Revista E - fevereiro/24

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Revista E | fevereiro de 2024 nº 8 | ano 30 Ricardo Aleixo

Fervura global

João Donato

Parlapatões

Multiartista abraça a poesia como expressão de vida

Como as cidades podem enfrentar os efeitos climáticos?

O suingue e a bossa atemporal do músico acriano

Trupe celebra trajetória de palhaçaria em livro de fotos




CAPA: Obra Sem título (acrílico e óleo sobre tela, 2020), da artista Ana Berenice Hubner Flores, que está presente no livro Mario Pedrosa: revolução sensível, lançado em 2023 pelas Edições Sesc São Paulo e Fundação Perseu Abramo. Organizada pelos professores Everaldo de Oliveira Andrade, Francisco Alambert e Marcelo Mari, esta coletânea de ensaios, depoimentos e imagens apresenta as várias dimensões de Mário Pedrosa (19001981): advogado, jornalista, militante político, crítico de arte, intelectual e vanguardista. Crédito: Ana Berenice Hubner Flores

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Legendas Acessibilidade

Em estabelecimentos de uso coletivo é assegurado o acompanhamento de cão-guia. As unidades do Sesc estão preparadas para receber todos os públicos.

Em permanente transformação Promover o bem-estar dos trabalhadores do comércio de bens, serviços e turismo, e de seus familiares, está no cerne das ações do Sesc – Serviço Social do Comércio. Fruto de uma iniciativa inovadora do empresariado do setor, a entidade nasceu em 1946 com o objetivo de proporcionar qualidade de vida ao seu público prioritário, bem como a toda a comunidade, por meio de uma vasta e diversificada programação nos campos da cultura, lazer, esportes, turismo, saúde e alimentação. Prestes a celebrar oito décadas de existência, o Sesc sempre testemunhou e atuou com protagonismo nas transformações que o país viveu, resultantes de um intenso processo de urbanização que elevou a taxa populacional nas grandes cidades, acolhendo e respondendo aos desafios que se apresentavam. Para isso, os centros culturais e esportivos do Sesc São Paulo, que estão presentes em todo o estado, oferecem atividades diversas, como apresentações artísticas, cursos, oficinas e outras oportunidades de aprender novas linguagens e de conhecer pessoas, expandindo repertórios. É desse modo, ao compreender e se adaptar ao contemporâneo, que a entidade se mantém relevante e atuante no cotidiano de seus públicos frequentadores. Abram Szajman Presidente do Conselho Regional do Sesc no Estado de São Paulo


SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO – SESC Administração Regional no Estado de São Paulo Av. Álvaro Ramos, 991 – Belenzinho

Sustentabilidade como prioridade Ondas de calor que elevam as temperaturas nas cidades. Chuvas intensas e volumosas geram estragos e riscos à vida. Secas históricas prejudicam a produtividade no campo. Essas e outras situações que temos presenciado nos últimos tempos expõem, de forma explícita, a urgência de nos atentarmos para a pauta da sustentabilidade. Refletir sobre as urgências climáticas e buscar soluções coletivas para nos adaptarmos a elas deve ser uma prioridade, assim como debater, enquanto sociedade, estratégias para mitigar o que provoca essa nova condição que se apresenta. Trata-se de uma realidade complexa que exige o compromisso das mais diferentes esferas, do poder público ao cidadão comum, passando pelo empresariado e pela contribuição da ciência, com o trabalho dos pesquisadores. Cada um pode (e deve) repensar suas escolhas diárias e priorizar caminhos em consonância com o bem-estar e em prol do meio ambiente. Reportagem desta edição da Revista E aborda esta temática, repercutindo a análise de alguns dos profissionais que hoje se debruçam sobre como viver de maneira sustentável e em equilíbrio com a natureza, ao mesmo tempo que procura se adaptar aos desafios do tempo presente. Convido a todos para essa leitura! Luiz Deoclecio Massaro Galina Diretor do Sesc São Paulo

CONSELHO REGIONAL DO SESC EM SÃO PAULO Presidente: Abram Abe Szajman Diretor Regional: Luiz Deoclecio Massaro Galina Efetivos: Arnaldo Odlevati Junior, Benedito Toso de Arruda, Dan Guinsburg, Jair Francisco Mafra, José de Sousa Lima, José Maria de Faria, José Roberto Pena, Manuel Henrique Farias Ramos, Marcus Alves de Mello, Milton Zamora, Paulo Cesar Garcia Lopes, Paulo João de Oliveira Alonso, Paulo Roberto Gullo, Rafik Hussein Saab, Reinaldo Pedro Correa, Rosana Aparecida da Silva, Valterli Martinez, Vanderlei Barbosa dos Santos Suplentes: Aguinaldo Rodrigues da Silva, Aldo Minchillo, Antonio Cozzi Junior, Antonio Di Girolamo, Antonio Geraldo Giannini, Célio Simões Cerri, Cláudio Barnabé Cajado, Costabile Matarazzo Junior, Edison Severo Maltoni, Marco Antonio Melchior, Omar Abdul Assaf, Sérgio Vanderlei da Silva, Vilter Croqui Marcondes, Vitor Fernandes, William Pedro Luz REPRESENTANTES JUNTO AO CONSELHO NACIONAL Efetivos: Abram Abe Szajman, Ivo Dall’Acqua Júnior, Rubens Torres Medrano Suplentes: Álvaro Luiz Bruzadin Furtado, Marcelo Braga, Vicente Amato Sobrinho CONSELHO EDITORIAL | Revista E Adenor Serrano Domiense, Adriana Martins Dias, Adriano Ladeira Vannucchi, Alessandro Souza Santos, Alex Siciliani Anastacio Cruz, Aline Ribenboim, Ana Paula Verissimo Souza, André Luiz Santos Silva, Andreia Pereira Lima, Angelo José Domingues de Moraes, Carolina Barbosa de Melo, Carolina Vidal Ferreira, Caroline Figueira Zeferino, Cesar Harold de Almeida Albornoz, Cinthya de Rezende Martins, Clovis Ribeiro de Carvalho, Daniele Barros dos Santos, Daniella Aparecida de Souza, Danny Abensur, Denise Ramos da Fonseca, Diego Polezel Zebele, Edmar Rodrigues de Fátima Júnior, Elmo Sellitti Rangel, Erica Martins Dias, Fabiola Larissa Tavares Milan, Felipe Campagna de Gaspari, Fernanda Gehrke, Fernanda Porta Nova Ferreira da Silva, Flavia Teixeira S Coelho, Gabriela Batista Borsoi, Giulia Maria de Campos Manocchi, Gustavo Henrique Torrezan, Henrique Vizeu Winkaler, Humberto Vieira Mota, Ian Herman Lins e Silva, Ivy Granata Delalibera, Janaina Welle, Jefferson de Almeida Santanielo, José Goncalves da Silva Junior, José Mauricio Rodrigues Lima, Juliana Barreto da Silva, Karina Camargo Leal Musumeci, Kimberlly Caroline Brito da Silva, Leandro Henrique da Silva Vicente, Ligia Fernandes Araujo, Lilian Vieira Ambar, Lourdes Aparecida Teixeira Benedan, Marcelo dos Santos Friggi, Maria Emilia Carmineti, Mariana Lins Prado, Marina Borges Barroso, Marina Burity Francisco, Mildred Conde Gonzalez, Pablo Perez Sanches, Rafaela Ometto Berto, Renan Cantuario Pereira, Roberta Alves Marcondes, Rodrigo Quina Alves Sallai, Romeu Marinho C. Ubeda, Sandra Ribeiro Alves, Sofia Calabria Y Carnero, Tamara Demuner, Thais Cristina Kruse, Tina Carvalho da Silva, Vanessa Santos da Silva, Vitor Penteado Franciscon, Viviane Machado Lemos, Walter Bertotti De Souza. Coordenação-Geral: Aurea Leszczynski Vieira Gonçalves Coordenação-Executiva: Lígia Moreira Moreli e Silvio Basilio Editora-Executiva: Adriana Reis Paulics • Projeto Gráfico e Diagramação: Bruno Thofer e Larissa Ohori • Edição de Textos: Adriana Reis Paulics, Guilherme Barreto e Maria Júlia Lledó • Revisão de Textos: Pedro P. Silva • Edição de Fotografia: Adriana Vichi • Repórteres: Luna D’Alama, Manuela Ferreira, Maria Júlia Lledó, Matheus Lopes Quirino e Raquel Sciré • Coordenação Editorial Revista E: Adriana Reis Paulics, Guilherme Barreto e Marina Pereira • Propaganda: Gabriela Amorim, Jefferson Santanielo, José Gonçalves Júnior • Arte de Anúncios: Alexandre Calderero, Ariane Ramos de Azevedo, Ian Herman Lins e Silva e Leandro Henrique da Silva • Supervisão Gráfica: Rogerio Ianelli • Finalização: Bruno Thofer e Larissa Ohori • Criação Digital Revista E: Lourdes Teixeira • Circulação e Distribuição: Nelson Soares da Fonseca Jornalista Responsável: Adriana Reis Paulics (MTB 37.488) A Revista E é uma publicação do Sesc São Paulo, sob coordenação da Superintendência de Comunicação Social Distribuição gratuita. Nenhuma pessoa está autorizada a vender anúncios Esta publicação está disponível para retirada gratuita nas unidades do Sesc São Paulo e também em versão digital, em sescsp.org.br/revistae e no aplicativo Sesc SP para tablets e celulares (Android e IOS). Fale conosco: revistae@sescsp.org.br


SUMÁRIO

sustentabilidade

bio

gráfica

música

p.11

p.16

p.24

p.34

p.40

p.54

O suingue do pianista, compositor e arranjador João Donato, que atravessou décadas influenciando gerações com uma sonoridade única

Simone Portellada (Bio); Cuca Nakasone (Gráfica)

entrevista

Com 45 anos de carreira, multiartista Ricardo Aleixo recorda sua relação com a arte desde a infância e revela que nunca se sentiu tão criativo quanto hoje

Aprender um novo instrumento, criar repertório cultural e sociabilizar são alguns dos benefícios do ensino de música

dossiê

Confira os destaques da programação, como as mais de 150 atividades que celebram o Carnaval nas unidades do Sesc na capital paulista

Exímio na arte da palhaçaria, grupo Parlapatões tem os espetáculos dos primeiros 25 anos de história registrados em livro de fotos

Num cenário de emergências climáticas, as cidades enfrentam o desafio de adaptação e mitigação dos efeitos do aquecimento global


Joca Reiners Terron (texto) e Amanda Justiniano (ilustrações)

No mês do Carnaval, artigos refletem sobre o direito à folia na capital paulista

Cantora e pesquisadora, Fabiana Cozza festeja 20 anos de carreira em uma conversa sobre ancestralidade, samba e o papel educativo da arte

Conheça cinco blocos que animam foliões de todas as idades durante o Carnaval de rua de São Paulo

em pauta

encontros

inéditos

depoimento

almanaque

P.S.

Festival Feminino (2021), de Joana Lira (Encontros); Bloco Abacaxi de Irará / Foto: Zen Tachibana (Almanaque)

Joana Lira

p.60

p.66

p.70

p.74

p.78

p.82

Luiza de Oliveira Silva


LANÇAMENTO SELO SESC

VIVER GONZAGUINHA OS SAMBAS DO MORRO DE SÃO CARLOS

Sombrinha

participações de Martinho da Vila

Larissa Luz • Vidal Assis Zélia Duncan • Criolo Yvison Pessoa • Elba Ramalho

JÁ DISPONÍVEL

Visite a loja virtual e conheça o catálogo completo sescsp.org.br/loja /selosesc


Bruna Damasceno

em cena

As certezas, contradições e sonhos do escritor Lima Barreto (1881-1922) são contados, em primeira pessoa, pelo ator Sidney Santiago Kuanza, da Cia. Os Crespos. Além de protagonista, ele assina a concepção, dramaturgia, codireção e coprodução do espetáculo A Solidão do Feio, em cartaz até 9/2 no Teatro Paulo Autran, no Sesc Pinheiros. O monólogo propõe um exercício ficcional para recriar fragmentos da trajetória de vida do autor de obras como Triste fim de Policarpo Quaresma (1911) e Clara dos Anjos (1948).

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centro de

músic� cursos regulares

Localizado nas unidades Consolação, Guarulhos e Vila Mariana, o Centro de Música oferece cursos, oficinas e vivências, propiciando ao público de diferentes idades a oportunidade de experimentar e refletir sobre o universo musical. Inscrições Cursos com conhecimento prévio Credencial Plena: a partir de 20/2 Público em geral: a partir de 21/2 Cursos de iniciação e cursos livres Credencial Plena: a partir de 5/3 Público em geral: a partir de 6/3

Inscreva-se em sescsp.org.br/centrodemusica e no aplicativo Credencial Sesc SP.


DOSSIÊ

Abram alas para a folia! Mais de 150 atividades, grande parte gratuitas, agitam os dias de Carnaval nas unidades do Sesc na capital paulista

C

Rodrigo Munhoz

abem muitos carnavais na folia paulistana. Para além dos quase 600 blocos de rua que agitam os quatro cantos da cidade, e das 80 escolas de samba que desfilam no sambódromo, o Sesc São Paulo também oferece uma programação extensa em celebração à maior festa popular do país. Até a Quarta-feira de Cinzas, as unidades do Sesc atraem vários perfis de foliões em mais de 150 ações, como shows, cortejos, fanfarras, rodas de samba, bailes e vivências. Tem opção até para quem quer fugir do Carnaval. No Sesc Bom Retiro, no Centro de São Paulo, o projeto Cordão do Bom reúne, entre os dias 9 e 13/2, quase 20 atividades gratuitas, como uma feira de troca de fantasias e adereços; oficinas de automaquiagem, produção de estandartes e abadás, montagem de tiaras, chapéus foliões e penteados divertidos. Ainda na programação, cortejos dos blocos Charanguinha do França, Bonecões, Fervo da Vila e Nu Vuco Vuco; aulas abertas de maracatu, folguedos do Brasil, frevo, axé e discotecagem carnavalesca; além do show Baile da Cris Barulins, com músicas inéditas lançadas no disco Planeta Peteca.

Entre as atrações da programação carnavalesca do Sesc, o Bloco Bonecões desfila no Sesc Bom Retiro pelo especial Cordão do Bom.

Segundo Ana Emilia de Paula, supervisora de programação do Sesc Bom Retiro, a intenção do projeto Cordão do Bom é “valorizar a cultura do Carnaval de rua e os cortejos inspirados em folguedos populares, tendo como foco o público infantil e incluindo ações especialmente pensadas para a primeira infância, sem deixar de contemplar seus adultos responsáveis”. A folia segue no Sesc Itaquera com o projeto Zona Leste é o Centro, que celebra a potência foliã da periferia paulistana em oficinas de samba de bumbo, produção de adereços tropicais e construção de máscaras de Carnaval. A unidade também recebe apresentações e cortejos do Baile Brincá, voltado para a primeiríssima infância, da escola de samba Leandro de Itaquera, do Bloco da Madrinha,

do mestre Valdeck de Garanhuns e do Bloco União, que conduz uma vivência de samba no pé. A zona Sul abre alas com Elas fazem a folia, projeto do Sesc Campo Limpo que destaca a atuação das mulheres no fazer carnavalesco. Entre as atividades, oficinas de adereços com fitas, máscaras, ombreiras e passos de axé. A folia continua com apresentações dos grupos Babado de Chita, do coletivo instrumental Amojubá (especializado em ritmos afro-indígenas), da fanfarra Cornucópia Desvairada, da roda Samba de Dandara, do Bloco do Beco e da mestra Nanãna da Mangueira, que celebra 80 anos de vida. Confira a programação completa das unidades do Sesc São Paulo: sescsp.org.br 11 | e


DOSSIÊ

O programa de Turismo Social do Sesc São Paulo preparou, para este mês, dentre outras atividades, passeios por instituições museológicas. Com saída do Sesc Pinheiros, o roteiro Arte na Luz visita o Museu da Língua Portuguesa, abrigado na Estação da Luz, e único no mundo dedicado a um idioma. A visita segue na Pinacoteca de São Paulo, instituição voltada às artes visuais do século 19 até a contemporaneidade. Já o roteiro Atrito das memórias: visita aos museus, histórias vivas

Priscila Prade (De volta ao teatro); Ciete Silvério (Rolês nos museus)

ROLÊS NOS MUSEUS faz um passeio guiado ao Masp, conduzido pelo especialista Hildon Vital de Melo, com saída do Sesc Consolação. Conhecendo o Território: Intersecções Periféricas no Solar da Marquesa de Santos propõe uma visita mediada à exposição Intersecções Negros(as), Indígenas e Periféricos(as) na cidade de São Paulo, em cartaz no Solar da Marquesa de Santos e na Casa da Imagem. A saída será do Sesc Carmo. Confira as datas para inscrição e valores destes e de outros roteiros em sescsp.org.br/turismosocial Neste mês, o ator Osmar Prado estreia o espetáculo O Veneno do Teatro, no Sesc Santana.

DE VOLTA AO TEATRO

Pelo programa de Turismo Social do Sesc Paulo, o público pode conhecer museus da cidade. O roteiro Arte na Luz, por exemplo, visita o Museu da Língua Portuguesa (foto) e a Pinacoteca.

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Depois de um hiato de dez anos longe dos palcos, o ator Osmar Prado volta à cena teatral estrelando o espetáculo O Veneno do Teatro, em cartaz a partir de 22/2, no Sesc Santana. Escrita pelo dramaturgo e roteirista espanhol Rodolf Sirera, a história se passa na Paris de 1784, durante a pré-revolução francesa. No enredo, um marquês convida uma atriz para representar um texto de sua autoria (A Morte de Sócrates), em um teatro na antecâmara do seu castelo, e lhe propõe um jogo de vida ou morte, em que realidade e ficção se confundem. A obra levanta questionamentos sobre ética, estética, convenções sociais e jogos de poder. Sob direção de Eduardo Figueiredo, conta ainda com o ator Maurício Machado no elenco, e segue em temporada até o dia 24/3, de quinta a domingo. Saiba mais: sescsp.org.br/santana


Ricardo Ferreira

DOSSIÊ

Conhecer para respeitar

Como tudo começou

Como a literatura queer pode ser uma ferramenta poderosa para conscientização, empatia e compreensão das experiências de diferentes corpos e subjetividades? Para responder essa questão, o Centro de Pesquisa e Formação (CPF) do Sesc São Paulo recebe, no dia 17/2, o pesquisador, dramaturgo e poeta Roberto Muniz Dias para conduzir o bate-papo gratuito Letramento literário e diversidade: por que um letramento literário queer?, que aprofunda a compreensão sobre as interseccionalidades de gênero, sexualidade e letramento literário. A atividade faz parte do Legítima Diferença, projeto que, ao longo do ano, promove uma série de ações para o fomento da livre expressão das diferenças e o acesso a um espaço de diálogo e convivência, evidenciando realidades e desconstruindo estereótipos relacionados às pessoas LGBTQIA+. Inscreva-se: sescsp.org.br/legitimadiferenca

As atividades realizadas nos espaços do Sesc em todo o território brasileiro transformam a vida dos públicos frequentadores. Mas, muitas dessas pessoas podem desconhecer a origem da instituição que celebra, em 2024, 78 anos de existência. Com artigos de estudiosos e pesquisadores, o livro Narrativas da Cidadania – as origens sociais do Sesc, organizado pelo historiador e crítico de arte Francisco Alambert, apresenta um panorama político-econômico, social e cultural do período que propiciou a criação das entidades do Sistema S, com especial destaque para o Sesc. Lançada pelas Edições Sesc São Paulo, a publicação faz parte da coleção Memórias, cujo intuito é oferecer reflexões acerca das políticas da memória e da preservação de acervos, além de pesquisas temáticas e iconográficas. Saiba mais sobre esse e outros títulos das Edições Sesc São Paulo em sescsp.org.br/edicoes

ZUNIDO NA TV O SescTV exibe, neste mês, dois shows gravados durante o Festival Zunido, realizado em 2023, no Sesc Pompeia, que promoveu o encontro de artistas brasileiros e estrangeiros, tradicionais e contemporâneos, em um diálogo atemporal de manifestações da musicalidade negra. No dia 14/2, às 21h, será exibido o show do grupo The Last Poets, de Nova York (EUA), considerado um dos pioneiros do hip-hop, e que apresentou, pela primeira vez no Brasil, o seu icônico catálogo de spoken word music. Já no dia 21/2, às 21h, vai ao ar o show da cantora Maíra Freitas e da banda Jazz das Minas, cujo repertório passeia pela temática da maternidade, orixás e o sagrado feminino das mulheres pretas. A direção é de Camila Miranda. Assista a essa e a outras programações do SescTV em sesctv.org.br A cantora, pianista e diretora musical Maíra Freitas, do grupo Jazz das Minas, durante o Festival Zunido, que pode ser conferido no SescTV.

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Ricardo Ferreira

FAÇA SUA CREDENCIAL PLENA

Pessoas que trabalham ou se aposentaram em empresas do comércio de bens, serviços ou turismo podem fazer gratuitamente a Credencial Plena do Sesc e ter acesso a muitos benefícios. São aceitos registro em carteira profissional (com contrato de trabalho ativo ou suspenso), contrato de trabalho temporário, termo de estágio e de jovem aprendiz, e pessoas desempregadas dessas empresas até 24 meses. e | 14

PARA FAZER OU RENOVAR A CREDENCIAL PLENA DO SESC SÃO PAULO

Para fazer ou renovar a Credencial Plena de maneira online e de onde estiver, baixe o app Credencial Sesc SP ou acesse centralrelacionamento.sescsp. org.br. Se preferir, nesses mesmos locais é possível agendar horário para ir presencialmente a uma das Unidades (compareça com a documentação necessária).

Sobre a Credencial Plena: • • •

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É gratuita Tem validade de até dois anos Pode ser utilizada nas Unidades do Sesc em todo o Brasil Prioriza os acessos às atividades do Sesc Oferece descontos nas atividades e serviços pagos

A Credencial Plena é o acesso para trabalhadores e dependentes ao uso dos serviços e programações nas Unidades do Sesc.

Acesse o texto Tudo o que você precisa saber sobre a Credencial Plena do Sesc

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Raquel Reis Trabalha no setor de comércio. Ela e as filhas Aila e Sofia frequentam a piscina no Sesc Sorocaba.

Com a Credencial, você e sua família terão acesso prioritário a todas as atividades do Sesc em todo o Brasil. sescsp.org.br/credencialplena

Faça como a Raquel! Se você trabalha na área de comércio de bens, serviços ou turismo, você tem direito à Credencial Plena do Sesc, gratuitamente.


Além do chão Multiartista com 45 anos de carreira, Ricardo Aleixo defende a invisível força transformadora da poesia e reflete sobre o papel marcante da educação em sua vida POR MATHEUS LOPES QUIRINO

Em uma carreira de devoção à criação artística, o mineiro de Belo Horizonte publicou mais de 15 livros. Foi finalista de dois dos prêmios mais importantes em língua portuguesa, o Oceanos (em 2018 e 2023) e o Jabuti (em 2011 e 2022), sem deixar de ser, também, um crítico do próprio meio literário, que considera excludente: “no Brasil nós não discutimos literatura; nós discutimos editais, prêmios literários, e só”. Em 45 anos de carreira, Aleixo já trafegou por diversos gêneros, da poesia à memória. Recentemente, ele lançou a antologia Diário da encruza (Segundo Selo), além de sua autobiografia, Sonhei com o anjo da guarda o resto da noite (Todavia), ambas em 2022, um ano após receber o título de Notório Saber em Letras: Literatura pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), equivalente ao grau de doutor. Nesta Entrevista, o artista fala de suas referências na literatura, do papel da educação em sua trajetória, sua relação com a arte desde a infância e dos seus processos de escrita.

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Você já disse que se considera poeta desde os 18 anos de idade. Essa data é um marco em si ou uma aproximação? Eu creio que a memória oscila, porque as formas de aproximação com a poesia oscilam também. Escrever era, até então, uma habilidade entre outras que eu tinha. Eu já gostava de música popular nessa idade, a minha geração escutava Caetano [Veloso], Chico [Buarque de Holanda], Walter Franco [1945-2019]. Esses cancionistas tinham interesse em demonstrar a sua afinidade com a poesia. Naquele momento, podia-se falar da letra da canção como algo tão refinado quanto a poesia escrita.

Tem algum episódio marcante na juventude que considere simbólico para ter enveredado pelo caminho da escrita? Desde os 17 anos, eu era de tomar ônibus. Um dos meus amigos tinha um irmão que era estudante de filosofia e poeta. Quando a gente entrava no ônibus, depois das aulas, esse amigo apontava para o irmão, que sempre estava lendo, de cabeça baixa. Eu achava bonita essa imagem, porque não era uma cena que eu tinha no contexto familiar. A partir daí, me habituei a ver pessoas lendo no ônibus. A gente nem conversava nessas viagens; lia. Então, essa imagem do poeta que tem proximidade com o filósofo é uma imagem forte. Lembro também que, com 18 anos,

Natália Alves

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icardo Aleixo está animado e diz que nunca foi tão criativo. Aos 63 anos, o multiartista anda presente nos principais eventos culturais do país, como a 35ª Bienal de Arte de São Paulo, realizada em 2023, onde apresentou o ciclo de performances DENDORÍ.


entrevista

Aos 63 anos, o poeta, músico, performer e artista visual Ricardo Aleixo diz sentir-se no ápice da criatividade.

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entrevista

Como você assimilou esses dois mundos: o artístico e o cotidiano da vida operária?

eu era jogador de futebol e queria me profissionalizar. Aconteceu que levei uma bolada e fiquei cego do olho direito. A poesia passou a ser a única opção.

O ambiente onde cresci foi gerado pelas frustrações, não só da minha mãe e do meu pai, por não terem podido estudar, mas pelo acúmulo de frustrações de gerações anteriores. Então, eu e minha irmã éramos, para ele e ela, a oportunidade de conseguir aquilo que sempre tinha sido negado a ambos. [Em casa] sempre foi muito ressaltado o valor do estudo. Mas minha irmã se graduou em letras e se decepcionou com o curso porque pensava

A sua relação com a educação foi sempre estreita. Como era na sua casa? Tem aquela frase que você costuma dizer em palestras: “Era de uma família muito rica, que só não tinha dinheiro”. Minha família foi definidora para tudo o que sou hoje. Estou falando de duas pessoas inteligentíssimas – meu pai, Américo, e minha mãe, Íris –, nascidas no início do século 20. Portanto, muito próximas ainda da mentalidade contraditória do século 19. Chegamos a 1888 com a vigência do trabalho escravo. E que, paradoxalmente, também é o século de Machado de Assis [1839-1908], Luiz Gama [1830-1882], Maria Firmina dos Reis [1822-1917], Cruz e Souza [1861-1898], Francisco de Paula Brito [(1809-1861), editor dos livros de Machado de Assis]. Naquele século, houve um número expressivo de intelectuais negros no jornalismo, nas chamadas belas-artes, na música. Isso foi sendo desnaturalizado ao longo das décadas seguintes. Então, muito provavelmente, para que meu pai e minha mãe se tornassem pessoas leitoras, eles foram filhos de gente que tinha interesse pela leitura. Meu avô paterno, que não conheci, morava em Nova Lima, cidadezinha perto de Belo Horizonte (MG), e lia dois jornais diários. Minha mãe sempre cantou muito; meu pai era cinéfilo. O cinema contribuiu muito para a formação da sensibilidade dele.

Então o seu pai já estava, de alguma forma, ligado à arte?

O artista coordena o workshop que precedeu a Caminhada silenciosa – Desvios para a dispersão (ou: Concerto caminhante para silêncio preparado e percussões emudecidas), na 35ª edição da Bienal Internacional de Arte de São Paulo, realizada em 2023.

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Levi Fanan / Fundação Bienal de São Paulo

Meu pai tinha um modo muito gentil de falar. Ele tinha todo um conjunto de posturas diante do mundo, além da tentativa de se refinar intelectualmente. Eu era pequeno quando descobri a palavra "balzaquiana" para se referir à mulher de trinta anos. Aprendi com meu pai, um leitor de [Honoré de] Balzac [1799-1850], de [Luís Vaz de] Camões [1524-1580] e de Machado [de Assis]. E, detalhe, eu estou falando de um operário.


que sairia de lá como escritora. Isso fez com que eu tomasse a decisão mais radical da minha vida: não entrar na universidade. Pensei: “vou organizar meu próprio método de estudo”. E comuniquei essa decisão aos meus pais sem que eles se dessem ao trabalho de perguntar como eu pensava sobreviver. Essa foi uma escolha feita por um garoto de 19 anos que precisou ser respeitada e incentivada. Uma das minhas alegrias vem do fato de eles terem acompanhado todas as etapas da minha trajetória até eu ficar reconhecido nacionalmente.

Aos 18 anos, aconteceu que eu levei uma bolada e fiquei cego do olho direito. A poesia passou a ser a única opção.

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Rodrigo Lopes de Barros (acima); Levi Fanan / Fundação Bienal de São Paulo (abaixo)

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Acima: Frame do filme Ricardo Aleixo: Afro-Atlântico (2023, ainda inédito), dirigido por Rodrigo Lopes de Barros. Abaixo: O artista em Diário da encruza, uma das oito obras que apresentou no ciclo de performances DENDORÍ, na 35ª edição da Bienal Internacional de Arte de São Paulo, em 2023.

Cultura, e eu ia visitá-lo quase que diariamente. Quando abriu uma vaga para assessor, ele me convidou para trabalhar com ele. Foi meu primeiro trabalho formal. No ano seguinte, em 1988, quando aconteceu a celebração do centenário da Abolição, eu fui requisitado pela Biblioteca Pública para cuidar do acervo de um oficial da Polícia Militar, o Coronel Antônio Carlos Pimenta, um dos primeiros intelectuais negros em Belo Horizonte a formar uma biblioteca especializada em cultura africana e seus desdobramentos transatlânticos. Fiquei responsável pela catalogação de 600 volumes. Eu li todos. Isso foi mais do que uma graduação. A experiência com a biblioteca pública mais a formação da nossa biblioteca particular, em casa, responde pelo artista que eu sou hoje.

Em 2022, você publicou suas memórias. Como foi revisitar o passado? Em meados do século 20, existia em Minas Gerais um circuito sólido com grandes escritores brasileiros. Naquela época, os poetas e artistas também eram, em geral, servidores públicos, jornalistas ou mesmo herdeiros. Dificilmente alguém fora das panelinhas literárias continuava ativo na poesia. Como você fez? Eu não tinha saída. Cansei de escutar elogios do tipo: “você poderia ser um belo redator publicitário”; “você poderia ser um grande radialista”. Eu podia ser tudo, mas ninguém me oferecia essas oportunidades. Assim, eu fui entendendo e comunicando isso aos meus pais: eu precisaria de mais tempo [para estudar e me preparar para a vida]. Sem esse período de preparo, como eu poderia me posicionar diante de um meio elitista e racista como o da literatura em Belo Horizonte? Eu não tinha coragem de ir ao lançamento de um livro, imagine isso. Foi um processo muito solitário.

O fato de não ter frequentado a universidade o impediu de seguir nos estudos? Como você buscava essa ampliação de conhecimento e de repertório nessa época? Por conta da graduação da minha irmã, e de ela trabalhar na prefeitura de Belo Horizonte, ela começou a comprar livros para a gente formar nossa primeira biblioteca. Por volta dos 24 e 25 anos, eu estudava literatura, semiótica, música, artes visuais, história, filosofia. Foi nessa época, também, que eu entrei em contato com a cultura negra. Isso foi possibilitado pelo vínculo com um poeta chamado Adão Ventura [1939-2004], hoje quase esquecido. Ele coordenava um núcleo de cultura negra na Secretaria de

Há anos eu já pensava em escrever alguma coisa neste sentido. No primeiro momento de popularização das redes sociais, a minha geração começou a se comunicar por meio do blog. Abri meu primeiro blog em 2004, dois anos depois de ter sido demitido de um jornal de Belo Horizonte, no qual eu era articulista semanal. Foi por meio do blog que continuei essa troca com o leitor. Aprendi que não era só pelo jornal que eu podia me posicionar publicamente. Eu comecei a publicar todos os dias, e foi aí que voltei a ter gosto pela poesia visual. E muita coisa ligada à memória eu escrevi também no blog. Lembranças da infância ou da preparação do primeiro livro [Festim, coletânea de poemas lançada em 1992]. Quando, enfim, em 2018, é lançada a antologia Pesado demais para a ventania, o Leandro Sarmatz, editor da Todavia, quis apresentar a minha história de vida para os leitores. Aí saiu Sonhei com o anjo da guarda o resto da noite, em 2022. Foi um processo difícil. O livro não saía de jeito nenhum, mas eu sempre fui muito disciplinado. Carrego comigo uma frase do Rogério Duarte, designer, letrista e pensador da Tropicália: “A disciplina é doce, a indisciplina é que é amarga”. Porque tudo o que pode haver na arte só pode vir da disciplina. Eu não acredito na "loucura" quando o assunto é arte.

Toda criança é poeta? A criança é o ser mais sem julgamento que existe. Cada uma das minhas três crias (Iná, Flora e Ravi) chegou trazendo criatividade, um gosto pela música, pelo desenho, pela poesia e pela dança. Passei a me lembrar da minha própria infância. Junto dela, vêm as grandes indagações sobre o mundo. As pequenas certezas, o processo contínuo de experimentação do olhar da criança é sempre da ordem da primeiridade, em termos semiológicos. A criança sempre

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entrevista

estará brincando com o mesmo jogo de armar, com o qual ela convive. E se familiariza com o que é estranho. Acho que isso é a criança. Acho que isso é o artista.

Como é ser escritor no Brasil de hoje? Eu tenho dito, há alguns anos, que no Brasil nós não discutimos literatura, nós discutimos editais, prêmios literários, e só. Não discutimos direitos autorais, linguagem, nem profissionalização do escritor. Eu acho que o Brasil é um deserto nesse sentido. A poesia é essa força de transformação invisível, inaudível o bastante para nem ser percebida, para sumir sem nos darmos conta da inexistência dela. Mas quando ela aflora, tudo é primeiro. Apaixonar-se é isso. Olhar a lua, brincar com uma criança é uma força, poesia é uma força. Nós estamos num mundo em que os eventos têm uma força de afetação por um ou dois dias. Depois a gente passa cuidando dos outros assuntos. Dizendo que a gente nem mesmo atenta para outros eventos, como o genocídio da juventude negra brasileira, que não comove nem mesmo o grosso da população negra brasileira. Uma poesia é política não porque é poesia. Eu não penso que a poesia dá algo. De mim, ela só tira o chão sob meus pés, me tira o ar, me tira certezas. Nesse sentido, ela é política por definição porque nós estamos num mundo de anulação radical da sensibilidade.

O que você acha dos termos “poesia negra” ou “literatura negra”? Eu respeito profundamente quem se coloca na cena literária trazendo o termo negro como, no mínimo, tão importante quanto o termo literatura. Mas não é o meu caso. Eu digo há décadas: eu sou poeta. E isso não quer dizer que eu sou automaticamente poeta negro e nem negro poeta. Porque se eu falo depois de um João da Cruz e Souza, que era chamado de "poeta negro", "Dante negro", "cisne negro", porque os literatos de sua época precisavam afirmar seu constrangimento diante do fato de que o mais importante nome da vanguarda

daquele tempo, o simbolismo, era negro. Esses epítetos supostamente enaltecedores são restritivos. “Que é bom, enquanto negro”; “O que ele fez é importante porque ele é negro”. E o movimento social negro cai nisso ainda hoje, nesse jogo que parece ser inclusivo. Mas, no meu entendimento, é excludente. Sob certas condições, isso vai acontecer com literatura e poesia de mulheres, de LGBTs, de operários. Quando a grande questão é: do que se escreve, o que vai ter força o bastante para chegar na pessoa leitora como uma força, e não uma potência atribuível a um determinado segmento da sociedade? É importante debater tudo isso? É. Mas o rótulo, eu dispenso.

Quando esses termos poderiam ser questionados? Um exemplo: Pixinguinha [1897-1973]. Falar de samba e de escola de samba e de modernização da música popular brasileira dos anos 1920, 1930 e 1940, é falar de Pixinguinha, com as suas técnicas revolucionárias de arranjo, composição, orquestração, execução instrumental, e de circulação em ambientes. Ele está ali na planta baixa da casa da Tia Ciata [1854-1924]; nas valsas tocadas no salão; no samba tocado na cozinha. Então, é falar de complexidade. Não dá para simplesmente chamar Pixinguinha de músico negro. E ninguém faz isso. Ele não é reivindicado como músico negro. Pixinguinha, Carlinhos Brown… estamos falando de música, mas poderia ser de literatura. Por que, então, na literatura temos que fazer essa separação? Podem fazer, mas não contem comigo.

Se você, ao chegar aos 100 anos de idade, assistisse ao filme da sua vida, o que veria? Acho muito provável que eu chegue aos 100 anos porque meu pai morreu com 97 e minha mãe, com 91. E eu tenho vivido algo que me chegou por meio do Haroldo de Campos [1929-2003] – e que chegou nele por meio do Goethe [1749-1832]: o arco-íris branco. É essa ideia maravilhosa de uma segunda puberdade, uma segunda juventude. Eu nunca me senti tão criativo quanto hoje.

Podia-se falar da letra da canção como algo tão refinado como a poesia de um livro e | 22


ATÉ 18 DE FEVEREIRO Se joga no esporte! Aulas abertas, instalações, festivais, apresentações e recreações esportivas de diversas modalidades em todas as unidades do Sesc. Participe e compartilhe nas redes.

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Rafael Berezinski

sustentabilidade

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Um gigante ovo frito instalado numa praça na região da avenida Brigadeiro Faria Lima surpreendeu os passantes. A obra Eggcident, do artista holandês Henk Hofstra, tornou-se uma imagem simbólica da 13ª edição da Virada Sustentável de São Paulo, em setembro de 2023, o ano mais quente dos últimos 125 mil anos.

Diante de um cenário de emergência climática, pesquisadores e entidades investigam formas de mitigar efeitos provocados pelo aquecimento global nas áreas urbanas POR MARIA JÚLIA LLEDÓ

NAS CIDADES


sustentabilidade

Q

ue calor! Quantas vezes você disse ou ouviu essa frase nos últimos tempos? A impressão de que temos enfrentado dias com temperaturas acima da média se confirma nas estatísticas. Relatório divulgado no mês passado pelo observatório Copernicus, da Agência Espacial Europeia, confirmou 2023 como o ano mais quente dos últimos 125 mil anos.

O tal fenômeno do aumento da temperatura do planeta em ritmo acelerado tem despertado a atenção e motivado ações de pesquisadores, governantes e de órgãos em âmbito mundial, como a própria ONU (Organização das Nações Unidas), e já foi nomeado como aquecimento global ou, mais recentemente, fervura global. Cientistas alertam que a ação humana é a principal responsável pelo aquecimento global – em razão da emissão de gases de efeito estufa, consequência do consumo de combustíveis fósseis, e do desmatamento das florestas. Deste modo, medidas capazes de mitigar a mudança climática devem partir de um compromisso dos países que são grandes emissores de poluentes, e também de toda a sociedade. Mas, enquanto ações necessárias e de resultados a longo prazo são negociadas, o que é possível fazer agora? Como as cidades devem se adaptar às elevadas temperaturas enfrentadas? Segundo o Acordo do Clima de Paris – tratado internacional de medidas climáticas adotado em 2015 –, o mundo deve correr atrás da meta de restringir o aquecimento global nos próximos anos a menos de 2ºC em comparação aos níveis da época pré-industrial (por volta de 1850). É que o período entre meados e final do século 19 serve como base para calcular quanto o mundo esquentou desde o início da chamada Segunda Revolução Industrial. No entanto, como aponta Paulo Artaxo, um dos coordenadores do Programa Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) de Pesquisa sobre Mudanças Climáticas Globais, a tendência é de que a temperatura do planeta aumente, em média, 3ºC num futuro próximo. “Nós já aquecemos 1,2ºC e estamos indo para uma trajetória de aumento de temperatura três vezes acima. Essa é uma emergência climática que só pode ser contida com a redução das emissões de gases de efeito

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estufa”, alerta Artaxo. Essa medida foi, aliás, a mais discutida em negociações durante a Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, a COP 28, em Dubai, nos Emirados Árabes, em dezembro do ano passado. Na ocasião, aproximadamente 200 países, incluindo o Brasil, assinaram o compromisso: “Transitar dos combustíveis fósseis nos sistemas energéticos de uma forma justa, ordenada e equitativa, acelerando a ação nesta década crítica, de modo a atingir emissões líquidas zero até 2050, de acordo com a ciência”.

Adriana Vichi

Segundo o pesquisador, o Brasil apresenta vantagens estratégicas extraordinárias quanto ao potencial de geração de energia solar e eólica para uma transição energética, mas é preciso que haja políticas públicas em todos os níveis – municipal, estadual e federal. “A humanidade tem várias tarefas. A primeira delas é reduzir as emissões de gases de efeito estufa, isso de longe é o mais importante – tanto da queima de combustíveis fósseis, como zerar o desmatamento até 2030”, aponta Artaxo. Em segundo lugar, de acordo com o pesquisador, é necessário nos conscientizarmos de que o clima já mudou e vai continuar mudando cada vez mais. “Por isso, precisamos nos adaptar ao novo clima, tanto nas regiões rurais, quanto nas regiões urbanas. Essa é uma tarefa extremamente difícil, mas que o Brasil vai ter que encarar o mais rápido possível”, ressalta.

Aliada ao desmatamento, a queima de combustíveis fósseis emite muitos gases de efeito estufa e contribui para o agravamento das mudanças climáticas.

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sustentabilidade

Os termômetros registraram temperaturas próximas de 40ºC na capital paulista, em diferentes momentos do segundo semestre de 2023. O fato levou à assinatura de uma portaria, pela Prefeitura de São Paulo, em setembro do ano passado: uma operação de contingência deve ser deflagrada assim que os termômetros ou a sensação térmica na cidade ultrapassar 32ºC. Nesse caso, a orientação é de que sejam montadas tendas e oferecidos kits de hidratação, bonés e alimentos à população em situação de rua, que são os mais vulneráveis aos climas extremos. Quais ações a médio e longo prazo podem ser assumidas para dar conta das contingências climáticas experimentadas na metrópole? Afinal, as cidades abrigam mais de 85% da população brasileira. Nesses territórios engolidos por concreto e asfalto, onde há má distribuição ou escassez de áreas verdes, além de pouco investimento em mobilidade urbana de baixo impacto ambiental, são visíveis as consequências do aquecimento global. Além disso, os impactos das mudanças climáticas atingem de forma e intensidade diferentes grupos sociais distintos,

por isso a população mais vulnerabilizada tende a sofrer ainda mais com as altas temperaturas, com o grande volume de chuvas (alagamentos, deslizamentos e inundações) e com largos períodos de seca. Arquitetos e urbanistas têm papel importante na elaboração e discussão de alternativas para adaptação das cidades ao novo contexto. Neste ano, o Seminário Emergência Climática e Cidades voltará a refletir sobre o calor nos espaços urbanos, tema levantado na primeira edição do evento. Realizado no ano passado pelo Instituto de Arquitetos do Brasil do Departamento de São Paulo (IABsp), o seminário, do qual participaram mais de duas mil pessoas, trouxe para o debate tanto profissionais de arquitetura e urbanismo, quanto ativistas ambientais. "Apesar de prevista em lei, as áreas verdes dentro dos lotes [de prédios e casas] são impermeabilizadas pelos seus proprietários. Ou seja, jardins se tornam quintais pavimentados. Como resultado, a temperatura aumenta naquela área residencial e contribui com o calor da cidade. Então, a gente tem que contrabalancear com mais áreas verdes

Em janeiro deste ano, altas temperaturas e chuvas intensas assolaram o estado de São Paulo, prejudicando principalmente a população mais vulnerabilizada.

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Adriana Vichi

AÇÃO LOCAL


SE NÃO FOR ESTIMULADA DENTRO DA CIDADE UMA MUDANÇA NO PADRÃO DE CONSUMO DAS PESSOAS, NÃO DÁ PARA ESPERAR QUE OS GRANDES POLOS PRODUTORES DE COMBUSTÍVEIS FÓSSEIS PAREM DE PRODUZIR. A CIDADE TEM QUE PERMITIR QUE AS PESSOAS POSSAM ADOTAR MEIOS DE VIDA MAIS SAUDÁVEIS PARA ELAS E PARA A DIMINUIÇÃO DA EMISSÃO DE CARBONO. Luiz Florence, arquiteto e urbanista


sustentabilidade

e pensar em Soluções Baseadas na Natureza (SBN), como parques lineares, jardins de chuva e mais áreas vegetadas e na cidade”, aponta a arquiteta e urbanista Hannah Machado, uma das organizadoras do seminário. Também integrante da organização do seminário, o arquiteto e urbanista Luiz Florence complementa: “As cidades precisam trazer de volta o verde, não por uma visão nostálgica, mas o verde como parte da infraestrutura urbana, pensada e entendida como uma ferramenta de adaptação”. Lei municipal que orienta o desenvolvimento e o crescimento da cidade, o Plano Diretor Estratégico (PDE) de São Paulo, criado em 2014, incluiu, pela primeira vez, em 2023, a dimensão climática como uma preocupação. “Eu acho que esse é um dos avanços do PDE, mas perdemos a oportunidade de refinar os instrumentos urbanísticos para que eles levem de fato a uma cidade que mitigue a emissão de gases de efeito estufa e esteja preparada para os eventos climáticos extremos", observa a arquiteta. Diante desse cenário, Florence defende ser imprescindível que a cidade de São Paulo se adapte para que as pessoas consigam viver mediante os efeitos climáticos e, assim, tornar-se uma cidade mais resiliente. “Se não for estimulada dentro da cidade uma mudança no padrão de consumo das pessoas, não dá para esperar que os grandes polos produtores de combustíveis fósseis parem de produzir. A cidade tem que permitir que as pessoas possam adotar meios de vida mais saudáveis para elas e para a diminuição da emissão de carbono”, reforça.

As diferenças de temperatura entre regiões com área verde, como parques e bairros arborizados, para localidades desprovidas de vegetação, pode chegar a 10°C, segundo dados divulgados na Revista Fapesp, em setembro de 2023.

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Adriana Vichi

A arquiteta e urbanista Hannah Machado acredita que mesmo ’na marra’, a tarefa de adaptar as cidades ao calor vai ser cumprida. “Eu acho que a


gente tem que abraçar essa complexidade, trazer pesquisadores, ouvir as vozes locais, das periferias, dos povos originários, para criar soluções conjuntas com esse senso de urgência. A gente não pode achar que está tudo bem satisfazer as pressões do mercado agora porque ainda há tempo, e deixar para reverter as consequências depois. Não. A gente já não tem mais tempo”, adverte a arquiteta.

SENSIBILIZAR A SOCIEDADE Somada às esferas globais e locais, o comportamento de cada indivíduo precisa refletir mudanças. A potência da coletividade para realizar ações com foco na sustentabilidade é ponto de partida da Virada Sustentável, que envolve, desde 2011, tanto uma articulação quanto participação direta de organizações da sociedade civil, órgãos públicos, movimentos sociais, equipamentos culturais, empresas, escolas e universidades, entre outros atores da cidade de São Paulo. Criado pelo jornalista André Palhano, o festival de sustentabilidade traz para a arena pública debates e expressões artísticas em ações gratuitas a fim de mobilizar o maior número de pessoas a refletir e conhecer iniciativas relacionadas ao tema. Uma das proposições artísticas da 13ª edição da Virada Sustentável foi a obra Eggcident, do artista holandês Henk Hofstra: um gigante ovo frito esparramado numa praça na avenida Brigadeiro Faria Lima, centro financeiro da capital paulista, atraindo a atenção de quem transitava pela região. Pelo viés do artivismo – prática que desloca o cenário da arte e da política para o espaço público –, ações como essa, da programação Virada Sustentável, demonstram a importância de aproximar um público de diferentes realidades sociais de temas que envolvem toda a saúde e o bem-estar da população. “Talvez, a principal contribuição da Virada seja tentar retomar a sensibilidade para o tema. A gente vê tantas notícias de desastres ambientais, que há uma grande chance de passarem batidas. Então, quando você – e por isso gosto muito das artes visuais – dá uma chacoalhada e entra no coração e na mente das pessoas, de uma maneira diferente, você não está ali falando: ‘Seja isso’, ‘Faça aquilo’. De uma maneira criativa, você chama atenção e sensibiliza as pessoas para os temas que importam para o nosso futuro”, conclui. 31 | e


para ver no sesc / sustentabilidade

DESCOBRIR PARA TRANSFORMAR Centros de Educação Ambiental do Sesc São Paulo aproximam público de reflexões sobre o território e as questões socioambientais

“Os CEAs são espaços de referência para reflexões acerca das questões socioambientais que envolvem o território e a complexidade das inter-relações locais e globais”, explica Tânia Perfeito Jardim, técnica da Gerência de Educação para Sustentabilidade e Cidadania do Sesc São Paulo.

Nestes espaços permanentes, há “realização de encontros, cursos, rodas de conversa, oficinas, debates, vivências e exposições com estruturas educativas com temática socioambiental para visitação espontânea e mediada”, complementa Jardim. Conheça os Centros de Educação Ambiental do Sesc São Paulo:

BERTIOGA O tema “Entre a Serra e o Mar” é o ponto de partida para discutir as questões socioambientais da região de Bertioga, no litoral do estado. Ao visitar o CEA, é possível conhecer a geografia da região por meio de uma imagem de satélite panorâmica, observar os contornos da faixa de areia, os principais rios, as matas de restinga, a fauna e o acentuado relevo da Serra do Mar. Objetos e fotos também contam a história

Concebido a partir de técnicas de bioconstrução, o CEA do Sesc Mogi das Cruzes foca na relação entre habitante e habitat.

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da cidade desde quando povoada pelos povos originários, passando pela chegada das embarcações europeias até os dias atuais.

GUARULHOS Com o tema “Territórios em Transformação”, o objetivo do CEA desta unidade do Sesc é criar conexões entre as pessoas e o meio ambiente. Por meio de minidocumentários e de projeções mapeadas sobre uma maquete topográfica em telas de realidade aumentada, o espaço permite que o público saiba mais sobre hidrografia, relevo, fauna, flora, ocupação urbana e a presença de áreas florestais preservadas.

MOGI DAS CRUZES O enfoque do Centro de Educação Ambiental desta unidade do Sesc está na interação habitante e habitat, uma vez que o município se destaca enquanto polo produtor de alimentos, ao mesmo tempo em que é uma densa região urbanizada. Dessa forma, esses dois perfis de habitantes compartilham do mesmo território de modo a manter uma relação de trocas. Este espaço foi concebido a partir de técnicas de bioconstrução. A programação dos Centros de Educação Ambiental (CEA) do Sesc São Paulo é gratuita. Conheça: sescsp.org.br/servicos/ centro-de-educacao-ambiental

Ricardo Ferreira

Reconhecer o universo de fauna e flora, bem como a diversidade de indivíduos que fazem parte do lugar que habitamos, é o primeiro passo para nos sentirmos parte de uma comunidade. Ao compreendermos as características e as necessidades do território onde estamos inseridos, podemos, então, preservá-lo e pensar novas formas de convívio. Para isso, os Centros de Educação Ambiental (CEA) do Sesc São Paulo – localizados nas unidades de Guarulhos, Mogi das Cruzes e Bertioga – realizam atividades que aproximam o público de reflexões sobre nosso papel neste cenário.


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Em Loucura na civilização: uma história cultural da insanidade, o sociólogo britânico Andrew Scull vai do mundo antigo à contemporaneidade, em diversos pontos do globo, para revelar como os transtornos mentais foram estigmatizados e usados para justificar o silenciamento dos indesejados socialmente.


Alexandre Nunis

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INDISPENSÁVEL

mistura

O inigualável suingue de João Donato, músico que fez do encontro da bossa nova com outros ritmos o seu legado imortal POR MANUELA FERREIRA

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pianista, compositor e arranjador João Donato (1934-2023) estava bem-humorado, como de costume, quando subiu ao palco do Sesc Sorocaba, no interior do estado de São Paulo, para realizar aquela que seria uma de suas últimas apresentações, em maio do ano passado. Acompanhado do cantor Jards Macalé, amigo com quem lançara, em 2021, o elogiado disco Síntese do Lance (Rocinante), ele vivia uma fase de celebração. A inédita parceria da dupla, já octogenária, comprovara que os músicos estavam em plena forma artística, dispostos a desafiar o passar dos anos com ousadia e graça. Na imagem de capa do álbum, por exemplo, posaram parcialmente despidos para as lentes do fotógrafo Leo Aversa. E, naquela inesperada despedida, foram pura energia vital. Apesar da saúde debilitada, João Donato irradiava a mesma paixão com a qual atravessou mais de sete décadas de uma carreira que transcendeu o tempo. Sentado à frente do instrumento que o consagrou, era venerado por ter produzido uma sonoridade única,

própria, em que mesclava outros ritmos latinos à bossa nova. “Música é boa para qualquer coisa. Música e água são indispensáveis (...) Eu gosto que a música contenha uma certa nostalgia, uma certa saudade que ela nos dá (...) Tudo acaba em música, graças a Deus!”, afirmou o artista, em 2019, em conversa com a jornalista Roseann Kennedy no programa Impressões, da TV Brasil. Tamanha devoção se reflete no legado de Donato: são mais de 500 composições e 30 discos, além de incontáveis colaborações com nomes como Tom Jobim (1927-1994), João Gilberto (1931-2019), Sérgio Mendes, Marcos Valle, Caetano Veloso, Chico Buarque e Rodrigo Amarante.

PRIMEIRAS MELODIAS Ao passo em que ressaltava a importância de levar a bossa nova para o mundo, Donato afirmava que o ritmo brasileiro também foi fundamental para a difusão do jazz, outra de suas paixões. “O jazz nunca foi popular, sempre foi uma coisa para poucas pessoas. Comercialmente falando, nunca foi bem-sucedido.


Mas, quando chegou a influência da música brasileira, o jazz tornou-se música popular, chegou aos primeiros lugares nas paradas de sucesso. Isso nunca tinha acontecido antes”, refletiu, no depoimento à TV Brasil.

Aos 12 anos, o músico acriano mal podia imaginar que reverberaria nos quatro cantos do mundo.

Nascido em Rio Branco, no Acre, o músico recorria à geografia da cidade em que viveu até o começo da adolescência quando falava de suas primeiras memórias musicais. “Um nativo e sua canoa, passando na beira do Rio Branco, alguém assobiando uma melodia [assobia "Lugar comum", composição sua com letra de Gilberto Gil]. É a lembrança mais remota que tenho, a música que 'passou pela minha infância'. Devia ter seis ou sete anos. Na época, fiz para minha namorada, a Nininha”, recordou Donato, em 2008, em entrevista ao repórter Cristiano Bastos para a revista Rolling Stone. Quando menino, aprendeu a tocar acordeom – e foi com o instrumento que passou a se apresentar em festas e bailes no Rio de Janeiro (RJ), cidade para onde a família migrou em 1945. O estímulo artístico também surgiu no lar. Aprendeu suas primeiras notas com a irmã, Eneyda, que já tocava piano. “Logo após, um sargento da banda militar da polícia me deu aulas de 'como é que se tocava uma música': ele lendo a partitura e me ensinando a tocar, decorado de ouvido”, contou, no mesmo depoimento.

A ALEGRIA DOS ENCONTROS A amizade com o cantor Lúcio Alves (1927-1993), iniciada nos primeiros anos vivendo na então capital do país, Rio de Janeiro, permitiu que Donato conseguisse espaço em seu primeiro conjunto vocal, Namorados da Lua. Pouco depois, o jovem acordeonista já participava de jam sessions com outros músicos. Em uma dessas reuniões, tocou com o cantor Dick Farney (1921-1987), um dos precursores da bossa nova. Em seguida, vieram outros grupos, como o Altamiro Carrilho e Seu Regional e apresentações no circuito das casas noturnas célebres do período, como Sacha's e Vogue. Foi somente em 1951, aos 17 anos, que Donato mergulhou, de forma intensa, nos estudos do piano – e passou a apreciar obras dos compositores franceses Claude Debussy (1862-1918) e Maurice Ravel (1875-1937). A perspectiva de viver da música, no entanto, ainda não era segura. Sobre o período, o artista rememorou, nas páginas da Rolling Stone: “Apenas tinha mania de música, não sabia que viria a ser minha profissão. Profissão, mesmo, só depois dos 18, quando fui reprovado para ser piloto da aeronáutica, como meu pai. Tenho problema

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Acervo do Instituto João Donato

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Acervo do Instituto João Donato

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de daltonismo e disse pra mim mesmo: se não dá pra ser piloto, vou ser músico. Mas não foi decisão tomada (...). Foi a reprovação de um sonho que eu tinha de ser aviador”. Logo Donato gravou seu primeiro disco, Chá Dançante (1956), com produção de Tom Jobim. No mesmo período, excursionou como parte da banda da cantora Elizeth Cardoso (1920-1990) e com João Gilberto. Assim, à medida que o mundo conhecia a revolução sonora contida no álbum Chega de Saudade (1959) em temporadas na Europa e nos Estados Unidos, outro João também se firmava como um dos expoentes daquela nova música popular brasileira que emergia, provocando fascínio por onde passava.

Na cidade de Nova York, em 1964, ao lado do músico e maestro Tom Jobim, que produziu o primeiro disco de João Donato, Chá Dançante (1956).

CONSTELAÇÃO DE GÊNIOS Nos anos 1960, outros nomes estelares contaram com a parceria do piano de Donato em turnês e gravações, como a violonista Rosinha de Valença (1941-2004), a cantora Astrud Gilberto (1940-2023) e o flautista Herbie Mann (1930-2003). Trabalhou, ainda, com dois de seus ídolos: o lendário guitarrista Wes Montgomery (1923-1968) e o pianista e compositor Stan Kenton (1912-1979). A década seguinte teve início com o sucesso do álbum experimental A Bad Donato (1970). Com arranjos de Eumir Deodato, a obra traz a fusão da MPB ao jazz, rock, funk e música eletrônica, mistura diferente de tudo o que existia na época. De volta ao Brasil, depois de um extenso período vivendo em Los Angeles, nos Estados Unidos, Donato arquitetou mais uma surpresa: o lançamento do seu emblemático disco Quem é Quem (1973). O álbum reúne canções na voz do próprio João Donato e segue cultuado, 50 anos depois, pela originalidade do repertório. Na ficha técnica, uma carta escrita a João Gilberto (e não enviada) conta detalhes dos processos de composição e gravação. “Como se vê, é o meu melhor trabalho em discos até o momento, tendo-se em conta o tempo que demorou, o que demonstra o máximo de cuidado com que tudo aconteceu, e o resultado é um disco que sinceramente eu acho adorável (...). Enfim, Quem é Quem é lindo. Bom proveito e feliz fim de sonhos lindos – céu azul celeste – tempo estável – temperatura aqui na Glória 19°C”, escreveu ao amigo.

SABOR LATINO Na gênese do estilo inconfundível de João Donato estão não somente os anos vivendo em solo norte-americano, mas também o enorme pendor para fazer

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amigos. Sobre a intersecção musical que popularizou e se tornou sua marca registrada, o artista relatou, em 2019, ao jornal Folha de S. Paulo. “Logo que cheguei aos Estados Unidos, fui encontrar com o pessoal da Carmen Miranda (1909-1955), que me ofereceu um trabalho de duas semanas. Quando terminou, eu fiquei sem emprego, não me levaram adiante porque acharam que eu estava muito americanizado. Estava vindo do Brasil, minhas referências eram João Gilberto, Tom Jobim. Aquela coisa do 'um cantinho, um violão'. O pessoal da Carmen ainda estava com o 'Tico Tico no Fubá' na cabeça”, afirmou. Preocupado com a atípica falta de entrosamento, coube ao músico buscar alternativas para sobreviver. “Eu me virei com sorte. Entrei num motel de Hollywood [em Los Angeles, na Califórnia], estava explicando ao gerente que eu era um músico brasileiro e ele comentou que lá

havia um compositor cubano. Logo ele se aproximou, [o percussionista] Armando Peraza (1924-2014), e eu o reconheci pelo nome nos discos. Ele disse ‘qué pasa?’, eu contei e ele: 'nunca tinha visto um homem mais gordo na vida'. Ficamos amigos para sempre”, narrou o pianista.

Leo Aversa

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Por intermédio de Armando Peraza, João Donato foi “adotado” por uma orquestra latina. “’Você é nosso pianista, pronto.’ De não cubano, só tinha eu e um contrabaixista mexicano”, recordou. Embora questionasse o ritmo, que julgava repetitivo, o brasileiro rapidamente reconfigurou sua maneira de tocar e adquiriu, assim, as habilidades com os acordes e melodias que o inseriram entre os grandes instrumentistas de todos os tempos. “Toda vez que eu saía daquilo, eles diziam ‘não!’. Essa disciplina eu fui aprendendo, e esse sabor latino hoje faz parte da minha música. Eu me encontrei nessa mistura”, arremata.

Crédito

Ao lado do amigo Jards Macalé em ensaio fotográfico para o disco Síntese do Lance, em 2021. Com Macalé, João Donato realizou uma de suas últimas apresentações, em maio de 2023, no Sesc Sorocaba.

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Evelson de Freitas

para ver no sesc / bio

Cinzas”, “Onde anda você” e “Eu não existo sem você”, de Mariana de Moraes, no disco Vinicius de Mariana (2023), em que a cantora presta homenagem ao avô. Como arranjador, Donato participou do álbum Olorum (2020), do cantor e compositor Mateus Aleluia. Entre os inéditos, a parceria com a cantora e compositora Tulipa Ruiz no álbum Trago, com previsão de lançamento em 2024.

Com seu clássico bom-humor, durante show de lançamento do álbum Donato Elétrico, lançado pelo Selo Sesc, em 2016, e indicado ao Grammy Latino de Melhor Álbum Instrumental.

EM BOA COMPANHIA Discos lançados pelo Selo Sesc e programas do SescTV enaltecem a personalidade musical de João Donato e suas celebradas parcerias Reverenciado pelo público e por gerações de artistas, João Donato segue presente em inúmeras participações, arranjos e composições em álbuns do catálogo do Selo Sesc. Lançado em 2016, e indicado ao Grammy Latino de Melhor Álbum Instrumental daquele ano, Donato Elétrico reúne inéditas que retomam a sonoridade setentista dos trabalhos do artista, marcados profundamente pelo uso do piano elétrico. Já o disco Sessões Selo Sesc #7: João Donato +

Projeto Coisa Fina (2020) apresenta o show gravado ao vivo, em julho de 2019, no Teatro Paulo Autran, do Sesc Pinheiros. Donato foi arranjador e pianista, ainda, das faixas “Saudade fez um Samba”, de Gilberto Gil, “Samba do Carioca”, de Fernanda Abreu, e “Lobo Bobo”, de Mart’nália, no recém-lançado Afeto – Carlos Lyra 90 anos (2023). É do mestre acriano, também, a assinatura dos arranjos das faixas “Maria Moita”, “Quarta-feira de

A programação do SescTV, por sua vez, oferece duas homenagens a João Donato: um especial para celebrar o músico, que faria 90 anos em agosto deste ano, gravado no Sesc Pompeia, em 2014. Ainda na programação, é possível assistir ao registro audiovisual da parceria de Donato com o trombonista Raul de Souza (1934-2021), em 2009, no Sesc Vila Mariana.

SELO SESC

Donato Elétrico (2016) Sessões Selo Sesc #7: João Donato + Projeto Coisa Fina (2020) Afeto – Carlos Lyra 90 anos (2023) Vinicius de Mariana (2023) Olorum (2020) Escute os álbuns em sesc.digital ou acesse o site do Selo Sesc para adquirir os discos: sescsp.org.br/selosesc SESCTV

Homenagem aos 90 anos de João Donato Dia 7/2, às 21h.

Raul de Souza e João Donato Dia 9/2, às 22h. Assista em sesctv.org.br 39 | e


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RETR(ATOS) PARLAPATÕES Após 33 anos de trajetória, grupo de atores-palhaços segue acreditando na criação coletiva, no papel transformador do riso e no diálogo aberto com o público POR LUNA D’ALAMA FOTOGRAFIAS CUCA NAKASONE

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Hugo Possolo em cena do espetáculo A Cabeça de Yorick. Texto e direção de Hugo Possolo.

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ormado em jornalismo pela Faculdade Cásper Líbero, Hugo Possolo trocou uma possível carreira em redação de jornal para cursar o Circo Escola Picadeiro, na década de 1980. Começou a ensinar teatro para crianças em escolas e a passar o chapéu nas ruas do Centro de São Paulo, em apresentações de palhaçaria. “Ia para a Praça da República, para o Parque Ibirapuera, e fazia rodas inspiradas nos pastores evangélicos e nos tocadores de flauta bolivianos”, lembra, aos risos, o ator, palhaço, diretor, dramaturgo e gestor cultural, que fundou o grupo Parlapatões, Patifes e Paspalhões (hoje apenas Parlapatões) em 1991, ao lado de Raul Barretto e outros colegas. Em 33 anos de trajetória, a trupe – pela qual já passaram artistas como Bárbara Paz e Ângela Dip – montou cerca de 65 espetáculos apresentados em todo o país, além de realizar mostras e festivais com peças diversas e elencos de vários tamanhos (de três e 30 artistas em cena). Desde 2006, as montagens ocorrem no Espaço Parlapatões, que se instalou no lugar de uma antiga padaria, no coração da Praça Roosevelt. “Assim como [a Companhia de Teatro] Os Satyros, nós revitalizamos essa parte do Centro sem fazer gentrificação, mas ocupando a calçada com cultura e boemia, duas coisas que estão intimamente ligadas ao convívio das pessoas”, destaca Possolo. Também com o grupo de teatro vizinho e outras companhias, o diretor criou a Associação dos Artistas Amigos da Praça (Adaap), que administra a SP Escola de Teatro, na mesma praça. Espetáculos criados nos primeiros 25 anos de existência do grupo foram registrados em imagens, nos anos de 2003, 2016 e 2022, pelo fotógrafo e

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ator Cuca Nakasone, e reunidos recentemente no livro Parlapatões: No Ato (Edições Sesc São Paulo, 2023) [Leia mais em Registros do efêmero]. Na essência do coletivo estão a comicidade contemporânea e um perfil político-social que se vale do teatro de rua e da palhaçaria para potencializar outras dramaturgias, como define Possolo. “Acredito no papel transformador do riso, na bufonaria, na provocação. Nunca se deve dizer que algo ‘é só uma piada’, pois eu vivo disso. As piadas precisam ter um sentido e estar apontadas para o alvo certo. Falamos para uma plateia diversa, tanto de faixa etária quanto de classe social. Nossas propostas são espetáculos híbridos entre o palco e a rua, entre a criança e o adulto”, conta Possolo. Hoje, a trupe reúne cerca de 20 integrantes, mais a produção e a equipe técnica. Segundo o diretor, que se autodenomina “síndico” de um projeto com criação coletiva, o diálogo franco e aberto do Parlapatões com o público, cuja interação com os atores-palhaços acontece de forma lúdica, vem cativando as novas gerações. Também na opinião de Possolo, que já foi secretário municipal de cultura e diretor-geral da Fundação Theatro Municipal de São Paulo, grupos como o Parlapatões representam uma mudança de ângulo de visão para a sociedade, que pode rir até dos assuntos mais difíceis e espinhosos, questionando-os. “Nosso riso não objetiva afirmar nem reafirmar preconceitos. E, quando erramos, pedimos desculpas, não tentamos nos justificar. Somos um coletivo dedicado à formação de repertório, e o que era inicialmente um grupo de rapazes passou a entender o mundo de outro jeito, com maior diversidade de gênero, raça e corpos”, finaliza o palhaço, que completa 62 anos em 2024.


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Fabek Capreri, Hugo Possolo, Raul Barretto e Alexandre Bamba em Os Mequetrefe, espetáculo baseado na obra de Edward Lear. Roteiro e direção de Hugo Possolo.

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Raul Barretto em O Bricabraque. Texto e direção de Hugo Possolo.

Hugo Possolo em Prego na Testa, de Eric Bogosian, com direção de Aimar Labaki.

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Claudinei Brandão em As Nuvens e/ou Um Deus Chamado Dinheiro, de Aristófanes. Adaptação e direção de Hugo Possolo.

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Fabek Capreri, Janaína Enguel, Pedro Guilherme, Fernanda Cunha, Raul Barretto, Henrique Stroeter e elenco em Um Chopes, Dois Pastel e uma Porção de Bobagem, de Mário Viana, com direção de Hugo Possolo.

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Fernanda Cunha e Fabek Capreri em U Fabuliô, espetáculo escrito a partir de contos licenciosos franceses. Roteiro e direção de Hugo Possolo.

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Pedro Guilherme em Um Chopes, Dois Pastel e uma Porção de Bobagem, de Mário Viana, e direção de Hugo Possolo.

Carmo Murano e Fabek Capreri em Totalmente Pastelão, peça medieval com texto e direção de Hugo Possolo.

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Alexandre Bamba em O Burguês Fidalgo, texto de Molière, com direção de Hugo Possolo.

Raul Barretto em Cabaré Parlapatões em Quadrinhos, espetáculo composto por cenas da peça Parlapatões Revistam Angeli, com números criados a partir do trabalho de outros cartunistas.

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para ver no sesc / gráfica

REGISTROS DO EFÊMERO Em mais de 140 fotografias, livro documenta espetáculos criados nos primeiros 25 anos de história do grupo Parlapatões na capital paulista Imagens captadas pelo fotógrafo e ator Cuca Nakasone em 2003, 2016 e 2022 apresentam ao leitor uma narrativa imagética da trajetória do grupo de teatro paulistano Parlapatões. O resultado pode ser conferido no livro Parlapatões: No Ato (Edições Sesc São Paulo, 2023), que reúne registros de 17 espetáculos (entre comédias e dramas), figurinos e espaços da sede do Parlapatões, na Praça Roosevelt, no Centro de São Paulo. Textos do dramaturgo, diretor e crítico Aimar Labaki, do escritor e pesquisador Carlos Rahal e do ator e diretor Hugo Possolo ajudam a contar essa história que passa pelo engajamento político, pela estética circense e pelo uso do humor como instrumento para a crítica de costumes.

Raul Barretto, Hugo Possolo, Alexandre Bamba e Fabek Capreri em Os Mequetrefe, espetáculo baseado na obra de Edward Lear. Roteiro e direção de Hugo Possolo.

“Fiz a maioria das fotos ao longo de duas semanas, de quinta a domingo, durante uma mostra comemorativa, e enxerguei ali a possibilidade de continuar documentando a história do teatro brasileiro”, afirma Nakasone. De acordo com o organizador, que também é mestre em artes cênicas pela Universidade de São Paulo (USP) e professor de fotografia, é fascinante unir teatro e fotografia – a primeira, uma arte efêmera e a segunda, duradoura. “No teatro, tudo é ágil e instável, enquanto a fotografia eterniza o momento. O registro fotográfico em um livro fica para a história e ainda mantém viva a memória do teatro brasileiro”, avalia.

Nakasone também elogia a qualidade “impecável” do trabalho do Parlapatões. “São atores-palhaços com muito treino, estudo, estrada. Já se apresentaram em ruas, praças e ônibus, com plateias lotadas. É uma trupe para lá de organizada, e com um espaço incrível, algo raro em outras companhias, infelizmente”, destaca o fotógrafo. Como escreveu o pesquisador e curador de fotografia Rubens Fernandes Junior na orelha do livro, “[Nakasone] flagra o momento decisivo em que há uma fina sintonia entre iluminação, cenário, sonoridades, movimentos, expressões e gestos singulares. Plena sincronicidade em que a convergência das variáveis torna sua fotografia um documento histórico para a cultura brasileira”.

EDIÇÕES SESC SÃO PAULO

Parlapatões: No Ato (2023) Por Cuca Nakasone (org.). Acesse o site das Edições Sesc São Paulo para adquirir o livro

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SONORA Para além da profissionalização, aprender música gera benefícios pessoais e coletivos, como desenvolvimento emocional, ampliação de repertório e senso de coletividade POR LUNA D’ALAMA

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multi-instrumentista Hermeto Pascoal acredita que tudo está ligado à música. Segundo o pensamento do artista de 87 anos, os sons ecoam em todos os contextos, não apenas ao tocar algum instrumento de sopro, corda ou percussão. A musicalidade, para o “bruxo dos sons”, como também é conhecido, manifesta-se na fala, no canto, no pio dos pássaros – sempre que um som combina elementos como ritmo, harmonia e melodia. A música é inerente à condição humana e ocupa um importante papel na trajetória cultural de diversos povos, possibilitando a expressão de sentimentos, a manifestação de ideias, a fruição artística, a ampliação de repertório e a sociabilização, entre outros benefícios. Ligada à sensibilidade, à cidadania e à própria existência humana, a prática musical

ajuda a desenvolver o potencial criativo, a capacidade crítica, habilidades e construção coletiva e colaborativa, favorecendo, assim, o autoconhecimento, a autonomia e o bem-estar. Segundo Zuza Gonçalves, professor de canto e educação vocal há mais de 20 anos (nove deles no Centro de Música do Sesc Vila Mariana), antes de ser uma linguagem artística – com códigos, tradições, teorias e escrita – ou, ainda, um produto da indústria cultural, a música é uma experiência humana compartilhada. “Todos nós sabemos música, mesmo sem ler uma partitura. Quem anda, dança, e quem fala e canta. A origem e a base da música estão em uma vivência comunitária anterior à palavra, à linguagem verbal. Desde que o humano é humano, ele produz sons, e não só para comunicação,

Rodrigo Rosenthal

experimentação

música


música

O Instituto Baccarelli, que realiza oficinas de música para crianças em Heliópolis, na capital paulista, criou a primeira orquestra sinfônica do mundo em uma favela.

mas para o lazer”, explica o artistaeducador, que é cofundador do Instituto Música do Círculo. Gonçalves concorda que o aprendizado de música pode ajudar no raciocínio lógico e na memória, mas prefere vê-la como um fim em si mesma. “A música é parte da condição humana. Quem não entra em contato com ela, seja erudita ou popular, para aprendizagem ou apreciação, deixa de acessar uma

parcela importante da experiência humana. As pessoas trazem dentro de si o canto, o ritmo, a batida de palmas ou dos pés. Seja num cantar de parabéns, numa roda de capoeira ou num ritual religioso”, exemplifica. O professor também compara o estudante de música a quem joga futebol: algumas pessoas serão mais ágeis e terão mais facilidade que outras, numa relação fluida e orgânica com a bola (no caso, o

instrumento). “Mas todo mundo pode se desenvolver, o que não significa se profissionalizar, ganhar dinheiro com isso. Acredito no aprendizado da música para a vida, não apenas para cantores e instrumentistas profissionais. Infelizmente, colocamos a música na torre de marfim da grande performance, e vejo isso como uma relação adoecida. Porque ela é da nossa natureza, está presente desde o ritmo do nosso coração”, analisa. 55 | e


Alunos do Instituto Baccarelli, em Heliópolis, zona Sul de São Paulo (SP).

Professora de violino há oito anos no Instituto Baccarelli – responsável pela primeira orquestra sinfônica do mundo em uma favela (Heliópolis, na zona Sul de São Paulo) –, Julliana Cavalcanti afirma que o aprendizado de música desenvolve escuta, paciência, concentração, observação, disciplina, coordenação motora e socialização, entre outros ganhos. “Colocamos o corpo em ritmo, em pulsação, aprendemos com o outro. Por isso, muitos começam no coral, porque é potente estar e aprender em grupo”, avalia a educadora. Ex-aluna do Baccarelli, onde começou aos 11 anos e fez parte da orquestra por quase duas décadas, Cavalcanti explica que, assim como um bebê,

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quem aprende música primeiro escuta, depois fala (canta) e, por último, começa a ler (partitura). “A partir dos dois anos, introduzimos a musicalização, com a participação de pais ou cuidadores. Apresentamos os instrumentos e movimentos, é tudo muito lúdico e pedagógico. As crianças tocam, entendem o que é ritmo e, aos quatro anos, vão ganhando autonomia. Até que, por volta dos seis, quando inicia-se a alfabetização na escola, os pequenos começam a escolher os instrumentos e a ler as partituras”, detalha a professora. Cavalcanti conta que, nem todos os alunos que entram no Instituto Baccarelli se tornam profissionais. “Mas o ganho cognitivo é para todos: a música trabalha os dois hemisférios cerebrais, tanto o

lógico quanto o abstrato, das emoções. Porém, as crianças, em geral, são mais flexíveis e menos resistentes que os adultos, e o cérebro delas é uma ‘esponja’, absorve tudo muito rápido”, pontua. A professora acredita que a música também proporciona às pessoas uma oportunidade de se tornarem mais comprometidas, em qualquer carreira. “No meu caso, que estudo há 23 anos, a música trabalhou a minha autoestima, e o violino me mostrou o mundo. Participei de festivais na Inglaterra e na Holanda, passei um mês dentro de um castelo na Alemanha. Conheci teatros incríveis, com as melhores orquestras do mundo”, lembra a ex-integrante da Sinfônica de Heliópolis, que já tocou ao lado de artistas como João Bosco, Racionais MC’s e Zizi Possi.

Rodrigo Rosenthal

DE APRENDIZ A MESTRA


Jean Ricardo

música

UNIÃO DE LINGUAGENS

DESENVOLVIMENTO INTEGRAL

Na Escola Municipal de Iniciação Artística (Emia), que há quatro décadas atende gratuitamente alunos entre 5 e 12 anos, em seis unidades instaladas na cidade de São Paulo, o aprendizado de música está integrado ao de dança, teatro e artes visuais. Segundo a violinista e professora Adriana Krindges, que desde 2019 é uma das coordenadoras musicais da instituição, o foco da Emia está justamente na interlinguagem, na mistura de diferentes expressões artísticas. “Trabalhamos não somente repertório e técnica, mas diversos elementos que compõem o ritmo e a música popular. Estimulamos que as crianças ouçam seu entorno, as paisagens sonoras que as circundam. Queremos despertar o ouvido delas também para escutar o próprio corpo e as sensações”, conta Krindges.

Ex-aluna e atual professora do Projeto Guri Santa Marcelina, que ensina música gratuitamente para crianças e jovens do estado de São Paulo, Thayná Campos dá aulas de teoria, canto coral e iniciação musical para turmas entre seis e 18 anos. “A música trabalha o senso de coletividade e pertencimento, contribuindo para o desenvolvimento integral do ser humano. Além disso, incentivamos nossos alunos a se sentirem livres para compor e criar”, ressalta.

Ao mesclar as quatro linguagens em atividades realizadas uma vez por semana, no contraturno escolar, os professores da Emia elaboram propostas que se conectam, para que os alunos levem suas próprias ideias e contribuições, e criem novos pensamentos. “Aprender música é adentrar um novo modo de expressão, que tem características bem específicas. Um coral, banda ou orquestra, por exemplo, envolve um jogo de escuta, pausa e silêncio. Você deve esperar o seu momento de tocar ou de cantar. E esses processos não são automáticos, é preciso ensinar o cérebro, os dedos e o corpo inteiro a reproduzirem notas com a voz ou com instrumentos”, explica Krindges.

A professora reforça que não existe idade para começar a aprender música. “Desde a nossa vida intrauterina, já ouvimos sons. A partir dos quatro meses de idade, podemos trabalhar sonoridades, toques, gestos e visão, por meio de objetos coloridos. Esses estímulos são muito importantes para o desenvolvimento infantil”, explica. À medida que o bebê vai ganhando mais consciência de si e da alteridade, são inseridos novos elementos. “Os bebês imitam bichos, reproduzem onomatopeias, tornam-se mais independentes. Exercitamos a imaginação

com desenhos e objetos, até o pensamento se tornar mais concreto e irmos para os instrumentos”, descreve Thayná Campos. Criado em 1995, o Projeto Guri já atendeu mais de um milhão de crianças e adolescentes da rede pública de ensino, em mais de 400 polos em todo o estado. Campos, que entrou no projeto aos 12 anos, acredita que a voz é o nosso principal e mais poderoso instrumento. “É incrível desenvolvê-la e descobrir o seu timbre, que é único. Aos poucos, os alunos vão deixando o medo e o nervosismo de lado, dominando a respiração, adquirindo consciência corporal e ampliando a percepção auditiva”, afirma a professora. “Além disso, para que o aprendizado seja efetivo, é essencial frequentar as aulas, além de estudar e praticar todos os dias em casa, nem que seja por 15 minutos. Na música, constância e regularidade são fundamentais”, aconselha.

Alunas do Projeto Guri, que já atendeu mais de um milhão de crianças e adolescentes da rede pública de ensino, em mais de 400 polos em todo o estado de São Paulo.


música / para ver no sesc

Centros de Música do Sesc São Paulo oferecem programação de férias e abrem inscrições para cursos regulares ao longo do semestre

Renata Gobatti

FÉRIAS MUSICAIS

Músico e luthier, Afonsinho Menino conduz uma oficina de confecção de instrumentos musicais no Sesc Guarulhos, dias 2 e 9/2.

Até 9 de fevereiro, os Centros de Música do Sesc (nas unidades Consolação, Guarulhos e Vila Mariana) abrem suas portas para uma programação especial de férias, propondo a interação do público com instrumentos e sonoridades de diversos lugares do Brasil e do mundo. As atividades são direcionadas para todas as faixas etárias e incluem cursos, oficinas, vivências, bate-papos, masterclasses e exibição de filmes, entre outras opções.

Criados em 1989 (Consolação), 1998 (Vila Mariana) e 2019 (Guarulhos), os três Centros de Música do Sesc São Paulo reúnem 29 salas de aula e estudos, 1.120 instrumentos e, em 2022 (último ano consolidado), atenderam 2.847 alunos em 195 ações.

Como destaca Laura Lopes, técnica em música da Gerência de Ação Cultural do Sesc São Paulo, os Centros de Música consideram a ação cultural e a educação como pressupostos para a transformação social, com atividades focadas no aprendizado coletivo e democrático a partir da prática e da experimentação com diferentes instrumentos”. Dessa maneira, segue Laura, esses espaços “contribuem não apenas para um primeiro contato com a linguagem musical, mas também para a socialização, o bem-estar e o entendimento da música como parte essencial do ser humano”, defende.

Músicas do mundo Vivência multicultural e intergeracional

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Com mais de 30 anos de carreira, o músico, luthier, educador e pesquisador conduz as oficinas Confecção de Reco-Reco de Bambu e Confecção de Tambor com Cano de PVC. Dias 2 e 9/2, sextas, às 16h. Retirada de convites uma hora antes. GRÁTIS.

Confira alguns destaques da programação deste mês: VILA MARIANA CONSOLAÇÃO

Curso com Gabriel Levy e Fortuna que, por meio do canto e da expressão corporal, aproxima os participantes de músicas de diferentes partes do mundo a partir de um olhar lúdico e criativo. De 6 a 9/2, terça a sexta, das 14h às 15h30. Inscrições abertas. GRÁTIS.

GUARULHOS

Oficinas com Afonsinho Menino

BrincaMúsica Com xilofones e pequenos instrumentos de percussão, o professor Valdir Maia propõe brincadeiras musicais. De 6 a 8/2, terça a quinta, às 15h. De 7 a 10 anos. Entrega de senhas 30 minutos antes. GRÁTIS.

Cursos regulares dos Centros de Música do Sesc São Paulo De 20 a 23/2: pré-inscrições para cursos com conhecimentos prévios. De 16 a 17/3: inscrições em vagas remanescentes (com e sem conhecimentos prévios). Saiba mais: sescsp.org. br/centrodemusica



DIREITO À

folia


A

cidade que antes se esvaziava no Carnaval, enviando foliões para outros cantos do país, hoje acolhe mais de 15 milhões de brincantes nas ruas. Mas, para que a maior festa popular brasileira conseguisse alcançar tamanha proporção na capital paulista, foi preciso a reivindicação de representantes de blocos carnavalescos para a implementação de uma política pública de cultura pela Prefeitura de São Paulo. De 2013 para cá, uma profusão de manifestações irradiou por todas as regiões da cidade. Neste ano, entre 3 e 18/2, 579 blocos desfilam durante oito dias de folia, provando que existe Carnaval em SP e ele é um dos maiores do Brasil.

Nortearia

“A formulação de uma política pública baseada no direito à folia surpreendeu os paulistanos e todo o país: de 42 blocos em 2013, para 384 em 2016, e 644 em 2020. A ação afirmativa do poder público foi fundamental para essa explosão, mas ela só ocorreu porque havia na cidade uma efervescência cultural e urbana que necessitava apenas de condições institucionais e de infraestrutura para que as ruas fossem tomadas pelos foliões”, pondera Nabil Bonduki, professor titular de planejamento urbano na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP). Arquiteto e urbanista, Bonduki, que também já foi secretário municipal de cultura (2015-2016), constata: “O Carnaval de rua de São Paulo foi o ponto culminante de

uma política cultural e urbana que transformou as ruas em arenas culturais. Nelas se combinam conceitos como o direito à cidade, à cidadania cultural, à liberdade de expressão e comportamental e à ocupação democrática do espaço público”. Essa arena cultural torna-se, também, palco de manifestações pelo reconhecimento de diferentes grupos sociais. Um exemplo é o Bloco Afro Ilú Obá De Min, criado em 2004 pelas percussionistas Elisabeth Belisário (Beth Beli), Girlei Miranda e Adriana Aragão. “Com tantos blocos nas ruas, também se percebe que grupos identitários começam a criar suas narrativas, sejam elas no âmbito político ou no resgate da cultura. A instituição Ilú Obá De Min Educação, Cultura e Arte Negra leva mais de 60 mil pessoas para as ruas do Centro de São Paulo, trazendo toda uma narrativa voltada a homenagear as histórias e as lutas das mulheres pretas, com uma bateria de 460 mulheres pretas, com todo requinte e estratégia ancestral”, ressalta Elisabeth Belisário, presidenta, regente e diretora musical do bloco. Espelho da diversidade cultural, mas também da desigualdade social que habita a cidade, o Carnaval de rua de São Paulo ainda é fruto de expressões culturais responsáveis pela sua identidade? De que maneira o crescimento exponencial dessa festa popular pode prejudicar seu caráter público, gratuito e democrático? Nos dois textos publicados neste Em Pauta, Bonduki e Belisário tecem suas reflexões.

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Os dilemas do crescimento do Carnaval de rua de São Paulo: cidadania cultural ou negócio? POR NABIL BONDUKI

A tecnologia de gestão que propiciou a implementação e crescimento do Carnaval de rua em São Paulo foi formulada a partir do diálogo entre os blocos carnavalescos, organizados no Manifesto Carnavalesco, e a gestão Fernando Haddad (2013-2016).

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Esse debate gerou um modelo de Carnaval como uma festa pública, gratuita e democrática, sem qualquer cerceamento ao acesso da população. Nada de cercas, cordas ou abadás. Na regulamentação, ficava sob a responsabilidade da prefeitura, coordenado pela Secretaria de Cultura, o planejamento espacial e temporal dos desfiles, e o apoio logístico e de infraestrutura, como banheiros, organização do tráfego de veículos, segurança e limpeza. Nessa concepção, os protagonistas da festa são os blocos que emergem da sociedade, com a criatividade e diversidade características das expressões culturais de São Paulo. Foram eles que geraram as condições para o crescimento do Carnaval de rua. A formulação de uma política pública baseada no direito à folia surpreendeu os paulistanos e todo o país: de 42 blocos em 2013, para 384 em 2016, e 644 em 2020. A ação afirmativa do poder público foi fundamental para essa explosão, mas ela só ocorreu porque havia na cidade uma efervescência cultural e urbana que necessitava apenas de condições institucionais e de infraestrutura para que as ruas fossem tomadas pelos foliões.

O Carnaval de rua de São Paulo foi o ponto culminante de uma política cultural e urbana que transformou as ruas em arenas culturais. Nelas se combinam conceitos como o direito à cidade, à cidadania cultural, à liberdade de expressão e comportamental e à ocupação democrática do espaço público. Com esses ingredientes, o Carnaval de rua tornou-se a mais importante manifestação cultural no espaço público [da cidade de São Paulo] e um dos maiores do Brasil. Ele se articula com uma das diretrizes do Plano Diretor Estratégico de 2014, baseado no conceito de que as ruas devem ser para as pessoas, e não apenas dos automóveis. Dessa forma, tornou-se a expressão mais forte da relação entre cidade e cultura, transformando São Paulo numa arena multicultural e vibrante. Reverteu-se completamente o esvaziamento da cidade, que se dava até 2013 durante o Carnaval. O injusto rótulo de “túmulo do samba” virou coisa do passado: em 2020, São Paulo tornou-se o principal destino carnavalesco do país, com enorme movimento econômico e comercial, estimado em R$ 2,3 bilhões, rede hoteleira lotada, entre outros benefícios. O Carnaval de rua aumentou a autoestima da cidade. Os paulistanos não precisaram mais viajar ao Rio, Salvador (BA) ou Recife (PE) para curtir a festa. Alegres e fantasiados, eles puderam passar a se divertir, a custo zero, nas ruas da cidade, que se tornaram um lugar de festa, sociabilidade, namoro e liberdade. A força dessa festa impediu que a alternância partidária na gestão municipal alterasse inteiramente a regulamentação do Carnaval de rua, que se integrou à vida da cidade. Mas, a partir de 2017, a gestão municipal tentou, inicialmente, confinar o Carnaval em algumas avenidas e tornou a cidade mais permeável à lógica do negócio cultural e ao controle repressivo, afetando em vários aspectos a vitoriosa política do Carnaval de rua. O crescimento do número de blocos e a mudança da gestão municipal geraram novos interesses econômicos, como a disputa por patrocínios e marketing.


A formulação de uma política pública baseada no direito à folia surpreendeu os paulistanos e todo o país

Surgiram questões de fundo, que precisam ser enfrentadas para que o potencial do Carnaval não gere efeitos contraproducentes. Esses interesses econômicos são compatíveis com a cidadania cultural? A concepção original baseava-se na ideia de que as manifestações culturais e os desfiles nascessem dos coletivos, comunidades e grupos culturais, organizados de baixo para cima. É totalmente diferente da lógica dos negócios vinculados ao Carnaval. O Carnaval paulistano tem atraído produtores culturais, blocos de outros estados e artistas famosos. Isso gera um crescente interesse da mídia e de empresas preocupadas com o marketing e a exposição de suas marcas, que ganham visibilidade não só entre os milhões de foliões, como nas imagens espetaculares geradas nos desfiles. A presença de estrelas aumenta o público e o movimento econômico da cidade. Em tese, poderia ser positivo, mas, por outro lado, acaba por transformar, parcialmente, o Carnaval de rua em evento, mais do que em expressão de cidadania cultural, princípio que originou a política que orientou sua regulamentação.

a gestão do Carnaval de rua passou a ser responsabilidade da Secretaria das Subprefeituras, que não tem a sensibilidade necessária para dialogar com a cidadania cultural. Passou-se a privilegiar a lógica comercial, de eventos e da ordem urbana, deixando em segundo plano a perspectiva dos blocos oriundos de coletivos e grupos com base territorial. Nos últimos anos, a prefeitura vem elevando as exigências e os requisitos burocráticos dos blocos, limitando os horários de desfiles e restringindo a utilização de lugares tradicionalmente ocupados, afetando o caráter democrático da proposta original. Em alguns casos, esses conflitos têm gerado inadmissível violência policial, que é o oposto do clima festivo que deve vigorar durante o Carnaval, gerando questionamentos dos blocos raiz, que começam a contestar a própria regulamentação e o papel do poder público na organização do Carnaval. Para enfrentar esses dilemas e desafios, é necessário embasamento teórico e uma avaliação crítica da regulamentação do Carnaval de rua e de sua implementação, na perspectiva de pactuar novas alternativas. Para tanto, é essencial um novo esforço de diálogo com os atores que protagonizam o Carnaval.

Por outro lado, quanto mais o Carnaval cresce, maiores se tornam os conflitos com a vida cotidiana da cidade, afetando os que não participam da festa. Problemas presentes desde os primeiros anos, como a restrição à circulação de veículos, ruído, violência e transtornos de diferentes naturezas, vêm se agravando, gerando estresse urbano e um questionamento: o Carnaval de rua deve parar de crescer?

O debate do Projeto de Lei 298/2016, de minha autoria, que tramita no legislativo, pode ser o espaço para isso. Ele torna o Carnaval de rua uma política de Estado, impondo limites para os patrocínios e interesses comerciais, e definindo as responsabilidades do poder público e dos blocos.

Antes, a Secretaria Municipal de Cultura era a responsável pela organização da festa e enfrentava esses conflitos com diálogo e pactuação, sob o ponto de vista cultural e dentro dos princípios do direito à cidade e do direito à folia. Mas, a partir de 2018,

Nabil Bonduki é professor titular de planejamento urbano na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP). Foi secretário municipal de cultura (2015-2016) e vereador (2001-2004 e 2013-2016) de São Paulo (SP).

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Carnaval de rua e nova (?) identidade cultural paulistana POR ELISABETH BELISÁRIO

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Em São Paulo, o Carnaval de rua de 2023 registrou 670 blocos inscritos, atraindo um público de 15 milhões de pessoas, segundo dados da prefeitura da cidade. A expressiva participação popular, o número crescente de blocos e a retomada das ruas como espaço de convivência comum e democrática recuperam e assimilam a essência do Carnaval. A rua torna-se palco de compartilhamento entre grupos, em suas diversas manifestações artísticas, e torna-se espaço cultural aberto. Lugar de festejar e de extravasar a alegria do povo brasileiro. A grande metrópole nacional recuperou e assimilou a essência do Carnaval com os blocos e a retomada das ruas. O reconhecimento da grandiosidade dos blocos de nossa cidade tem início por volta de 2013, na administração do ex-prefeito Fernando Haddad [2013-2016], pela implementação do direito à folia, com a tomada de Juca Ferreira e Guilherme Varella [respectivamente, secretário municipal de cultura e chefe de gabinete da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo], que estabeleceram diálogo com os blocos mais antigos, possibilitando a organização popular com apoio institucional e implementação de uma política pública de cultura. É relevante considerar a tradição do Carnaval e sua importância para a sociedade paulistana na construção da memória coletiva, na preservação e valorização do legado histórico, no incentivo à cultura e na mobilização e organização popular. Um evento dessa magnitude movimenta a economia do país e cumpre função social, gerando emprego e renda.

O Carnaval de rua é a festa mais popular do país e vem reunindo milhões de pessoas, seja como produtoras ou espectadoras do espetáculo. Os blocos que vêm surgindo a cada ano não têm a ideia de somente ocupar as ruas, mas também, através das suas saídas e cortejos, incorporar em seus títulos e mensagens o clamor pelo direito à cidade, tornando pública a reivindicação pela ocupação do espaço urbano. É a possibilidade de exigir seus direitos e fazer um Carnaval mais político e crítico, analisando as questões sociais e apresentando, também, mensagens históricas, como é o caso do Bloco Ilú Obá de Min (Mãos Femininas Que Tocam Para o Rei Xangô), fundado em 2004. Nosso compromisso é com a nossa ancestralidade, por isso apresentamos, a cada Carnaval, nomes e histórias de mulheres que contribuíram para a riqueza da cultura afro-brasileira, suas lutas por espaço, contra o fim do racismo e das desigualdades. Entre elas: Raquel Trindade [1936-2018]; Elza Soares [1930-2022]; Carolina Maria de Jesus [1914-1977]; Lia de Itamaracá; Nega Duda e Sueli Carneiro. Para nós não tem mais volta: ou São Paulo reconhece esse trabalho realizado por 460 mulheres empunhando seus tambores por justiça e reconhecimento das tradições pretas, que são as verdadeiras raízes dessa grande festa popular, ou cairemos no que hoje são os grandes carnavais mercadológicos de grandes capitais – como Rio de Janeiro, Salvador e tantas outras. Carnaval é a festa do povo, não da elite. Sua essência está em reunir pessoas que querem, de alguma forma, extravasar e criar suas narrativas, seja por questões de gênero, questões políticas ou, até mesmo, para exaltar a diversidade que se encontra nessa grande metrópole chamada São Paulo. Existe uma parte dos paulistanos que não gosta mesmo dessa grande festa popular. Eles passam a ser a minoria. Os que não gostam com certeza vão aproveitar para ir aos seus retiros espirituais, penso eu, porque se não for assim, terão que entrar na folia, uma vez que toda São Paulo estará em festa nos dias de Carnaval. Hoje todos ganham com a


A lógica do Carnaval não pode ser vista apenas pelo olhar da economia, é preciso haver respeito pelo povo, principalmente, pelo povo preto, que deu a maior contribuição nesse processo

festa carnavalesca da cidade, principalmente quem consegue uma renda mais robusta nessa época do ano — como as tias costureiras das periferias e tantos profissionais de outras partes da cidade. O setor econômico cresce. Bom para os hotéis, bares, restaurantes, girando em peso a economia local. Mas os blocos que fomentam arte e cultura ainda são pouco reconhecidos e estruturados. A lógica do Carnaval não pode ser vista apenas pelo olhar da economia, é preciso haver respeito pelo povo, principalmente, pelo povo preto, que deu a maior contribuição nesse processo. Creio ter sido uma das maiores colaborações de gêneros musicais, como o samba, o samba-enredo, o maracatu e os afoxés. Com tantos blocos nas ruas, também percebe-se que grupos identitários começam a criar suas narrativas, sejam elas no âmbito político ou no resgate da cultura. A instituição Ilú Obá De Min Educação, Cultura e Arte Negra leva mais de 60 mil pessoas para as ruas do Centro de São Paulo, trazendo toda uma narrativa voltada a homenagear as histórias e as lutas das mulheres pretas, com uma bateria de 460 mulheres pretas, com todo requinte e estratégia ancestral para dizer que, na história de 500 anos desse país e 135 anos pós-escravidão, ainda há muito a se fazer numa cidade racista, sexista e homofóbica. De punhos fechados, dizemos que nós não nos preparamos para um bloco de Carnaval. A gente se prepara para a luta. Porque são mulheres tocando tambores para acordar quem insiste em dormir. Precisamos, ainda, avançar em vários âmbitos sociais para sermos dignos de tantas riquezas e diver-

sidades desta cidade. Precisamos que os órgãos de segurança tomem essa ação para eles; precisamos dialogar e dar continuidade ao que Juca Ferreira iniciou lá em 2013. Precisamos dialogar o tempo todo, porque São Paulo tem gente de todos os cantos do mundo. Por que não organizar melhor um Carnaval que já é grandioso, para todos comungarem da mesma felicidade nesses dias de folia? Temos desafios, mas desafios valorosos. E o enfrentamento desses desafios tem que partir, primeiramente, do poder público a partir de muitas conversas com cidadãos e cidadãs que produzem cultura. No Bloco Ilú Obá De Min, trazemos muito forte a questão racial, a questão social e a questão da territorialização como princípios para que a nossa saída, na sexta-feira de Carnaval, seja para recontar as histórias de apagamento da cultura preta e também para reverenciar quem nos antecede. Ou seja, também é um cortejo que trata de contar a trajetória das nossas mulheres negras que fizeram e fazem história nesse país. Bora, meu povo! O Carnaval está próximo. Temos muito ainda que organizar, negociar e estruturar para fazer um bom combate e sermos vitoriosas nas nossas propostas para São Paulo e pelo bem comum. Vamos colocar o bloco na rua. Axé.

Elisabeth Belisário é percussionista, arte-educadora e cientista social. É também fundadora, presidenta, regente e diretora musical do Bloco Afro Ilú Obá De Min.

em pauta

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encontros

FREVO mulher


Seja na criação de objetos ou na identidade visual do Carnaval pernambucano, Joana Lira faz da sua arte uma celebração da cultura brasileira POR MARIA JÚLIA LLEDÓ

F

ilha de arquitetos, Joana Lira cresceu num ateliê a céu aberto. Cercada por expressões artísticas diversas, enveredou pela graduação em design no Recife (PE), mas sempre com a verve das manualidades – a exemplo da estamparia, da cerâmica e da serigrafia. Artista pernambucana que, como ela mesma define, trabalha com artes visuais e “design de afeto”, mudou-se para a capital paulista em 1999 e, desde então, pesquisa suportes diversos: do feito à mão ao meio digital em projetos que convidam a uma expansão dos sentidos.

Casa Criativa / Tok&Stok

Pássaros, mandacarus, mulheres, seres oníricos e outros personagens habitam xícaras, pratos, roupas de cama e de vestir. Sua arte subiu até mesmo a empena de um prédio no Parque Minhocão, Centro de São Paulo, com os dizeres: “Hoje não vão me ferir”. Joana também desenvolveu a identidade visual de uma das festas mais populares do Brasil, o Carnaval do Recife, de 2001 a 2011 [com um hiato em 2004],

Objetos criados por Joana Lira para a loja Tok&Stok refletem o repertório de referências da artista.

junto ao pai, o arquiteto Carlos Augusto Lira. Enquanto se prepara para cair na folia pernambucana, para a qual preparou, neste ano, o desenho da camiseta que vestirá os brincantes da centenária troça Cariri Olindense, a artista conta os tijolos de sua trajetória, narra seu envolvimento com o Carnaval e reflete sobre seu processo criativo e as fronteiras entre design e arte.

BERÇO CRIATIVO Venho de uma família em que todo mundo é arquiteto, mas eu achava que a arquitetura tinha uma certa rigidez. Já adolescente, minha mãe [Bete Paes] começou a trabalhar com design têxtil e estamparia. Na época, ela era casada com Petrônio Cunha, que é um grande designer de Olinda (PE) e fez muita coisa para a cidade, como tipografias, e para o Carnaval – identidade visual de bloco e até sinalização. Eu cresci dentro dessa cozinha criativa. Brinco que eu tenho um tripé de formação fora a faculdade de design: essa mãe muito curiosa, moderna e atenta ao mundo, à música, à moda, e também foliã; um pai arquiteto e colecionador de arte – atualmente, ele tem, em média, 4 mil peças, muitas de arte popular; e Petrônio,

que tinha esse ateliê dentro de casa. Então, eu cresci com essa diversidade de coisas acontecendo.

REPERTÓRIO CULTURAL O que me chamou atenção foi a criatividade [da família]. Entendi que eu gostaria de permear lugares, por isso meu início foi de experimentar, fosse o suporte do tecido – trabalhando um pouco com minha mãe – ou depois quando fiz um estágio no escritório de design Ouriço, bem na época efervescente do [movimento de contracultura] manguebeat. Nesse escritório, não existia ainda, exatamente, o digital, então era tudo feito à mão. Eu tinha 17 anos. Para coroar tudo isso, eu ainda caí numa turma de design muito diferente. Metade da turma realmente vinha de vestibular, e a outra metade vinha de cursos diversos: medicina, química, publicidade, jornalismo e arquitetura. Pessoas que traziam bagagens e olhares muito diferentes.

FOLIÃ DE CARTEIRINHA O Carnaval está tatuado em mim. E o meu Carnaval do coração é o de Olinda, onde minha mãe morou. 67 | e


encontros

Então, tinha essa coisa de ver a cidade se montando, as fitas, as luzes, os ensaios… Eu ficava tão nervosa que tinha febre na sexta-feira de Carnaval. Sou aquela pessoa que tem três fantasias por dia, vou comprando as coisas e invento na hora. Essa brincadeira faz parte da minha identidade. Para mim, o mais difícil foi participar dos bastidores desta festa. O primeiro Carnaval de Recife que fiz, eu já morava em São Paulo, era 2001, e eu fiz até 2011. Eu tinha um ateliê, onde mal cabia uma mesa, e fazia desde pintura em xicrinhas a peças de 30 metros de altura para o Carnaval. Houve um pensamento em conjunto, muita gente querendo fazer a coisa acontecer, uma equipe enorme de criação. Nunca fiz o Carnaval de Olinda, mas faço muita coisa para os blocos. Para 2024, fiz a identidade da camiseta do Cariri Olindense, uma troça que tem 103 anos. Agora, eu só entro na gandaia.

GOSTAR DE APRENDER Para mim era muito fácil desligar e ligar essa chave do suporte, e eu acho que a coisa que mais

me encanta – e estou com 47 anos – é que sempre estou olhando a minha trajetória a fim de entender para onde eu quero apontar e também o que é que me encantou nesse percurso. Eu acho que a coisa mais latente é aprender coisas. Eu adoro fazer projetos diferentes, acontecendo ao mesmo tempo, com clientes diversos, formatos, desafios. Eu brinco que adoro fazer o que eu nunca fiz. Mesmo quando tem aquela angústia, quando é aquele caroço de abacate que eu não consigo engolir, quando a gente tem que aprender, e esse “ter que aprender”, para mim, é muito sedutor, ele me movimenta muito.

NORTE CONDUTOR Não vejo o briefing como algo limitador. Na verdade, eu o vejo como parâmetro. Por exemplo, se eu tenho uma limitação, seja de tema, de suporte ou de técnica, eu vou mergulhar, aprender aquilo, aprender quais são as minhas limitações e onde que eu me amplio dentro daquele projeto. Aquilo vira, então, meu

MEU TRABALHO SÓ TEM FUNÇÃO SE ELE TRANSFORMA. PARA MIM, ESTA É A BASE: PERMEAR ESSE LUGAR DA FUNÇÃO COM A EMOÇÃO E A CULTURA.

cenário e eu não me sinto tolhida, porque em hora alguma quero entrar num trabalho impondo minha visão. Essa vaidade eu não tenho. Até gosto de trabalhar com parâmetros, com coisas com as quais eu preciso me adaptar. Isso faz com que eu tenha que tirar leite de pedra. Por isso, eu gosto dessas primeiras conversas de processo, de botar tudo na mesa, de entender quais são as limitações que a gente tem, o que é que precisa ser feito e o que desejam de mim.

UNIVERSO MANUAL Depois que eu me formei, fui muito para essa manualidade. Era tudo realmente feito à mão, ou seja, cada peça era única. Só que, como negócio, essa peça única começou a ficar inviável. E comecei a ver isso quando inventei de participar de uma feira de design. E eu não quero pegar uma porcelana pronta e fazer uma intervenção na superfície. Eu quero pensar o molde e fazer tudo. Porque sou essa pessoa: se é para mergulhar, vamos lá no fundo. Aí fui fazer a feira: vendi de norte a sul do país. O que aconteceu? Eu passei um ano fazendo a mesma coisa, que é o que eu mais detesto na vida. Quase enlouqueci. Foi aí que entendi que tinha que trabalhar com decalque. Então, eu tinha que ir para o digital para pensar o decalque. Para o Carnaval, também era tudo digital. É difícil quando você tem uma linguagem gráfica que você maturou, que as pessoas já reconhecem. Mas, eu estou a toda hora me cutucando. Foi aí que voltei para o meu caderno. E com o nanquim, porque o traço preto tem uma coisa mais definida, fica mais fácil de digitalizar e de


Tiago Lubambo

encontros

tentar passar essa desenvoltura da mão, que é completamente diferente, para o tablet.

ARTE APLICADA Essa coisa do produto, de vender muito… Eu tenho milhares de crises do tipo: mas por que a gente ainda precisa fazer coisas? Ao mesmo tempo, penso: como eu vou viver? Estou transformando alguma coisa? Eu tenho uma parceria criativa de 14 anos com a Tok & Stok. Criei pratinhos, fronha, pano de prato… E a gente está nesse mundo da rede social, onde recebo muita mensagem das pessoas contando a importância daquele prato que foi dado para a mãe e é de linhas antigas, que o prato quebrou, e me contam toda a história. Quando tem essa parte da emoção, essa parte que toca, eu penso: dá para continuar fazendo, produzindo e inventando produtos. Meu trabalho só tem função se ele transforma. Para mim, esta é a base: permear esse lugar da função com a emoção e a cultura.

Ouça, em formato de podcast, a conversa com a artista visual Joana Lira, que esteve presente na reunião virtual do Conselho Editorial da Revista E, no dia 13 de dezembro de 2023. A mediação do bate-papo é de Rogério Ianelli, gerente da Gerência de Artes Gráficas do Sesc São Paulo.

De 2001 a 2011 [exceto em 2004], Joana Lira foi responsável pela criação da identidade visual do Carnaval do Recife.

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A SORTE GRANDE POR JOCA REINERS TERRON ILUSTRAÇÕES AMANDA JUSTINIANO

Hoje vi uma senhora morrer na frente da lotérica do bairro. Ainda recebia massagem cardíaca dos paramédicos, mas não reagiu. Morreu sob a faixa dizendo que o último ganhador da Mega-Sena acumulada tirou a sorte grande naquela loja. Alguns fatos inquietantes que precederam esse. O sentido de unheimliche surge quando uma leve vibração no cotidiano faz com que o familiar vire não familiar. No célebre ensaio homônimo, Freud relata seu desconcerto ao ir parar na zona do baixo meretrício de uma cidade que visitava e não conseguir sair do lugar, por mais que tentasse. Em dias recentes, três amigos relataram sonhos que tiveram comigo. Num, eu promovia uma releitura do Uivo, de Allen Ginsberg, num posto de gasolina abandonado. Noutro, salvava o amigo sonhador da perseguição de uma gangue – parece que eu usava um abrigo esportivo de cores extravagantes. No terceiro, um amigo que leu meu romance O riso dos ratos faz mais de ano contou que ele e eu estávamos presos dentro do universo retratado no livro – ou seja, num pesadelo. Estar representado nos sonhos alheios e ouvir como aparecemos neles me parece um exemplo do que trata o inquietante.


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No caso, é nos vermos representados de modo não correspondente à nossa autoimagem. Exemplo: o amigo que sonhou comigo usando conjunto esportivo de cor berrante é que é conhecido por usar roupas assim, não eu. O inconsciente dele atribuiu suas próprias características ao me representar. Daí que, ao nos vermos fora de uma situação familiar, não nos reconhecemos. Equivale ao que sentimos ao depararmos com uma foto nossa feita por ângulo inusual: não nos reconhecemos nela, não aprovamos nossa própria imagem. Nos reconhecemos, porém distorcidos pela percepção alheia. Mais: isso também pode ocorrer na vida "real". Ontem fui ao lançamento de um amigo. No caixa, ao comprar o livro, o livreiro me contou que foi ao lançamento de A tristeza extraordinária do leopardo-das-neves, meu livro de 2013. Na fila do autógrafo, ele me explicou que seu nome se grafava com M ao final e não com N, como seria correto. Na ocasião eu lhe disse que ele nunca deveria culpar os pais dele, e sim o escrivão. M. me contou que desde então, e lá se vão dez anos, ele adotou a frase como sua explicação de praxe para a peculiaridade ortográfica do nome.

uma existência paralela à nossa própria, que continuam a viver à nossa revelia – e contra nossa vontade. De fato, são lembranças desbotadas de alguém que viveu apenas por instantes em nossas vidas e desapareceu. No entanto, quando somos o "protagonista" dessa existência colateral, já não nos reconhecemos mais nela. É como surgir após a morte na lembrança de quem conviveu conosco, é unheimliche. Com isso tudo, com os sonhos relatados pelos amigos e essas histórias nas quais eu era personagem – ambas ouvidas com intervalo de quinze minutos entre uma e outra –, passei a me sentir aflito, talvez o universo estivesse me enviando mensagens que eu não sabia decifrar. Vale dizer que ontem também, ao me sentar à espera do início do lançamento, olhei para a cadeira ao lado e vi um cara se erguer e o reconheci: era um amigo próximo que eu não via há mais de vinte anos. Seus olhos umedeceram quando o cumprimentei. Bem, isso foi mais reconfortante do que inquietante. Assim, por anos – o tempo em que não nos vemos – assombrei a lembrança dele, e ele a minha. Tudo somado – sonhos, lembranças – culminou na morte da velha senhora diante da lotérica. Tais estranhamentos equivalem ao memento mori, "lembre-se que você também vai morrer", a velha saudação latina. Como nas fotografias, nos sonhos e nas lembranças alheias já estamos mortos. Como a velha senhora caída na calçada em frente à lotérica, ainda com a bengala na mão, a cara cinzenta, a faixa dizendo "o último ganhador da Mega-Sena acumulada tirou a sorte grande aqui".

Depois do lançamento fui beber com amigos do autor. Uma garota desconhecida ficava olhando para mim com expressão curiosa. Não era flerte. Logo depois ela me contou que certa vez, uns dez anos atrás, estava num restaurante para um primeiro encontro, "first date", como ela disse. Então um grupo de homens mais velhos entrou no restaurante, e ao passarem por ela, todos sem exceção a cumprimentaram pelo nome. O candidato a namorado estranhou, e ela não soube explicar o fenômeno. Foi quando me ergui do fundo do restaurante e cumprimentei os recém-chegados com um sonoro FESTA DE FIM DE ANO DA FIRMA. Só então ela percebeu quem eram os rapazes, todos garçons da Mercearia São Pedro, bar que ambos frequentávamos sem nos conhecermos (ela não os reconhecera à paisana). O namoro não virou, mas ao menos ela pôde explicar a situação, e me agradeceu por isso – dez anos depois.

Joca Reiners Terron é um escritor mato-grossense que publicou, entre outros livros, Do fundo do poço se vê a lua (2010) e Noite dentro da noite (2017), ambos pela Companhia das Letras, e A morte e o meteoro (2019), O riso dos ratos (2021) e Onde pastam os minotauros (2023), os três pela editora Todavia.

Surgir nas histórias de desconhecidos também desperta o inquietante do unheimliche, pois nessas histórias – que não lembramos, que têm importância passageira em nossa consciência e as acabamos esquecendo, mas são centrais na memória dessas "testemunhas" – somos como fantasmas, como representações fantasmagóricas que têm

Amanda Justiniano é designer gráfica e ilustradora e colabora visualmente há mais de vinte anos com projetos diversos nas áreas cultural e ambiental. No campo editorial, já ilustrou livros de poesia e contos e atualmente se dedica à produção autoral, especialmente a escrita e ilustração de livros infantis.

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reencantar

O MUNDO


depoimento

Ao completar duas décadas de carreira, cantora Fabiana Cozza reflete sobre a poesia ancestral do Carnaval e compartilha memórias afetivas da sua relação com o samba POR RACHEL SCIRÉ

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m 2024, o álbum de estreia de Fabiana Cozza, O Samba É Meu Dom (2004), completa duas décadas de lançamento. Na época, a cantora tinha 28 anos, mas a sua intimidade com o universo musical já vinha de muito antes, misturada a memórias familiares, entre as quais a convivência com o pai, Oswaldo dos Santos, que foi intérprete da escola de samba Camisa Verde e Branco, uma das agremiações mais tradicionais do Carnaval paulistano.

José de Holanda

Fabiana ingressou no estudo formal de música aos 19, na Universidade Livre de Música Tom Jobim, enquanto ainda cursava jornalismo na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Cinco anos depois, deixou a profissão de jornalista para se dedicar à carreira

Uma das mais importantes cantoras da atualidade, a paulistana Fabiana Cozza também se dedica à pesquisa da relação entre a voz e o tambor na música afro-brasileira e afrodiaspórica.

de intérprete, traçando uma trajetória marcada pelo estudo permanente. Tornou-se mestre em fonoaudiologia, em 2019, também pela PUC, e atualmente é doutoranda no Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), onde pesquisa a relação entre a voz e o tambor na música afro-brasileira e afrodiaspórica. O repertório cultural de Fabiana também inclui o teatro e a dança, bagagem perceptível cada vez que a artista sobe ao palco. Seu rigor técnico e a consistência dos seus trabalhos renderam-lhe prêmios e reconhecimentos – o mais recente foi ter sido presenteada com um conjunto de composições inéditas do sambista, escritor e intelectual Nei Lopes, que deram origem ao álbum Urucungo (2023), o nono da carreira de Fabiana. Neste Depoimento, a cantora paulistana compartilha reflexões sobre a relação afetiva com o samba, as histórias familiares que fundamentaram sua presença na música e no Carnaval, além do papel educativo da arte.

samba Eu ouço samba o ano inteiro, toda semana, quase todo dia. Primeiro, porque eu gosto muito, não tem outra justificativa, se não o meu prazer. Depois, quando era criança, o samba rapidamente se alojou nesse lugar da alegria. E não vou mentir: era a música que embalava as faxinas lá em casa, aos finais de semana. A gente colocava os discos que meu pai comprava para ouvir e subia no pano de chão para secar os lugares. É uma lembrança lúdica que tenho. O samba é uma forma de estar com as pessoas. Na minha casa, meu pai escolhia álbuns para tocar no almoço. Foi onde conheci Paulinho da Viola, Cartola [1908-1980], Nelson Cavaquinho [1911-1986], Dona Ivone Lara [1921-2018], Alcione, Beth Carvalho [1946-2019], Almir Guineto [1946-2017]... O samba inaugura uma maneira de me relacionar com as pessoas afetivamente. Traz esse lugar da minha infância, e é um espaço de muito acolhimento, por isso, tão especial. Se estou triste, ouço samba, se estou alegre, ouço samba, se estou distraída, se estou preocupada, vou ouvir samba e aquela preocupação melhora... Eu diria que é o meu lenitivo, mesmo. 75 | e


FAÇO MÚSICA PORQUE AINDA ACREDITO, AINDA TENHO ESPERANÇA NA VIDA, NAS PESSOAS, NÃO TENHO DÚVIDA DA MINHA ANCESTRALIDADE, E PORQUE, BASICAMENTE, EU ME EMOCIONO carnaval Quando eu era criancinha, com seis, sete anos, frequentava as matinês no Palmeiras. Não à toa, passei a amar tanto as marchinhas. Tive uma infância cheia de música, e no período do Carnaval, a música sempre foi muito presente. Não consigo entender as pessoas que não gostam de Carnaval. Não tem coisa mais gostosa do que cantar um refrão em que você tira o microfone, as pessoas cantam e a sua voz se mistura com aquela multidão de gente celebrando a vida, deixando um pouco as angústias de lado. Isso é uma potência revolucionária.

camisa Tenho uma lembrança muito bonita do período do Carnaval, sobretudo quando meu pai ainda desfilava como intérprete na Camisa Verde e Branco. Era um ritual que acontecia perto do desfile, porque o terno que o meu pai utilizaria na avenida era passado pela minha avó, a mãe dele. A única pessoa que podia tocar no terno do meu pai era a minha avó. O terno ficava pendurado no quarto dela e ninguém podia chegar perto. Depois que saía das mãos da minha avó, estava imantado, só o meu pai pegava e se vestia. Aquele terno já era um signo. Claro, ele viraria um

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terno encantado quando vestisse o meu pai, e o meu pai se encantaria de Verde e Branco para ir à avenida.

memória Muniz Sodré diz que o saber nas artes negras é o que se incorpora. E se incorpora através da memória – a gente vai ganhando memória das coisas. A memória vivida é aquela que não sai do corpo, porque ela é encarnada. Não se faz samba sozinho e não é possível se emocionar sem o outro. É a alteridade de si. Esse é o espírito da comunicação, obviamente, mas uma comunicação que acontece de forma horizontalizada, e não de um lugar de mando, em que uns fazem e os outros escutam. Isso não significa que não exista hierarquia. Há hierarquia porque os mais velhos são os guardiões do conhecimento, são os que vieram antes, experimentaram, descartaram, aprenderam, refizeram, reelaboraram. Acho que o samba está nesse lugar de conhecimento coletivo, que vai sendo moldado conjuntamente.

complexidade O samba, como tantas outras expressividades artísticas negras, é de uma complexidade, de uma beleza, de uma riqueza e nobreza

que eu nem consigo descrever. Tenho a maior dificuldade em escrever sobre essas coisas sem ter paixão, sem ser poética, porque o lugar do samba em si também é um lugar poético. É um lugar absolutamente político: os negros formam as escolas de samba porque as escolas formais não lhes cabiam, ali não estavam falando da gente, era muito opressor. Porque a gente entende pelo corpo, fala dançando, e isso de dançar não é um jeito, mas uma maneira de estar na vida e entender que a vida é movimento. E aí está o fundamento: se a vida é movimento, ela é natureza. Por que eu tenho que estar dentro de uma sala de aula fechada e entender ciência, sem olhar a ciência da folha, sem entender a ciência do galho?

legado Sou uma artista que encara a arte como um lugar pedagógico. Isso é algo que me orienta em meu trabalho artístico e tem ficado muito evidente nos últimos anos. Quando dou aula, é de uma forma mais poética, porque é o que eu sou, é como eu fui formada. As pessoas só escutam se for afetuoso. Quando decido fazer um disco, é de verdade, então chamo gente que também gosta dessa


Kazuo Kajihara

depoimento

brincadeira séria que é fazer disco. Faço música porque ainda acredito, ainda tenho esperança na vida, nas pessoas, não tenho dúvida da minha ancestralidade, e porque, basicamente, eu me emociono. No dia em que eu deixar de me emocionar, vou deixar de cantar, porque não quero ser hipócrita. E isso funciona quase como uma flecha, toca as pessoas também. Todo mundo vai se encantando. A arte também é um lugar afetivo e precisa ser, porque permite sonhar.

ancestralidade Eu me vejo nesse fluxo que tem herança, tem fundamento, que

sabe de onde vem, que honra os presentes que me deixaram. Tenho muito orgulho de ter nascido na família em que nasci, de ter tido os avôs e as avós que tive, de saber de onde vieram aquelas pessoas, da luta que foi para dar condição aos filhos que nasceram depois e, consequentemente, da luta dos meus pais. Tenho muito orgulho de ter recebido essa herança e entendido que aquilo que me ensinaram precisava passar adiante, não poderia morrer comigo. Os saberes e os conhecimentos, sobretudo porque são bens imateriais. Eles se transformam, mas não se descartam. E os

elementos constitutivos, as sementes, o grão está ali, está em mim. Como bem diz Paulinho da Viola, eu sou uma mulher do meu tempo, então eu caminho com essas matrizes, e faço delas a motricidade, o movimento, para estar neste tempo. Honrar a minha ancestralidade é também honrar quem eu sou.

Assista ao vídeo com trechos do Depoimento da cantora Fabiana Cozza.

Apresentação do disco Dos Santos, da cantora e compositora Fabiana Cozza, transmitido ao vivo em 2021 do Teatro Antunes Filho, no Sesc Vila Mariana, pelo projeto #EmCasaComSesc.

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ALMANAQUE Carnavalizar De 3 a 18 de fevereiro, as ruas da capital paulista se enchem de animação, fantasias criativas e uma multidão de foliões embalados por baterias, cortejos, trios elétricos e bandas POR LUNA D’ALAMA

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e sem cobrança de taxas ou abadás, o Carnaval de rua de São Paulo espera reunir, segundo a prefeitura, cerca de 15 milhões de pessoas nos oito dias de festa. A seguir, confira a indicação de cinco blocos que farão você se animar a vestir uma fantasia, fazer uma maquiagem colorida e ir para a rua. Caia na folia!

A criançada se diverte seguindo o Bloco das Emílias e Viscondes, que sai no sábado de Carnaval (10/2), na Vila Buarque, região central da cidade.

Leon Rodrigues

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repare os paetês, confetes e serpentinas, que o Carnaval 2024 chegou! Ao longo de três finais de semana, entre os dias 3 e 18 de fevereiro, a cidade de São Paulo abre espaço para a passagem de 579 blocos de rua, que farão 637 desfiles oficiais em todas as regiões da capital. Gratuito, descentralizado


NO COMPASSO DA LITERATURA

Bruna Massarelli / Vulvafilms

Criado em 2006, em homenagem aos 70 anos da Biblioteca Infantojuvenil Monteiro Lobato, o Bloco das Emílias e Viscondes tem como cenário o Sítio do Picapau Amarelo e todo o universo ficcional do escritor de Taubaté (SP), nascido em 1882 e falecido em 1948. O público é majoritariamente infantil e familiar, e as crianças se fantasiam de personagens como Emília, Visconde de Sabugosa, Marquês de Rabicó e Cuca, entre outros. Segundo os organizadores, a missão do bloco é resgatar as tradições dos festejos de rua e celebrar a literatura e as marchinhas carnavalescas, tendo os pequenos como protagonistas. Este ano, o Emílias e Viscondes homenageia a cultura popular com o tema Viva o bumba meu boi! O público pode participar dos ensaios da bateria nos dias 1º, 6, 7, 8 e 9/2, das 15h às 17h, na sede da biblioteca (Rua General Jardim, 485).

Bloco das Emílias e Viscondes Dia 10/2, sábado, às 13h. Concentração a partir do meio-dia e dispersão até as 17h, ambas na rua Major Sertório (paralela à rua General Jardim), Vila Buarque, São Paulo (SP). Desfile pelas ruas Dr. Cesário Mota Junior, General Jardim e Dr. Vila Nova.

Estreante, o Bloco Filhos do Zé é composto por artistas do Teatro Oficina e pelas puxadoras Raquel Tobias e Céllia Nascimento (foto).

NASCE UM BLOCO Um dos blocos estreantes de 2024 é o Filhos do Zé, em homenagem a José Celso Martinez Corrêa (1937-2023), um dos maiores nomes do teatro brasileiro, que faleceu em julho de 2023, aos 86 anos. Fundado e composto por artistas e músicos do Teatro Oficina, o grupo quer manter vivo o legado de Zé Celso, que era apaixonado pela folia de fevereiro e sempre levava essa festa para suas peças, batizadas por ele como “Óperas de Carnaval”. O bloco conta com uma banda de oito integrantes e uma bateria de mais de 30 pessoas, além das puxadoras Beatriz Id, Céllia Nascimento e Raquel Tobias. Filhos de Zé vai desfilar pelas

ruas do Bixiga, nas proximidades de onde fica a sede do Oficina, e serão tocadas músicas que fizeram parte de espetáculos da companhia, além de canções que Zé Celso gostava de entoar dentro e fora de cena.

Bloco Filhos do Zé Dia 18/2, domingo, às 14h. Concentração a partir das 13h, e dispersão às 17h, ambas na Praça General Craveiro Lopes (ao lado do Teatro Oficina), Bela Vista, São Paulo (SP). Desfile inclui as ruas Abolição, Humaitá, Conselheiro Ramalho, Treze de Maio e Santo Antônio.


FANFARRA EM FARRAPOS Um dos mais antigos blocos da capital paulista, fundado em 1947 por um grupo de amigos, o Esfarrapado sai sempre às segundas de Carnaval pelas ruas do Bixiga, na região central. Tem um perfil familiar e diverso, atraindo crianças, adultos e idosos. Desde sua origem, o bloco tem como propósito o improviso criativo das fantasias, sejam feitas com roupas velhas, retalhos ou farrapos – daí o nome. Os pioneiros se vestiam de mulheres, batiam latas, cantavam e ganhavam comida e bebida dos vizinhos. Algumas tradições desse grupo foram mantidas, como a banda de fanfarra, que toca na concentração e abre os festejos, e as antigas marchinhas, cantadas durante todo o percurso.

O músico Tom Zé é o homenageado do Bloco Abacaxi de Irará, no bairro de Perdizes, embalado por famosas composições do artista em versões carnavalescas.

SABOR DE ABACAXI Desde 2020, o Bloco Abacaxi de Irará toma as ruas de Perdizes, na zona Oeste da capital, para homenagear um ícone do tropicalismo: o cantor e compositor Tom Zé, baiano de Irará que, no fim dos anos 1960, adotou São Paulo como sua casa e musa inspiradora. Com arranjos criativos e inusitados, os integrantes fazem versões carnavalescas de composições clássicas do artista, como “Angélica”, “Augusta e Consolação”, “Todos os olhos”, “Frevo”, “Xiquexique” e “Vai (menina amanhã de manhã)”, misturando ritmos brasileiros, como marchinha, samba, axé, baião, xote, coco, congada, ciranda, frevo e funk.

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Formado por músicos profissionais e amadores, o Abacaxi de Irará é composto por bateria, harmonia, cinco cantores e um potente time de sopros. Também conta com um corpo de baile e artistas com pernas de pau que animam os fãs-foliões.

Bloco Abacaxi de Irará Dia 17/2, sábado, às 10h. Concentração a partir das 9h, e dispersão até as 15h, ambas na rua Minerva, 188 (Bar do Chiquinho), Perdizes, São Paulo (SP). Trajeto passa pelas ruas Itapicuru, Ministro Godói e Dr. Homem de Mello.

Bloco Esfarrapado Dia 12/2, segunda, às 14h. Concentração a partir das 10h, na rua Treze de Maio, 518, Bela Vista, São Paulo (SP). Cortejo passa pelas ruas Conselheiro Carrão, Almirante Marques de Leão, Una, Rocha, Praça 14 Bis, Manuel Dutra, Maria José, Av. Brigadeiro Luís Antônio, Major Diogo e Santo Antônio. Dispersão até as 20h na rua Conselheiro Carrão.

Inês Bonduki

ALMANAQUE


Marcos Bacon

PARA SEMPRE PAGU Nascido em 2016, com a missão de valorizar a equidade de gênero e o respeito à liberdade individual das mulheres, o Pagu se tornou um dos mais expressivos blocos de rua do Carnaval de São Paulo. Fundado por Thereza Menezes e Mariana Bastos seu nome faz alusão ao apelido da escritora e ativista Patrícia Galvão (19101962). A bateria Mestras de Naipes

é 100% feminina, formada por 130 integrantes, e tem regência de Maria Carolina Simões. Além disso, Pagu conta com uma banda predominantemente de mulheres, com guitarra, baixo, teclado e sintetizadores. Na voz, as intérpretes Bárbara Eugênia, Julia Valiengo, Soledad e Raquel Tobias entoam clássicos da música popular brasileira e internacional.

Bloco Pagu Dia 13/2, terça, às 12h. Concentração a partir das 11h, na Av. Ipiranga, 719, e dispersão até as 16h, na Praça Ramos de Azevedo, 209, República, São Paulo (SP). Percurso atravessa a Praça da República, Av. São Luís, rua da Consolação e rua Coronel Xavier de Toledo.

Na República, o Bloco Pagu sai na terça-feira de Carnaval (13/2), com uma banda predominantemente de mulheres e a bateria Mestras de Naipes, 100% feminina, sob regência de Maria Carolina Simões.

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P.S.

Pelas crianças, coragem!

Até os meus quase 30 anos, eu não cogitava ser mãe. Para mim, era uma questão de coragem. Colocar uma criança no mundo? Naquela época, a crise climática já me causava certa ansiedade. Meu marido falava em morar na praia, eu dizia que o mar ia tomar o continente. Então, vamos para o interior? A gente vai pegar fogo lá! Quando criança, eu já sabia que seria bióloga. Me encantava com as pequenas folhas, as grandes árvores, os bichinhos da terra, do mar e do ar. Aos 19, iniciei a graduação e foi aí que os aspectos sociais das ciências biológicas entraram na minha vida. Além dos encantamentos, chegou forte o inconformismo. Acompanho as discussões climáticas faz algum tempo. Os cientistas alertam, há mais de três décadas, que o clima está mudando por conta das atividades humanas, principalmente pela queima de combustíveis fósseis. Vemos acontecer uma COP [Conferência das Partes] atrás da outra, e ouvimos falar sobre acordos e tratados internacionais, mas ainda há um grande abismo entre discurso e prática. O Brasil se posicionou para enfrentar as mudanças climáticas, mas abriu um megaleilão para a exploração de petróleo na Amazônia, logo após a última COP em Dubai [nos Emirados Árabes], no ano passado. Em Piracicaba (SP), cidade onde moro há cinco anos, árvores são derrubadas para dar lugar a estacionamentos, enquanto a proposta da Política Municipal de Mudanças Climáticas permanece engavetada. Não dá para entender.

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Betânia é piracicabana. Eu nasci em Santo André (SP) e meu esposo é natural de Paulo Afonso (BA). Mas, não há de ter um lugar neste planeta que esteja isento aos riscos associados às alterações climáticas. Aquilo que anos atrás parecia tão distante, hoje sentimos na pele, literalmente. Ondas de calor, chuvas extremas, períodos de seca mais longos e outros impactos que afetam nossa saúde e existência. Eu costumava olhar para a crise climática como um problema de “meio ambiente”. Mas o fato é que esse questão está para além da atuação dos ambientalistas, exigindo respostas dos diversos setores da sociedade. Uma transição energética é mais que urgente e as cidades precisam se adaptar aos danos que já vivenciam. Penso nisso como uma oportunidade para inventarmos novos modos de estar no planeta. Durante o mestrado, estudei como os serviços ecossistêmicos podem ser usados junto à lente climática em instrumentos de gestão pública. Como educadora, vejo que a educação ambiental é um braço importante diante da emergência climática, mas a incidência política do tema é fundamental e necessária em todas as esferas governamentais. Precisamos de cidades resilientes e de um legislativo e executivo comprometidos com a causa em nível local. Como cidadãos, aqui vale colocar nossa energia! Ter uma filha me parecia uma questão de coragem. Betânia, na graça da sua existência, tem me encorajado a continuar lutando, mantendo os pés no chão e a fé na humanidade que, mesmo diante de tantos desafios, segue desenhando sonhos para o bem viver de todas as formas de vida.

Luiza de Oliveira Silva é bióloga, mestre em clima e ambiente e mãe da Betânia. Atua como agente de educação ambiental no Sesc Piracicaba.

Nortearia

As pessoas, às vezes, me perguntam se estou cansada. Ah, como eu queria dormir por horas seguidas! Betânia está com um ano e vira e mexe vem uma virose, febre alta, diarreia, catarro, tosse, tosse e tosse. Com o calor excessivo, tudo fica ainda mais desafiador. Bolinhas pelo corpo, falta de apetite e medo da desidratação. Mãe de primeira viagem, vou aprendendo a lidar. Peito, colo, paciência e muito amor.


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Roberta Dabdab (foto); Nortearia (colagem)

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