por Shigeru Mizuki © 2017 Mizuki Productions. Todos os direitos reservados. Publicado no Brasil pela Devir Livraria Ltda. Todos os direitos reservados.
para ver no sesc / bio

SONIA POR INTEIRO

Sonia Braga. Autorretrato, 2020. gráfica

Depois de dar vida a personagens icônicas em quase 100 obras, entre filmes, séries e novelas, atriz Sonia Braga ganha registro de sua carreira em livro fotobiográfico

Henrique Gendre para a Revista Serafina, Folha de S.Paulo, 2016. POR LUNA D’ALAMA

Teu cabelo preto, explícito objeto. Castanhos lábios. Ou pra ser exato, lábios cor de açaí.” Nos versos da música Trem das Cores (1982), Caetano Veloso descreve características físicas da atriz Sonia Braga, com quem teve um breve relacionamento amoroso no final dos anos 1970. Ela, que na época já havia interpretado Gabriela na televisão e Dona Flor no cinema, foi a musa do cantor baiano numa viagem romântica por trilhos entre Rio de Janeiro e São Paulo.

Para além das personagens-título de obras de Jorge Amado (1912-2001), incluindo a irreverente Tieta do Agreste, na película de Cacá Diegues, lançada em 1996, Sonia encarnou outras mulheres fortes em produções audiovisuais ao longo das últimas cinco décadas. Mais recentemente, como Clara (em Aquarius, de 2016) e Domingas (em Bacurau, de 2019), ambas dirigidas por Kleber Mendonça Filho. Nascida em Maringá (PR), a atriz de 72 anos acumula 54 filmes, 26 séries, dez novelas e quatro peças teatrais no currículo. Apesar de consagrada por personagens intensas e sensuais, Sonia foi projetada na mídia em um programa infantil: a versão brasileira do clássico Vila Sésamo, da TV Cultura, no início dos anos 1970.

A partir daí, a atriz integrou o elenco de diversas telenovelas, como Irmãos Coragem (1970), Selva

de Pedra (1972), Saramandaia (1976), Dancin' Days (1978) e Páginas da Vida (2006). Mas foi no cinema que alcançou reconhecimento internacional, a partir de O Beijo da Mulher-Aranha (1985), de Hector Babenco. Morando em Nova York há mais de 30 anos, Sonia já viveu papéis importantes e fez participações em filmes e séries norte-americanas, como Sex & the City (2001), Alias (2005), Las Reinas (2017), Extraordinário (2017) e Cidade do Silêncio (2021). Em 2020, o jornal The New York Times elegeu a brasileira como uma das melhores atrizes do século 21, ao lado de Julianne Moore, Willem Dafoe e Denzel Washington.

“Depois de Carmen Miranda, que nasceu em Portugal e migrou para o Brasil com menos de um ano de idade, Sonia Braga é a atriz brasileira mais reconhecida no exterior. Ela tem um acervo fantástico, interpretou inúmeras personagens importantes na TV e no cinema e, por incrível que pareça, ainda não havia nenhum livro publicado sobre a íntegra da vida e obra dela – apenas um fotolivro de 1983 feito pelo fotógrafo Antonio Guerreiro (1947-2019), que foi casado com a atriz e registrou imagens daquele período”, destaca o designer Augusto Lins Soares, que organizou Sonia em fotobiografia (Edições Sesc São Paulo e Cepe Editora, 2022) [Leia mais em De Gabriela a Bacurau] e já lançou obras neste formato sobre Chico Buarque e Dom Helder Camara.

Em 1954, aos quatro anos de idade, Sonia Braga, ainda morando em Maringá (PR), sua cidade natal, posa para a câmera.

Acervo pessoal Sonia Braga
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gráfica

Com 15 anos, Sonia havia se mudado para São Paulo e conquistado um emprego como recepcionista e datilógrafa. Até que um dia, o diretor Vicente Sesso a convidou para interpretar uma princesa no programa Jardim Encantando, na TV Tupi, e depois ela prosseguiu na carreira, com papéis em teleteatros infantojuvenis.

Em 1967, a adolescente Sonia Braga fez sua primeira viagem ao Rio de Janeiro e participou de um evento da Jovem Super Vai de Shell
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Acervo pessoal Sonia Braga

Em cena na telenovela Gabriela, de 1975, produção da TV Globo dirigida por Walter Avancini, que transformaria Sonia em paixão nacional.

Junto ao vizinho e cineasta Luiz Carlos Lacerda, o Bigodediretor de filmes como Mãos Vazias (1971) e Leila Diniz (1987) -, Sonia gostava de criar personagens com produções caseiras.

Sebastião BarbosaAcervo pessoal Sonia Braga (esquerda) / Acervo pessoal Sonia Braga (direita) 45 | e gráfica

Ao lado: Sonia Braga em cena do filme Tieta do Agreste (1996), que marcou a retomada da carreira da atriz no cinema nacional, depois de mais de uma década nos Estados Unidos. Acima: em clique de 1996, com o estilista Ocimar Versolato (1961-2017), que criou vinte croquis exclusivos para Tieta

Acervo pessoal Sonia Braga (esquerda) / Ruy Teixeira (direita)
Victor Jucá / Cinemascópio
Em Aquarius (2016), filme dirigido por Kleber Mendonça Filho, Sonia interpreta Clara, uma viúva que é a última moradora de um edifício no Recife, que corre o risco de ser demolido para dar lugar a um prédio moderno.

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Victor Jucá / Cinemascópio e | 50
Sonia divide a cena com a cantora e compositora Lia de Itamaracá no set de filmagens do filme Bacurau (2019), de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles. A atriz em ensaio para a revista Quem, em 2006.
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Luciana Avellar

Autorretrato produzido em 2020, durante a pandemia.

DE GABRIELA A BACURAU

Fotografias, ilustrações, cartazes, capas de revistas, registros de figurino, autorretratos e fotos de viagem. Sonia em fotobiografia, que tem previsão de lançamento este ano numa parceria entre Edições Sesc São Paulo e Cepe Editora, apresenta mais de 200 imagens que registram momentos marcantes da vida pessoal e artística da atriz Sonia Braga, reunidas em cinco décadas de carreira. Há, inclusive, material inédito de ensaios antigos realizados para revistas como Vogue, Elle e Playboy

“Levei três anos organizando o livro, de 2019 a 2022. Usei boa parte do acervo pessoal dela, que está em Niterói (RJ) e também em Nova York. Fiz uma vasta pesquisa em bancos de imagens de jornais, revistas e arquivos públicos, e contatei fotógrafos que haviam trabalhado com Sonia. Além disso, eu não fazia ideia de que ela gostava tanto de fotografar. Então, incluí imagens que ela fez de pessoas na Índia e no dia do atentado ao World Trade Center, em 2001”, conta o organizador e designer Augusto Lins Soares.

“Todos falam muito sobre a câmera me amar, mas na verdade sou eu quem amo a câmera. Adoro fotografar e tive a alegria de, ao longo da minha carreira, ter posado para fotógrafos maravilhosos, porém nunca havia pensado em reunir esse material em livro. Quando o Augusto me fez a proposta da fotobiografia, concordei com a ideia, e agora estou aguardando para ver o livro [impresso, que deve ser

para ver no sesc / gráfica

publicado no primeiro trimestre deste ano]”, revela a atriz.

A capa da publicação mostra Gabriela, personagem-título do romance de Jorge Amado que Sonia Braga viveu na televisão em 1975, e na tela grande em 1983, sob direção de Bruno Barreto. Já na contracapa, está uma selfie da atriz com os fios brancos e sem maquiagem –publicada em suas redes sociais em 2020, nos primeiros meses da pandemia, quando ela havia recémcompletado 70 anos de idade. Sonia em fotobiografia conta, ainda, com legendas biográficas escritas pela jornalista Melina Dalboni, e a narrativa imagética é contextualizada com um poema em prosa do escritor Jorge Amado (publicado na Playboy, em 1986), além da letra de Trem das Cores, de Caetano Veloso.

“Como atriz-símbolo de brasilidade, a eterna Gabriela já foi retratada por fotógrafos de sucesso mundial, como Bob Wolfenson, Lew Parrella, Robert Mapplethorpe e Greg Gorman, além de ter sido admirada por artistas como Jorge Amado, Tom Jobim e Federico Fellini. Sonia em fotobiografia permite acompanhar a trajetória dessa atriz de renome internacional que, no entanto, nunca deixou de ser presença marcante na nossa cultura”, afirma Francis Manzoni, coordenador editorial das Edições Sesc.

EDIÇÕES SESC SÃO PAULO

Sonia em fotobiografia (Edições Sesc São Paulo e Cepe Editora, lançamento em 2023)

Organização: Augusto Lins Soares 256 páginas sescsp.org.br/edicoes

Fotobiografia reúne mais de 200 imagens com cliques pessoais e profissionais de Sonia Braga dentro e fora do Brasil
Sonia Braga (esquerda) / Steven Meisel (direita)
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Em 1985, Sonia Braga foi clicada pelo fotógrafo norte-americano Steven Meisel para a revista Vogue, ensaio que a consagrou, nos EUA, como a "Bardot sul-americana".

DELAS

Protagonismo feminino cresce entre criadores de jogos de tabuleiro e cartas com narrativas modernas que incluem inventoras, figuras de resistência e famílias com formações diversas

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POR
LUNA D’ALAMA o jogo é

Guerra, conquista de territórios, exploração espacial, compra e venda de propriedades, manutenção de status social. Essas são algumas das temáticas recorrentes em jogos de tabuleiro que, há décadas, fazem sucesso entre crianças e adolescentes. War, Batalha Naval, Banco Imobiliário e Monopoly são apenas alguns dos exemplos clássicos. “Por meio dessa lógica e mecânica masculina, você precisa competir, ser estrategista, ‘quebrar’ o colega, prejudicá-lo, vingarse. No Jogo da Vida, se você se casar e tiver filhos, ganha mais, enquanto no Mico, os machos aparecem como bravos e fortes, e as fêmeas são delicadas, com laços na cabeça e rímel nos cílios. Fora todos os personagens brancos, loiros, de olhos claros, cabelo liso,

magros ou musculosos que vemos por aí, sendo que estamos num país de maioria negra ou parda”, observa Marina Takejame, criadora e sócia do Universo Uia, empresa de jogos de mesa (que abrangem tabuleiros e cartas) dedicada a oferecer experiências lúdicas com maior diversidade, equidade, representatividade e inclusão.

Moradora de Jundiaí (SP) e formada em relações públicas, Marina começou a tocar o projeto em 2019, ao lado da designer Thays Leonel, após ambas terem se tornado mães e percebido que estavam rodeadas por estereótipos nos jogos infantis. Elas são representantes de um movimento crescente de protagonismo feminino no desenvolvimento, criação e prática de jogos

tecnologias e artes

analógicos, trazendo abordagens originais e assuntos presentes na sociedade – mas que ainda não se refletiam nos games comerciais.

O primeiro jogo do Uia (mistura da interjeição de surpresa e delícia com as vogais da palavra “lúdica”) se chama Duelo, e consiste numa dinâmica de cartas e argumentação, criada com a colaboração de um psicólogo infantil e uma professora de artes visuais. Reúne personalidades diversas que concorrem entre si, com cada jogador defendendo um nome –são 40 personagens ao todo. “Além

Criado pela historiadora Joana Schossler, e editado pela Cecerelê, o Memorelas é um jogo de memória com 15 pares ilustrados por protagonistas da história, além de um par em branco para quem quiser desenhar e incluir outra personagem ao jogo.

Editora Cecerelê
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de homens e da cartunista Laerte, uma mulher trans, incluímos figuras da resistência feminina e negra, como Angela Davis, Marielle Franco, Carolina Maria de Jesus, Elke Maravilha, Anésia Pinheiro Machado, Maria Quitéria e a jogadora Marta”, cita Marina. “Queremos mostrar que gênero, raça e porte físico são irrelevantes para habilidades de inteligência e força. Costumo dizer que ninguém usa a genitália, a cor e outras características físicas para brincar”, defende.

Com o sucesso da primeira empreitada, veio 7famílias. Criado em 2021, o jogo foi adaptado de uma ideia francesa, e reúne sete composições de famílias no contexto contemporâneo. "Há vários formatos de corpos, cabelos, pessoas com deficiência, negras, indígenas, orientais, idosas. E não designamos quem é o pai, a mãe, o filho – cada jogador interpreta como quiser. Também incluímos plantas e pets que vão além do gato e cachorro: tem iguana, peixe e porquinho-daíndia”, explica Marina. Ganha o 7famílias quem formar o maior número de famílias completas.

A sócia do Uia aponta que há muitas mulheres jogando e se agrupando para propor novos jogos

de tabuleiro e cartas, com pegada inclusiva e educativa. “Há uma mulherada com ideias fantásticas, preocupações feministas, antirracistas e de diversidade. Todas sobrecarregadas, mas tentando mudar o mundo ao mesmo tempo”, ressalta Marina, que agora prepara um jogo de tabuleiro que envolve a cooperação entre os participantes e o ambiente ao redor.

DEU ZEBRA

Coletivo de educadores que acredita nos jogos como um valioso elemento de aprendizado estético, o zebra5 é outro exemplo contemporâneo que inclui a presença feminina na concepção de seus produtos. O nome zebra5 vem de “dar zebra”, de acreditar na liberdade e na subversão dos jogos – e dos resultados. Stella Ramos e Thelma Löbel são companheiras nessa empreitada há quase 15 anos, ao lado de Alberto Tembo e Auber Bettinelli. Eles atuam no universo da mediação cultural em espaços expositivos, como o Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), a Casa das Rosas e o Museu da Casa Brasileira. “O jogo surgiu a partir da vontade de experimentar a mediação cultural, para ativar conversas com o público e despertar novas

temáticas”, lembra Thelma, que é formada em artes visuais e especialista em educação lúdica.

Thelma e Stella são mães, e ambas acreditam que a maternidade também influencia esse olhar. “Hoje em dia, testamos os novos jogos com nossos filhos. Neste momento, estamos desenvolvendo um tabuleiro que aborda diferentes linguagens artísticas (como literatura, cinema, teatro, música e dança), voltado a crianças e adolescentes”, revela Stella, graduada em artes visuais e especializada em educação e direitos humanos.

Thelma completa que, quando participou, em 2018, do evento Diversão Offline, uma das maiores feiras de jogos de tabuleiro e RPG [role-playing game, que envolve a interpretação de papéis] da América Latina, falava-se bastante sobre protagonismo feminino, mas o perfil dos desenvolvedores ainda era predominantemente masculino e branco. “Nossos jogos também são criados por homens, mas têm algo de feminino por conta da exploração da arte, da sensibilidade, da interpretação. Não queremos propor ‘jogos de meninas’, mas trabalhar questões plásticas, estéticas e visuais”, pontua.

Universo Uia e | 56
Diferentes formações familiares compõem o jogo de cartas 7famílias.

A parceira Stella acrescenta: “Muitos homens nesse universo ficam nos testando ao máximo para ver se temos conhecimento real da área. É cansativo”, conta ela, que desde 2008 já criou, com o grupo, cerca de 30 jogos atrelados a exposições de arte, e agora desenvolve um jogo de cartas sobre mulheres negras.

AS TABULEIRISTAS

Em julho de 2020, no meio da pandemia de covid-19, a cientista social Bárbara Côrtes – introduzida no universo dos jogos desde os 7 anos pelo pai, exímio jogador de xadrez – resolveu fundar a Liga Brasileira das Mulheres Tabuleiristas, que esteve em atividade até dezembro de 2022. “Senti que nós estávamos isoladas e precisávamos nos ouvir, nos fortalecer, trocar experiências e entender nossas necessidades. Por isso, decidi criar um centro de referência nacional para conectar e ajudar mulheres envolvidas em jogos de tabuleiro”. Ela explica que, apesar do encerramento da liga,

que chegou a ter uma revista com 24 edições, os projetos e iniciativas individuais e coletivos continuam.

Segundo Bárbara, a pandemia foi uma das principais razões pelas quais os jogos ocuparam um maior espaço no ambiente doméstico e na vida das mulheres. “Para entreter as crianças, muitas mães encontraram nos jogos de tabuleiro essa oportunidade de interação, com variados temas e níveis de complexidade. As mulheres já começaram a ocupar mais espaço como consumidoras, mas ainda há uma grande demanda para que elas pensem e desenvolvam mais jogos. Acredito que, desde 2020, esse mercado esteja se tornando mais feminino. Hoje, a designer de games mais famosa do mundo, por exemplo, é a estadunidense Elizabeth Hargrave”, destaca a tabuleirista. “Precisamos investir em educação para que as pessoas compreendam os jogos como uma linguagem cultural – e não apenas como produto de consumo –, que deve participar da vida das pessoas e estar presente no cotidiano. Quando alguém se permite conhecer esse universo, seja de

tecnologias e artes

qualquer idade ou gênero, essa pessoa se encanta”, complementa.

O crescente protagonismo feminino no mundo dos jogos de mesa é reconhecido também por Renata Figueiró, assistente da Gerência de Artes Visuais e Tecnologia do Sesc São Paulo e responsável pela programação do FestA! – Festival de Aprender, cuja sexta edição será realizada em julho, e que em sua programação sempre conta com alguma atividade relacionada a jogos (digitais, de tabuleiro ou ações teóricas). “Há tempos, as mulheres já são maioria nos campos da educação e da psicologia. Associo a expansão do protagonismo feminino na criação de jogos ao fato de que inúmeras questões em pauta na contemporaneidade [como feminismo, racismo, saúde mental, sustentabilidade e democracia] passaram a nortear temáticas de jogos de cartas e tabuleiro. As mulheres têm tido maior ímpeto e êxito em traduzir suas pesquisas e vivências profissionais para o formato de jogos”, finaliza.

Universo Uia
Duelo é um jogo de cartas que consiste na argumentação realizada por duplas que se revezam para defender personagens diversos em ações inusitadas.

tecnologias e artes / para ver no sesc

PRÓXIMA RODADA

Em fevereiro e março, ações gratuitas do Sesc São Paulo colocam o público em contato com jogos de tabuleiros, cartas, RPG e videogame

Diversas unidades do Sesc São Paulo, como Guarulhos, Sorocaba e Bauru, oferecem ao público, neste mês, uma série de atividades que envolvem jogos de mesa. A programação se estende até março, quando o Sesc Ribeirão Preto realiza, nos dias 4 e 5/2, a sétima edição do @Geek, evento para difusão da cultura geek e encontro entre os fãs desse universo. Além de jogos de tabuleiro, cartas, RPG, videogame e cosplays, a iniciativa propõe oficinas, vivências, bate-papos, intervenções e apresentações musicais, tudo gratuito e destinado a todos os gêneros e idades.

GUARULHOS

Mediação de jogos de tabuleiro

Com educadores de atividades infantojuvenis do Sesc. Entrega de senhas no local, com 30 minutos de antecedência. Dias 2 e 9/2, quintas, das 10h às 12h. GRÁTIS.

Fuja da folia: jogos de tabuleiro no Carnaval

Confete, samba, fantasia e glitter? Nada disso! Aqui é roleta, dado, peão e estratégia. Tabuleiros famosos e inéditos ficam disponíveis para o público jogar em grupo, com mediação dos educadores do Sesc e do veterano dos tabuleiros

Victor Rodrigues. Vagas limitadas. Dias 18, 20, 21 e 25/2, das 14h às 17h. GRÁTIS.

BAURU

Jogos de tabuleiro

Espaço aberto com jogos clássicos e modernos de diversos temas, complexidades e durações. Inscrições no local. Vagas limitadas. De 1º a 24/2. Quartas, das 18h às 20h, e sextas, das 14h às 18h. GRÁTIS.

RPG: Legado Heroico

Encare os desafios das Terras Proibidas, encarnando um herói no grupo de aventureiros exilados. Com Marcela Alban e Renan Rabay. Inscrições no local. Vagas limitadas. De 25/2 a 29/4, sábados, das 14h às 18h. GRÁTIS.

SOROCABA

Espaço Ludus

Estações lúdicas e educativas convidam o público a experimentar possibilidades de movimentos corporais, a partir de jogos tradicionais apresentados de forma diferenciada.

De 4 a 26/2, sábados e domingos, das 10h às 13h. GRÁTIS.

Praça do brincar

Vivências brincantes num espaço

para o livre brincar, com jogos, exploração de materiais diversos, atividades em grupo e oficinas. De 4 a 26/2, sábados e domingos, das 14h às 16h.

RIBEIRÃO PRETO @GEEK 2023

Oficinas, vivências, bate-papos, jogos e apresentações musicais promovem um ponto de encontro e difusão da cultura geek. Dias 4 e 5/3. GRÁTIS.

Aprenda a jogar um card game

Aprenda as regras e descubra dicas para os jogos de cartas Magic e YuGi-Oh! com educadores da PopKai Mundo Geek. Vagas limitadas. Sábado e domingo, das 11h às 13h.

Monitoria de Boardgames

Espaço aberto para jogar e descobrir novos tabuleiros. Com mediação dos educadores do RP2. Vagas limitadas. Sábado e domingo, das 10h às 17h.

Mesas de RPG

Espaço aberto para vivenciar jogos de interpretação de papéis e incorporar personagens dos mais variados universos. Com mediação dos educadores do RP2. Vagas limitadas. Sábado e domingo, das 10h às 17h.

Freepik
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Jogos de RPG também fazem parte da programação da sétima edição do @Geek, realizada nas unidades do Sesc São Paulo.

Ícone do samba paulista, Talismã é lembrado como um dos maiores artistas populares do Brasil. Neste álbum, Ideval Anselmo , Zé Maria e Marco Antonio cantam doze sambas do compositor, além de uma obra inédita composta especialmente para esta homenagem.

DISPONÍVEL A PARTIR DE 17 DE FEVEREIRO

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juventudes plurais NAS ARTES

Ozeitgeist, termo alemão que se refere ao “espírito do tempo”, vem sendo traduzido por jovens artistas que se expressam em diferentes linguagens, multiplicando-se em várias partes do mundo. Com essa crescente pulsão criativa das juventudes, questões como gênero, etnia, desigualdade social e meio ambiente reverberam na arte contemporânea, instigando a sociedade a rever os desafios do presente a partir de outras perspectivas. E se “o universo da arte depende de novidades, é preciso encararmos um fato: sem a constante substituição de artistas e de obras, o mundo da arte paralisa”, reflete o pesquisador Guilherme Marcondes, autor do livro Procuram-se Artistas: Aspectos da legitimação de (jovens) artistas da arte contemporânea (Telha, 2021).

No entanto, são muitos os obstáculos enfrentados por essas juventudes na cena artística. Por exemplo, “ainda mantemos visões estereotipadas que nos aproximam mais da ideia do jovem estudante acadêmico – como os filhos da burguesia do século 19 e jovens paulistanos modernistas de 1922 – do que da realidade histórica e contemporânea da maior parte dos jovens brasileiros”, observa a educadora e pesquisadora Luciara Ribeiro, cocuradora da 30ª MAJ – Mostra de Arte da Juventude, realizada pelo Sesc Ribeirão Preto, em 2022, e cuja itinerância segue em cartaz no Sesc Consolação, até março.

A fim de tentar compreender esse cenário e propor questionamentos sobre o assunto, textos de Guilherme e Luciara traçam rotas de reflexão, vislumbrando possibilidades para o fomento das juventudes no meio artístico.

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A arte e a avidez por novidades

O universo da arte depende de novidades. Ao longo dos séculos, artistas e correntes estéticas vêm sendo sobrepostos em nome da inovação. Há, obviamente, o estabelecimento de cânones, quando um ou outro nome são alçados ao panteão dos(as/es) artistas por excelência. Todavia, é preciso encarar um fato: sem a constante substituição de artistas e de obras, o mundo da arte paralisa. Todos os anos, em diferentes partes do mundo, exposições, residências e prêmios anunciam, divulgam, premiam, vendem e/ou revelam jovens artistas que corporificariam um espectro de novidade e, portanto, deveriam ser acompanhados(as/es) de perto pelos atores sociais da arte por trazer ares de renovação, que poderiam mudar os rumos do que até então se compreende como arte. Ou seja, jovens artistas não apenas possuem o desejo, consciente ou inconsciente, de obter carreiras artísticas reconhecidas, como também são solicitados(as/es) pela esfera da arte. A renovação do campo da arte por meio de artistas e de seus trabalhos (que podem ser proposições ou ações, e não necessariamente objetos) é, de fato, um dos mecanismos que faz a roda da fortuna da arte girar.

Sem novidades sendo constantemente reveladas, o universo da arte perderia uma de suas prerrogativas. Geralmente compreendido pelo senso comum como um campo progressista, o universo da arte necessita de novidades que lhe auxiliem na manutenção desse mito. Em tempos de arte moderna, por exemplo, era comum o lançamento de uma série de manifestos artísticos divulgando correntes estéticas nascentes e artistas inovadores(as/us), que vinham ao mundo buscando a desconstrução de paradigmas que lhes eram precedentes. Com o advento da arte contemporânea, em meados do século 20, esse processo de constante renovação parece ter sido acelerado; os manifestos desapareceram, mas as constantes inovações tecnológicas e transformações sociais pulsantes contribuem para que a reno-

vação no campo artístico tome outra proporção. Podemos pensar em uma era de editais e prêmios com foco em jovens artistas.

Com a arte contemporânea, há uma expansão de limites: pinturas e esculturas são bem-vindas, mas é possível que ações, performances, vídeos, filmes e toda a sorte de possibilidades que as tecnologias possam oferecer como inspiração passem a ser entendidas como arte. A arte contemporânea exige que artistas ultrapassem os limites do senso comum, não da figuração clássica, como no caso da arte moderna, mas da própria noção de arte. Além disso, visto que o mito fundador do mundo da arte apregoa seu progressismo, o mundo pós-colonial vem sendo terreno fértil a alimentar artistas e suas proposições estéticas, visto suas contestações político-sociais advindas de diferentes grupos cujos marcadores sociais de diferença são socialmente desempoderados (raça, gênero, classe, entre outros). Tem-se, assim, uma pluralidade de meios e linguagens estéticas, bem como múltiplas questões relativas às políticas da identidade demandadas pelos movimentos sociais, que têm enriquecido o campo da arte, contribuindo para a sua constante renovação.

É fundamental o entendimento de que o mundo da arte se constitui pelas ações de indivíduos formados sob o mesmo guarda-chuva colonial que fundamenta a sociedade envolvente. A arte é feita, vendida e difundida em um sistema composto por indivíduos e instituições em que o pensamento moderno-ocidental não foi questionado, mas implementado. Ser artista profissional até não muito tempo atrás era profissão masculina e branca, fato argumentado, por exemplo, pelas feministas que questionaram esse lugar atribuído aos homens, como Linda Nochlin, em seu texto Why Have There Been No Great Women Artists? Igualmente, pessoas negras e indígenas, ou seja, racializadas, não somente no Brasil, têm questionado esses atributos do ser artista, posto que, com a constituição da modernidade, pessoas negras e indígenas foram, em geral, retratadas por mãos brancas que entraram para a história, contribuindo para a constituição de estereótipos negativos. Efetivamente, quando abrimos os livros de artes e de história, artistas ali tomados como grandes

POR GUILHERME MARCONDES em pauta 62

mestres não são, em grande medida, pessoas racializadas fora do espectro da brancura.

Apesar dos últimos quatro anos de um governo que cortou verbas da educação, da cultura, da saúde, e em que avanços sociais demandados por grupos minoritários foram ameaçados, o Brasil tem assistido ao efeito de políticas públicas como a Lei 12.711/2012 (a chamada Lei de Cotas). Como nunca antes na história deste país, pessoas negras e indígenas conseguiram acessar o ensino superior e público de qualidade, o que tem como efeito uma transformação dentro e fora dos muros das instituições de ensino. No caso das universidades, temos visto contestações contundentes a cânones que contribuíram para o desempoderamento de mulheres, pessoas racializadas, transgêneras, entre outros grupos. Já do lado de fora, temos profissionais formados(as/es) nas melhores instituições, cujos marcadores sociais são desempoderados e que, em muitos casos, vêm contestando práticas opressoras, ocupando melhores empregos e demandando espaço em cargos de poder.

Na arte brasileira, têm surgido inúmeros projetos voltados à difusão de epistemologias outrora compreendidas como subalternas. A representatividade está em pauta na arte brasileira, otimizando a formação, o reconhecimento e a divulgação dos trabalhos de artistas que produzem contranarrativas à opressão que seus grupos sociais vivenciam. Por vezes, há práticas de tokenismo, que se dá quando indivíduos são incluídos em projetos em número minoritário para demarcar um pretenso progressismo, mas agregando poucos. Contudo apesar de casos de oportunismo, há práticas que, de fato, buscam transformar a demografia do campo da arte em termos de gênero, classe, raça, sexua-

lidade, entre outros marcadores. Fato é que há uma transformação em curso.

Sendo o campo artístico ávido por novidades e pela manutenção de seu mito de origem como uma esfera de liberdade e progressismo, as demandas dos movimentos sociais nas últimas décadas têm sido importantes para a renovação das linguagens e técnicas da arte. Ademais, artistas negros(as/es), mulheres e pessoas trans têm sido cada vez mais solicitados(as/es) pelo mundo da arte, circulando em exposições, premiações, residências e publicações que buscam visibilizar epistemologias até então invisibilizadas, justamente por advirem de grupos socialmente desempoderados.

Observamos, então, uma pluralidade pulsante na arte contemporânea. Não só materiais e técnicas têm tido seus limites expandidos. O mundo da arte em si está sendo demandado no sentido de uma transformação de seus cânones e profissionais que o compõem. E neste processo é que temos visto como jovens artistas têm sido mais e mais demandados(as/es) pelo universo da arte. Afinal, representam a transformação de práticas, questões, linguagens e técnicas que são fundamentais para manter o mundo da arte em pleno funcionamento.

Guilherme Marcondes é doutor em sociologia e antropologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com pesquisas que entrecruzam a sociologia da arte à sociologia das relações étnico-raciais. É autor do livro Procuram-se Artistas: Aspectos da legitimação de (jovens) artistas da arte contemporânea (Telha, 2021).

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(...) Jovens artistas não apenas possuem o desejo, consciente ou inconsciente, de obter carreiras artísticas reconhecidas, como também são solicitados(as/es) pela esfera da arte

Assumir a cocuradoria da 30ª Mostra de Arte da Juventude (MAJ) suscitou caminhos reflexivos sobre o significado das juventudes. Há certa normalização acerca desse termo nas artes, por exemplo, o lugar do “novo”, do mais “recente”, eram termos bem recorrentes. Talvez por herança das artes ocidentais e suas narrativas de superação, esse novo seja tão almejado, e ser parte da curadoria que o definiria na mostra era lido como enorme privilégio. Entretanto, esse “novo” me perturba, já que por vezes ele também foi lido nas artes como o desconhecido e o estranho, o que está fora do circuito dos poderes e dos que definem as narrativas: o outro. Preocupava-me o modelo de tal visão que dualiza experiências como o novo e o antigo, o advento e o ultrapassado, o jovem e o velho. Não me interessava enquanto selecionadora e curadora partir de uma referência assim, mas encontrar vias mais complexas de leitura das juventudes e do que é ser uma pessoa jovem e artista no Brasil.

Em vista disso, durante a 30ª MAJ, o nosso pensamento central não foi a busca especulativa pela "novidade", mas por compreender a contribuição crítica e artística de cada trabalho. Entendemos também ser fundamental observar a formação e a qualidade das propostas. No entanto, essas não poderiam ser pon-

tos de partida e nem de chegada. Pelo contrário, as colocamos em discussão com outros critérios, entendendo não só o que as juventudes atuais produzem, mas quem são as juventudes atuais, o que propõem e o porquê propõem. Com esse olhar que vê as pessoas por trás de cada obra, realizamos tal edição.

Apesar da intensa aposta nas juventudes, o mesmo sistema das artes que o promove também dificulta suas entradas. Além de critérios restritos de quem participa do meio, são poucas as aberturas e fomentos financeiros – estratégias que garantem a manutenção de uma elite e seus descendentes. Em um país marcado por um histórico de escravidão e genocídios, ser jovem ainda é um enorme desafio. Mesmo com direitos políticos recentemente conquistados, suas efetivações continuam mínimas, e nas artes não é diferente. Não por acaso, quando pensamos em juventudes artísticas, ainda mantemos visões estereotipadas que nos aproximam mais da ideia do jovem estudante acadêmico –como os filhos da burguesia do século 19 e jovens paulistanos modernistas de 1922 – do que da realidade histórica e contemporânea da maior parte dos jovens brasileiros. Em vista disso, tensionar tais problemáticas por via da MAJ foi uma das minhas propostas neste trabalho.

Mais do que uma mostra expositiva, a MAJ coloca as instituições artísticas como parte da promoção de espaços para as juventudes. Criado em 1989, no Sesc Ribeirão Preto, com coordenação de Janete Junqueira Polo de Melo, antiga funcionária da unidade, o projeto estabelece como fundamental o uso do campo institucional para ampliação das políticas de redistribuição de renda nas artes. O Sesc, assim como as demais instituições artísticas e culturais, deve alargar não apenas as participa-

Fomentar as juventudes: um dever das instituições
POR LUCIARA RIBEIRO
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(...) Vemos muitos relatos de jovens artistas que tiveram as paredes da MAJ como a primeira possibilidade de compartilhar um fazer, de entender seus processos, de circular suas obras

ções das juventudes, mas também o investimento e acesso financeiro delas, mecanismos cruciais para a garantia das emancipações. Em 32 anos de Mostra de Artes da Juventude, vemos muitos relatos de jovens artistas que tiveram as paredes da MAJ como a primeira possibilidade de compartilhar um fazer, de entender seus processos, de circular suas obras.

Infelizmente, caminhamos a passos lentos, e ainda há muito o que ser feito. Apesar dos poucos avanços, não podemos negar os impactos recentes na busca por ampliação de acessos e diversificação de agentes nas artes, o que implica no perfil de artistas e curadores. Ser parte da curadoria da 30ª MAJ é reflexo disso, visto que não foram identificadas em suas edições anteriores participações de curadores não brancos. Não se limitar a um tipo único de juventude possibilitou que a edição de 2022 dessa

mostra se tornasse uma exposição que dialogasse com diferentes visitantes e que abrangesse territorialidades, temáticas, materialidades, linguagens e perfis étnico-sociais dos artistas. Talvez, daqui pra frente, caberia chamá-la de Mostra de Artes das Juventudes, no plural.

SOBRE A MAJ

A Mostra de Arte da Juventude, criada pelo Sesc Ribeirão Preto, em 1989, é uma das principais ações da instituição no campo das artes visuais. Com mais de três décadas de existência, ela acolhe o trabalho de artistas entre 15 e 30 anos, trazendo ao público um recorte vivo da arte contemporânea jovem no Brasil. Em sua 30ª edição, realizada entre maio e setembro de 2022, celebrou sua longevidade e renovação constantes. Com o intuito de incluir a maior diversidade possível de identidades, territórios e propostas artísticas, a curadoria – composta por André Pitol e Luciara Ribeiro – selecionou 40 artistas e coletivos, em um recorte que acentuou as transformações do presente e que reafirmou a arte jovem como antídoto do absurdo e elemento de esperança para a criação de novos tempos.

Luciara Ribeiro é educadora, pesquisadora e curadora independente. Mestre em história da arte pela Universidade de Salamanca (USAL, Espanha) e pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), é integrante da Associação Brasileira de Críticos de Arte (ABCA), colaboradora da revista Contemporary And América Latina e da plataforma virtual Projeto Afro, e cocuradora da 30ª Mostra de Arte da Juventude (MAJ / Sesc São Paulo).

Segundo o diretor regional do Sesc São Paulo, Danilo Santos de Miranda, “ao realizar a edição comemorativa da 30ª edição da Mostra de Artes da Juventude, o Sesc valoriza a pluralidade e a diversidade contidas nas manifestações culturais – derivadas de sonhos e ideais de jovens – que, ao mergulharem no território fértil da arte, irrompem, iluminando expressões de seu tempo e acenando para perspectivas futuras”.

CONSOLAÇÃO

Até o dia 3 de março, a itinerância da 30ª MAJ segue em cartaz no Sesc Consolação, de terça a domingo, com visitação gratuita. Saiba mais: maj.sescsp.org.br.

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FORJAR MUNDOS outros

Cenógrafo, figurinista e diretor de arte, Márcio Medina acredita no uso da fantasia e da cooperação para

Aos nove anos de idade, Márcio Medina refugiavase na companhia de lápis e papel. Desenhava cenários bem diferentes daqueles que, no dia a dia, provocavam-lhe dor. Ainda criança, ele já tinha consciência do desaparecimento de parentes e amigos, presos e torturados pela ditadura militar. Desde então, seria o mundo da imaginação que ilustraria seus próximos passos. Ou melhor, resultaria numa carreira reconhecida mundialmente em projetos de cenografia, figurino e direção de arte.

Ao longo de 40 anos de carreira, com a assinatura de mais de 100 projetos cênicos, Medina celebra, atualmente, seu trabalho como cenógrafo de amazonias – ver a mata que te vê [um manifesto poético] , em cartaz até dia 12/2 no teatro do Sesc Pinheiros. No espetáculo dirigido por Maria Thais, 35 jovens de São Paulo e quatro artistas convidados são cocriadores de um enredo que abraça uma floresta constituída por diversas culturas, imaginários e conflitos.

se criar um espetáculo

encontros

Nascido em 1955, na cidade de São Paulo, Medina se formou em comunicação visual e em propaganda e marketing, e estreou profissionalmente em 1976 como cenógrafo e diretor de arte do espetáculo A Ópera dos Três Vinténs, do dramaturgo alemão Bertolt Brecht (1898-1956). Também foi diretor de arte no Centro de Pesquisa e Experimentação de Pontedera – um dos mais importantes centros de criação teatral italianos –, e colaborou com projetos da Companhia do Latão, Companhia Balangan, Grupo Galpão, Teatro da Vertigem, entre outros coletivos. Neste Encontros, Medina fala sobre o começo da carreira, parcerias com grupos teatrais brasileiros e estrangeiros, e desafios de um projeto cenográfico.

REFÚGIO NA ARTE

Para mim, o despertar para a arte nasceu como uma fuga. Meus pais eram espanhóis, desembarcaram no porto de Santos, e depois foram levados ao Brás pela imigração local. Lá, muitos iam para fazendas ou eram espalhados pelo país. Meu pai veio com quase 15 anos, na década de 1950, e ficou em São Paulo. Quando a gente estava estabelecido aqui, teve o golpe militar de 1964. Eu vi muitos serem torturados, desaparecerem, e eu tinha apenas nove anos. Aquilo me partiu a alma em quatro e eu comecei a desenhar para fugir dessa realidade. Sempre fui um garoto meio quieto e gostava muito de desenhar histórias em quadrinhos e outros universos, lugares e pessoas. Eu não queria ver e conviver com aquilo. Mas olha só como o mundo é: aos 14 anos, havia um vizinho que tinha um estúdio de arte e que me chamou para trabalhar

com ele. Lá estavam ilustradores do mundo inteiro trabalhando, e eu, aquele menino com o queixo no ombro deles, olhando o que faziam até ter um espaço para desenhar. Fui galgando [espaço] até virar um diretor de arte neste estúdio. Depois, minha carreira seguiu para esse lado da direção de arte.

REFERÊNCIAS PELO CAMINHO

A minha impressão digital, algo que nunca vai sair de mim, veio com Antunes [José Alves Antunes Filho (1929-2019), um dos principais diretores teatrais do país], quando fui assistir a ensaios e, depois, trabalhei com ele em Macunaíma [adaptação teatral da obra homônima de Mário de Andrade, encenada pela primeira vez em 1978]. Preciso dizer que, antes, eu achava o teatro um pouco chato, muito ligado àquela realidade da qual eu sempre quis fugir, retratada de forma poetizada. Aí eu fui assistir a Macunaíma e pirei. O Antunes foi a primeira pessoa que me fez ver que uma folha de jornal no chão de um palco nu podia ser uma ilha. Ele me abriu um universo que mudou completamente minha forma de olhar o espaço, de olhar o teatro e de trabalhar com o teatro. Fiquei cinco anos viajando com Macunaíma pelo mundo. Paramos na Itália e fizemos um monólogo que nos levou a um centro de experimentação e pesquisa teatral em Pontedera, que é um lugarzinho na Toscana. A gente foi com Meu tio o Iauaretê [direção de Roberto Lage, 1986], baseado num conto de Guimarães Rosa, em que o Cacá Carvalho atuava. Ali, eu tive contato com Grotowski [Jerzy Marian Grotowski (1933-1999), diretor de teatro polaco e figura central no teatro do século 20] por quase 20 anos.

RECONHECIMENTO INTERNACIONAL

[Na Quadrienal de Praga, um dos maiores eventos mundiais dedicados à cenografia,] nós ganhamos a Triga de Ouro, com o espetáculo mais incrível e mais terrível que eu já fiz na vida, porque foi dentro do Rio Tietê, depois de uma experiência longa de dois, três anos, em que eu viajei pelo país com o Teatro da Vertigem – chama-se BR-3 [(2006), resultado de uma pesquisa de campo que compreendeu um percurso geográfico por três diferentes “Brasis”: Brasilândia (bairro da periferia da cidade de São Paulo), Brasília (capital) e Brasiléia (cidade no extremo do Acre)]. Eu fui trabalhar dentro do Rio Tietê. Foi uma experiência linda, mas complexa porque era uma dramaturgia imensa. Difícil porque o público ficava dentro de um grande

Com 40 anos de carreira e mais de 100 projetos na bagagem, Márcio Medina é um dos mais importantes cenógrafos do país.

Fotos Matheus José Maria
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encontros

barco, havia outras embarcações ao lado e às margens. Isso tudo era o meu espaço, o meu cenário. E a gente estava no intestino da cidade. Mas eu venho lá do Grotowski, que trabalha a partir da imaginação. A imaginação é muito importante para mim e para a arte.

MATERIALIZAR O IMAGINÁRIO

Eu venho desse trabalho desenvolvido pelo Grotowski, um trabalho psicofísico com o ator. Tenho sempre como base trabalhar com a imaginação do espectador. Eu gosto muito de deixar quase incompleto o espaço, para ser preenchido com o imaginário do próprio espectador. Eu trabalho muito com um recorte, ou com um elemento que dê a significância do que a gente está falando. Por exemplo, como vocês viram no amazonias: uma floresta, para mim, pode ser criada com vários elementos ou com um único. Quero que o espectador trabalhe também, não quero que ele apenas se sente na poltrona. A gente fez um trabalho no amazonias com 35 jovens das periferias de São Paulo, de tudo que é lugar, e com questões incríveis. Como é que eu vou deixar o espectador passivo diante disso? Eu quero ele atuante.

CONSTRUÇÃO COLETIVA

Se eu não tenho liberdade, eu não fico. Eu gosto sempre de ler o texto, de saber com quem estou trabalhando, e se eu não tiver não só essa minha voz, mas se eu não estiver num contexto com uma polifonia, eu digo: “Gente, deixei um bolo no forno, volto depois, tá?”. Ou seja, não consigo trabalhar se [o processo] não for participativo. Acho que isso também é consequência de um amadurecimento do meu trabalho. Como é que você vai fazer algo assim: lê um texto, faz um desenho e diz: “O cenário vai ser assim.”, como algo imposto? Eu nunca consegui fazer nada nesse estilo. É terrível. Voltando para amazonias , porque eu ainda estou muito impregnado desse espetáculo, [a cenografia] é um cubo de voil que pega os fundos e as laterais do palco. Tecidos que vão para cá e para lá, numa tentativa de derrubar a quarta parede [no teatro, a quarta parede seria uma divisória imaginária que separa os atores dos espectadores, e a quebra da “quarta parede” levaria a uma interação da plateia com a ação dramática]. Porque Maria Thais [diretora artístico-pedagógica de amazonias ] odeia teatro à

italiana, e nós estamos em um dos teatros mais bonitos de São Paulo. Ela queria que eu derrubasse a quarta parede. Para mim, é uma delícia. É um desafio trazer a nossa linguagem para esse espaço.

PROCESSO CRIATIVO

Primeiro, [converso] com o encenador para ver se a gente fala uma língua parecida, e se temos algum embate. Muitas vezes, relações de conflito foram altamente produtivas. Com a Thais, eu quero “jogá-la pela janela” várias vezes (risos), e ela também, com certeza. Muitos dos nossos trabalhos são resultado de embate mesmo. Primeiro tenho que falar com o encenador, ver qual o pensamento dele e, claro, ter contato com a dramaturgia. Só que, muitas vezes, a dramaturgia está em processo. Como no caso de amazonias, em que nós não tínhamos a dramaturgia. Claro que eu sofri muito porque ela [Maria Thais] é um guia até mesmo para você “desrespeitá-la”. Depois, se já tem a dramaturgia ou uma base de dramaturgia, eu sou aquele chato que não sai do ensaio. Já vi tantas coisas em ensaio, que me deram uma luz e tantos caminhos. Por exemplo, fiz um trabalho com a Denise Fraga, A Alma Boa de Setsuan [2008], onde ela fazia os dois papéis: do tio usurário e da prostituta. No desespero de ter que resolver a cena – ela tinha só uma virada de costas e tinha que virar prostituta –, ela arrancou o paletó do personagem do tio, amarrou as mangas na cintura, e virou um laçarote atrás, um quimono, um negócio daquele. Eu falei: “Se eu não estivesse no ensaio, nunca pensaria nessa solução”. Entende? O ensaio,

O ANTUNES
PESSOA QUE ME FEZ VER QUE UMA FOLHA DE JORNAL NO CHÃO DE UM PALCO NU PODIA SER UMA ILHA e | 68
[FILHO] FOI A PRIMEIRA

encontros

o ator, o processo, tudo isso é fundamental. Não existe um trabalho que eu não fique 24 horas.

ENTRE ÁRVORES

Essa geração que vem aí é incrível, muito crítica e com uma clareza muito forte sobre onde ela não está inserida, onde as oportunidades dela são restritas. O contato com eles [39 pessoas que integram o elenco do espetáculo amazonias] já foi uma coisa alucinante. A gente fez residências artísticas durante o processo, e eles traziam soluções. Por exemplo, eu dividi o espaço em formas geométricas no chão, eles dividiam o grupo em cinco, seis pessoas, e cada um fazia uma proposta. Aí eu vi textos não de uma Amazônia exuberante, turística, mas de uma Amazônia de quem mora lá. E aí cada um fez uma tradução disso nesses espaços. Cada coisa incrível que eles trouxeram. A gente partiu para criar amazonias de um eixo principal, uma analogia com uma árvore, em que temos a raiz

– um lugar de resistência, dos antepassados, da sedimentação da terra, da origem. Outro eixo era o tronco, que é o corpo, que está sobre o mundo, são as cidades, a mata. E o terceiro é a copa [da árvore], que é o que está para ser atingido, o que nós ansiamos – são os rios voadores, o sagrado. Foi com esses três elementos simbólicos, dessa árvore dissecada, que trouxemos os jovens, a diversidade de cores desses jovens, de corpos, de etnias.

NOVIDADES À VISTA

Eu vou fazer uma coisa de que gosto muito: uma ópera na Romênia. Já fiz uma ópera lá, Don Juan, e fiquei maravilhado com aquele povo. Ópera aqui é muito elitista, e lá na Romênia, numa cidadezinha que se chama Cluj, é diferente. Na temporada de ópera, toda a população da cidade, que é pequena, vai com sua cadeirinha para as praças, onde montam um palco, e é feito todo um programa com trechos das óperas que vão ser apresentadas.

PINHEIROS

amazonias – ver a mata que te vê [um manifesto poético]

Direção artístico-pedagógica:

Maria Thais. Cenografia:

Márcio Medina.

Até 12/02. Quinta a sábado, 19h. Domingos, 18h.

Rua Pais Leme, 195Pinheiros, São Paulo (SP) sescsp.org.br/amazonias

Eles aplaudem, cantam juntos, gritam, se emocionam. Eu senti uma força popular que eu quero entender melhor, quero participar um pouco mais, porque as óperas que eu fiz aqui no Brasil, embora com muita qualidade – nós temos músicos incríveis, maestros e toda a estrutura do Municipal –, ainda está rompendo com essa coisa de uma ópera mais formal, mais tradicional. Agora, aquelas velhinhas lá, sentadas na praça [para assistir à ópera], levando sanduíche, eu nunca tinha visto. Sonho realizar óperas assim: nas praças, nas ruas, para o nosso povo.

Ouça, em formato de podcast, a conversa com o convidado.

Márcio Medina esteve presente na reunião virtual do Conselho Editorial da Revista E, no dia 15 de dezembro de 2022. A mediação é da jornalista Adriana Reis, editora da Revista E

Matheus José Maria
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Atualmente, Medina assina a cenografia de amazonias – ver a mata que te vê [um manifesto poético], em cartaz no Sesc Pinheiros.

CIDADE-SATÉLITE

Eu tô juntando dinheiro, Nena. Que eu vou escrever um outdoor pra você. Sim, feito uma carta, uma declaração de amor. Só que enorme. Do tamanho do meu sentimento. É pra botar aqui e você ver. Aliás, não só você; todo mundo vai ver. E vai saber o quanto eu te quero bem.

Já bolei direitinho a mensagem pra mandar pôr. Fico repetindo as frases na minha cabeça, sabe? Chego a declamar sozinho às vezes, igual fosse poeta. Ou tivesse falando direto pra você, bem de pertinho. Anoto nos guardanapos, se vou num bar. Já escrevi mil guardanapos pra você, Nena. Imagino naquele grandão do outdoor, com as letras tudo bonita. Eu sei que a minha letra, ela não é bonita. Mas eu vou mandar fazer, Nena, daí eles ajeitam tudo bem como deve ser. Do jeito que você merece. A mensagem e o desenho de dois

corações, assim do lado, imagina? E pra dar o toque final, um verso da nossa música. Eita, vai ficar lindo. Tenho certeza que você vai gostar. Se eu pudesse, chamava até o Roberto Carlos pra cantar em pessoa. Feito serenata, sabe? Detalhes tão pequenos de nós dois... Ele com aquele violão bonito dele. Já pensou?

Mas como é caro, Nena. Tô nem falando do Roberto Carlos – que isso é mais das doidices da minha cabeça – tô me referindo ao outdoor mesmo. Quase caí duro quando falaram o preço. Descobri o lugar onde faz, você sabe que eu sou fuçado, né? É uma loja de publicidade, que chama. Fui lá, contei pra moça minha vontade, você tinha que ver: ela ficou até mexida. Emociona mesmo, né, um amor como o nosso. Ela falou assim: “A Nena é uma mulher de sorte”. E é. Mas, olha, esse outdoor vai me

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POR RAFAEL GALLO ILUSTRAÇÕES PEDRO FRANZ
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inéditos

deixar liso. Não reclamo, não; vale a pena. Todo esforço pra te ter, meu amor, vale demais.

Tô fazendo tudo que posso, sabe? Quando sobra um dinheirinho, guardo. Mas tá dureza, com o preço das coisas. Tudo aumentando que não para, valha-me Deus. Só com os gastos pra comer e pra morar, já fico quase sem nada. Tô dormindo no serviço agora, o patrão liberou um cantinho. Mas tenho que pagar a luz, a água e tudo, justamente. Arrumo uns bicos por fora, mas é complicado, né, numa cidade onde ninguém conhece a gente. Bato em muita porta, mas também batem muita porta em mim. A gente tava melhor antes, eu acho. A gente podia voltar, Nena. Nossa casinha tá lá ainda, não desfiz dela, não.

Se quiser ficar, tudo bem, eu aceito. Vim até aqui, não vou desistir. Quero mais é que a gente fique junto. Vou te mostrar. Essa ideia do outdoor, já tava com ela no ônibus pra cá. Vim só pensando: “A Nena vai gostar é muito”. E também podia ser um jeito de te encontrar. Uma hora você ia acabar vendo ele na rua e sabendo que eu vim. Primeiro eu planejei colocar no Centro, que todo mundo passa lá. Só que é mais caro. Vi que tinha que dar jeito. Nossa, de tanto imaginar sua cara quando você ver, até sonhei naquele ônibus. Dureza de viagem, né? A gente dorme a noite toda, acorda, dorme de novo e ainda tá ali. Aff, como demora. E eu achando, ainda, que ia ficar na capital. Só depois é que fui entender essa história de cidade-satélite. Eu tinha pra mim que satélite era só aquelas coisas que fica no espaço, dando volta no planeta, que a gente vê na TV. Vai ver que dão esse nome pra tudo que fica assim, rodeando, de perto, né? E, olha, não foi ignorância só da minha parte, não. A sua tia Sônia, quando me contou que você tinha vindo pra cá, só falou assim: “Ela foi pra Brasília”. Embarquei no ônibus era com esse pensamento. Dei muita volta naquela cidade, à toa. Até o dia que liguei pra sua tia de novo. Só daí é que ela falou de Sobradinho, que tinha descoberto isso. Mas falou foi na maneira de um bairro. A rua, não sabia, ia tentar descobrir. Me fez jurar de pé junto que não ia te contar que foi ela quem disse. Não vou, sou homem de

palavra. Ela falou que só fez porque acredita no nosso casamento. Eu também, Nena, é a coisa em que mais acredito nesse mundo.

E sou muito agradecido à sua tia, viu. Deus que a abençoe, foi a única que me ajudou. Que tá ajudando nós dois. Todo mundo via meu desespero e, não sei, parece que não se importa. Queria ver se fosse com eles. Porque pode acontecer, viu? Todo casal tem problemas. Eu não sou perfeito, você também não. O que não pode é uma história como a nossa acabar desse jeito. Nena, o tanto que eu chorei. O tanto que eu chorei sem você. Sozinho naquela casa, feito cachorro abandonado. Só botava a nossa música pra tocar e me acabava. Quando chegava naquela parte: Um grande amor não vai morrer assim, eu só pensava no que eu podia fazer. Você me machucou muito com sua partida. Mas, olha, eu não vou te machucar, não.

Tô é feliz de ter chegado aqui. Tava desesperado, lá na capital ninguém sabia de você. Perguntava em todo canto e nada. Foi só mesmo quando sua tia falou de Sobradinho, que a coisa melhorou. Mas eu tive que insistir com ela também, viu? É de família, essa teimosia de vocês, né? Só que eu sou teimoso também. Não me dou por vencido. E dessa vez você dificultou, viu. Por isso tô demorando mais. E também pra juntar o dinheiro do outdoor. Quero fazer uma coisa especial, pra gente sair por cima. Eu comecei a pensar nisso ouvindo a nossa música, um dia. Porque, olha só, parece que ela vai acabar na tristeza, né? Tem todo aquele pedaço que fala de outro homem, eu nem gosto de pensar, e daí vem o Roberto falando que o tempo transforma todo amor em quase nada. Você pensa: é o fim. Mas aí é que vem o pulo do gato. Porque depois ele canta: Mas quase também é mais um detalhe Ou seja, aquele “quase nada” não é o fim, é um detalhe a mais. E os detalhes, isso ele já tinha falado antes: são coisas muito grandes pra esquecer. Entende? Fica grande de novo, recomeça. Olha a brilhanteza desse homem! E é isso mesmo, Nena. Vai ser bem assim com a gente. Nada dessa confusão toda de se afastar, pra depois juntar, chega disso. Eu já tinha te falado: os nossos problemas a gente tem que

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resolver é na nossa casa. E entre nós dois, só. Sem nem aquela coisa de parente se meter no meio, polícia, sei lá mais o quê. Só nós dois.

Tem esse lado bom de ninguém conhecer a gente aqui. Lá, todo mundo se intromete, fica querendo saber tudo. Aqui, nossa, eu tive que rodar muito antes de ouvir falar de você. A sorte é que hoje tem muita informação, né? E muita gente boa também, prestativa. É só procurar nos lugares certos, conversar com educação, que acaba dando jeito de se entender. Eu trouxe tudo os documentos, tava tudo ali pra provar que sou seu marido. E com a ajuda de Deus consegui achar, Nena.

Agora falta pouco. Vou botar o outdoor bem aqui e, quando tiver, vai ser você abrir essa sua janela e topar com ele. Quero muito ver sua cara. Tô pensando ainda se boto pra você ver na hora que volta do trabalho ou que

acorda. Já vi que você abre e fecha as janelas, todo dia, mais ou menos a mesma hora. Ah, me aguarde. Vou te mostrar meu amor. Um baita outdoor, com a mensagem toda bonita, o desenho dos corações. A nossa música lá na última linha, pra que você saiba:

Não adianta nem tentar me esquecer.

Rafael Gallo é autor de Rebentar (Record, 2015), romance vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura, e de Réveillon e outros dias (Record, 2012), livro de contos vencedor do Prêmio Sesc de Literatura. Tem ainda diversos textos em antologias e coletâneas, incluindo publicações em países como França, Estados Unidos, Cuba, Equador e Moçambique.

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depoimento

que FARO VIRALIZA

A verve investigativa do jornalista

Chico Felitti, cuja produção transita entre podcasts narrativos, livros biográficos e grandes reportagens

Desde o dia em que Chico Felitti saiu de Jundiaí, no interior paulista, aos 17 anos, para estudar jornalismo na capital, nunca imaginou que passaria de entrevistador a entrevistado.

Hoje, o ex-repórter do jornal Folha de S.Paulo – onde trabalhou por uma década, cobrindo diversas áreas, até mesmo a guerra da Síria – é reconhecido nas ruas, dá autógrafos, tira fotos e grava mensagens em vídeo para os fãs. O sucesso começou em 2017, depois que Felitti deixou de fazer roteiro de programa de humor para o canal de televisão a cabo Multishow e se deparou com a história de vida do cabeleireiro

Ricardo Corrêa da Silva, mais conhecido como “Fofão da Augusta”.

Por esse trabalho, publicado no BuzzFeed e transformado em livro – Ricardo e Vânia (Todavia, 2019) –, o escritor conquistou os prêmios Comunique-se e Petrobras de Jornalismo, além de ter sido finalista do Jabuti, em 2020. Em junho do ano passado, outra grande reportagem ganharia notoriedade, desta vez em áudio, com o lançamento do podcast A Mulher da Casa Abandonada. A história chegou a ter três milhões de ouvintes por episódio, repercutindo no país inteiro.

Em janeiro de 2023, Felliti lançou seu mais novo trabalho investigativo: o podcast narrativo O Ateliê, documentário que acompanha as acusações de ex-alunos de uma escola de artes no centro de São Paulo. Em dez episódios,

o jornalista revela, aos poucos, as surpresas da investigação que durou quase um ano e ouviu mais de 50 entrevistados. “É uma história de crime com violência, abuso psicológico e exploração financeira, mas também uma história de coragem e de fraternidade”, resume.

Além dos programas em formato de podcast, Chico também aposta suas fichas nas narrativas em prosa: é autor de A casa: A história da seita de João de Deus (Todavia, 2020), Elke: Mulher Maravilha (Todavia, 2021) e o mais recente Rainhas da Noite (Companhia das Letras, 2022), sobre uma máfia comandada por travestis em São Paulo, lançado em dezembro de 2022, no Centro de Pesquisa e Formação (CPF) do Sesc São Paulo.

POR LUNA D’ALAMA
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Camila Svenson

Fã das jornalistas Mônica Bergamo, Eliane Brum e Daniela Arbex, ele diz que, naturalmente, se interessa por personagens que estão à margem da sociedade. Neste Depoimento, fala sobre novos projetos, êxitos, desafios e diferentes formatos para se contar uma história.

ateliê

Meu novo podcast, lançado em janeiro, conta a história de uma seita em São Paulo cujos discípulos são jovens mi ou bilionários – incluindo a filha do homem mais rico do Brasil, que está lá há 13 anos. O líder [o artista visual Rubens Espírito Santo, dono do Atelier do Centro] coopta jovens e, segundo o relato de dezenas deles, agride, violenta, estupra, achaca, marca iniciais a ferro quente. É um lugar que se diz uma escola [de arte] ativa e contracultura, em que as pessoas entram e nunca mais saem, e onde se praticam todos os tipos de crimes. É algo mais ou menos conhecido em São Paulo, existe há 20 anos, mas ninguém sabia que era uma seita. Uma dessas pessoas, que eu não conhecia, deixou um bilhete na minha portaria falando: “Eu saí de uma seita”. Acompanhei-a [a artista Mirela Cabral] por um ano, e a história foi ganhando

força, enquanto ela foi juntando outras pessoas que estudaram com ela, e a denúncia cresceu. Aí fiz uma investigação dessa figura [chamada de “mestre” pelos alunos] e encontrei uma antiga namorada dele que afirma ter sido estuprada. Descobri também outras pessoas do passado dele, que não estão nessa denúncia [da escola], mas que confirmam [vários crimes]. Ouvi mais de 50 pessoas, assisti a vídeos, e todas me disseram: “Sim, é verdade”. Entrevistei o sujeito, e ele não confirmou nem negou as acusações. Foi uma das minhas experiências mais difíceis e cansativas de acompanhar, um périplo no deserto. Mas a série entrou no ar já pronta. Eu só começo a publicar quando está finalizada.

casa

[O sucesso do podcast A Mulher da Casa Abandonada] foi uma conjunção de fatores, um alinhamento astral que nunca tinha acontecido, e acho que nunca mais vai se repetir. Foram 200 mil ouvintes no primeiro episódio, na terceira semana estava com 3 milhões por episódio, algo sem precedentes no Brasil. Caiu no TikTok, então chegou a um público muito jovem. Um helicóptero cobriu ao vivo a

TROCO O SENTIDO DE OBJETIVIDADE

PELO DA HONESTIDADE, PARA

invasão de duas equipes da polícia, que não sabia por quê estavam entrando na casa, enquanto uma multidão gritava como se fosse um jogo de futebol. Essa história foi dando cambalhotas, virando outras histórias. Saiu muito do controle. O final foi um episódio de Black Mirror, uma coisa surreal, a definição de espetacularização. Começaram a chegar cobranças de várias partes, do tipo: “Mas ela não vai ser condenada? Você não vai fazer nada? Não vai salvá-la? Não vai tirá-la da casa?” Eu respondi que não, não é essa a minha atribuição. Fiz tudo que estava ao meu alcance, mas não sou a Justiça. Ela falou, foi ouvida, consentiu que saísse [o podcast]. Só que ninguém estava preparado para o que aconteceria depois. O que me deu bastante alento, quando tudo parecia ter virado uma insanidade, foi que começaram a sair as denúncias de suspeita de trabalho análogo à escravidão, e os números duplicaram ou triplicaram em alguns estados. Isso é garantia de que passei a mensagem que queria, pois meu intuito sempre foi falar sobre um caso muito peculiar para falar do Brasil inteiro. A casa é uma analogia do país, da nossa elite, da legislação trabalhista, da impunidade de quem é rico, de como o Estado falha. [A febre] passou como veio, a internet tem memória de peixinho. Em duas semanas, acabou. Entre mortos e feridos, conseguimos sobreviver.

rainhas

[Rainhas da Noite] é o livro mais importante da minha vida. Ele saiu primeiro [em setembro de 2021] como audiolivro e passou por um processo de adaptação [para texto] e de pesquisa de imagens. Consegui fazer o livro a distância, cada entrevistado(a) num canto do mundo. Ouvi mais de cem fontes. Tive acesso a gravações de festas e

TENTAR PINTAR UM RETRATO O MAIS COMPLETO POSSÍVEL E ADMITIR QUE EU ERRO, QUE SOU HUMANO depoimento

PARA MIM, CADA HISTÓRIA JÁ NASCE COM CARA, COR E CHEIRO. É ASSIM QUE SEI SE VAI

VIRAR UM LIVRO OU PODCAST

filmes da época, muitas fitas VHS. Esses vídeos me ajudaram a narrar falas, interações e a entender como era aquele universo. O restante foram fotos e conversas. Esse livro nasceu de um contato que eu tinha desde os 17 anos. Eu era muito próximo da Kaká di Polly (1959-2023) e dessa galera. Minha noite sempre foi a do Centro [paulistano], essa mais decadente, tipo [Largo do] Arouche, Rua Vitória. Por quase 20 anos, eu ouvia anedotas. Quando a editora me falou para eu escrever o livro que quisesse, pensei que poderia ser sobre essa máfia comandada por travestis em São Paulo, entre o fim dos anos 1970 e o começo dos anos 2000. Isso aconteceu aqui, essas pessoas viveram isso. Foi um tiro no escuro, mas no final foi inacreditável. Parecia um fusca de palhaços, não paravam de sair coisas.

oralidade

Algumas histórias que conto no meu novo livro [Rainhas da Noite] tinham versões completamente diferentes, e preferi incluir todas. Toda história tem muitos lados. Esse é o das travestis. Muitas vezes, a escrita é presunçosa e acha que vai responder tudo. É preciso descer um pouco do salto. Prefiro trazer versões distintas e dizer: “Acredite em alguma, não acredite em nenhuma”. A construção de uma história leva o cimento da memória.

E a história oral é isso, baseada na nossa memória. A memória, por sua vez, é uma coisa escorregadia. Acho, inclusive, que o livro ficou mais rico ao contemplar três versões [para um mesmo fato], por exemplo. Essa história toda é baseada praticamente só em história oral. Foi tão pouco documentada, relegada ao esquecimento, jogada para as margens. Procurei muito, mas quase não havia documentos. Então, resolvi tecer uma teia de memórias de pessoas que viveram tudo isso. Uma delas, semanas depois de a gente ter passado dias conversando, morreu de covid-19. E aí me dei conta de que essa história não registrada poderia ir embora se não fosse contada com alguma urgência. Para mim, cada história já nasce com cara, cor e cheiro. É assim que sei se vai virar um livro ou podcast.

silenciamento

Talvez seja hora de a gente, na literatura, começar a falar sobre silêncio [ou violência] arquival. A gente não conta histórias porque elas já não foram contadas. E, por isso, não temos muito repertório de pesquisa, não temos registros nem documentos. Logo, a gente não escreve mais sobre isso. E esse ciclo nunca termina. Então, [é importante] começar a ter interesse, esforço e investimento real em histórias “primeiras”, que

não nasceram a partir de derivados oficiais. São histórias que estão na mente das pessoas, nos diários de quem escreveu. Algumas pessoas de quem eu falo no novo livro não tinham nem certidão de nascimento, nem RG. Por mais que sejam pessoas completamente diferentes, todas [Ricardo Corrêa da Silva e as travestis do Centro paulistano] beiravam o esquecimento. Ricardo e Vânia (2019) e Rainhas da Noite (2022), para mim, são uma coisa só, um é meio a continuação do outro. [Espero] que a gente mude um pouco o tipo de exigência que existe para escrever um livro ou fazer um documentário, porque há um crivo que privilegia que se contem histórias de determinados grupos em detrimento de outros.

honestidade

Acho que é uma fraqueza [me colocar nas histórias], mais do que uma força. Mas é só quando uma história realmente não para em pé que me incluo nela, ou confidencio alguma coisa que estou sentindo. Por exemplo, a Mulher da Casa Abandonada não teria ficado de pé se eu tivesse tentado contar de uma maneira objetiva. Não existe objetividade na “obsessão” por uma vizinha. Eu ainda fico muito tímido de me colocar [nas narrativas], mas quando interfiro na história, preciso me responsabilizar pelos meus atos. Fico megaconstrangido de me expor, porque venho de uma escola [de jornalismo] objetiva, imparcial, com um manual de redação severo. Mas essas histórias não nascem imparciais, e sim subjetivas. Então, acho que troco o sentido de objetividade pelo da honestidade, para tentar pintar um retrato o mais completo possível e admitir que eu erro, que sou humano. Não consigo mais fazer esse jornalismo que se acha dois dedos acima do chão.

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depoimento

ALMANAQUE

Berços do samba

Rodas de samba, choro e pagode. Blocos de rua, bailes, matinês, desfiles das escolas dos grupos especial e de acesso. Neste mês, após um hiato de três anos por conta da pandemia de covid-19, a folia volta a ocupar o calendário brasileiro, com música, dança, confete e serpentina. E a cidade de São Paulo, que um dia já foi chamada de “túmulo do samba”, prova que respira esse gênero – nascido entre negros escravizados na Bahia do século 19, e alçado a símbolo nacional nos anos 1940 – de norte a sul, de leste a oeste, o ano inteiro. Abram alas e confiram, a seguir, alguns dos berços e bastiões do samba na capital paulista.

No mês do Carnaval, conheça tradicionais redutos da capital paulista que respiram o ano todo no ritmo de chocalhos, surdos e tamborins
Estevão Salomão e | 78

LESTE SAMBA DA ZL

A zona leste lidera o número de escolas de samba da capital, com 24 agremiações. É sede das quadras da Nenê da Vila Matilde, Leandro de Itaquera e Acadêmicos do Tatuapé, entre outras. A região também se destaca pelo projeto social Berço do Samba de São Mateus, nascido em 1990 em encontros realizados em quintais como o da Tia Cida e no Buteco do Timaia. Em 2007, o Selo Sesc lançou o álbum Berço do Samba de São Mateus, que reúne 40 músicos para cantar o cotidiano dos moradores de São Mateus, com produção do Quinteto em Preto e Branco e participações de Beth Carvalho (1946-2019) e Almir Guineto (1946-2017). O tema virou, ainda, o documentário Berço do Samba de São Mateus, do SescTV, que mostra as rodas de samba que envolvem a trajetória do grupo.

Nenê da Vila Matilde: nenedevilamatilde.com.br

Leandro de Itaquera: instagram. com/leandrodeitaquera_oficial

Acadêmicos do Tatuapé: academicosdotatuape.com.br

Berço do Samba de São Mateus: instagram.com/ bercodosambasaomateus

• Disco Berço do Samba de São Mateus (Selo Sesc, 2007): bit.ly/ disco-sao-mateus

• Documentário Berço do Samba de São Mateus (SescTV, 2019): bit.ly/ doc-sao-mateus

RODAS DE TALENTOS

A zona sul reúne clássicas rodas de samba paulistanas, como o Samba da Vela, Samba da Laje e Pagode da 27. O primeiro, fundado em 2000, em Santo Amaro, busca dar visibilidade a talentos da região, resgatando vertentes tradicionais do gênero, como o samba de terreiro e o partido alto. Os bambas do Samba da Laje se reúnem na Vila Santa Catarina, todo segundo domingo do mês, na casa da Dona Generosa, que também serve feijoada para acompanhar a cantoria e o batuque. O Pagode da 27, por sua vez, é uma roda que acontece desde 2015 no Grajaú, nas tardes de domingo,

com repertório que inclui sambas de raiz autorais e releituras de clássicos. O projeto começou com um grupo de amigos que adorava samba e organizava pequenas rodas pelo bairro, até que um dia o som foi até mais tarde e migrou para um bar numa rua estreita chamada 27. Neste mês, o Pagode da 27 faz show na Praça de Convivência do Sesc Guarulhos, no dia 17/2.

Samba da Vela: instagram.com/sambadavelaoficial

Samba da Laje: instagram.com/sambadalaje

Pagode da 27: instagram.com/pagodeda27

O Samba da Vela, criado em 2000, em Santo Amaro, é uma das disputadas rodas na zona sul de São Paulo.
SUL
Tiago Império 79 | e

ALMANAQUE

MORO EM JAÇANÃ

Acadêmicos do Tucuruvi, Império de Casa Verde, Rosas de Ouro e X-9 Paulistana são algumas das 21 escolas de samba da capital paulista que nasceram na zona norte. A região também está presente na canção Trem das Onze, do cantor e compositor Adoniran Barbosa (1912-1982): Moro em Jaçanã, se eu perder esse trem que sai agora às 11 horas, só amanhã de manhã. Quando o assunto é samba na zona norte, destaque ainda para o Samba na Feira, projeto realizado todo terceiro domingo do mês, desde 2007, numa feira livre no bairro do Limão. O local virou ponto de encontro de compositores e fãs do gênero, que se divertem entre verduras, pastéis e caldo de cana.

Acadêmicos do Tucuruvi: academicosdotucuruvi.com.br

Império de Casa Verde: instagram.com/ imperiodecasaverde

Rosas de Ouro: sociedaderosasdeouro.com.br

X-9 Paulistana: x9paulistana.com.br

Samba na Feira: facebook.com/sambanafeiraoficial

PROTAGONISMO NEGRO E FEMININO

Bem antes do Bixiga ser ocupado por imigrantes italianos e reconhecido pelas cantinas e pizzarias, esse bairro da região central tinha grande concentração da população negra. Foi lá onde o cordão carnavalesco, que mais tarde se tornaria a escola de samba Vai-Vai, a maior campeã do Carnaval paulistano, foi fundado. Hoje sem quadra, por conta das obras do metrô, a escola deve ganhar nova sede em breve. O Centro merece destaque, ainda, porque foi criada no bairro da Liberdade, em 1937, a Lavapés Pirata Negro, primeira escola de samba comandada por uma mulher, a baluarte Deolinda Madre (1909-1996), mais conhecida como Madrinha Eunice. Hoje, a agremiação é liderada pelo ator Ailton Graça e funciona no Jabaquara, zona sul da capital. Além disso, o bloco de rua mais antigo da cidade ainda em atividade também fica no Centro: a Banda Redonda foi criada na década de 1970, por iniciativa de artistas como Plínio Marcos (1935-1999), e o grupo ainda desfila pelas ruas em volta do Teatro de Arena, na República.

Vai-vai: vaivai.com.br

Lavapés Pirata Negro: instagram.com/ lavapespiratanegro

Banda Redonda: instagram.com/bandaredonda

CENTRO
NORTE
Ensaio da escola de samba Lavapés Pirata Negro. Músicos que formam o Samba na Feira, na zona norte de São Paulo.
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Marcus Chagas Oliveira (Lavapés Pirata Negro); Chico River (Samba na Feira)

DO BATUQUE AO CHORO

A Barra Funda é um dos mais antigos territórios do samba na cidade. Foi no Largo da Banana (na época, o maior ponto de encontro de sambistas negros de São Paulo) onde Dionísio Barbosa (1891-1977), considerado o patriarca do samba paulista, fundou, em 1914, o Grupo Carnavalesco Barra Funda. O cordão foi oficializado, quatro décadas depois, como a escola de samba Camisa Verde e Branco, que mantém um trabalho de preservação da memória por meio de sua velha guarda. Além disso, ao

lado do Memorial da América Latina, onde se situava o Largo da Banana, foi inaugurada, em 2022, a escultura de Geraldo Filme (1927-1995), que cresceu nas rodas de samba e tiririca (capoeira) da região, e depois se tornou um dos bambas pioneiros do samba paulista. Em 2020, Geraldo foi homenageado pelo Selo Sesc no disco Tio Gê – o samba paulista de Geraldo Filme, disponível gratuitamente nas plataformas de áudio. É também na zona oeste – mais precisamente em Perdizes – que, desde 2007, acontece a Roda do Izaías, idealizada pelo bandolinista Izaías Bueno de Almeida. Com entrada gratuita, às sextas-feiras,

o espaço recebe várias gerações de chorões. Em 2021, o Sesc Pompeia lançou, em seu canal no YouTube, a websérie Izaías e a memória viva do choro, que celebra, em seis episódios, a trajetória do artista.

Camisa Verde e Branco: instagram.com/camisaverdeweb

Disco Tio Gê - o samba paulista de Geraldo Filme (Selo Sesc, 2020): bit.ly/disco-tioge

Websérie Izaías e a memória viva do choro (Sesc Pompeia, 2021): bit.ly/izaias-choro

OESTE
A websérie Izaías e a memória viva do choro pode ser assistida no canal do Sesc Pompeia no YouTube.
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Reprodução (Izaías e a memória viva do choro)

Oralidade e memória: intersecções

Memória é algo importante para bichos e humanos. Ela nos coloca em contato com quem fomos, o que vivemos e aprendemos, nos convida a refletir sobre aquilo que herdamos e queremos manter vivo, ou decidimos encerrar em nós. O ato de lembrar fortalece vínculos de pertencimento e colabora também com a construção do processo de identidade.

Para que a memória se perpetue, a oralidade se constituiu como um meio para transmissão de nossas lembranças. A forma como se deu o seu registro mudou, e atualmente utilizamos as tecnologias para eternizar, com vozes e imagens, tudo que constitui um dado acontecimento de nossa história.

Na faculdade de história tive contato com a História Oral, quando aprendi sobre esse campo de estudos e pesquisas, que consiste na construção e análise de fontes orais por meio de gravação de entrevistas. Nesse contexto, o historiador é convidado a exercer uma escuta atenta e empática para ter acesso às tramas que envolvem o potencial de transformação dessas narrativas no âmbito do coletivo social e cultural.

A cada oportunidade de ligar o gravador, ouvi histórias de vida de pessoas que se dispuseram a narrar lembranças acessadas em meio a cheiros, imagens, sons e sabores, trazendo doçura e encanto de um tempo longínquo, mas que se torna vívido a cada revisitar. Nessas entrevistas, também pude ter contato com memórias que chamam para a vida, para o hoje, por meio dos testemunhos daqueles que foram excluídos ou que tiveram sua condição de ser, estar e viver não respeitada.

Sob o ponto de vista social e cultural, a memória possui ligação com o que pensamos, guardamos, lembramos e representamos, e por intermédio de nossas experiências e vivências, aquelas recordações passam a se tornar algo inerente a nós. A relação com o outro e em grupo é estabelecida por meio das conexões de nossas lembranças com as daqueles que nos rodeiam. Ao lembrarmos, retomamos o passado a partir do tempo presente, e são dessas percepções,

aliadas às lembranças guardadas pelos diferentes grupos sociais, que se constitui a memória coletiva.

Mas e aquilo que esquecemos? Ou que somos impelidos a esquecer? O que isso revela?

Ao longo da história, podemos observar essa tensão, por exemplo, em narrativas propagadas por regimes totalitários, a fim de paralisar ideias que estejam fora do espectro desejado. Da mesma forma, é aplicada em cenários democráticos, na forma de valorizar as ações na construção de uma sociedade menos desigual. Os apagamentos e silenciamentos colocados deliberadamente no limbo da história convidam-nos a refletir sobre o nosso papel frente a esse movimento e de que forma podemos contribuir com o que guardamos e excluímos, de modo que as associações entre memória, autonomia e liberdade, por um lado, e autoritarismo e esquecimento, por outro, não caiam em banalizações.

Sabemos que não é possível reviver o passado tal qual aconteceu, mas sim fazermos uma releitura com base naquilo que se vive no tempo presente. Lembrar não é somente reviver, como nos ensina Ecléa Bosi (19362017, psicóloga, professora e escritora brasileira), mas é um movimento de reconstrução daquilo que vivemos hoje somado às experiências do passado. Isso significa que as experiências são necessárias ao humano que, ao obter consciência dessa ação, conquista o poder de decisão e contribui com o que deve ser preservado e divulgado. Dessa forma, nos reconhecemos enquanto humanos por meio da ação de lembrar, narrar e registrar nossos feitos no tempo e espaço. O que você tem registrado para a posteridade?

Carla Lira Santos, graduada em história e mestre em educação, é pesquisadora de acervo no Sesc Memórias, centro de memória institucional do Sesc São Paulo.

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