Revista E - maio 2025

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Revista E | maio de 2025 nº 11 | ano 31

Negritude

A importância de celebrar a existência negra

Vida no palco Os caminhos da arte de Matheus Nachtergaele

Instrumentistas

A crescente presença das mulheres na música

Escrita poética Marina Colasanti expandiu o sentido das palavras

Foto: Bruna Dasmasceno

ARTES VISUAIS E TECNOLOGIAS, CINEMA, CIRCO, DANÇA, LITERATURA, MÚSICA E TEATRO

Espetáculos, shows e oficinas transformam praças e parques em palcos abertos e espaços de convivência.

Confira a programação completa e descubra quando o Circuito Sesc de Artes estará perto de você!

SINDICATOS DO COMÉRCIO DE BENS, SERVIÇOS E TURISMO

CAPA: Glicéria Tupinambá, liderança da comunidade Serra do Padeiro (BA), veste Manto Tupinambá, criado por ela. A peça faz parte da exposição Assojaba Tupinambá Umbeumbesàwa: o manto tupinambá conta e canta a história, em cartaz no Sesc Rio Preto, até 26/10, com curadoria de Célia Tupinambá, Juliana Gontijo, Augustin de Tugny, Benjamin Seroussi e Juliana Caffé. Nas histórias e tradições dos Tupinambá, o manto carrega a presença dos Encantados, entidades espirituais que transitam entre o mundo visível e o invisível. Mais do que uma vestimenta, é um elo espiritual que conecta esses povos aos seus antepassados e à força da natureza.

Crédito: Augusto Santos (Method_av)

| Fundação Bienal de São Paulo

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Legendas Acessibilidade

Em estabelecimentos de uso coletivo é assegurado o acompanhamento de cão-guia. As unidades do Sesc estão preparadas para receber todos os públicos.

Os trabalhadores e o sentido de comunidade

O mês de maio é marcado pelo Dia do Trabalhador e nos traz a oportunidade de refletir sobre a importância da força de trabalhadores e trabalhadoras para a vida produtiva do país, atuando em tantas diferentes frentes. No setor de comércio e serviços, esses profissionais são responsáveis por mobilizar a economia com presença protagonista, representando cerca de 70% do PIB (Produto Interno Bruto) nacional. Contribuem, dessa maneira, para construir um Brasil mais próspero, atuante e participativo.

São esses trabalhadores, bem como seus familiares, o público prioritário do Sesc – Serviço Social do Comércio, criado em 1946 por iniciativa do empresariado do setor, com foco na promoção do bem-estar. A entidade atua há oito décadas na qualificação do tempo de lazer e na ampliação do acesso aos bens culturais, por meio de ações programáticas realizadas no âmbito da educação não formal e voltadas à celebração da diversidade, à apreciação artística e à multiplicação dos conhecimentos.

Em São Paulo, mantém 43 centros culturais e esportivos, com uma vasta programação nos campos do lazer, da cultura, dos esportes, do turismo social, da saúde e alimentação. Participa, assim, ativamente da vida cotidiana dos trabalhadores, reafirmando e ressignificando, permanentemente, o sentido de comunidade.

Celebrar a existência

Uma característica singular da identidade brasileira é a sua pluralidade. Somos uma nação construída a partir das contribuições diversas que se somaram ao longo dos séculos. É essa diversidade que nos enriquece enquanto povo e marca nossa história, fazendo dos encontros uma constância.

Esse choque permanente com o diferente também evidencia tensionamentos e gera espaços de disputa. Ao revisitar nosso passado, hoje reconhecemos as violências e dominações presentes no processo de ocupação deste vasto território que chamamos de Brasil, de modo particular em relação à população afro-brasileira. Percebemos, ainda, que pelo caminho da resiliência, da resistência, do gingado e da inventividade, aflorou-se uma cultura genuinamente brasileira, brincante, múltipla e complexa em sua essência.

Para além do fundamental reconhecimento dessas lutas, o que nos auxilia numa melhor compreensão daqueles que somos, é necessário celebrar as infindáveis contribuições resultantes dessa presença negra vivaz e protagonista, que promove novos sentidos ao que fazemos, produzimos, criamos e constituímos. É tempo de festejar essa existência, como mostra reportagem desta edição da Revista E, refletindo sobre o tema e convidando a sermos parte dessa celebração. Boa leitura!

Luiz Deoclecio Massaro Galina

Diretor do Sesc São Paulo

SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO – SESC

Administração Regional no Estado de São Paulo Av. Álvaro Ramos, 991 – Belenzinho

CONSELHO REGIONAL DO SESC EM SÃO PAULO

Presidente: Abram Abe Szajman

Diretor do Departamento Regional: Luiz Deoclecio Massaro Galina

Efetivos: Arnaldo Odlevati Junior, Benedito Toso de Arruda, Dan Guinsburg, Jair Francisco Mafra, José de Sousa Lima, José Maria de Faria, José Roberto Pena, Manuel Henrique Farias Ramos, Marcus Alves de Mello, Milton Zamora, Paulo Cesar Garcia Lopes, Paulo João de Oliveira Alonso, Paulo Roberto Gullo, Rafik Hussein Saab, Reinaldo Pedro Correa, Rosana Aparecida da Silva, Valterli Martinez, Vanderlei Barbosa dos Santos.

Suplentes: Aguinaldo Rodrigues da Silva, Antonio Cozzi Junior, Antonio Di Girolamo, Antônio Fojo Costa, Antonio Geraldo Giannini, Célio Simões Cerri, Cláudio Barnabé Cajado, Costabile Matarazzo Junior, Edison Severo Maltoni, Omar Abdul Assaf, Sérgio Vanderlei da Silva, Vilter Croqui Marcondes, Vitor Fernandes, William Pedro Luz.

REPRESENTANTES JUNTO AO CONSELHO NACIONAL

Efetivos: Abram Abe Szajman, Ivo Dall’Acqua Junior, Rubens Torres Medrano Suplentes: Álvaro Luiz Bruzadin Furtado, Marcelo Braga

CONSELHO EDITORIAL | Revista E

Adauto Fernando Perin, Alessandra Gonçalves da Silva, Ana Claudia Barbosa Barros, Ana Paula Neves Cabral de Vasconcellos, Andrea de Oliveira Rodrigues, Andreia Pereira Lima, Andressa Kelly Ribeiro Ivo, Bruna Zarnoviec Daniel, Camile Lopes Magalhães, Carolina Vidal Ferreira, Catia Aparecida da Rocha, Christi Lafalce, Cinthya de Rezende Martins, Dalmir Ribeiro Lima, Davi dos Santos Ferreira, Debora Cravo Domingues Freitas, Diego Polezel Zebele, Doracy Feliciano Teixeira, Dulci da Conceição Lima, Edmar Rodrigues de Fátima Júnior, Edson da Silva Horacio, Elmo Sellitti Rangel, Fabia Lopez Uccelli dos Santos, Fabiano Maranhão, Felipe Veiga do Nascimento, Fernanda Porta Nova Ferreira da Silva, Filipe Ferreira Gomes Luna, Flavia Dziersk de Lima Silva, Flavia Teixeira S Coelho, Flavio Aquistapace Martins, Francine Sayuri Segawa, Francisca Meyre Martins Vitorino, Gabriella Pereira Rocha, Geraldo Soares Ramos Junior, Giulia Maria de Campos Manocchi, Glauco Gotardi, Gleiceane Conceição Nascimento, Gustavo Nogueira de Paula, Ivy Granata Delalibera, Jaderson Johnattan Porto, Jailton Nascimento Carvalho, Janete Bergonci, Johnny Walter Queiroz Abila, José Gonçalves da Silva Junior, Jucimara Serra, Juliana Neves dos Santos, Luiz Eduardo Benini, Luiz Eduardo Rodrigues Coelho, Luiz Fernando Figueiredo, Luiza Jeaninne da Silva Ndongala, Marcelo Baradel, Marcos Villas Boas, Maria Elaine Andreoti, Mariana Lins Prado, Mariane Cristina dos Santos, Marina Borges Barroso, Marina Reis, Mauro Lucas, Michele Cristiane Celestino, Monique Mendonça dos Santos, Natalia da Silva Martins, Patrícia Maciel da Silva, Renata Barros da Silva, Rodrigo Eloi da Silva, Roseane Silveira de Souza, Sandra Ribeiro Alves, Stephany Tiveron Guerra, Talita Ferreira dos Santos, Tamara Demuner, Thais Ferreira Rodrigues, Thais Heinisch de Carvalho E Silva, Thamires Magalhães Motta, Thiago Fabril de Oliveira, William Galvão de Souza, Wilton Queiroz Marcos.

Coordenação-Geral: Ricardo Gentil

Coordenação-Executiva: Ligia Moreli e Silvio Basilio

Editora-Executiva: Adriana Reis Paulics • Edição de Arte e Diagramação: Estúdio Thema (Marcio Freitas e Thea Severino) • Edição de Textos: Adriana Reis Paulics, Marcel Verrumo, Maria Júlia Lledó e Rachel Sciré • Revisão de Textos: Pedro P. Silva • Edição de Fotografia: Nilton Fukuda • Repórteres: Lígia Scalise, Luciana Oncken, Luna D'Alama, Marcel Verrumo, Maria Júlia Lledó e Rachel Sciré • Coordenação

Editorial Revista E: Adriana Reis Paulics, Marina Pereira, Marcel Verrumo e Rachel Sciré • Propaganda: Edmar Júnior, Jefferson Santanielo, Julia Parpulov e Vitor Penteado • Apoio Administrativo: Juliana Neves dos Santos e Talita Ferreira dos Santos • Arte de Anúncios: Alexandre do Amaral, Gabriela Batista Borsoi, Humberto Mota, Ian Herman, Leandro Henrique da Silva Vicente e Wendell Vieira • Supervisão Gráfica: Rogerio Ianelli • Criação Digital Revista E: Rodrigo Losano • Circulação e Distribuição: Vanessa Zago

Jornalista responsável: Adriana Reis Paulics (MTB 37.488)

A Revista E é uma publicação do Sesc São Paulo, sob coordenação da Superintendência de Comunicação Social

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Entre os destaques de maio, a Semana Mundial do Brincar realiza diversas atividades dedicadas às infâncias nas unidades do Sesc São Paulo

Para o sociólogo guineense Miguel de Barros, Brasil e Guiné-Bissau aproximam-se em trocas culturais e compartilham preocupação com o cenário de emergência climática

A importância de celebrar a negritude e as contribuições da população afro-brasileira na cultura, nas ciências, na política e em outras áreas do saber

Artesã das palavras, Marina Colasanti fez da escrita, da ilustração e de outras esferas da vida um bordado de enredos e paisagens capazes de expandir a realidade

Compositor de destinos, o tempo ganha novos sentidos na exposição PAUSA, da artista Stela Barbieri, que convida o público a desacelerar

Cada vez mais presentes nos palcos, orquestras e rodas de música, mulheres mostram que talento, técnica e instrumento não têm gênero

dossiê entrevista negritude bio gráfica

Fukuda (Entrevista); Natalia Fregoso/FIL Guadalajara (Bio); Nilton Fukuda (Gráfica)

Artigos de Adriana Salay e Patty Durães levam à mesa reflexões sobre Culturas Alimentares, do conceito à prática

Um dos fundadores do Coletivo Negro, o ator, diretor e dramaturgo Jé Oliveira fala sobre a influência do rap em sua trajetória e seu posicionamento no teatro contemporâneo

André de Leones (conto) e Thalles Oliveira (ilustrações)

em pauta encontros inéditos

Ator e diretor, Matheus Nachtergaele conta como a perda da mãe e a influência dos avós na infância foram decisivas na sua carreira

Conheça cinco instituições culturais da cidade de São Paulo que incluíram o cinema na programação de exibição, cursos e debates para todos os públicos

Fabiano Maranhão

Você sabe o que o Sistema Comércio faz por você?

Participe da Semana S do Comércio de Bens, Serviços e Turismo, o evento que conecta empresários, trabalhadores e suas famílias. Nos dias 16 e 17 de maio, no Sesc Pompeia, descubra oportunidades, participe de atividades exclusivas e fortaleça sua conexão com o setor.

Uma jornada de atividades está prestes a começar.

Sesc Pompeia

Rua Clélia, 93 Pompeia - São Paulo

16.05 Dia para empresários

17.05 Dia para trabalhadores e seus familiares

Montagem inédita no Brasil, dirigida por Munir Kanaan e inspirada no livro homônimo de Anthony McCarten, o espetáculo Dois Papas esteve em cartaz nas unidades do Sesc Guarulhos e Santo Amaro, nos meses de março e abril. No palco, o encontro ficcional entre o Papa Bento XVI (Zécarlos Machado), prestes a renunciar ao papado, com o cardeal Jorge Bergoglio (Celso Frateschi), futuro Papa Francisco. O elenco, composto ainda por Carol Godoy e Eliana Guttman, interpreta a história em meio a ambientações sacras e videomappings documentais.

A campanha anual completa 30 anos promovendo a prática de atividades físicas para uma vida saudável.

Durante todo o dia acontecem aulas especiais, vivências, torneios e apresentações esportivas gratuitas em todas as unidades do Sesc São Paulo e em organizações parceiras.

Saiba mais em sescsp.org.br/diadodesafio

Oficinas, vivências, apresentações, entre outras atividades voltadas às crianças fazem parte da Semana Mundial do Brincar.

Encanto das infâncias

Semana Mundial do Brincar promove a liberdade do brincar e a criação de ambientes acolhedores para todas as crianças

Com o tema “Proteger o encantamento das infâncias”, a Semana Mundial do Brincar chega à sua 17ª edição e convida todas as pessoas a cuidar de uma das fases mais importantes da formação humana: a infância. Ao valorizar e respeitar o tempo e o espaço das crianças, busca-se garantir que elas possam existir no mundo preservando sua essência, com plenitude e dignidade.

O evento é realizado pela Aliança pela Infância e, em 2025, será entre os dias 24/5 e 1º/6. Atento à relevância do tema e como parte de seu trabalho pautado no respeito às infâncias, o Sesc São Paulo é parceiro do evento e convida seus visitantes a refletirem sobre a proteção dessa fase da vida. Nesta edição, serão

realizadas 170 atividades em 39 unidades da capital, interior e litoral, além do lançamento de minidocumentários pelo SescTV. A programação é gratuita e voltada a bebês e crianças de 0 a 12 anos, e inclui oficinas, vivências, apresentações, entre outras ações.

Entre os destaques, nos dias 24 e 31/5, às 15h, a Cia. Prana de Teatro apresenta, no Sesc 14 Bis, um concerto cênico com cirandas e bachianas de Villa-Lobos e violino ao vivo. Já no Sesc Avenida Paulista, será montada a Fábrica de Engenhocas, no final de semana de 31/5 e 1º/6, pelo grupo Crialudiz. No Sesc Campo Limpo, crianças de até 6 anos poderão criar um painel lúdico sensorial com o grupo Reciclaí.

“O Sesc São Paulo tem o compromisso contínuo de valorizar as infâncias, promovendo espaços e atividades acolhedores e acessíveis para todas as crianças, nos quais cada uma possa brincar, vivenciar experiências únicas assim como existir e se expressar em sua plenitude”, explica Camile Lopes Magalhães, da Gerência de Estudos e Programas Sociais.

As iniciativas voltadas às infâncias integram uma ação permanente da instituição. Um exemplo é o programa Espaço de Brincar. Nele, são realizadas ações nas quais, bebês e crianças até 6 anos com seus e suas responsáveis, encontram tempo, espaço e oportunidade de produzir e absorver cultura por meio do brincar – entendido como uma experiência coletiva que provoca novas relações, interatividade e favorece o desenvolvimento integral.

Confira a programação completa: sescsp.org.br/ semanamundialdobrincar

DOSSIÊ

Hora do Choro

Até o dia 11/5, o Sesc 24 de Maio realiza o Choraço, projeto que apresenta os diferentes caminhos do choro e seus cruzamentos com gêneros como o samba, baião, maxixe, frevo, lundu e jazz. Nesta edição, serão realizadas mais de 20 atividades, entre apresentações musicais, teatro, dança, literatura e rodas de choro, com entrada gratuita ou ingressos a preços acessíveis. Sobem ao palco nomes como Mestrinho, Guinga, Cristovão Bastos e Toninho

Ferragutti, além dos grupos Sonhos de Lundu, Regional do Motta e Chora – Mulheres na Roda (RJ), entre outros. Além das apresentações no teatro, intervenções artísticas, bailes e rodas de choro gratuitas ocupam os espaços da unidade. Há, também, atividades para as crianças e pessoas idosas, ações itinerantes no Sesc em Santos e São José dos Campos e atividades formativas no Sesc Consolação e Sesc Vila Mariana. Programe-se em sescsp.org.br/choraco

Primeiro grupo sinfônico criado em uma favela, a Orquestra Sinfônica Heliópolis apresenta-se em unidades do Sesc São Paulo com repertório e convidados diversos.

ORQUESTRA PARA TODOS

Em uma nova parceria, o Sesc São Paulo e o Instituto Baccarelli prepararam uma programação especial para os amantes e interessados em música de concerto, seja ela erudita ou popular. Em 2025, a Orquestra Sinfônica Heliópolis,

primeiro grupo sinfônico criado em uma favela, apresenta concertos com estilos musicais diversos, nas unidades do Sesc. Iniciadas em abril, as apresentações têm repertórios e convidados diversos. Em 16/5, a Sinfônica se apresenta

no Sesc 14 Bis, com o maestro Isaac Karabtchevsky; e em 13/6, regida por Edilson Ventureli, que juntamente com Simoninha, convida Mariana Aydar para um concerto no Sesc Vila Mariana. Acompanhe a programação em sescsp.org.br

Fernanda Baldo

DOSSIÊ

Em meio a registros de vídeos e frases como "Para onde vamos?", a exposição Lugar Público reúne provocações do artista Antoni Muntadas sobre espaços compartilhados.

DIÁLOGOS ARQUITETÔNICOS

Os visitantes do Sesc Pompeia já podem contemplar a exposição Lugar Público - Muntadas, do artista Antoni Muntadas. Em exibição na Área de Convivência até 10/8 e com curadoria de Diego Matos, a mostra aborda a relação entre arte, arquitetura e espaços compartilhados. A partir do diálogo das obras de Muntadas com a arquitetura de Lina Bo Bardi, é proposta uma reflexão

Trabalho na telona

sobre cidadania, urbanismo e participação coletiva. “São dispositivos que servem para provocar reflexão e interrogação nos que ali circulam, especialmente sobre a proposta de um lugar público”, reflete o artista. Realizada pelo Sesc São Paulo, a exposição tem apoio da Embaixada da Espanha no Brasil e do Instituto Cervantes. Saiba mais em sescsp. org.br/lugar-publico-muntadas

Com uma curadoria que reúne filmes marcantes da cinematografia brasileira e internacional, o Sesc Consolação realiza neste mês a Mostra Perspectivas do Trabalho. A programação propõe um olhar crítico e sensível sobre as condições de trabalho e as desigualdades sociais que atravessam a sociedade. Obras como Tempos modernos (1936), de Charlie Chaplin (1889-1977), Eles não usam black-tie (1981), de Leon Hirszman (1937-1987), e Que horas ela volta? (2015), de Anna Muylaert, compõem a seleção. A mostra inclui ainda ações formativas, como o curso Trabalho e política no cinema: entre o fordismo e o precariado, ministrado pelo sociólogo Ruy Braga, e experiências cênicas, como o cine concerto do filme Faça a coisa certa (1989), do diretor estadunidense Spike Lee, com a Banda Mental Abstrato. Acesse a programação em sescsp.org.br/consolacao

FACES DE UM ATOR

Em 1972, os telespectadores brasileiros receberam uma notícia que surpreendeu milhares de pessoas: a morte do ator Sérgio Cardoso (1925-1972). Na época, o artista atuava na telenovela O Primeiro Amor (TV Globo), contribuindo para tornar esse gênero um fenômeno cultural do país. Antes de sua trajetória na televisão, já havia se consolidado como um dos grandes nomes do teatro, tendo participado de espetáculos no Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), no Teatro dos Doze, na Companhia Nydia Licia-Sérgio Cardoso, da qual foi fundador junto com sua esposa. Histórias desse período foram resgatadas pelo professor, diretor de teatro e pesquisador Jamil Dias, que as apresenta na biografia Sérgio Cardoso: ser e não ser , lançada em 2025 pelas Edições Sesc São Paulo. O leitor irá conhecer as alegrias e dissabores da carreira desse ator tão importante para a dramaturgia brasileira. Leia mais em sescsp.org.br/edicoes

Imagem de arquivo do ator Sérgio Cardoso, que ganha uma biografia lançada pelas Edições Sesc São Paulo.

FAÇA SUA CREDENCIAL PLENA

A Credencial Plena do Sesc é um benefício gratuito para pessoas com registro em carteira, que são estagiárias, temporárias, se aposentaram ou estão desempregadas há até dois anos em empresas do comércio de bens, serviços e turismo e seus dependentes familiares. Com a Credencial Plena você tem acesso prioritário e descontos na programação e serviços pagos do Sesc.

Qual é a validade da Credencial Plena?

A Credencial Plena tem validade de até 2 anos - para estagiários a validade da Credencial corresponde ao período de vigência do estágio e para desempregados a validade é de até 24 meses após a baixa na carteira de trabalho.

Como fazer a Credencial Plena?

On-line pelo aplicativo

Credencial Sesc SP ou pelo site centralrelacionamento.sescsp.org.br Se preferir, nesses mesmos canais, é possível agendar horários para realização desses serviços presencialmente, nas Centrais de Atendimento das unidades.

Quem pode ser dependente na Credencial Plena?

• Cônjuge ou companheiro

• Filhos, enteados, irmãos e netos até 20 anos ou até 24 anos, se estudantes

• Pai e mãe

• Padrasto e madrasta

• Avôs e avós

Relacionamento com Empresas

É o programa que facilita o acesso ao credenciamento dos funcionários das empresas parceiras dos ramos do comércio de bens, serviços e turismo. Nessa parceria, além do credenciamento, os aproximamos de nossa vasta programação e serviços. Saiba mais em sescsp.org.br/empresas

Acesse o texto "Tudo o que você precisa saber sobre a Credencial Plena do Sesc"

Ricardo Ferreira

A Credencial Plena do Sesc é um benefício para as pessoas que trabalham em empresas do comércio de bens, serviços e turismo.

O programa Relacionamento com Empresas facilita o acesso ao credenciamento dos trabalhadores e trabalhadoras dessas empresas.

Conheça o programa e saiba mais em sescsp.org.br/empresa

entrevista

Entre a terra e o mar

Articulador da primeira Bienal de Arte e Cultura da Guiné-Bissau, realizada neste mês, sociólogo guineense

Miguel de Barros aponta educação e valorização das culturas tradicionais como chaves de mudança

Tão logo a Guiné-Bissau conquistou sua independência, em 1973, a criação do novo Estado apontou para a educação como diretriz. Convidado pelo então ministro da educação Mário Cabral para formular um projeto de alfabetização de adultos, o educador brasileiro Paulo Freire (1921-1997) exerceu um papel fundamental no país para que as culturas tradicionais e a língua materna dialogassem com a pedagogia como prática para a liberdade. O legado de Paulo Freire permanece vivo na Guiné-Bissau, assim como a troca de saberes entre os países, de acordo com o sociólogo guineense Miguel de Barros, diretor-executivo da organização não governamental Tiniguena, que protege a biodiversidade local e auxilia os agricultores na adoção de práticas sustentáveis.

Essa relação de intercâmbio entre as nações, aliás, evidencia-se neste mês, na primeira edição da Bienal de Arte e Cultura da Guiné-Bissau (MoAC Biss), realizada na cidade de Bissau e da qual Barros é um dos organizadores. Na programação, participam cerca de 12 artistas brasileiros, como o escritor e roteirista Tom Farias, a dramaturga e roteirista Dione Carlos, a cantora Bia Ferreira e a artista plástica Sônia Gomes. “A Bienal também

é uma proposta de transformação a partir desse legado de emancipação, de construção da própria liberdade. Por isso o lema ‘Identidades em liberdade’, que parte da necessidade de um país de grande potencial cultural”, explica Barros.

Pouco maior do que o estado do Alagoas e com a população equivalente à do Sergipe, Guiné-Bissau agiganta-se pela cultura e por ser o segundo país mais rico em termos de concentração da biodiversidade na África Ocidental. Essa característica também a coloca em risco diante da crise climática, principalmente com o avanço do mar sobre o território, onde as comunidades tradicionais, guardiãs do patrimônio natural, também se encontram ameaçadas. Entre idas e vindas ao Brasil, o sociólogo participou, em março, da mesa de debate Ecos da Floresta: A Vida em Tempos de Emergência Climática, no Sesc Jundiaí, e de atividades no Centro de Pesquisa e Formação (CPF) do Sesc São Paulo.

Nesta Entrevista, Miguel de Barros enfatiza a necessidade de repensarmos o atual modelo de desenvolvimento mundial diante da crise climática, fala sobre o legado de Paulo Freire, e destaca o papel da educação e da cultura para uma transformação social.

Se nós quisermos pensar sobre o nosso comportamento, que tem provocado essas desigualdades sociais e climáticas, temos, efetivamente, que mudar o modelo daquilo que chamamos hoje de civilização

China e dos Estados Unidos, teremos mais da metade daquilo que é a emissão global. Então, essa questão não deve ser colocada do ponto de vista da crise climática, e sim do ponto de vista da crise do modelo econômico neoliberal colonial, que olha para os espaços naturais na condição de reservas de matéria-prima que devem ser exploradas. Ou seja, se nós quisermos pensar sobre o nosso comportamento, que tem provocado essas desigualdades sociais e climáticas, temos, efetivamente, que mudar o modelo daquilo que chamamos hoje de civilização.

De que forma as tecnologias ancestrais dos povos africanos apontam para alternativas em modelos sociais e econômicos?

As consequências da emergência climática que atravessamos atingem de maneira desigual o planeta. Como o continente africano, um dos mais impactados, responde a esse contexto?

Devemos colocar essa questão de duas formas diferentes: uns provocam a crise climática, outros sofrem com a crise climática. Se formos olhar a responsabilidade, por exemplo, das emissões de dióxido de carbono, a África não é uma entidade emissora. Toda a emissão do continente africano não chega a 5% daquilo que é a emissão global. Então, não podemos pensar, a priori, que há uma responsabilidade partilhada. É verdade, também, que acabamos por constatar que não se trata de “injustiça climática”, mas uma injustiça do ponto de vista de como o modelo de produção e de consumo energético provoca essas alterações, sobretudo em contextos que não produzem essas energias, nem se beneficiam dela. E aí, o Norte global tem uma grande responsabilidade, assim como os países emergentes, a exemplo da China. Se contabilizarmos as emissões da

Devemos voltar à base, recuperar aquilo que os povos tradicionais têm nos ensinado: os seres humanos são parte integrante da natureza. Devemos respeitar o calendário natural de produção alimentar e, ao mesmo tempo, salvaguardar a regeneração natural dos espaços produtivos, além de permitir a possibilidade da partilha de bens e serviços de forma equitativa. Isso para que, efetivamente, sejamos capazes de produzir um novo contrato social, no qual nem a competição, nem o extrativismo sejam os padrões, mas sim os modelos de solidariedade e de justiça social. Ao mesmo tempo, olhar para modos de vida mais adequados às práticas culturais, produtivas, sociais e às práticas de políticas que permitam que esses povos estejam no centro da própria governança do patrimônio natural, cultural, econômico e civilizacional. Se nós conseguirmos dar esse salto, serão maiores as possibilidades de ter um sistema de produção de alimentos mais justo, mais limpo, mais saudável e, ao mesmo tempo, de termos a garantia de formas de partilha que permitam maior distribuição desses bens.

“O mar está a comer a terra”, você disse em entrevistas sobre as consequências da crise climática, o que nos fez lembrar da frase do líder quilombola e filósofo Antônio Bispo dos Santos, o Nêgo Bispo (1959-2023): “a terra dá, a terra quer”. Quais as consequências do avanço do mar sobre a Guiné-Bissau?

Há vários processos que colocam em xeque a continuidade da Terra tal qual a conhecemos. Fatores combinados que são muito perigosos devido à ação humana. Por exemplo, nós falamos da questão do desflorestamento – as florestas são infraestruturas naturais que permitem estancar a revolta do mar. São entidades que geram muito impacto, não só por sequestrar carbono, mas por permitir o encontro entre o mar e a terra: uma espécie de mediação. É como prolongar a vida da terra e esse prolongar também

salvaguarda o acesso a modos e recursos de vida. São nas zonas de floresta de mangue, por exemplo, onde podemos encontrar todos os microrganismos essenciais para a manutenção das espécies marinhas. Não é por acaso que há uma concentração humana nas zonas costeiras em nível global, porque os recursos mais interessantes estão nessas zonas. Mas há três atividades que estão colocandoas em risco: a indústria militar, a pesca industrial, que é hoje uma das maiores ameaças do mundo, e a quantidade de resíduos de plásticos nos oceanos, a mais perigosa dos últimos tempos. Meu país é o segundo em vulnerabilidade, depois de Bangladesh, e pode deixar de existir se continuarmos com esse comportamento. Então, quando digo “o mar está a comer a terra”, esse é um grito de apelo, de que é importante uma mudança a partir do paradigma do consumo, de que não é com contrapartidas de apoio de mitigação ao sul global que resolveremos o problema climático, mas mudando o padrão de comportamento individual, coletivo e do próprio Estado.

A organização não governamental Tiniguena atua diretamente sobre esses impactos, visando a proteção da biodiversidade local e auxiliando agricultores. Como nasceu a ONG e qual sua relação com o educador Paulo Freire? Tiniguena significa “esta terra é nossa”, numa língua da etnia Cassanga, do norte da Guiné-Bissau, cujo povo está em vias de extinção. O nome surgiu do trabalho da fundadora da Tiniguena, a assistente social Augusta Henriques, que foi a principal auxiliar de Paulo Freire na Guiné-Bissau, no programa de alfabetização em língua materna, durante a construção de uma nação recém-independente. Uma alfabetização em função das necessidades dos próprios camponeses, porque eles detêm um saber, embora não sejam letrados. Fundada em 1991, a Tiniguena surge exatamente quando a Guiné-Bissau decidiu adotar o programa de ajustamento estrutural, promovido pelo Banco Mundial e Fundo Monetário Internacional (FMI). O

nome Tiniguena é uma reivindicação de que nós temos que lutar pela nossa terra e ao mesmo tempo trazer a nossa terra enquanto elemento de autoestima e de orgulho. Augusta Henriques traz esse ensinamento, essa memória dos programas de alfabetização de língua materna, e cria uma organização voltada para a terra, para os agricultores camponeses, para proteção, valorização da biodiversidade e dos saberes culturais.

Qual foi a importância da pedagogia de Paulo Freire na Guiné-Bissau durante a década de 1970? Notamos que a maior parte da sociedade não tem noção de quem foi Paulo Freire, tanto no Brasil quanto na África. Ele foi um convidado do Estado da Guiné-Bissau para aplicar a sua pedagogia, no sentido de ajudar o país a criar aquela que foi uma das narrativas mais fortes no processo de independência da África: o homem novo. O homem novo, uma entidade que conseguiu superar as amarras do colonialismo e que assume a missão de construção da nação e, ao mesmo tempo, da sua identidade, cultura, contexto econômico, responsabilidade política. Então, Paulo Freire chega ao território guineense convidado por Mário Cabral, então ministro da educação. Freire foi extremamente hábil pois não chegou e aplicou a pedagogia do oprimido. Ele chega à Guiné-Bissau e lê os discursos de Amílcar Cabral [1924-1973] – fundador do Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), que dirigiu a luta de libertação na Guiné-Bissau, apoiou os processos de luta de libertação em Angola, Moçambique, São Tomé e foi a principal figura das independências das colônias sob domínio de Portugal. Quando Paulo Freire lê os escritos de Cabral, conclui: na Guiné-Bissau, temos que aplicar outra pedagogia, a pedagogia da libertação. Sua abordagem permitiu ao país pensar num plano nacional de educação e isso repercutiu para outros países onde ele também esteve, como Angola e Moçambique.

Sabemos que as comunidades e povos tradicionais, guardiões de biomas que fazem parte de áreas protegidas, sofrem contínuas ameaças em diferentes partes do planeta. Como é esse cenário na Guiné-Bissau?

As áreas protegidas existem porque existem essas comunidades tradicionais. Temos mais de 26% do território nacional de áreas protegidas e nenhuma está militarizada. Todas essas áreas têm comunidades, porque esse processo de construção do Estado e de formalização não antecede as comunidades. As comunidades tradicionais africanas antecederam a existência do Estado, assim como os povos indígenas no Brasil. O Sistema Nacional das Áreas

Protegidas na Guiné-Bissau não só reconhece esses povos,

como também os integra no processo da governança sustentável desses patrimônios naturais. A Tiniguena vem acompanhando esse processo e contribui para a existência de uma figura que não existia no plano jurídico: áreas protegidas em regime comunitário. Nelas, todo o manejo se faz em cogestão entre instituições públicas, sociedade civil e instituições das comunidades locais. E isso acontece porque essas zonas de preservação são os sítios sagrados desses povos. Ou seja, já havia aí um conhecimento do papel desse espaço e dos processos que permitem a regeneração desses territórios, mas também uma certa reprodução de recursos que permita a própria manutenção das comunidades. Por isso, a Tiniguena vem trabalhando para que grupos, que estavam marginalizados, entrem nessa dinâmica da governança participativa.

Esse modelo permite uma maior proteção contra desmatamentos e outras ações humanas criminosas em áreas preservadas, por exemplo?

Não há nenhum desmatamento que aconteça sem conhecimento do Estado. O que nós acabamos por encontrar são duas tendências completamente diferentes: o Estado que pensa a partir de uma perspectiva de crescimento, e as comunidades que pensam a partir de uma perspectiva de longevidade. São dois modelos que, no meu ponto de vista, não podem andar juntos. Tendo em conta aquilo que é a minha experiência, podemos criar formas de vida com alto nível de produtividade sem levar ao esgotamento dos recursos. Mas, para que isso aconteça, esses recursos têm que ser vistos como patrimônios. Patrimônios coletivos que devem existir para as necessidades das gerações presentes e futuras. E quando há um consenso, podemos partir para formas de transformação desses patrimônios que salvaguardam o equilíbrio ecológico, econômico, cultural e a proteção social. Creio que temos falhado na nossa agenda de transformação, tanto países africanos quanto o Brasil, na capacidade de retribuir aqueles que salvaguardam o nosso patrimônio com serviços de qualidade e de segurança. Com mobilidade social ascendente, em termos de acesso a lugares de decisão, e o reconhecimento de que eles têm direito à saúde, à habitação, à educação, ao transporte e, também, a construir seus sonhos, como qualquer outro povo. Quando conseguirmos concretizar esse pensamento em formas práticas de vida, as políticas públicas vão mudar. Porque as políticas públicas serão feitas com essas comunidades e não para essas comunidades.

Muitas projeções repercutem na mídia quanto aos desafios da Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas, a COP 30, a ser

entrevista

Creio que temos falhado na nossa agenda de transformação, tanto os países africanos quanto o Brasil, na capacidade de retribuir aqueles que salvaguardam o nosso patrimônio com serviços de qualidade e de segurança

realizada no Brasil em novembro, em Belém (PA). Quais as suas expectativas para essa COP? O que podemos esperar da carta de intenção com as diretrizes para enfrentamento da crise climática? Eu costumo dizer que não podemos pensar que a COP se resume à carta. A carta é, sobretudo, a possibilidade de termos capacidade, depois, de olhar como é que nós fizemos uma trajetória de partida, chegada e para onde queremos ir. Eu vejo uma oportunidade na ausência dos Estados Unidos, porque, com sua presença os nossos dirigentes não têm conseguido tomar decisões mais assertivas, deixando que os Estados Unidos assumam a liderança do ponto de vista da contribuição financeira e, também, daquilo que são os níveis de emissão de gases. Quando podemos isolar a Rússia, os Estados Unidos e a China, teremos mais possibilidades de construir uma governança climática alternativa. Não só pela possibilidade de nossas vozes serem ouvidas, mas pela possibilidade de ver como podem construir um modelo econômico alternativo que leve em consideração soluções baseadas na natureza e na cultura local. O fato de o Brasil acolher a COP neste ano é, também, uma oportunidade para o sul global mostrar sua visão sobre as próximas décadas quanto à regulação dos modos de vida. Ou seja, uma oportunidade para as regiões da Pan-Amazônia, formada pelos países em torno da Amazônia, selarem um pacto em relação ao engajamento com a proteção desse território e com a melhoria das condições de vida de suas comunidades.

Neste mês, acontece a Bienal de Arte e Cultura da Guiné-Bissau. Quais linguagens compõem a curadoria? E como será a participação do Brasil? Definimos cinco áreas curatoriais: políticas públicas, artes plásticas e visuais, literatura – com muita aposta na literatura infantojuvenil –, artes performativas e música. Queremos trazer a produção artística guineense para a contemporaneidade, mas dialogando com outras culturas, povos e sociedades. Por isso, deverão participar cerca de 50 artistas internacionais. A princípio, já temos registrado 15 países. Todos os países da expressão oficial

portuguesa, mas também países da Europa: França, Alemanha e Espanha. Teremos países africanos, como Senegal, Cabo Verde, Mali e Costa do Marfim e dois países que são extremamente importantes, devido aos percursos de mobilidade dos artistas guineenses: Portugal e Brasil. No fim, queremos avançar na criação do Centro Cultural de Bissau, onde haverá espaço para residências artísticas, exposição permanente, auditórios ao ar livre etc.

Além desse centro cultural, qual legado a Bienal pretende deixar?

Queremos avançar na construção de espaços museológicos, com a valorização da cultura tradicional guineense, como o tear e o artesanato. Queremos elevar a língua guineense ao estatuto de Patrimônio Cultural Nacional e fazer o Museu da Língua Guineense. Então, são propostas que nos permitem ver que, de alguma forma, ao mesmo tempo em que trabalhamos para uma maior mobilidade da Guiné-Bissau e de seus artistas, transformamos Guiné-Bissau em um centro de produção cultural contemporânea, para que artistas globais procurem esse espaço para produzir suas obras, trocarem e mostrarem ao mundo novas sínteses culturais. Acreditamos que essa primeira Bienal seja um ponto de partida que vai permitir ao Estado da Guiné-Bissau redefinir sua visão sobre políticas públicas educativas. Porque o país não tem orçamento para a cultura, nem ações que promovam a cultura do ponto de vista de políticas públicas. Todo esse debate vai permitir envolver os guineenses, não só os que estão no país, mas a sua diáspora, o que é muito importante na veiculação da sua cultura e da sua tradição para um novo compromisso em torno da economia criativa.

Assista a trechos dessa Entrevista com o sociólogo guineense Miguel de Barros, realizada no Centro de Pesquisa e Formação (CPF) do Sesc São Paulo, no dia 19 de março de 2025.

25 de maio a 1º de junho

Proteger o encantamento das infâncias é o tema desta edição da Semana Mundial do Brincar, que apresenta atividades gratuitas voltadas a bebês e crianças até 12 anos em 39 unidades do Sesc São Paulo.

Participe e reencante seu olhar sobre a infância! sescsp.org.br/semanamundialdobrincar

Quarteto Ritual Nº 6 (acrílico sobre tela), de Abdias Nascimento, obra que integra a exposição Abdias Nascimento – O Quilombismo: Documentos de uma Militância Pan-Africanista, em cartaz no Sesc Franca até 15 de junho.

NEGRAS

negritude

RAÍZES

Celebrar a negritude é reconhecer a história e o legado afro-brasileiro, além de valorizar pensamento, expressões e vozes do presente

POR MARIA JÚLIA LLEDÓ
Fundadora do quilombo urbano Aparelha Luzia, a educadora e artista visual Erica Malunguinho honra as raízes africanas na constituição do povo brasileiro.

Em diversos livros de história do Brasil, o capítulo dedicado às narrativas das pessoas negras que chegaram ao continente americano centrava-se no período do século 16 ao 19, quando homens, mulheres e crianças oriundos principalmente, da África Ocidental foram trazidos à força, escravizados, impedidos de manifestar suas línguas, suas crenças, seus pensamentos e cosmovisões. O que muitas obras não contaram ou o fizeram de modo tênue é que, coletivamente nesse processo, esses povos forjaram e continuam forjando a identidade da nação – resistiram e preservaram suas culturas por meio da oralidade, em cantos, narrativas e rezas, ou em gestos, comidas, vocábulos e danças.

Desde então, líderes abolicionistas como Zumbi dos Palmares (1655-1695) e o advogado Luiz Gama (1830-1882), até pensadores contemporâneos, como o dramaturgo e artista visual Abdias Nascimento (1914-2011), primeiro político a propor leis de ações afirmativas em defesa da população negra, e a escritora e filósofa Sueli Carneiro criaram ferramentas de resgate e fortalecimento de suas identidades e de combate ao racismo. Fruto da luta do movimento negro, as ações afirmativas ampliaram a produção e a divulgação intelectual dessa população, promovendo, com isso, a valorização de tecnologias, saberes, ciências, espiritualidade e linguagens artísticas. “Não existe uma história do Brasil sem o povo negro, mas ainda nos falta assumir o protagonismo e contar os fatos com base em nossas lutas e vitórias”, constata o antropólogo e babalorixá Rodney William.

Segundo o professor emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Muniz Sodré, fala-se da cultura e da espiritualidade como heranças que predominam no presente. “A cultura popular é a mais evidente, porque é mal conhecida a atuação negra no campo das artes durante o Império (igrejas de Minas Gerais, Bahia e Pernambuco comprovam), nas letras (Machado de Assis e Lima Barreto, principalmente) e na música, tanto erudita (o barroco mineiro) quanto popular. Quanto à espiritualidade, a força litúrgica dos terreiros impregna a consciência e a fé de largos substratos da população”, descreve. Para Sodré, celebrar esses legados vai além de reinterpretar o passado. “Também é enriquecer o presente com a energia do renascimento. A

celebração é uma das faces do eterno retorno, isto é, da vida que sempre retorna. Celebrada, a negritude institui uma história paralela do Brasil”, ressalta.

RESSIGNIFICAR A NEGRITUDE

Originalmente, o termo negritude foi adotado e utilizado por países do ocidente a fim de diferenciar, hierarquizar e subjugar aqueles e aquelas cujos traços, culturas e ideias tivessem origem no continente africano, como explica a artista visual, educadora e ex-deputada estadual Erica Malunguinho. No entanto, o mesmo termo foi subvertido pela população negra e ganhou outro significado. “Uma vez que a gente reconfigura a negritude como um lugar de afirmação, isso se torna um poder para nós. Então, torna-se uma questão de exaltação da nossa afirmação, da nossa autoestima, da nossa construção enquanto sujeitas e sujeitos negros, depois de processos violentos e excludentes. Negritude no sentido de positividade, de afirmação, de resistência. Tem uma frase que eu gosto muito da Victoria Santa Cruz [artista e ativista afro-peruana (1922-2014)]: ‘agora que gritaram negra, pois negra soy’”.

Na essência do que vem a ser a celebração da negritude, Malunguinho acredita estar indissociável a ancestralidade. “Um elemento muito forte para mim, de celebração, é sentir a presença africana todos os dias. E aí, eu estou falando de sentir essa presença dentro da minha história, da espiritualidade, dos meus princípios filosóficos, dos meus princípios estéticos, plásticos e, obviamente, dos meus princípios em torno da sociabilidade”, observa. Da mesma forma, a musicalidade se encontra nas raízes afrodiaspóricas. “É inegável ter o prazer e a honra de apreciar construções que são fundantes da cultura brasileira, que fazem a cultura brasileira ser o que ela é, como o maracatu, o jongo, o maculelê, os caboclinhos, o samba, a capoeira. Todo esse repertório musical e corporal são elementos muito fortes.”

Outra expressão que atravessa os séculos e brinda a contemporaneidade, segundo Malunguinho, é a literatura. “Estou falando do que está escrito, do que foi escrito e de uma literatura mais viajante, do vento, que é a oralidade. A despeito de não poder ter acesso aos recursos da escrita nesse processo da violência colonial, a gente conseguiu salvaguardar memórias pela fala, pelo próprio gesto, pela espiritualidade, pela fé”, orgulha-se.

COMPASSO CRIATIVO

Do jongo ao rap, da feijoada ao acarajé, da literatura ao cinema. Toda expressão afro-brasileira nas artes e em outras expressões culturais responde por nomes que, ao longo da história do país, resistiram para deixar suas marcas. Personalidades como Maria Firmina dos Reis (1822-1917), a primeira romancista do Brasil, o diretor Zózimo Bulbul (1937-2013), um dos primeiros a cunhar a importância da construção de um cinema negro no Brasil, a cantora lírica Maria d’Apparecida (1926-2017), que foi recusada pelo Theatro Municipal do Rio de Janeiro e fez carreira na Ópera de Paris. Esses e tantos artistas lutaram contra tentativas de apagamento e se tornaram referências por gerações.

“Todas as contribuições negras em todas as áreas são de extrema importância e fundamentais. A arte e a cultura, trazendo para o foco a grandiosidade da música negra e a culinária singular são alicerces. Trago aqui, da música, Clementina de Jesus (1901-1987), Moacir Santos (1926-2006), Johnny Alf (1929-2010) – o criador da bossa nova –, Elza Soares (1930-2022), Jorge Ben Jor, Mano Brown e Racionais MC’s e tantos incríveis, além dos gêneros musicais: o samba, o funk, o jazz, o rock, o soul, o rap, o trap. Na atuação, trago os alicerces: Grande Otelo (1915-1993), Ruth de Souza (1921-2019), Léa Garcia (1933-2023), Antônio Pitanga e Tony Tornado. A moda negra, com o seu estilo urbano e muito personalizado, tem uma estética única. E na literatura feminina e brasileira, reverencio o trabalho de Carolina de Jesus (1914-1977), Lélia Gonzalez (1935-1994), Conceição Evaristo, Sueli Carneiro e Djamila Ribeiro, mulheres que transformam o mundo com a sua escrita, genialidade, humanidade e vivência”, elenca a cantora e compositora Paula Lima.

Desde a infância, quando já cantarolava aos três anos, até os 21, época em que percebeu que não seguiria a carreira de advogada, Paula Lima carrega consigo essas referências, que celebra dentro e fora dos palcos. “Sou uma mulher negra brasileira. De fé. Consciente sobre o mundo e do meu lugar. Gostaria, se houvesse esse caminho, de voltar em um mundo mais justo, tolerante, mais respeitoso, com igualdade e oportunidades para todos. Um mundo de uma real meritocracia. Amo o meu ofício. Gostaria também de ‘continuar’ uma cantante, levando a minha arte amorosa para uma infinidade de lugares, compartilhando bons sentimentos e as nossas boas, belas e negras verdades”, almeja.

Diego
Mello
A cantora e compositora Paula Lima leva ao palco referências de personalidades negras do Brasil e do mundo.

A jornalista e escritora Midiã Noelle defende um exercício crítico de revisão das narrativas históricas e midiáticas.

AGENTES DE MUDANÇA

Jovens comunicadores negros e negras vêm ampliando uma perspectiva que até poucas décadas atrás encontrava-se restrita. Em diferentes plataformas, é possível ter acesso a cada vez mais pautas que dizem respeito a 56,7% da população brasileira autodeclarada negra, seja nas seções de cultura, de economia, de ciência ou de política. Para Midiã Noelle, jornalista e mestra em cultura e sociedade pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), a celebração da negritude passa pelo reconhecimento e valorização dessas histórias. “É essencial para transformar as formas como nos comunicamos e convivemos, pois a presença negra é parte fundamental da construção do Brasil – em sua cultura, economia, ciência, espiritualidade e arte”, enfatiza.

Autora do recém-lançado Comunicação Antirracista: um guia para se comunicar com todas as pessoas, em todos os lugares (Planeta, 2025), Noelle acredita que refletir sobre as contribuições da população negra na sociedade brasileira é celebrar sua existência. Isso exige, complementa Noelle, um exercício crítico de revisão das narrativas históricas e midiáticas que, por tanto tempo, negaram o protagonismo negro. “A imprensa negra, por exemplo, surge como um espaço estratégico de resistência, reivindicando representatividade e dignidade em meio a um cenário de exclusão. Por meio dela, vozes negras encontraram formas de denunciar injustiças e afirmar novas possibilidades de existir e comunicar. Essa tradição demonstra que a comunicação sempre foi uma ferramenta poderosa para disputar sentidos, visibilizar vivências e criar espaços de emancipação”, constata.

Uma das responsáveis pela redação e implementação do Plano Nacional de Comunicação pela Igualdade Racial na Administração Pública Federal, publicação da Secretaria de Comunicação da Presidência da República e do Ministério da Igualdade Racial, Midiã Noelle acredita que a celebração da negritude não é apenas um ato simbólico. “É uma afirmação política e cultural da humanidade negra, que desafia as narrativas coloniais e racistas que tentaram apagar suas contribuições. Ao reconhecer a riqueza das contribuições negras e combater os estigmas históricos, tornamo-nos agentes de mudança”, defende.

LEGADO IMENSURÁVEL

Doutor em ciências sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), o antropólogo e babalorixá Rodney William faz do seu canal no YouTube e das redes sociais um meio para difundir conhecimento e reconhecimento da cultura afro-brasileira. Colunista da revista Carta Capital e autor de livros como A benção aos mais velhos: poder e senioridade nos terreiros de candomblé (Arole Cultural, 2017) e Apropriação cultural (Pólen Livros, 2019), William acredita que deve ser aproveitada toda oportunidade que

permite mudar uma história oficial que promoveu o apagamento das contribuições negras na construção do Brasil, na cultura e na identidade de seu povo.

“Um movimento contracolonial vem crescendo e impulsionando a notoriedade de intelectuais negros do passado e do presente. O resgate de escritoras como Maria Firmina dos Reis (1822-1917) ou o reconhecimento de Mãe Stella de Oxóssi (1925-2018) entre os acadêmicos é um sinal de que as produções contemporâneas, ao referenciar esses autores, colaboram significativamente para uma reforma em diversas áreas. Na educação, por exemplo, textos de Carolina Maria de Jesus (1914-1977) e do Racionais, entre os exigidos nos vestibulares ou temas de redação que refletem a condição da população negra, demonstram um avanço na visibilidade de um legado imensurável, que não se resume a samba ou religiosidade”, observa.

De acordo com o antropólogo, há, contudo, inúmeras personalidades negras que precisam ser valorizadas e, também, aquelas que foram embranquecidas ao longo dos séculos. “Recuperar a negritude de Carlos Gomes (1836-1896) e Machado de Assis (1839-1908) é tão fundamental quanto restabelecer a história de Teodoro Sampaio [engenheiro e geógrafo (1855-1937)] e Juliano Moreira [médico e psiquiatra (1873-1933)].

Sem contar os levantes que sequer são citados nos livros, e as organizações que desde sempre aspiraram cidadania e outras formas de coletividade, como os quilombos e os terreiros”, destacou William, que em 2019 foi escolhido por premiação da Organização das Nações Unidas (ONU) como uma das pessoas negras mais influentes do mundo.

Para o antropólogo e babalorixá, “cada um de nós celebra a sobrevivência de uma cultura e memória inscrita na pele”. Sendo assim, “se sambar é rezar com o corpo, a cada gingado de um capoeira, a cada ijexá nos candomblés e afoxés, a cada repicar de um tamborim ou atabaque revivemos a força ancestral que nos movimenta e nos motiva a enfrentar e afrontar a morte que nos procura todos os dias”, descreve. “Porque se a vida é boa, sambamos para festejar, e se a vida é ruim, sambamos para esquecer. Nosso maior mistério é essa felicidade que insiste em nos acompanhar apesar de tudo. Que nos invejem os que só sabem ser tristes, os que fizeram do dinheiro e da acumulação seu único meio de existir no mundo. Nós fizemos da circularidade nosso ethos, e cantamos os sonhos dos que se foram e dos que ainda virão”, arremata.

Acervo Rodney William
Antropólogo e babalorixá, Rodney William faz de suas redes um canal para difundir conhecimentos e práticas da cultura afro-brasileira.

CULTURAS NEGRAS

Protagonismo negro em pluralidade de linguagens, pensamentos e práticas faz parte das ações permanentes do Sesc São Paulo

Durante todo o ano, o Sesc São Paulo realiza ações permanentes que destaca a negritude, em suas unidades da capital e grande São Paulo, interior e litoral do estado. São ações transversais e atividades diversas que incluem personalidades negras do Brasil e de outros países, atuantes em diferentes áreas do conhecimento. Indivíduos e coletivos que participam de debates, oficinas,

cursos, espetáculos teatrais entre outras atividades. Além disso, o Sesc realiza projetos pontuais, com destaque para o Festival Sesc Culturas Negras, que neste ano será realizado de 10 a 15 de junho, abordando tanto aspectos históricos, sociais e culturais, como promovendo a valorização, o conhecimento, a convivência e a preservação de tradições.

para ver no sesc / negritude

“A existência negra é um conceito que transcende o simples ato de viver. Ela reflete uma trajetória histórica de saberes, de tecnologias, de resistência e resiliência moldada por legados ancestrais que, apesar das violências da escravidão e do racismo estrutural, persistem como potências vivas. Esse conceito abraça a continuidade de identidades que se construiu ao longo de séculos, e ao mesmo tempo se reinventa, afirmase e expande-se a partir de múltiplos territórios – físicos e simbólicos – da experiência negra”, explica Fabiano Maranhão, que integra a equipe da Gerência de Programas Sociais do Sesc São Paulo.

Confira outros destaques da programação:

EAD SESC DIGITAL

Curso: Dispositivo de Racialidade (2024)

Em seis aulas, a filósofa e escritora Sueli Carneiro aborda os mecanismos do racismo no Brasil, a partir do conceito de “dispositivo” de Michel Foucault (1926-1984), e discute temas como epistemicídio, ativismo negro e educação. GRÁTIS. Inscreva-se: sescsp.org.br/ead

SESCTV

Nós, Negros (Brasil, 2020)

Direção de Ana Paula Mathias Composta por dez vídeos artísticos, essa série apresenta uma diversidade de narrativas poéticas em que protagonistas negros ocupam o centro de cada história. Assista: sesctv.org.br

A filósofa e escritora Sueli Carneiro ministra o curso gratuito Dispositivo de Racialidade, na plataforma EAD do Sesc Digital, no qual discute epistemicídio e ativismo negro.
José Maria
Natalia Fregoso/ FIL Guadalajara
Nascida na Eritreia, África oriental, Marina Colasanti veio ainda criança para o Rio de Janeiro (RJ): reconhecia-se como escritora brasileira, mas suas descrições de paisagens e influências refletiam uma trajetória nômade.

de histórias TECELÃ

Entre a poesia e a prosa, o real e o maravilhoso, as crianças e os adultos, Marina Colasanti multiplicou os sentidos da palavra

POR LUCIANA ONCKEN

Cinco maneiras diferentes de contar uma mesma história. Foi assim, desafiando-se com as palavras, construindo narrativas distintas, que a escritora Marina Colasanti (1937-2025) elaborou seu conto “A cidade dos cinco ciprestes”, publicado em livro homônimo, em 2019. Inúmeras são também as versões de si e, do mesmo modo, partindo de múltiplos ângulos, formas e perspectivas, é possível apresentar a vida dessa autora. Com a diferença de que, neste caso, não se trata de ficção.

Entre as possibilidades de leitura de sua trajetória, pode-se iniciar com a artista plástica ou com a jornalista. Com a criança recém-chegada à cidade do Rio de Janeiro no pós-guerra, ou antes, com uma nômade que aportou em terras brasileiras, vinda da Eritreia (na África oriental), aqui fincando raízes. É possível começar com a cronista, a contista, a poeta. Com a feminina, feminista. Com a mãe de Fabiana e de Alessandra, avó de Nuno; com a parceira de vida do escritor e poeta Affonso Romano de SantˇAnna (1937-2025); com a sobrinha da cantora lírica Gabriella Besanzoni e Henrique Lage, com a irmã de Arduíno, artista de cinema.

Com tantas versões, o fato é que Marina Colasanti excede qualquer texto. Nos anos 1960, já formada em artes plásticas, Marina Colasanti iniciou seu trabalho como redatora (copidesque) do Jornal do Brasil. Ali, conheceria grandes amigos, como a

escritora Clarice Lispector (1920-1977), e seu parceiro de toda vida, Affonso. Passaria a ocupar o cargo de cronista, sua estreia como escritora. Das crônicas, migraria para os contos e a poesia, sem abandonar o lado artístico, ao ilustrar suas próprias obras.

O primeiro livro veio em 1968, Eu sozinha, relançado em 2018 pela Global Editora. De lá para cá, entre obras autorais e traduções, foram mais de 70 livros publicados. E tantos prêmios, entre os quais, os principais da literatura brasileira, como o Jabuti, o prêmio da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ) e o Prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras (ABL), pelo conjunto da obra, em 2023.

O AVESSO DAS COISAS

Embora tenha despertado para a literatura quando começou a trabalhar no Jornal do Brasil, foi forjada muito antes, e ao longo de muitos anos. Marina Colasanti nasceu em Asmara, Eritreia, quando a região ainda estava sob o domínio da Itália. Viveu em Trípoli, na Líbia, e na Itália, durante a Segunda Guerra Mundial. Em 1948, aos dez anos, chegou ao Brasil, onde fincou raízes. “A gente ia se deslocando, porque as cidades iam ficando perigosas. E nessas andanças, nada se leva”, contou à plateia do projeto Sempre um Papo, no Sesc 24 de Maio, em 2018. Seu refúgio eram os livros.

“Não tínhamos amigos, não conhecíamos ninguém, não brincávamos na rua, então nossos pais iam à livraria e compravam adaptações dos clássicos”, relatou na mesma ocasião, relembrando também a riqueza da experiência de ler em dupla com o irmão Arduíno Colasanti (1936-2014), que viria a se tornar ator de cinema, por poderem partilhar as impressões sobre cada leitura. A experiência multicultural não apenas a influenciou, mas constituiu sua própria identidade. Mulher de duas nacionalidades, de duas línguas, de três continentes, atribuía ao nomadismo a necessidade de observar atentamente tudo ao seu redor para se apropriar de novos ambientes e se entrosar, o que, como ela dizia, a tornou uma eterna estrangeira, alguém que não pertence totalmente a um lugar específico.

A vida de Colasanti é repleta do lado avesso das coisas, com o mundo visto sob uma perspectiva única. Ela se reconhecia como escritora brasileira por escrever em língua portuguesa (do Brasil, como fazia questão de frisar), mas suas descrições de paisagens e influências são outras, refletindo sua trajetória de vida. “Eu não cresci lendo Monteiro Lobato (1882-1948), visitando o sítio da vovó, eu não tinha conhecimento de figuras do folclore brasileiro como o Saci Pererê. Em vez disso, eu lia Homero adaptado para a juventude, lia [Rudyard] Kipling (1865-1936), e os mitos gregos”, relembrou a escritora, em 2018.

“A linguagem simbólica foi a primeira que recebi da literatura. Aquela com a qual melhor me expresso. Apagados esses contos da minha vida, eu dificilmente saberia percorrer o caminho que leva ao nascedouro do maravilhoso. Nem teria, tanto tempo depois, escrito meus próprios contos de fada, para levar outras pessoas pela mão até os sonhos”, escreveu Colasanti em Como se fizesse um cavalo (2012).

A CASA DA TIA

A chácara onde sua família foi recebida pela tia-avó, a cantora lírica Gabriela Besanzoni (1888-1962) e seu marido Henrique Lage (1881-1941), quando chegou ao Brasil, também ajudou a compor o imaginário da escritora. “Eu sou, talvez, a última pessoa que mais ama essa casa, eu me sinto um pouco a guardiã das lembranças dela”, dizia sobre o local em que viveu parte da sua infância e que hoje abriga o Parque Lage, na capital fluminense. Um lugar encantador que, além da mansão histórica, é cercado por trilhas e tem ao fundo a vista do Cristo Redentor.

Em uma entrevista para a Global Editora, em 2014, a escritora recorda o encantamento com a natureza tropical brasileira e como ela impactou sua percepção. “Devo dizer que a enormidade da casa não me surpreendeu. O que me fascinou foi a selva, porque a selva era tropical, diferente das florestas de bosques de castanheiras que eu conhecia. Minha mãe fez para nós [Marina e seu irmão Arduíno] uns macacões e saíamos de manhã por esse mato, duas crianças soltas na selva”, descreveu.

Colasanti era uma leitora voraz. Escrevia diários e estava exposta a todo tipo de arte; as artes plásticas sempre estiveram presentes ao longo de sua vida. “O desenho de Marina é pura Marina”, definiu Ziraldo (1932-2024), durante um bate-papo com a amiga dos tempos do jornalismo, em seu programa ABC do Ziraldo, para a TV Brasil, em 2016. O escritor e desenhista disse, inclusive, que Colasanti era multimídia antes mesmo de o termo existir, ao que ela corrigiu: “sou pré-multimídia”, deixando-se levar por sua gargalhada generosa e inconfundível.

RESSIGNIFICAR O TRADICIONAL

Colasanti buscava novas paisagens e olhares para renovar seu pensamento e evitar a estagnação, o que também se manifestava na sua forma de transitar pelos gêneros literários. Ela usava, com frequência, a analogia com os trilhos para explicar seu processo de trabalho por projeto, uma influência também do jornalismo. Os trilhos eram os gêneros: poesia, prosa, autoficção, ilustração, tradução. Quando começava um projeto, seguia nele até o fim. Cada livro tinha uma temática unificada.

“Marina é relevante para os estudos literários por vários motivos técnicos, teóricos e, também, estéticos. É uma das poucas escritoras contemporâneas, e mesmo no sentido mais amplo, que se revela, mantendo a alta qualidade textual em todos os gêneros: poesia, romance, memórias, conto e, neste último, desdobrando-se em contos para adultos e contos para jovens e crianças”, considera Ana Beatriz Demarchi Barel, professora de Literaturas de Língua Portuguesa e Teoria Literária da Universidade Estadual de Goiás (UEG).

O universo de Colasanti é o inesperado, a surpresa e o encantamento. “Marina subverte clichês e lugares comuns”, destaca a pesquisadora Vera Maria Tietzmann em seu livro Nos avessos do texto: um passeio pela obra de

Artesã das palavras, Marina Colasanti também gostava de costurar, fazer crochê e de outras atividades manuais que lhe permitiam experimentar novos saberes.

Marina Colasanti (2021), em que explora a forma como a autora ressignifica as versões tradicionais do texto, subvertendo estrutura e significados tradicionais.

A escritora e cronista Mariana Ianelli, em depoimento ao programa Conversa com escritor [uma live com o professor Marcelo Batalha, em 2021], que teve Colasanti como convidada, descreveu a sua obra como múltipla, comparando-a com um arquipélago formado por fábulas, crônicas, ficção, memórias e poesia. Para Ianelli, o que circunda essas ilhas é o maravilhoso da vida, presente nos textos da escritora. “Em sua obra, há uma sabedoria da alegria que irradia da vida para a literatura”, ressaltou.

Na visão da professora e pesquisadora na área de letras e literatura, Eliana Yunes, co-criadora da Cátedra Unesco de Leitura no Brasil e da Rede de

Estudos Avançados em Leitura (Reler), Marina Colasanti é uma das mais originais e importantes escritoras brasileiras. Para Yunes, a marca registrada e particularidade do gênero de Colasanti é o poético, “que sem tirar os pés do chão, eleva”, disse em depoimento gravado para o mesmo programa.

LITERATURA ATEMPORAL

Uma característica da obra de Colasanti é a atemporalidade. “A sua obra não existe no mundo para distrair, passar o tempo, e, sim, para pensar o tempo, o correr do rio da vida”, analisa a professora Barel. “Marina veio para a literatura de forma duradoura, para sempre”, completa. Colasanti também dizia escrever textos verticais, com infinitas possibilidades de leitura e

Aqui não se encontra nada do que se busca. Muito pelo contrário. Oferecemos somente o inesperado, o lado do avesso das

coisas, o mundo visto de ponta-cabeça, a surpresa, o encantamento. Aqui os trilhos não são paralelos, os olhos enxergam sempre adiante dos óculos, e a linha reta dá voltas ao imaginário. Marina Colasanti (1937-2025), trecho da introdução do livro Mais classificados e nem tanto (2019)

adaptáveis a qualquer idade. Não acreditava que havia temas que não pudessem ser abordados para as infâncias. Tratava o leitor infanto-juvenil com a mesma reverência que o leitor adulto, dotado de inteligência.

A poesia, para ela, era o gênero máximo da literatura, o que lhe exigia mais, sobretudo a poesia infantojuvenil. Eram os trilhos que ela percorria por mais tempo quando embarcava em um projeto. Seus poemas abordam a essência do ser humano e os sentimentos mais profundos, como amor, ciúme, inveja, medo e morte para qualquer idade. “Marina é um oásis para a criança e o adolescente, pois em sua obra, eles são tratados com respeito e sensibilidade”, observa Barel.

A autora também é muito conhecida pelos seus contos fantásticos (ou maravilhosos), os chamados contos de fada. Mas não espere encontrar em sua obra finais felizes ou lições de moral. Colasanti oferece finais abertos que convidam à interpretação e à reflexão. “É isso que pode proporcionar às crianças uma

percepção clara dos problemas e ajudá-las a elaborar inconscientemente suas próprias soluções”, refletiu a autora, no programa Conversa com escritor, em 2021.

ALÉM DO TEXTO, O VIVER

“Marina é a escritora mais completa da literatura brasileira”, disse seu companheiro, o escritor e poeta Affonso Romano de Sant´Anna, em entrevista à Global Editora, em comemoração aos 80 anos da artista.

“Affonso me deu uma confiança intelectual absoluta. Um respeito intelectual total. E uma rede de segurança para fazer os voos que quisesse no trapézio. Os saltos mortais triplos que quisesse dar. Ele sempre me garantiu intelectualmente”, disse Colasanti, na mesma ocasião.

O casal, que nasceu com seis meses de diferença, em 1937, e morreu em um intervalo de dois meses, em 2025, tinha uma ligação e uma parceria para além da família que constituíram. Era como se as obras de cada um fossem

também frutos dessa união. Colasanti sempre fazia questão de falar sobre a importância do marido na sua vida. Eram os primeiros leitores da obra de cada um. “Quem abre um livro de Marina encontra Affonso. Quem lê Affonso sente Marina por perto. Não há como separá-los. Nunca houve”, escreveu Fabrício Correia, escritor, jornalista e produtor cultural em um texto para a Academia Caçapavense de Letras e União Brasileira de Escritores.

Sua obra e sua vida são escritas sobre uma linha que dá muitas voltas ao imaginário e de várias formas diferentes. “Se eu tivesse um epitáfio seria assim: ʻAqui jaz Marina Colasanti, a mulher que viveu por um fioʼ”, contou para a plateia da Biblioteca Pública do Paraná, na celebração aos seus 80 anos – o “se” era porque a escritora desejou ser cremada. “Eu sempre tenho um fio na mão, eu costuro a minha própria roupa, faço crochê, fiz um tapete para ver como era fazer um tapete, fiz um sapato, tipo sandália nipônica de palha, para ver como era fazer isso. Gosto de poder fazer as coisas”, acrescentou na ocasião.

E esse gostar de fazer coisas é evidente no curta-metragem Marina Colasanti: entre a sístole e a diástole (2024), que a filha, a multiartista Alessandra Colasanti, fez em homenagem à mãe. Nele encontram-se as várias versões de Marina Colasanti: avó, dona de casa, aquela que cozinha, faz pão, ilustra e cuida das pessoas. Uma mulher que se coloca em sua vida e sua obra como essa artesã dos fazeres e das possibilidades. Em um trecho do documentário, Marina Colasanti diz: “Eu não acredito em realidade. Eu não trabalho com esse item. Eu trabalho com aquilo que eu chamo de realidade expandida. A vida fica melhor assim, se você entrar em outras dimensões. Sair da sua micropele”.

LITERATURA NA TV

Em episódio da série Super Libris, do SescTV, Marina Colasanti reflete sobre a carreira e a presença da mulher na cena literária em diferentes épocas

A escritora Marina Colasanti foi a entrevistada no episódio “Mulheres, essas bárbaras que ameaçam o império”, da série Super Libris (2016), uma realização do SescTV, com direção de José Roberto Torero. Na ocasião, falou sobre a literatura feminina, em um papo descontraído. Entre os temas tratados, destaca que, antigamente, falava-se em “literatura feminina” como algo menor, mas essa visão mudou, e defendeu que as mulheres já estavam presentes em todos os gêneros literários com muito sucesso. No programa, também abordou o rompimento das mulheres com uma literatura de imitação da tradição e de contenção. Para ela, Clarice Lispector (1920-1977)

rompe com isso. “A literatura de Clarice é uma literatura inegavelmente de mulher”, analisa.

Na entrevista, também reflete sobre o momento da literatura brasileira, o papel das mulheres como leitoras, o impacto disso na produção literária e o sonho de não precisarmos ter um gênero dominante.

SESCTV

Série Super Libris Episódio “Mulheres, essas bárbaras que ameaçam o império”

Direção de José Roberto Torero Dia 14/5, às 19h30. Assista também sob demanda em sesctv.org.br/superlibris

A escritora Marina Colasanti foi a entrevistada do episódio "Mulheres, essas bárbaras que ameaçam o império", da série Super Libris, do SescTV.

FENDA NO TEMPO

Em meio à aceleração do cotidiano, artista visual Stela Barbieri tenta furar a rotina produtivista e convida público à pausa

POR MARCEL VERRUMO FOTOS NILTON FUKUDA

Em PAUSA, exposição assinada pela artista visual Stela Barbieri e em exibição no Sesc 14 Bis, visitantes podem acessar e vestir obras imersivas, experenciando um tempo dilatado.

Quando criança, na cidade de Araraquara (SP), a artista visual Stela Barbieri passava horas a fio se movimentando em cadeiras de balanço, brincando de imaginar histórias. Adulta, se mudou para a capital paulista e se deparou com uma urbe acelerada, marcada por carros que cortam avenidas em alta velocidade, corpos apressados para o próximo compromisso, olhos imersos no celular. Na grande metrópole, trilhou uma jornada nas artes visuais, na educação e na literatura, tendo sido curadora da área educativa de equipamentos culturais como a Bienal de Arte de São Paulo e o Instituto Tomie Ohtake. Em diversas ocasiões, presenciou a pressa e a rotina minguarem o tempo da contemplação e do ócio.

"Comecei a sentir que, como a vida está muito acelerada, temos o risco de agir mecanicamente: todos os dias, acordamos, vamos para o trabalho, fazemos muitas tarefas. Com tantas demandas, a qualidade da nossa presença pode ficar comprometida. Como podemos cultivar outro tipo de atenção, e uma presença e temporalidade que deem sentido à vida? Como nos dedicamos ao nosso cotidiano, sem sermos atropelados por ele?", questiona, citando as reflexões que a inspiraram a criar a instalação artística PAUSA, em exposição no Sesc 14 Bis, até 3 de agosto [leia mais em Território do ócio].

Nesse novo trabalho, Barbieri convida o público a dilatar as horas. Uma nova experiência se abre, por exemplo, em três casulos imersivos gigantes, inspirados em casas de animais como o joão-de-barro, redutos que acolhem o visitante e o protegem do ritmo voraz do exterior. Dentro delas, é possível se sentar em cadeiras de balanço – inspiradas nos móveis da infância da artista – e, com fones de ouvido, fechar os olhos e navegar pelo som das águas, contemplar a melodia das músicas, sentir a emoção de poemas e histórias sobre a origem da noite, do planeta, dos vagalumes. Muitas das palavras ditas foram escritas pela própria artista; e as trilhas sonoras, criadas pelo artista Leo Barbieri.

A pausa pulsa no conceito das obras e em suas materialidades. Nas tramas e cortinas artesanais que compõem os casulos e nas cadeiras democraticamente desenhadas em diferentes tamanhos. Nas partes, há a expressão que se expande no todo. “Nas membranas e chocalhos das cortinas, por exemplo, temos tatibilidades diversas que podem dinamizar a imaginação”, detalha Barbieri, que também guardou nas suas obras de arte a potência para os públicos inventarem outras realidades. “Em um mundo distópico, onde parece que a importância da pessoa está na quantidade de ocupações que ela tem, pausar é um posicionamento político”, finaliza a artista.

Casulo Imersivo (2025), o qual o público pode vestir na cabeça.

gráfica

Casulo de Cabeça (2025) em frente ao Casulo Lamparina (2025).

No Casulo Lamparina (2025), cadeiras de balanço e fones de ouvido com músicas, poemas e histórias são convite a dilatar o tempo.

Cadeiras de balanço em diferentes configurações democratizam o ócio a diferentes públicos.

Sementes de olho de cabra, de falso pau-brasil e cabaças compõem as cortinas do Casulo de Sementes (2025).

No Casulo de Sementes (2025), visitante pode experienciar em um espaço circunscrito no centro de São Paulo e experenciar outra relação com o tempo.

Teto do Casulo Lamparina (2025).

Painel reúne maquetes, cadernos e outras peças criadas durante processo de desenvolvimento das obras.

ver no sesc / gráfica

TERRITÓRIO DO ÓCIO

Visitantes do Sesc 14 Bis expandem relação com o tempo na exposição PAUSA

As reflexões a respeito da relação humana com o tempo e o ócio perpassam a ação do Sesc São Paulo ao longo do ano, desde a concepção dos espaços até a definição da programação. Nessa linha, o Sesc 14 Bis recebe a exposição PAUSA até 3 de agosto, concebida pela artista visual Stela Barbieri, que convida o público a romper com a lógica do produtivismo e pausar.

“Influenciar mudanças e abrir novas perspectivas que instiguem pessoas e vivências mais sensíveis e menos automatizadas é parte da ação cultural transformadora a que se propõe o Sesc. Cultivar um olhar mais generoso e atento promove a construção de relações mais empáticas e solidárias, abrindo caminhos para um futuro

mais justo”, afirma Luiz Deoclecio Massaro Galina, diretor do Sesc São Paulo, em texto publicado no catálogo da exposição.

Quem entra na unidade tem a oportunidade de dilatar as horas a partir de uma multiplicidade de possibilidades. O que primeiro salta aos olhos são três casulos imersivos, onde é possível ter uma experiência tátil tocando as membranas que os compõem, entrar em suas estruturas e, em cadeiras de balanço – algumas se movimentam, outras estão paradas –, experimentar outro ritmo. Próximos a essas instalações, há oito casulos de cabeça que os visitantes podem vestir, criando um microambiente para a descobertas de novas

sensações. Alguns deles estão sobre uma mesa, acoplados a fones de ouvido com trilhas sonoras e declamações; outros estão pendentes e, feitos com sementes e cascas de árvores, propiciam ao visitante uma nova relação com os sons da natureza.

“Diante dessa rua por onde passam milhares de pessoas todos os dias, essa exposição convida o público a findar o ritmo acelerado e propõe outra relação com o tempo. Aqui, a pausa não é um chamamento a parar, é uma oportunidade para seguir outro movimento”, explica a artista, que também preparou um painel com textos, maquetes e desenhos mostrando o processo de criação das obras expostas.

14 BIS

PAUSA

Até 3/8 de 2025. Terça a sábado, das 10h30 às 20h30. Domingos e feriados, das 10h30 às 18h30. GRÁTIS. sescsp.org.br/14-bis

Na exposição PAUSA, da artista Stela Barbieri, casulos de cabeça convidam os visitantes a experimentar um microambiente para a descoberta de novas sensações.

FEMININA Sinfonia

Mulheres ocupam cada vez mais espaços nos palcos, nas orquestras e nas rodas de música, provando que talento, técnica e instrumento não têm gênero

POR LÍGIA SCALISE

Adécada era 1970 e os palcos dedicados à música de concerto ainda eram dominados por homens. Em meio a esse cenário, diferentes orquestras ao redor do mundo passaram a incorporar cortinas em suas audições, "ocultando" quem se candidatava a ingressar nesses grupos. Esse modelo de avaliação, já adotado na seleção de artistas de outros gêneros musicais, foi um marco na história da música de concerto, multiplicando a presença feminina nesse campo.

Entre acordes, sopros e ritmos marcados com precisão, uma transformação acontece na música nas últimas décadas: a presença cada vez mais forte de mulheres instrumentistas em palcos, rodas, bandas e orquestras. Se antes a execução de certos instrumentos era vista como um território masculino – do contrabaixo ao saxofone, da percussão à sanfona –, hoje, musicistas de diversas gerações encontram espaço

para provar que talento, técnica e música não têm gênero. E não existem instrumentos masculinos ou femininos: todas as pessoas têm postura, capacidade e força para tocar o que quiserem.

A questão é que, por séculos, o preconceito de gênero orquestrou os espaços que as mulheres podiam ou não ocupar na música profissional. Enquanto os homens tinham mais oportunidades para estudar e se especializar em certos instrumentos, na regência e na composição, às mulheres restava o piano, muitas vezes no ambiente doméstico, ou o microfone, muitas vezes sob a condição de “musa” – a voz que encanta, mas não comanda. A imagem da cantora cercada por outros músicos se tornou tão enraizada que a ausência de mulheres nos instrumentos sequer era questionada. “Elas não eram incentivadas a tocar, muito menos a se profissionalizar. E quando uma mulher ousava

ocupar esses espaços, precisava provar constantemente sua competência”, afirma Luisa Toller, musicista e pesquisadora, mestre em música e gênero.

Felizmente – e com muita resistência e luta – essa realidade está mudando. “A discussão sobre representatividade nos instrumentos é relativamente recente, impulsionada pelo feminismo e pelas redes sociais nos últimos 30 anos. Hoje vemos musicistas atuando em diversos estilos e dominando todos os tipos de instrumentos. Ainda há uma prevalência masculina, mas o processo de transformação da cena instrumental está em curso”, reforça Toller que, em 2021, viralizou ao questionar a ausência de mulheres instrumentistas na Mostra de Música Instrumental Paulista. Na época, ela enfatizou: “Não é a primeira vez que nos deparamos com esse problema e o expomos aos quatro ventos. E, novamente, afirmamos: não aceitaremos mais ser excluídas dos eventos de música”.

Seja no meio da música de concerto, no qual a regência e os naipes de metais e percussão ainda são majoritariamente masculinos, seja na música popular, em que as mulheres precisam constantemente provar sua competência, a mudança está em andamento. Badi Assad, referência mundial no violão, é um exemplo disso. “Quantas vezes ouvi que toco como um homem? Perdi as contas. Quando jovem, via isso como um elogio, mas só na fase adulta percebi o peso dessa comparação. Como mulher na música, precisei me provar muito mais do que os meus colegas homens”, diz a violonista, cantora e compositora, com mais de 35 anos de carreira.

Lucinha Turnbull é considerada a primeira mulher a tocar guitarra profissionalmente no país.
Nilton Fukuda

Grupos, bandas, rodas e orquestras exclusivamente femininas têm desempenhado um papel fundamental na construção desse novo cenário. Paula Valente, saxofonista e professora, conta que a Jazzmin’s, por exemplo, nasceu da escuta de suas alunas sobre a falta de inclusão no mercado da música instrumental. Em 2016, ao lado da pianista Lis Carvalho, ela fundou a primeira big band composta apenas por mulheres. “O objetivo é ampliar o espaço de aprendizado, trocas e trabalho, além de oferecer encorajamento para as musicistas. Essa é a palavra-chave: encorajamento. A representatividade é transformadora: quanto mais mulheres aparecem nos palcos, mais meninas se veem naquele lugar e entendem que também podem seguir esse caminho”, ressalta.

PRIMEIRA GUITARRISTA

Lucinha Turnbull é considerada a primeira mulher a tocar guitarra profissionalmente no país e, desde então, construiu uma carreira marcante. O que sempre esteve evidente em seus 60 anos de trajetória foi a paixão pela música e o encantamento pelo instrumento que escolheu como profissão. “Eu tinha só 19 anos, e desde a primeira vez, toquei guitarra para me divertir. Meu pai me incentivava, já minha mãe se preocupava com meu futuro. Mesmo assim, insisti e acabei furando a bolha do domínio masculino no instrumento”, relembra.

Nos anos 1970, fez seu primeiro show profissional no Teatro Oficina, na capital, onde abriu uma apresentação de Os Mutantes. Foi o início de uma trajetória que a levou a parcerias com Rita Lee (1947-2023), Caetano Veloso,

Moraes Moreira (1947-2020), Guilherme Arantes e Gilberto Gil. “Uma gravação me abriu portas para outra, e no fim, sempre chamavam ‘a menina da guitarra’, e acabei me tornando referência”, conta.

Hoje, aos 72 anos, Lucinha reflete sobre sua carreira com orgulho. “Acredito que perdi algumas oportunidades por ser mulher, porque homem geralmente indica homem, mas fui conquistando meu espaço. E sempre que precisei, me posicionei. O que me manteve firme todos esses anos foi acreditar no meu trabalho”.

ÚNICA NA ORQUESTRA

Quando Ana Valéria Poles começou a tocar contrabaixo, não tinha referências femininas no comando do instrumento. Como gosta de dizer, “era terra arrasada”. Justamente por isso, tornar-se inspiração para outras meninas é algo que a enche de orgulho. “Completei 50 anos de carreira, sendo 37 deles na Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp). Hoje, sou chefe do naipe de contrabaixo e a única mulher entre dez homens. Quando comecei a estudar piano no Conservatório de Tatuí, aos 12 anos, jamais imaginaria trilhar esse caminho. O contrabaixo surgiu por sugestão de um professor que queria formar uma orquestra infantojuvenil. Foi ele quem me levou a tocar em orquestras no exterior e me tornei referência no Brasil”, celebra.

Após conquistar prêmios nacionais e se apresentar como solista em importantes orquestras brasileiras, Ana Valéria recebeu uma bolsa do Governo do Estado de São Paulo para estudar na Escola Superior de Música e Artes Cênicas de Viena

(hoje Universidade de Música), sob a orientação do renomado professor Ludwig Streicher (19202003). Durante sua trajetória na Europa, integrou o conjunto Novos Solistas de Viena, a Primeira Orquestra de Mulheres da Áustria e a Orquestra Franz Lehár, além de ter se apresentado com a Orquestra Mozarteum de Salzburg.

“Aprendi muito com os professores que tive. Também adorava dar aula para mulheres. Toda vez que duvidaram da minha capacidade, respondi com resultados. Nunca me deixei abalar. Essa é a mensagem que passo para minhas alunas: focar nos estudos e ignorar críticas sem fundamento”, destaca.

Hoje, Ana Valéria vê com entusiasmo a transformação da música instrumental no Brasil. “Talvez a mudança não aconteça na velocidade que gostaríamos, mas está acontecendo. Sou uma das precursoras no meu instrumento e, agora, vejo muitas meninas na ativa. Isso é maravilhoso”, comemora. Exemplo desse movimento é o Instrumental Sesc Brasil, projeto realizado há mais de três décadas pelo Sesc São Paulo, que apresenta semanalmente shows instrumentais – atualmente no Teatro Anchieta, no Sesc Consolação – e, cuja curadoria atual prima pelo protagonismo feminino.

NOVA GERAÇÃO

A música sempre esteve presente na vida de Valentina Faccury. Neta de pianista, filha de um trombonista e de uma educadora musical, cresceu cercada por sons e ritmos. Mas foi nas aulas de capoeira, ainda criança, que descobriu sua verdadeira paixão:

do naipe de contrabaixo na Orquestra Sinfônica de São Paulo (Osesp), Ana Valéria Poles celebra meio século de uma carreira dedicada à música.

a percussão. Hoje, é um dos principais nomes da nova geração e integra três grandes bandas de música instrumental, incluindo o Bixiga 70, grupo de formação majoritariamente masculina.

“A percussão, assim como quase todos os instrumentos, ainda tem uma maioria de homens. Isso é reflexo de um contexto histórico no qual eles sempre tiveram o privilégio de se dedicar exclusivamente à carreira, enquanto as mulheres precisavam dividir seu tempo com diversas responsabilidades. Mas isso está mudando. Aos poucos, fomos reivindicando e ocupando esse espaço profissional. Minha geração e as próximas estão cada

vez mais fortes”, constata. Embora tenha enfrentado situações desconfortáveis no início da carreira, quando o conhecimento técnico era questionado apenas pelo fato de ser mulher, Valentina reconhece a importância do apoio que recebeu ao longo do caminho.

ELAS NA SANFONA

Vitória Faria entendeu muito cedo que, para conquistar seu espaço na música como instrumentista, teria que enfrentar muitas batalhas. “Comecei a tocar sanfona aos nove anos, incentivada pela minha mãe, que é artista plástica e mantinha um centro cultural em casa com

meu padrasto. Nossa residência era um espaço de trocas muito rico, por onde passavam diversos artistas. Com o tempo, percebi que a liderança estava sempre nas mãos dos homens. Quando ingressei na faculdade, essa realidade se repetiu. Não havia vestibular com especialização no meu instrumento, então entrei para o curso de composição popular. Passei em primeiro lugar, mas era a única mulher e sofri muita hostilidade”, relembra.

Vitória conta que, muitas vezes, se sentiu isolada, no canto do palco ou colocada como a “cereja do bolo” – por ser a única mulher. Para ser respeitada como musicista, precisou provar seu talento incontáveis vezes. “Outro dia, fui a uma roda de choro tradicional e levei minha sanfona. Havia uns 20 homens na roda, e, quando cheguei com meu instrumento, vi olhares de deboche. Quando me sentei para tocar, senti os olhos esperando que eu errasse uma nota. Conheço bem essa cena. Mas, para a surpresa deles, eu não errei. Ainda assim, precisei ouvir comentários como um selo de aprovação. Eu me pergunto: por que os homens ainda se surpreendem tanto com a capacidade de uma mulher?”.

Imbuída da missão de lutar, cantar e tocar pelos direitos das mulheres, Vitória vê mudanças acontecendo. “A gente só vai até onde acredita ser possível, e sinto que há cada vez mais referências femininas na música, o que impacta diretamente outras mulheres. Estamos criando espaços mais acolhedores para existir. Espero que um dia isso não seja mais necessário, mas, por enquanto, ainda é. O reconhecimento coletivo fortalece. Meu novo álbum canta e toca por todas nós”, conclui.

Chefe

para ver no sesc / música

HARMONIA EM CONJUNTO

Há quase 50 anos, o Centro de Música do Sesc

São Paulo fomenta a construção musical coletiva, compreendendo-a como um direito de todas as pessoas

Criado na década de 1970, o Centro de Música do Sesc

São Paulo promove a troca e a multiplicação de saberes musicais, tanto na teoria quanto na prática, entre diferentes públicos. Em cursos, workshops, vivências e encontros, o programa fomenta

o ensino dessa arte de forma acessível, assumindo-a como um direito relacionado à cidadania.

O programa é realizado de maneira permanente em diferentes unidades do Sesc no estado de São Paulo. As unidades do Consolação, Guarulhos

e Vila Mariana também contam com estruturas voltadas a cursos regulares e outras atividades formativas, com um acervo de instrumentos musicais, métodos, partituras e equipamentos multimídia.

“O Sesc prioriza o ensino coletivo, o lazer por meio do fazer musical prazeroso e a pesquisa na linguagem, buscando contemplar os mais diversos gêneros musicais. Nessa concepção, fazer música em grupo contribui para a construção de sujeitos autônomos e de suas comunidades”, afirma Priscila Rahal, da Gerência de Ação Cultural do Sesc.

Saiba mais sobre cursos e inscrições em: sescsp.org.br/ projetos/centro-de-musica

Pedro Abude
Centro de Música do Sesc São Paulo democratiza conhecimentos para públicos de todas as idades.

sescsp.org.br/relicario

ARRiGO BARNABÉ & BANDA SABOR DE VENENO

AO ViVO NO SESC _ 1980

Registro inédito traz o repertório de "Clara Crocodilo", disco considerado um marco na vanguarda paulista

Relicário: Arrigo Barnabé & Banda Sabor de Veneno

(ao vivo no Sesc 1980)

Disponível em

Visite a loja virtual e conheça o catálogo completo sescsp.org.br/loja /selosesc

ALIMENTARES CULTURAS

Cozinhar, herdar da família receitas e modos de preparo dos alimentos, comer um famoso PF, com arroz, feijão, bife, batatas fritas e salada, entre outras práticas e costumes relacionados à alimentação, são a área de estudo das culturas alimentares. Por ser uma abordagem interdisciplinar, combina antropologia, sociologia, culinária, nutrição, estudos culturais entre outros campos do saber que nos ajudam a explicar por que preferimos um determinado alimento, por que deixamos de fora certos ingredientes ou por que voltamos a inseri-los no dia a dia.

Um exemplo é a banha de porco, que faz parte da culinária caipira, mas também de outras culinárias brasileiras. A partir dos anos 1960, a banha foi taxada de prejudicial à saúde e passou a ser substituída por gorduras processadas de vegetais, como óleos e margarina. Até que, no começo do século 21, novos estudos comprovaram que a banha de porco, usada com moderação, pode ser mais benéfica que alternativas do mercado. “Muitas vezes, ao refletirmos sobre nossa cultura alimentar, pensamos imediatamente em alimentos tradicionalmente associados ao Brasil, como mandioca, milho, feijão, arroz e café, ainda que alguns, como o café e o arroz, não sejam nativos. No entanto, a cultura alimentar não

se restringe ao passado – ela é um processo vivo que é produzido e produz a sociedade a qual ela pertence”, explica Adriana Salay, doutora em história e professora do departamento de história da Universidade de São Paulo (USP).

A cultura alimentar também está no simples ato de flanar pelas feiras de rua em São Paulo, observando as frutas da estação; nas idas e vindas à padaria do bairro; nos almoços em família. “Nós podemos abordar temas como produção de alimentos, técnicas culinárias, identidade cultural, questões de gênero, raça e poder, impactos ambientais e saúde pública. O objetivo é entender como a alimentação é parte integrante da cultura de um povo, e como pode mudar em resposta a fatores sociais, políticos e econômicos. Uma explicação bonita para afirmar a nossa capacidade de xeretar a sacola da feira ou o carrinho do mercado”, descreve Patty Durães, pesquisadora de culturas alimentares, com especialização na análise da influência das heranças afro-diaspóricas na comida brasileira.

Neste Em Pauta, Salay e Durães despertam o “apetite” sobre o que é cultura alimentar, qual o papel do indivíduo e da sociedade nessa história, e por que precisamos refletir sobre como nos alimentamos.

O que é a tradição alimentar?

Muitas vezes, ao refletirmos sobre nossa cultura alimentar, pensamos imediatamente em alimentos tradicionalmente associados ao Brasil, como mandioca, milho, feijão, arroz e café, ainda que alguns, como o café e o arroz, não sejam nativos. No entanto, a cultura alimentar não se restringe ao passado – ela é um processo vivo que é produzido e produz a sociedade a qual ela pertence. Isso significa que o aumento do consumo de ultraprocessados não deve ser visto simplesmente como uma “não cultura” alimentar ou uma mera perda cultural, mas como uma transformação da nossa cultura alimentar, inserida em mudanças sociais mais amplas. O crescimento progressivo do consumo desses alimentos é um reflexo da sociedade contemporânea – uma cultura alimentar dos nossos tempos. Vivemos em uma sociedade marcada pela hiperconectividade, pela globalização,por cadeias produtivas que oferecem cada vez menos biodiversidade, e na qual o tempo se tornou uma das mercadorias mais valiosas. Nesse contexto, o consumo de ultraprocessados faz sentido.

O preço a ser pago, no entanto, é alto. E a solução para essa rápida transformação da nossa cultura alimentar também já é conhecida: precisamos incentivar o consumo de alimentos in natura ou minimamente processados, optar por alimentos locais e mais biodiversos, provenientes de pequenos produtores e, sempre que possível, orgânicos e agroflorestais, garantindo a preservação do planeta como o conhecemos. Uma das orientações muito replicadas é: “façamos como nossos avós”. A classificação proposta pelo professor Carlos Monteiro e pelo Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo (NUPENS/USP) foi fundamental nesse sentido, ao introduzir o conceito de ultraprocessados e evidenciar seus impactos.

Entretanto, como um produto e produtora do cotidiano atual, a cultura alimentar não está isolada dos fatores materiais que condicionam sua prática. Isso significa que não é simples colocar em prática todas essas recomendações e que, se encararmos a alimentação apenas como uma escolha individual, acabamos por torná-la acessível somente àqueles que possuem mais tempo e renda – ou seja, os mais ricos da sociedade. Uma alimentação saudável e sustentável exige condições adequadas de reprodução, razão pela qual a discussão sobre a divisão das tarefas domésticas, frequentemente levantada por Rita Lobo, é tão relevante. Comer feijão e arroz em todas as refeições não depende apenas da nossa boa vontade.

A dupla arroz e feijão é a mais citada quando o assunto é tradição alimentar e, muitas vezes, essa discussão se limita a uma simples enumeração de ingredientes e pratos, como a feijoada. No entanto, a tradição é feita por pessoas e não deve ser reduzida apenas aos alimentos em si. Tradição, substantivo feminino, pode ser entendida como herança cultural, um conjunto de valores morais ou aquilo que se perpetua pelo hábito. Por isso, quando falamos em tradição alimentar, devemos considerar não apenas os ingredientes e os pratos, mas também as técnicas de plantio, colheita e preparo e, por que não, os modos como a sociedade se organiza em torno da alimentação.

Quando falamos em tradição alimentar, devemos considerar não apenas os ingredientes e os pratos, mas também as técnicas de plantio, colheita e preparo e, por que não, os modos como a sociedade se organiza em torno da alimentação.

O crítico literário e professor Antonio Candido (1918-2017) chamou atenção para essas formas tradicionais de organização social em seu mais que recomendado livro Os parceiros do Rio Bonito (1964). Ele demonstrou que, antes da consolidação do sistema capitalista de acesso aos alimentos no interior de São Paulo, no século 20, a produção e o consumo de alimentos eram, em grande parte, atividades coletivas. O plantio e a colheita eram compartilhados, e um porco abatido também era dividido entre os membros da comunidade. O historiador e antropólogo húngaro Karl Polanyi (1886-1964) discutiu essa questão em A grande transformação (1944), no qual analisou como as trocas materiais, antes da consolidação do capitalismo, eram regidas em diferentes sociedades por regras morais e coletivas e não apenas pela lógica tida como impessoal do mercado.

Embora essas formas de organização estejam cada vez mais raras, ainda é possível encontrar resquícios dessa noção ampliada de família e grupo social em alguns lugares e práticas. A solidariedade expressa no ato generoso de compartilhar alimentos tem raízes em uma tradição centenária de organização coletiva da vida cotidiana. E essa tradição, que pode ser entendida também enquanto alimentar, é essencial para enfrentarmos os desafios do acesso à alimentação nos tempos atuais. A coletivização da produção e do consumo de alimentos pode ampliar o acesso a uma alimentação saudável para um número maior de pessoas, rompendo com a lógica do individualismo que muitas vezes marca nossa relação com o comer e com a solução dos problemas.

Um exemplo contemporâneo dessa tradição é a cozinha solidária. Descentralizada, gerida pela comunidade e baseada na coletividade, ela retira da mulher, especialmente da mãe, a responsabilidade exclusiva da produção cotidiana de alimentos – uma tarefa que historicamente recai sobre as mulheres como um trabalho de cuidado não remunerado. As cozinhas solidárias, que chamaram atenção na pandemia, não surgiram nos últimos anos. Mas a crise provocada pela Covid-19 evidenciou essa forma de organização comunitária que diminuiu o sofrimento causado pelo aumento da fome. Essa tecnologia social pode ser vista como uma fagulha de modos tradicionais de organização da vida cotidiana e mostra que podemos, sim, sentir orgulho da nossa cultura alimentar. Apontam uma direção de como os desafios para acesso à alimentação saudável devem ser enfrentados atualmente. Afinal, não há solução individual para problemas coletivos. E pensar coletivamente também é tradição alimentar.

Adriana Salay é doutora em história e professora do departamento de história da Universidade de São Paulo (USP). Criou o projeto Quebrada Alimentada, junto com o restaurante Mocotó, para promover assistência alimentar. É coautora do livro Fome e assistência alimentar na pandemia (2022), uma iniciativa do Sefras – Associação Franciscana de Solidariedade, disponível para download gratuito na página: sefras.org.br/publicacoes.

em pauta

Sou do camarão ensopadinho com chuchu

Para entender o que é cultura alimentar, precisamos nos permitir um mergulho nas fruteiras, despensas, geladeiras, quitandas, mercearias, bodegas, mercados, feiras livres e barracas de venda de comida a fora. Quando eu era criança, meus olhos brilhavam com bacias de bife à rolê que minha avó me ensinou a preparar com maestria: uma fatia de carne, um pedaço de cenoura, outro de linguiça defumada, ramo de salsinha, fatia de bacon e depois enrola apertadinho, espeta palito de dente para fechar e volta para a marinada. A gente recheava hoje para preparar amanhã. Minhas lembranças mais amorosas são também da adolescência, na busca da catalônia mais verdinha na feira, a compra do corte certo de acém no açougue, as frutas da quitanda e o horário de comprar pão na padaria.

Dei muitas voltas profissionais até perceber que precisava trabalhar com comida, uma vez que sempre pensei em comida o dia todo. Como viver dessa vontade de falar de comida e entender o Brasil a partir dela? Há um provérbio africano que diz: “Quando não souber para onde ir, olhe para trás e lembre-se de onde veio”. Nesse processo, entendi que sempre fui o que hoje chamo de pesquisadora de culturas alimentares. Minha avó diria que sou xereta mesmo e eu não poderia discordar dela. Me interesso por saber se você compra mandioca no mercado ou do rapaz que vende no carrinho de mão na rua. Se guarda o pó de café na porta da geladeira ou num vidro no armário, se refoga arroz com alho, com cebola ou com os dois. Se faz salada de escarola, se escalda a couve, se pica o tomate na tábua ou na mão, em cima da panela na hora de cozinhar.

Cultura alimentar é uma área de estudo que investiga práticas, costumes, rituais e tradições relacionados à alimentação em diferentes culturas e sociedades. É uma abordagem interdisciplinar que

combina antropologia, sociologia, história, nutrição, gastronomia e outros campos para entender a relação das pessoas com a comida em diferentes contextos. Nós podemos abordar temas como produção de alimentos, técnicas culinárias, identidade cultural, questões de gênero, raça e poder, impactos ambientais e saúde pública. O objetivo é entender como a alimentação é parte integrante da cultura de um povo, e como pode mudar em resposta a fatores sociais, políticos e econômicos.

Uma explicação bonita para afirmar a nossa capacidade de xeretar a sacola da feira ou o carrinho do mercado. Esse é o nosso campo de estudo. E como amante da comida brasileira, meus instrumentos de trabalho também têm nomes bonitos como cumbuca, caneca, tabuleiro, peneira, pilão, tipiti, cesto, caçarola. E muitas das palavras que permeiam nossas cozinhas existem para contar a história do nosso país a partir do que comemos. Nossa comida é afro-indígena com influências europeias. Dos que aqui já viviam, preservamos o consumo de pescados e de mandioca em suas diferentes formas. Tapiocas, açaí, moquecas e pirões não me deixam mentir.

Com a chegada de africanos escravizados, essa diáspora que em nada nos orgulha, sementes e preparos fincaram raízes aqui. Dendê, quiabo, café, feijão fradinho, melancia, maxixe, inhame… Os menos avisados pensam que são frutos brasileiros e são surpreendidos quando descobrem que vieram da costa. E que também de lá, de onde o sol brilha forte, costumes como caldos, fermentações e macerações descobertas ou inventadas nos permitem beber cafezinho coado, vinhos e cervejas, e comer pães bem assados em fornos ancestrais. Para te deixar com água na boca, conto que com eles vieram mingaus, canjicas, mungunzá, sarapatel, caruru, xinxim, cuscuz (sim, o cuscuz é uma técnica africana), vatapás, cozidos e muito mais.

Essa busca por domínio de terras férteis para plantações de cana-de-açúcar fortaleceu a economia das grandes navegações entre os continentes e da construção de engenhos por vários estados. E não tem como falar de engenho e não citar a “boazinha” mais “marvada” do Brasil: a cachaça ou pinguinha. Com europeus, aprendemos a consumir açúcar através de compotas, geleias, bolos, tortas e docinhos. Pernambucanos e mineiros entendem muito bem de quitandas, rapaduras e doçarias portuguesas. Baianos e cearenses são mestres nas misturas com frutas nativas. Licores de jabuticaba e jenipapo são bebidas festivas assim como cajuadas, figadas, mangadas, goiabadas e tantas outras “adas” que encontramos nas vendas.

Comida da terra, da costa, do reino. Comida de festas católicas e de terreiros de religiões de matriz africana encantam nossos paladares. Somos comensais de merenda, farnel, matula ou marmita. Especialistas em “PF” (lê-se pê éfe), o amado prato feito do brasileiro, que vai mudando de nome de acordo com a região. Comercial, executivo, quentinha, prato do dia, à la minuta. Arroz e feijão é de lei, tem sempre. E com a duplinha mais famosa vêm os acompanhamentos como fritas, salada, espaguete ao sugo, farofa e as misturas: bife de carne, filé de frango, ovo frito, carne de panela, fígado acebolado, bisteca de porco.

Passei muito rápido por um preparo que diz muito da nossa cultura alimentar: a farofa. Cada família tem a sua receita – sequinha ou molhadinha, com bacon ou sem, com farinha de mandioca torrada grossa ou fina, com farinha de milho ou de pão, com feijão, com cebola, com alho. Puxada no óleo de soja, no azeite de dendê ou na manteiga de garrafa. Tem coisa mais brasileira do que farofa?

Eu espero que esse texto te encha a boca d’água, te dê vontade de ir para a cozinha preparar algo gostoso, que te faça passear por barracas e gôndolas com o olhar mais atento e que, acima de tudo, te faça sentir muito orgulho de ser brasileiro. Sim, pode continuar comendo macarronadas suculentas nas cantinas italianas, sopas de cebola ao estilo francês, sushi e sashimis asiáticos, pokes vietnamitas, tacos mexicanos, hambúrgueres americanos, esfihas árabes, yakisobas, croissants e temakis.

Muitas das palavras que permeiam nossas cozinhas existem para contar a história do nosso país a partir do que comemos. Nossa comida é afro-indígena com influências europeias.

Mas não deixa de enaltecer nosso pão de queijo, picadinho, galinhada, baião de dois, feijão tropeiro, galinha caipira, pingado de boteco, os peixes dos nossos rios e mares, nossas frutas nativas como caju, cajá, cambuci, pitanga e tantas outras. Porque cultura alimentar é Brasil, mas também é mundo e assim sigo, viajando e comendo. Pesquisando, coletando histórias, registrando saberes e construindo memórias por onde passo.

E para finalizar, peço licença para trazer um trecho de “Disseram que voltei americanizada”, imortalizada na voz de Carmen Miranda (1909-1955):

Enquanto houver Brasil, na hora das comidas, eu sou do camarão ensopadinho com chuchu.

Patty Durães é pesquisadora de culturas alimentares, especializada na influência das heranças afrodiáspóricas na culinária brasileira. Com experiência em instituições como Masp, Itaú Cultural, Sesc, Senac e Sebrae, autora do curso Muito Além da Boca, e palestrante do TEDx São Paulo. Em 2024, foi professora convidada na Dillard University, em New Orleans, Estados Unidos, para falar de comida brasileira.

encontros

O dramaturgo Jé Oliveira estreou, em março, o espetáculo Pai contra Mãe, uma adaptação livre do conto de Machado de Assis.

ARTE Encruzilhadas da

O encontro do rap, da poesia e do teatro nos caminhos do dramaturgo Jé Oliveira, um dos fundadores do Coletivo Negro

POR RACHEL SCIRÉ

Na década de 1990, o tracejado da vida de Jefferson Oliveira Delfino, nascido e criado no Zaíra 2, periferia de Mauá, na Grande São Paulo, parecia distante do universo da arte. Mas uma encruzilhada fez com que o rap, a poesia e o teatro se encontrassem diante do jovem e descortinassem palcos e possibilidades. “O teatro foi um acidente em meu caminho. Que bom que a professora Milene, da Escola Estadual Hans Grudzinski, me levou para assistir àquela peça. Mudou a minha vida”, conta Jé Oliveira, hoje dramaturgo, com nove espetáculos escritos e encenados.

Formado pela Escola Livre de Teatro de Santo André, graduou-se também em ciências sociais pela Universidade de São Paulo (USP),

onde desenvolve seu mestrado, na Escola de Comunicações e Artes. É um dos fundadores do Coletivo Negro, grupo de pesquisa cênica, poética e étnico-racial, criado em 2008, e que em março de 2025 estreou Pai contra Mãe ou Você está me ouvindo? no Teatro Anchieta, do Sesc Consolação em março. Sob direção e dramaturgia de Oliveira, a peça é uma adaptação livre de um conto de Machado de Assis (1839-1908) e reflete sobre os ecos da escravidão no Brasil atual.

Jé Oliveira também concebeu, dirigiu e atuou no espetáculo Gota D’Água {PRETA}, em 2019, que lhe rendeu o Prêmio APCA de Melhor Direção do ano, sendo o primeiro homem negro contemplado na categoria. Outro destaque de sua trajetória é Farinha com açúcar

ou Sobre a sustança de meninos e homens, de 2016, obra dedicada ao legado do Racionais MC's, grupo de rap determinante para os caminhos artísticos de Oliveira. O espetáculo integrou o Circuito Nacional Sesc Palco Giratório e o texto, publicado pela Editora Javali, foi semifinalista do Prêmio Oceanos de Literatura em 2019.

Neste Encontros, Jé Oliveira fala sobre as motivações que o levaram a escrever, compor, dirigir, atuar e produzir. Também compartilha olhares sobre a cena teatral contemporânea e reflexões sobre a realidade brasileira, sempre alinhavadas em suas criações no teatro e na música.

PRIMEIRO OLHAR

Eu cursava o Ensino Médio em uma escola estadual de Mauá (SP), onde nasci, e a professora de língua portuguesa propôs que a gente fosse assistir à Morte e Vida Severina [peça baseada na obra de João Cabral de Melo Neto (1920-1999)], estudada nas aulas de literatura. Era uma montagem da Quartum Crescente, companhia de teatro amador do ABC paulista, da qual eu faria parte por quase quatro anos. Eu já era do movimento hip hop e, por causa do rap, as rimas me chamaram atenção. Me lembro, também, de não conseguir acompanhar os códigos da linguagem: três pessoas faziam o papel de Severino. Até hoje, quando estou pensando em teatro e em música, tento resgatar esse olhar virgem para deixar bem nítido para o público o que a gente está tentando dizer enquanto proposta de mundo, de intervenção social.

A AUTOFICÇÃO NUNCA ME INTERESSOU MUITO, ENTÃO SEMPRE VOU BUSCAR OS ECOS COLETIVOS DAS HISTÓRIAS

CAMINHOS TRAÇADOS

Nunca sonhei ser artista. Na minha família, meus primos formavam uma dupla sertaneja amadora e tocavam em festas na favela do Zaíra. Tenho lembranças muito bonitas da minha pré-adolescência, eles eram a única ponte concreta com a arte, até o hip hop, o rap e, sobretudo, o Racionais MC's surgirem na minha vida. Por ser uma pessoa preta do ABC, desprivilegiada socialmente do ponto de vista econômico, o tracejado da minha vida estava bem distante da arte. Cumpri um pouco esse plano: cursei o Senai, algo muito importante para quem era da região e uma forma de realizar o sonho do meu pai, que foi torneiro mecânico, mas não pôde estudar. Aí, o teatro foi tomando conta da minha vida e decidi, com o encorajamento da minha família, estudar profissionalmente.

NEGRO DRAMA

Fui cursar ciências sociais para tentar entender como a sociedade se organiza, por que as coisas são assim. A obra do Racionais foi o evento artístico que me descortinou o mundo e a minha negritude. Me tirou a sensação de insuficiência individual do ponto de vista das vivências sociais, por

exemplo, de achar que poderia ser uma incapacidade da minha família não ter outra condição econômica. O Racionais me ajudou a entender que isso é um percurso histórico que vem muito antes da minha família, que passa por ela, chega até mim e a gente está lutando para que diminua. Tentei aprender como esse grupo pensou o país, sobretudo pelo viés racial, e traduzir, então, para a minha linguagem.

FARINHA COM AÇÚCAR

Com a minha história de vida, formação técnica e pesquisa de linguagem, era como se eu tivesse me preparado a vida inteira, até aquele momento, para fazer a peça Farinha com açúcar ou Sobre a sustança de meninos e homens

A peça teve adesão maciça do público. Do ponto de vista da linguagem, foi inédito trazer o KL Jay, DJ do Racionais, para tocar durante o espetáculo. A própria relação com a música se fortaleceu. No espetáculo, a música é a outra personagem que dialoga com a narradora. Para os nossos empenhos artísticos enquanto teatro de grupo e movimento teatral negro, a peça trouxe respiros. As instâncias performativas também não eram tão recorrentes no teatro negro contemporâneo.

CAVALOS IDEAIS

Fui reler a Gota D'Água [peça de Chico Buarque e Paulo Pontes] e percebi que era uma história preta, portanto, devia ser feita por pessoas pretas. A produção de 1975 é linda, mas a história nos pertence, era preciso uma restituição, porque a história fala da gente e não pode apenas falar de nós sem a nossa presença. Historicamente, a figura do Machado de Assis [autor de Pai contra Mãe, conto que inspirou a nova adaptação do dramaturgo] também foi muito embranquecida. Para além da qualidade artística e da capacidade que ele teve de entender o Brasil, era importante trazer “cavalos” [atores] ideais para essa adaptação de Machado de Assis. Um grupo de teatro preto paulistano se aproximar da obra do Machado dessa forma é importante também em relação à própria negritude do escritor.

ECOS COLETIVOS

A autoficção nunca me interessou muito, então sempre vou buscar os ecos coletivos das histórias. Para o Farinha com açúcar, além das minhas vivências, entrevistei 12 homens negros, com o recorte de masculinidades, procurando uma unidade que coletivizasse a experiência racial. No Gota D'Água, mesmo que Joana seja a personagem principal, ela é um eco da comunidade da qual faz parte. Me interessava tirar a questão conjugal do primeiro plano, porque ela é uma metáfora de uma traição de classes, que no Gota D'Água {PRETA} vira também traição de raça. Agora, no Pai contra Mãe, existe o diagnóstico da persistência de um passado escravocrata e de algumas posturas de mando

continuarem as mesmas. Quem está no poder tem a mesma cor de pele, o mesmo pensamento colonialista, opressor e explorador. A partir disso, queria que a gente conseguisse se fortalecer coletivamente para enfrentar essas questões que nos fragilizam individualmente.

OCUPAR PALCOS

Se só agora a gente está começando a ter alguns acessos é porque alguma coisa estava muito errada, durante bastante tempo. São somatórios de exclusões históricas, porque a diversidade de linguagens, de presenças, sempre existiu. Muita gente que não pode pisar naquele palco [do Teatro Anchieta, no Sesc Consolação] vem com a gente e buscamos honrar essa possibilidade, o diálogo que está sendo travado com a sociedade como um todo ali. Por mais que esteja melhorando, a presença no teatro de pessoas que vêm de onde eu venho, que têm a minha cor de pele, ainda é muito ousada. Gostaria de envelhecer

alcançando esses lugares, com dignidade material, financeira e simbólica, e vendo isso acontecer com as pessoas que são pares de luta da minha geração.

PEÇAS-DISCO

Quem tem necessidade tem pressa, né? Talvez se eu tivesse tido outros acessos, não teria essa polivalência artística, de escrever, atuar, dirigir, compor, produzir, encenar. Mas é ótimo, adoro todas as funções e valorizo o fato de meus projetos exigirem muito da minha vitalidade. Jogar em várias posições contribui para a cena: quando escrevo e dirijo, penso como ator, e vice-versa, em paralelo com a música, porque eu queria ser músico. Gosto de pensar as peças como discos, me ajuda a conceber. Não à toa, o nome do espetáculo é Pai contra Mãe ou Você está me ouvindo? Do ponto de vista simbólico, enquanto sociedade, quais ecos do passado estamos ouvindo? A escuta ainda tem valor ou estamos perdidos em uma playlist infinita?

DE QUEBRADA

Meu imaginário foi moldado por essa experiência de quebrada, por ter crescido na década de 1990, talvez o pior momento na história recente para uma pessoa preta e pobre em São Paulo. Eu sobrevivi, de fato. Isso me formou como homem negro, como cidadão, como artista pensante do país. Não dá para se livrar disso, está sempre comigo, mas fico atento para não fazer disso uma prisão, do ponto de vista estético, do discurso. Quero ter a liberdade de pensar em outras questões artísticas, e a periferia pode estar de várias formas no que eu faço, sobretudo na experiência musical preta, que é uma experiência de periferia.

O ator e diretor Jé Oliveira participou da reunião do Conselho Editorial da Revista E, no dia 27 de março de 2025. A mediação do bate-papo foi de Natalia da Silva Martins, da equipe da Gerência de Ação Cultural do Sesc.

Cena do espetáculo Pai contra Mãe ou Você está me ouvindo?, que esteve em cartaz em março, no Sesc Consolação: uma reflexão sobre os ecos da escravidão no Brasil.

TIBÉRIO EM CAPRI

POR ANDRÉ DE LEONES

ILUSTRAÇÃO THALLES OLIVEIRA

No carro, garagem adentro. Embora não houvesse necessidade, esperei que o portão eletrônico fechasse para só então desligar o motor. O rádio se calou, interrompendo uma suíte de Janáček. Era isso. Fim de papo. O grande resgate chegara ao fim. Quando abri o porta-malas, Michel me fitava com a mesma expressão emburrada de meia hora antes. “Vivo?”

“Minhas costas, bicho. Me ajuda a sair daqui.”

Dali a pouco estávamos à mesa da cozinha, bebericando doses de Glenlivet. Michel fumava sem parar. Incomodado com o silêncio, fui até a sala e liguei a TV. Roma vs. Lazio? Dei uma risada.

Voltei à cozinha bem a tempo de testemunhar Michel acendendo outro cigarro. “Qual é a graça?”

“O jogo parece divertido.”

“Ah, não quero saber de futebol. Futebol que se dane. É a minha vida aqui.”

“Logo te esquecem.”

“Bom, isso é parte do problema, né? Se me esquecem, não trabalho.”

“Eu quis dizer os imbecis. Logo te deixam em paz.”

“Duvido.”

“A série é um sucesso. Recordes de audiência. Eu não me preocuparia.”

“Eles querem me pegar. Eles ficam acampados lá o dia inteiro. Tem uns fantasiados e... caramba, não sei como consegui sair.”

“Por nada.”

“Hein?”

“Por nada. Não precisa agradecer.”

Ele me encarou com os olhos arregalados e, de fato, não agradeceu. Não me agradeceu por bolar o plano de fuga. Não me agradeceu por falar com a vizinha dos fundos, torcendo para que ela não simpatizasse com os manifestantes. Não me agradeceu por pagar 300 reais à vizinha, que não simpatizava com os manifestantes, mas (que surpresa!) tampouco simpatizava com Michel. Não me agradeceu por parar o carro na ruazinha de trás e esperar até que ele pulasse o muro, atravessasse o quintal da vizinha (que, à janela do quarto, filmava tudo com o celular; o vídeo viralizou depois, é claro), seguisse pela passagem lateral e, chegando ali fora, entrasse no porta-malas. Não me agradeceu por forrar o porta-malas com o melhor edredom que encontrei em casa. Não me agradeceu por dirigir com o máximo de cuidado, evitando buracos e solavancos. Como a ruazinha não tinha saída, precisei contornar o quarteirão e passar defronte à casa dele, em meio aos manifestantes. O que fariam se descobrissem quem eu transportava? Provável que vandalizassem o carro. Provável que me dessem uns sopapos. Tudo por causa de uma maldita sitcom

“Por nada”, repeti.

“Olha”, ele disse com a voz embargada, “você sabe que eu sou muito grato por... pelo que fez e... mas... tô realmente em pânico.”

“Relaxa. Não é como se você tivesse ofendido uma minoria ou feito piada com o Holocausto. Quer dizer, cê não fez nada de grave. E a série é um sucesso.”

“Aqueles malucos cercaram a minha casa. Minha mulher pegou as crianças e foi pra casa do ex-sogro. Do ex-sogro! Quem é que procura o ex-sogro em hora de aperto?! Eu sempre desconfiei que...”

Michel era roteirista e produtor de TV. E não escrevia nem produzia porcarias. Ele se especializara em criar novelas e séries que traziam um perfume de erudição e, ao mesmo tempo, milagrosamente, caíam no gosto popular. Aquele tipo de programa que o telespectador médio apreciava porque parecia inteligente, mas não inteligente demais. As pessoas viam os programas do Michel e se sentiam bem. Mesmo quando (ou justamente porque) tinham um ponto de partida inusitado, como um fato histórico obscuro ou um livro que todo mundo conhece, mas quase ninguém leu. Michel conseguia se colocar na altura do telespectador médio e se comunicar com ele por não soar arrogante, intelectualoide ou afetado. Ele transformara

inéditos

Avalovara, de Osman Lins, em um alegre musical natalino. Ele adaptara Ulysses, de James Joyce, para uma novela das seis, usando Anápolis, Goiás, como cenário e transformando a coisa numa farsa engraçadíssima, com direito à canção “Desça daí, seu corno”, do Rei da Cacimbinha, na abertura: “Desça daí, seu corno, desça daí. / Desça daí, seu corno, desça daí. / Desça daí, chifrudo, o que é que há? / Você ganhou foi gaia, não foi asa pra voar”. E, após ler Tiberius – A Study in Resentment, de Gregorio Marañón, concebera uma sitcom sobre os anos de autoexílio do imperador romano em Capri.

Era verdade que, contrariamente ao que apregoaram historiadores clássicos como Suetônio, Marañón deixava claro que as histórias de devassidão envolvendo Tibério na tal ilha eram mentirosas, que tudo não passara de uma tentativa de assassinar o caráter do monarca e sujar seu nome para a posteridade, pois, embora não fosse um devasso, Tibério era uma figura sinistra e cruel.

Mas Michel optara por criar uma mistura de Two and a Half Men e Sai de Baixo, escolhendo um ator meio cancelado (por ser adúltero e farreador) para interpretar o Princeps. O humor escrachado e a ambientação inusitada foram muito bem recebidos pela audiência em geral, mas não pelos historiadores, especialistas e estudantes da área.

É difícil compreender como as coisas escalaram àquele ponto, mas o fato é que dezenas de pós-graduandos em História acamparam diante da casa de Michel. Era difícil entender o que eles queriam em meio à balbúrdia. O cancelamento da sitcom? Um pedido de desculpas? Dar uma coça no criador da série? Que ele reescrevesse a coisa?

Como estivesse ocupado com meu divórcio, não participei da concepção e da escrita da primeira temporada de Tibério em Capri. Meu nome não estava associado à coisa. Assim, quando um tijolo arrebentou a janela da cozinha e aterrissou sobre a mesa, estilhaçando a garrafa (ainda cheia) de Glenlivet, o meu susto foi enorme.

Em seguida, indivíduos fantasiados de guardas pretorianos entraram pela porta dos fundos e nos levaram para o quintal, onde indivíduos fantasiados de senadores romanos nos aguardavam em semicírculo. No centro, sentado em um engradado (vazio) de cerveja, estava um indivíduo fantasiado de Tibério.

Michel começou a chorar.

inéditos

Tibério olhava para a gente, muito sério. “Eu não me irritava tanto desde que Sejano e Livilla aprontaram aquela tentativa de golpe. O que eu faço com vocês?”

“Comigo? Mas eu não...”

Tibério fez um gesto para que eu me calasse, depois se dirigiu a Michel: “O que eu faço com você? Irreverente, engraçadão, repisando mentiras a meu respeito. Calúnias! Aonde quer chegar com isso? A uma damnatio memoriae? Bom. Peço desculpas pelo anacronismo. Sabia que deixei bilhões de sestércios nos cofres de Roma e reforcei as fronteiras do Império? Fui um ótimo administrador”.

Michel soluçava alto agora.

Achei melhor interceder: “Uma sugestão?”.

“Diga.”

“Exílio.”

“Onde?”

“Bom, eu tenho uma casinha em Picinguaba.”

Tibério olhou ao redor. Os senadores concordaram. “Não sou cruel como acusou Tácito. Partam imediatamente.”

Mas foram eles que partiram. Um dos guardas pretorianos deixou um cheque pré-datado para o conserto da janela. Nenhuma palavra sobre o uísque, mas achei melhor não reclamar.

Eu e Michel voltamos à cozinha. Limpei o lugar, depois abri uma garrafa de Ardbeg. Ele ainda choramingava. “Olha só”, falei após virar uma dose. “É por essas e outras que tenho uma saudade brutal da República.”

André de Leones (Goiânia, 1980) é autor dos romances Vento de queimada (Record, 2023), Eufrates (José Olympio, 2018), Terra de casas vazias (Rocco, 2013), Dentes negros (Rocco, 2011) e Hoje está um dia morto (Record, 2006), vencedor do Prêmio Sesc de Literatura 2005, entre outros.

Thalles Oliveira é ilustrador, quadrinista e designer, natural de Minas Gerais. Apaixonado por quadrinhos e cinema, e inspirado pelo cotidiano e seus personagens. Publicou seu primeiro quadrinho Revelou-se a sua enorme ingratidão (2024), com lançamento no Festival Internacional de Quadrinhos.

depoimento

ENTRE O BELO E O HORROR

Perdas e afetos durante a infância moldaram o olhar do ator e diretor Matheus Nachtergaele e culminaram em sua entrega radical à arte

POR LÍGIA SCALISE

Para Matheus Nachtergaele, atuar nunca foi apenas sobre técnica ou espetáculo, mas um exercício radical de existir, um jeito de devolver ao mundo a intensidade que o mundo sempre lhe ofertou. Nascido em São Paulo, em janeiro de 1968, o ator e diretor aprendeu, prematuramente, que a pele macia da bisavó escondia, sob a delicadeza, as veias saltadas do tempo; que a música no violão do pai soava mais triste do que alegre; e que por trás de suas próprias histórias, havia sempre o vazio deixado pela mãe, que partiu cedo demais. “O belo e o horror são inseparáveis, na vida e na arte”, diz, como quem aprendeu a caminhar de mãos dadas com toda sorte de acontecimento e, com isso, ganhou fôlego para fazer algo ainda maior.

Reconhecido como um dos maiores atores brasileiros da contemporaneidade, construiu uma carreira marcada por personagens inesquecíveis, mas também por uma relação íntima, visceral e inegociável com a própria profissão. Neste Depoimento, Nachtergaele revisita a infância no sítio dos avós, os bastidores dos seus primeiros grandes trabalhos e a sua atuação no remake da telenovela Vale Tudo (2025), dentre outros temas. “Gostaria que tudo o que fiz – e ainda vou fazer – possa ser sentido como uma prece.”, confidencia.

CECÍLIA

Assim que minha mãe morreu, fui viver no sítio dos meus avós paternos, no interior de São

Paulo. Meu pai, mergulhado em sua dor, nunca mencionava o nome dela. Tampouco a própria família da minha mãe. Era minha avó Denise quem, com delicadeza, me apresentava Cecília através de suas histórias e dos objetos pessoais guardados num baú. A morte de mamãe era um tabu, mas para mim se transformou num mistério poético. Eu sabia que ela tinha sido uma poetisa linda e inteligente, que morrera muito jovem, aos 22 anos. A verdade só me foi revelada aos 16. Meu pai, como num ato de catarse, levou-me para nossa casa de praia e me contou em detalhes o que aconteceu no dia do suicídio dela. Foi um divisor de águas na minha vida. Talvez tenha sido aí que nasceu o ator que sou. Minha comédia é feita de tragédia, e na minha tragédia há sempre um humor inevitável.

Poemas da mãe do ator norteiam a peça Processo de Conscerto do Desejo, encenada em 2016 no Sesc Pompeia e adaptada para o canal do Sesc São Paulo no YouTube em 2020, durante a pandemia de Covid-19.

Matheus José Maria

INFÂNCIA

Fui um menino talentoso, observador, curioso, carismático e profundamente encantado com o mundo ao meu redor. Sempre que encontrava alguém disposto a me ouvir, contava minhas histórias. Era assim que eu existia: inventando mundos para quem quisesse prestar atenção. Cresci escrevendo livros: primeiro à mão, depois em quadrinhos, até ganhar uma máquina de escrever do meu pai. Ao mesmo tempo, era um menino já sensível às belezas drásticas do mundo. Entendi que o belo e o horror caminham juntos. Me lembro de me encantar com a maciez da pele da mão da minha bisavó e, ao mesmo tempo, perceber as veias saltadas sob aquela pele fina, como um prenúncio de seu fim. Fui tocado, desde cedo, pela música que meu pai tocava no violão, pela natureza que brilhava diante de mim no sítio dos meus avós, mas também pela ausência brutal e silenciosa de mamãe. Essa consciência precoce das maravilhas e dos horrores que habitam cada ser humano moldou quem sou e quem me tornei. Terror e beleza me acompanham desde sempre. Tento transformar em arte aquilo que, desde sempre, me atravessa.

CORPO

Tenho uma consciência muito nítida de que estou vivo, exposto aos prazeres e às violências que a vida oferece. E consigo traduzir e organizar uma partitura do que sinto, do que sou e do que meu personagem precisa ser por meio do meu corpo. Não sou um ator tomado ou possuído pelo personagem. Estou lúcido, presente, consciente das emoções que poetizo e do corpo que as expressa. Foi no teatro que essa consciência se consolidou. Mais precisamente em O Livro de Jó (1995), do Teatro da Vertigem, com dramaturgia de Luís Alberto de Abreu e direção de Antônio Araújo. A peça estreou no Hospital Humberto I, em São Paulo, e eu aparecia nu em cena, coberto de sangue, percorrendo um labirinto hospitalar que encenava a fé, o sofrimento e o limite da experiência humana. Esse foi meu primeiro grande trabalho – que me rendeu prêmios importantes –, mas, sobretudo, foi ali que me reconheci ator.

CARREIRA

Tive a sorte e o vigor de participar da reconstrução do cinema brasileiro. Fui puxado pela mão

por Nanda [Fernanda] Torres, que sempre soube costurar sua trajetória com uma inteligência assombrosa. Foi ela quem falou de mim para Bruno Barreto, e assim cheguei ao filme O que é isso, companheiro? (1997). No ano seguinte, atuei em Central do Brasil (1998), sob direção de Walter Salles, e logo depois em O primeiro dia (1998). A televisão também me encontrou e estreei em A Comédia da vida privada (1995-1997), dirigido por Jorge Furtado. Entrei na Rede Globo com o pé direito, mas tudo começou lá atrás, de forma catártica e entregue, no teatro, em Jó. Mesmo quando as coisas não deram certo, entendo que fazia parte do meu caminho, da construção do meu encantamento com esse ofício. Ser ator é tudo o que sou, tudo o que sei, tudo a que me dedico – e um tanto de sorte.

CINEMA

O cinema brasileiro, para mim, é um dos melhores do mundo. Digo isso em muitas entrevistas, e não é demagogia, nem estou puxando sardinha para o nosso lado. Nunca tive a ilusão de que nos tornaríamos a indústria mais poderosa, embora saiba que, quanto mais forte for essa indústria, mais nossa identidade estará garantida. Mas o que me encanta é que, mesmo sem os recursos de uma grande máquina, fazemos cinema com pouco dinheiro e muita inventividade. O Brasil, afinal, é um país onde aquelas minhas impressões de infância se confirmam todos os dias. Aqui estão as maiores belezas e os maiores horrores do mundo. Nosso cinema, talvez como nenhum outro, carrega essa contradição, e por isso é tão digno de retratar o país que somos.

VALE TUDO

Estou vivendo uma situação curiosa, quase engraçada. Eu dizia que não faria mais novelas, mas fiquei tão encantado com o remake de Renascer (2024), que acabei aceitando o convite para o remake de Vale Tudo. Quando a Globo me chamou para interpretar o Poliana, pensei: “vou fazer um clássico”. Porque Vale Tudo é, de certa forma, o nosso E o Vento Levou das novelas, entende? É um monumento da dramaturgia popular. Claro que agora, adaptado pela autora Manuela Dias, a história vai ganhar um olhar contemporâneo, mais alinhado ao Brasil de hoje. É exatamente isso que me instiga – viver essa investigação sobre quem somos, dentro dos limites e da leveza de um folhetim, mas com coragem para olhar fundo. Vale tudo é um retrato disso.

TRANSMUTAÇÃO

Quando completei 40 anos, dirigi meu único filme até aqui: A festa da menina morta, que estreou em 2008 no Festival de Cannes. O longa conta a história de Santinho, um jovem que ganha fama de santo em uma comunidade isolada no Amazonas, após realizar um suposto “milagre” depois do suicídio da mãe. É um retrato íntimo da capacidade humana de fabricar fé diante do vazio e de buscar algum sentido para a experiência terrível da morte. Na verdade, aquele filme era uma fabulação da minha própria vida até aquele momento, mas contada por meio de outra história que conheci por acaso, em Cabaceiras (PB), durante as filmagens de O Auto da Compadecida (2000). Em um dos dias de folga, nos levaram para uma festa local onde, todos os anos, celebravam o dia em que encontraram o vestido

de uma menina desaparecida. Esse vestido, exposto num altar, era tratado como um milagre. Aquilo me impactou profundamente. Como uma tragédia podia dar origem a um mito? Só uma melancolia profunda é capaz de transformar dor em milagre. Foi assim que compreendi também a minha própria vida.

TEMPO

Aos 57, começo a sentir vontade de dirigir outro filme – um que possa mergulhar ainda mais fundo nas belezas e nas tragédias que vi no mundo. Não tenho pressa, mas sinto, cada vez mais perto, a passagem do tempo. Já não me iludo achando que terei tempo para fazer tudo o que desejo. A finitude já não é uma ideia, ela é uma aventura na qual embarquei. Assisto às mudanças do corpo que envelhece. Sinto o cansaço que os anos trazem – e, curiosamente, acho que isso pode abrir janelas para coisas muito bonitas. Acho curioso quando escuto alguém assustado com a rapidez do tempo. Eu, não. Tenho a sensação nítida de cada pedaço dele. Não fui pego de surpresa. Acompanhei meus êxitos e fracassos tanto na arte quanto nos afetos. Tenho sentido

vontade de cravar em película esse olhar sobre o tempo e espero que minhas antenas da intuição e da arte continuem funcionando para que eu possa deixar mais uma contribuição bonita para o nosso cinema. Ainda há vigor em mim, pelo trabalho e pela vida.

LEGADO

Cada peça, cada filme, cada espetáculo propõe um mundo novo. Tem sido uma viagem belíssima e sigo topando a aventura que vivo. A arte foi e é minha salvação, meu abrigo. Me emociono ao pensar que minha maior apoiadora sempre foi minha avó Denise. Hoje, enxergo com clareza que uma hora a vida vai acabar. Por isso, também, tenho tentado cuidar mais da matéria para ficar mais tempo por aqui. Quero continuar brincando disso tudo, com alguma graça e lucidez, porque, no fim das contas, eu amo estar vivo. Gilberto Gil disse, certa vez, que gostaria que as pessoas percebessem que tudo o que ele fez foi, na verdade, uma oração. Então, me aproprio do pensamento do Gil para dizer que, se houver algo que eu possa desejar como legado, é que tudo o que fiz – e ainda vou fazer –possa ser sentido como uma prece.

ALMANAQUE

A arte do cinema é exibida e debatida em diferentes espaços culturais da capital paulista, a partir de múltiplos recortes, como nesta sessão no Museu do Ipiranga.

Cinema em expansão

Instituições culturais paulistanas apostam em salas de vídeo para exibir programação (sobretudo nacional) e diversificar o rol de artes oferecido ao público

POR LUNA D’ALAMA

No ano em que o Brasil conquistou o Oscar de Melhor Filme Internacional, com Ainda estou aqui (2024), de Walter Salles, instituições culturais paulistanas iniciam, mantêm ou ampliam seus projetos audiovisuais. Em abril, o Museu do Ipiranga inaugurou o Cinema no Museu, iniciativa gratuita que busca promover, uma vez por semestre, a exibição, seguida de debate com os realizadores de filmes nacionais. Uma programação que pretende dialogar com histórias, memórias e temáticas abordadas nas salas do museu.

Outras entidades culturais da cidade de São Paulo que reúnem mostras, retrospectivas e projetos de cinema e audiovisual são o Centro Cultural São Paulo (CCSP), a Biblioteca Mário de Andrade (Cine Mário), a Pinacoteca Luz [até julho, a Sala de Vídeo apresenta o curta Estás

vendo coisas (2016), de Bárbara Wagner e Benjamin de Burca, sobre a música brega no Recife], e o novo prédio do Museu de Arte de São Paulo (Masp). No segundo andar do edifício Pietro Maria Bardi, onde funciona o Masp, o público pode conferir, até agosto, a videoinstalação em múltiplas telas Lina Bo Bardi – um maravilhoso emaranhado (2019), do artista e cineasta inglês Isaac Julien. A obra tem 39 minutos de duração, foi gravada em Salvador e São Paulo (em locais como o Sesc Pompeia, o Teatro Oficina e o próprio Masp) e é protagonizada por Fernanda Montenegro e Fernanda Torres, que interpretam a arquiteta ítalo-brasileira Lina Bo Bardi (1914-1992), com reflexões sobre as dimensões poéticas do legado de Lina.

Confira outras cinco instituições culturais da capital paulista com projetos audiovisuais.

MUDAR O IMAGINÁRIO

Lançado em abril de 2024, o Luz na Tela é uma ação do Museu da Língua Portuguesa, com produção e curadoria do Museu Soberano – Rua do Triunfo. As sessões são gratuitas, mensais e ocorrem sempre na última quinta-feira de cada mês, no Pátio B do Museu da Língua. Há, ainda, distribuição de pipoca e refrigerante. No dia 29 de maio, às 19h, o projeto exibirá o longa-metragem nacional Cine Holliúdy (2012), de Halder Gomes. Essa comédia celebra os filmes populares e a resistência dos cinemas de rua no Nordeste, nos anos 1970. Luz na Tela é uma forma de aproximar a instituição dos moradores e trabalhadores da região, proporcionando uma atividade cultural gratuita à noite, com uma linguagem popular. A iniciativa busca também integrar museus, memórias e histórias, oferecer títulos diversos e fortalecer a autoestima comunitária, contrapondo o imaginário social sobre esse território. A seleção inclui desde clássicos internacionais, como King Kong (1933), de Merian Cooper (1893-1973) e Ernest Schoedsack (1893-1979); até obras populares no país, como Super Xuxa contra o Baixo-Astral (1988), de Anna Penido.

Praça da Luz, s/nº, Centro Histórico, São Paulo (SP). Terça a domingo, das 9h às 16h30, com permanência até as 18h. Grátis aos sábados. museudalinguaportuguesa.org.br

PROGRAMAÇÃO DIVERSA

Na última quinta-feira do mês, o Museu da Língua Portuguesa realiza uma sessão gratuita de cinema.

Em suas unidades de São Paulo e Poços de Caldas (MG), o Instituto Moreira Salles mantém salas de cinema onde são apresentados lançamentos comerciais, filmes clássicos, raridades, mostras temáticas e retrospectivas de diretores(as) brasileiros(as) e estrangeiros(as). Na capital paulista, o espaço também sedia importantes festivais, como o É Tudo Verdade (dedicado a documentários) e a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. O IMS promove, ainda, seminários, cursos e debates eventuais sobre cinema e audiovisual. A curadoria é feita pelo cineasta Kleber Mendonça Filho. A sala do IMS Paulista

dispõe de 150 lugares e conta com um sistema de projeção e som digital, além de projetores em 16mm e 35mm. Em Poços, a sala tem projeção 4K a laser. Para reunir sua programação de cinema e facilitar o acesso offline dos espectadores, o IMS lanca, regularmente, revistas que trazem a lista completa dos filmes exibidos nos dois estados, com datas e horários, além de ensaios e entrevistas.

Av. Paulista, 2424, Bela Vista, São Paulo (SP). Terça a domingo e feriados, das 10h às 20h. Fechado às segundas. ims.com.br/cinema

ALMANAQUE

CINEMA DE RUA

Inaugurado em 1979, o CineSesc se destaca pela programação variada, incluindo mostras temáticas, bate-papos e palestras. Projeta filmes em diferentes formatos, como películas em 35 mm, a uma plateia de até 279 lugares, que também pode desfrutar de um bar dentro da sala de cinema. De 7 a 21 de maio, realiza a terceira edição da mostra Amor ao Cinema, que propõe uma reflexão sobre a linguagem cinematográfica e as transformações que elas têm provocado nas narrativas e nos modos de fazer cinema nos últimos 130 anos. Na programação, filmes clássicos e contemporâneos que versam sobre cinefilia, metalinguagem, história da sétima arte, memória e subjetividades. Além das exibições, estão previstos debates, sessão em 35mm, entre outras atividades. Destaque para obras dirigidas por Billy Wilder (1906-2002), Ettore Scola (1931-2016), Bernardo Bertolucci (1941-2018), além dos brasileiros Walter Carvalho, João Jardim e Helena Solberg. Haverá, ainda, uma programação especial da mostra no Sesc Digital.

Rua Augusta, 2075, Cerqueira César, São Paulo (SP). Segunda a domingo, das 13h15 às 22h. Há sessões GRÁTIS, com retirada de ingressos 1h antes. sescsp.org.br/projetos/mostra-amor-ao-cinema

DO LIVRO À PSICANÁLISE

O Museu da Imagem e do Som (MIS) inclui, em sua programação mensal fixa, várias atividades de cinema –além de cursos sobre o tema. Uma terça-feira por mês, gratuitamente, ocorre o Ciclo de Cinema e Psicanálise, uma parceria entre o jornal Folha de S.Paulo, a Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e a produtora O2 Filmes. Após a exibição, acontece um batepapo mediado pela psicanalista Luciana Saddi, com transmissão ao vivo pelo canal do MIS no YouTube. Um domingo por mês, são realizados outros três projetos: Cine Kids, voltado à exibição de títulos infantis e infanto-juvenis; Cinematographo, que resgata o clima das antigas sessões, com trilha sonora executada ao vivo; e #CineCiência, com obras e debates de temas científicos, mediados pelo físico e professor universitário José Luiz Goldfarb. Além dessas ações, o museu promove o Clube do Filme do Livro, uma quinta-feira por mês. Após as sessões, que destacam adaptações de obras literárias, há um bate-papo com uma pessoa convidada. Já os fãs de documentários podem curtir o Doc.MIS, realizado, também, uma quinta-feira ao mês.

Av. Europa, 158, Jd. Europa, São Paulo (SP). Terças a sextas, das 10h às 19h. Sábados, das 10h às 20h, e domingos, das 10h às 18h. Permanência até 1h após o último horário. Grátis às terças. mis-sp.org.br

Na Rua Augusta, há mais de quatro décadas, o CineSesc oferece uma programação variada. Alf Ribeiro

ESPERA NOS JARDINS

Em 1972, o Museu Lasar Segall passou a ceder espaço para a programação e o armazenamento de películas da Cinemateca Brasileira. Um ano depois, iniciou as projeções do Cine Segall – inicialmente, apenas para funcionários de uma empresa vizinha, no horário do almoço. Logo, as sessões se expandiram para o público geral, aos finais de semana. Hoje, o projeto conta com duas exibições diárias de filmes do circuito comercial ou de arte, com foco em produções brasileiras, latino-americanas e independentes. Aos sábados e domingos, há uma terceira faixa de horário, na qual são apresentados clássicos do cinema mundial, por R$ 4 – em maio, o foco serão os filmes noir dos anos 1950. A programação também inclui mostras, como as já realizadas sobre o cinema marginal e sobre o diretor soviético Serguei Eisenstein (1898-1948). Em 2017,

o Cine Segall passou por uma reforma, que incluiu a instalação de projetor e som digitais, assentos (a sala tem 80 lugares) e tela novos. Quem chegar com antecedência poderá aguardar as sessões nos arborizados jardins do museu – o de Esculturas e o do Ateliê de Gravura, onde o artista lituano Lasar Segall (1889-1957) trabalhou por quase três décadas. O público também pode aproveitar para conferir duas exposições em cartaz: Lasar Segall entre temas e técnicas e O Gabinete de Marcelo Grassmann.

Rua Berta, 111, Vila Mariana, São Paulo (SP). Quarta a segunda, das 11h às 19h. Fechado às terças. GRÁTIS (o cinema é pago). gov.br/museus/pt-br/museusibram/museu-lasar-segall

Na Vila Mariana, o Museu Lasar Segall oferece programação de cinema desde 1972 e, hoje, exibe obras do circuito comercial e

Eu jogo, eu brinco, eu danço, eu sinto o outro, então eu sou

Como falar de algo tangível, corpóreo, que as palavras não conseguem dimensionar? Como falar de cosmopercepções gestadas no vivido? Decidi compartilhar a voz do corpo-território, compreendido aqui como uma maneira de perceber o mundo a partir de si mesmo, das sensações e escrevivências de um campo onde as palavras são gesto e ato. Trago a perspectiva da compreensão negra, interessada em explicitar legados e tecnologias africanas, negritar saberes ancestrais, reverenciar a existência negra. A ancestralidade refere-se ao presente, não ao pretérito. É nossa responsabilidade individual e coletiva.

Nessa perspectiva, compartilho minha experiência com a festa do Nego Fugido, patrimônio cultural da comunidade quilombola de Acupe, distrito de Santo Amaro (BA). Em 2024, tive a honra de vivenciá-la em seu local de origem. Tudo foi encantado: a organização e a articulação da viagem, o percurso, a chegada em Acupe, a acolhida em uma casa da comunidade, a ativação da rede local, os olhares curiosos sobre um corpo novo no pedaço, abraços, sorrisos. Embora fosse minha primeira vez ali, a sensação foi de reencontro.

Participei do que foi permitido, não deixei passar nada, nem histórias contadas pelas pessoas mais velhas ou pelas crianças. Auxiliei no transporte de utensílios, no “cuidado de menino” – cuidando das crianças – na organização do espaço, caí no samba. Na preparação da festa, o samba corre solto. Aprendi, no seio familiar, que a responsabilidade de cada pessoa é a realização de todas, e assim se gesta o sentimento de pertença. Com esse cuidado e abertura para viver o ato, senti que as pessoas queriam me preparar, instruir, cuidar, iniciar.

Fui convidado a apanhar folhas de bananeira. Pede-se agô – licença – para entrar na mata, pede-se agô para retirar as folhas secas dos pés de bananeiras, canta-se para amarrá-las e, com elas, se faz os saiotes utilizados na festa. A bananeira cumpre um papel importante na comunidade. Acupe foi e é uma região de resistência e luta. Entre as histórias, me contaram que, no período

colonial, os senhores de engenho sacrificavam pessoas escravizadas “rebeldes”, e sacerdotes e sacerdotisas africanos, pessoas entendidas, enterravam seus corpos no fundo das fazendas, plantando uma bananeira em cima.

A ideia era que a alma não fosse para o orum – céu –, mas ficasse na comunidade para ser invocada nas batalhas. A invocação da ancestralidade na busca da liberdade.

Nego Fugido é jogo, dança, ritualização, sentimento, afirmação da existência. Mais que uma expressão cultural negra, um sopro de resistência contra o esquecimento e o apagamento histórico. Cada passo dado e cada batida de tambor são afirmações do espírito de liberdade, de luta e de renovação. O Nego Fugido é uma revolução de corpos e almas que vai além do visível. A festa e a celebração se destinam a renovar a força, a reviver os saberes, o culto, o rito. Jogando e brincando, se territorializa o corpo, realimentando-o de força cósmica, do poder de pertencimento a uma totalidade integrada.

Parafraseio Leopold Sédar Senghor (1906-2001), uma das figuras mais importantes da negritude, movimento que buscou afirmar a identidade negra diante da colonização e da opressão ocidental, com a frase que dá título a este texto: “eu jogo, eu brinco, eu danço, eu sinto o outro, então eu sou”. Ela ilustra a relação das pessoas africanas e de seus descendentes com o mundo, a relação entre o Eu e o Outro fora dos parâmetros da racionalidade europeia. Para a pessoa africana, há a simbiose, o conhecimento do outro. “Eu penso, então eu existo”, escreveu Descartes (1596-1650). Na cultura africana, se diz: “Eu sinto o outro, eu danço o outro, então eu sou”. Ora, dançar é criar, sobretudo quando a dança é a dança do amor. É esse, em todo o caso, o melhor modo de conhecimento. Jogar, brincar, dançar, celebrar, sentir são a democratização da existência, e experimentar em vez de falar sobre é o melhor caminho.

Fabiano Maranhão é brincante, graduado em educação física, mestre em educação e integra a equipe da Gerência de Estudos e Programas Sociais do Sesc São Paulo.

Fabiano Maranhão
MAIO 2025

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Giuliano Almeida Ziviani (foto); Estúdio Thema (colagem)
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