Revista E - Julho 2025

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Revista E | julho de 2025 nº 1 | ano 32

Vozes do rio

Drauzio Varella conta suas vivências em novo livro

Paulo Leminski Os múltiplos caminhos percorridos pelo poeta marginal

Evoé Zé

Nova biografia faz coro ao diretor teatral Zé Celso

Andréa Beltrão

Em cartaz com Lady Tempestade, atriz revisita trajetória

Explore novas formas de se expressar com uma programação que combina a criatividade do fazer manual com as múltiplas possibilidades das tecnologias e artes visuais.

CURSOS OFICINAS VIVÊNCIAS BATE-PAPOS PALESTRAS INTERVENÇÕEs ARTÍSTICAS PERFORMANCES

Mais de 460 atividades nas unidades do Sesc São Paulo!

CAPA: Pedra torcida (1985), de Hisao Ohara, no primeiro plano; ao fundo, O telhado (1998), de Marepe. As obras integram o acervo da Coleção Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM) e estão expostas no Jardim do MAM no Sesc, no Sesc Vila Mariana. A mostra é uma parceria entre o Sesc São Paulo e o MAM e tem curadoria de Cauê Alves e Gabriela Gotoda. Os espaços recriam o Jardim de Esculturas do MAM, o qual é inspirado no paisagismo de Burle Marx (1909-1994). Mais informações em sescsp.org.br/o-jardim-do-mam-no-sesc

Crédito: Nilton Fukuda

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Portal do Sesc (QR Code ao lado)

Compromisso com o bem-viver

APP Sesc São Paulo para tablets e celulares

Legendas Acessibilidade

Em estabelecimentos de uso coletivo é assegurado o acompanhamento de cão-guia. As unidades do Sesc estão preparadas para receber todos os públicos.

Desde sua fundação, em 1946, o Sesc tem como foco principal a promoção do bem-estar, conduzindo uma ampla gama de ações que abrangem as áreas de lazer, esporte, cultura, turismo, saúde e alimentação. Essa diversidade se reflete nas programações dos centros culturais e esportivos espalhados pelo estado de São Paulo, voltadas especialmente aos trabalhadores do comércio de bens, serviços e turismo, seus dependentes e à comunidade em geral.

Essas iniciativas têm um caráter formativo e emancipador, baseadas na busca por uma melhor qualidade de vida. Envolvem, portanto, o compromisso com o enriquecimento do repertório cultural, o estímulo ao convívio social, o acesso universal às atividades e o respeito aos princípios da dignidade humana e da sustentabilidade –valores cada vez mais relevantes e atuais.

Ao longo de quase 80 anos, o Sesc tem se dedicado a oferecer vivências transformadoras no cotidiano das pessoas, contribuindo para o fortalecimento de uma sociedade mais participativa, solidária, criativa e capaz de protagonizar suas próprias mudanças.

Abram Szajman Presidente do Conselho Regional do Sesc no Estado de São Paulo

Sentido expandido de comunidade

É da condição humana estabelecer conexões e criar vínculos. Somos gregários em nossa essência e, desde o nascimento, construímos redes, tomando por base o núcleo familiar e expandindo as relações a partir dos ambientes que frequentamos em nosso cotidiano. O convívio na fase adulta se solidifica, mediado predominantemente pelo local de trabalho e pelas demandas da vida produtiva. São as afinidades em comum que levam, porém, pessoas de perfis diversos a um convívio regular, ampliando oportunidades de se formar novos laços.

Seja pelo esporte, pelo compromisso com uma causa social, pelo engajamento com as questões ambientais ou por uma habilidade artística, expandimos nossos mundos quando nos permitimos experimentar novos fazeres, construindo comunidades que extrapolam fronteiras, sejam geográficas ou sociais. E é justamente nesse desafiar-se, abrindo espaço para novos aprendizados, que crescemos como indivíduos e como sociedade.

Reportagem da Revista E deste mês apresenta histórias de pessoas que decidiram abrir espaço para lidar com novos saberes e fazeres manuais, ampliando, desse modo, seu território de circulação, fortalecendo sua própria identidade e pactuando novos sentidos de pertencimento e de comunidade. Que a leitura nos inspire a novas e criativas práticas!

Luiz Deoclecio Massaro Galina

Diretor do Sesc São Paulo

SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO – SESC

Administração Regional no Estado de São Paulo Av. Álvaro Ramos, 991 – Belenzinho

CONSELHO REGIONAL DO SESC EM SÃO PAULO

Presidente: Abram Abe Szajman

Diretor do Departamento Regional: Luiz Deoclecio Massaro Galina

Efetivos: Arnaldo Odlevati Junior, Benedito Toso de Arruda, Dan Guinsburg, Jair Francisco Mafra, José de Sousa Lima, José Maria de Faria, José Roberto Pena, Manuel Henrique Farias Ramos, Marcus Alves de Mello, Milton Zamora, Paulo Cesar Garcia Lopes, Paulo João de Oliveira Alonso, Paulo Roberto Gullo, Rafik Hussein Saab, Reinaldo Pedro Correa, Rosana Aparecida da Silva, Valterli Martinez, Vanderlei Barbosa dos Santos.

Suplentes: Aguinaldo Rodrigues da Silva, Antonio Cozzi Junior, Antonio Di Girolamo, Antônio Fojo Costa, Antonio Geraldo Giannini, Célio Simões Cerri, Cláudio Barnabé Cajado, Costabile Matarazzo Junior, Edison Severo Maltoni, Omar Abdul Assaf, Sérgio Vanderlei da Silva, Vilter Croqui Marcondes, Vitor Fernandes, William Pedro Luz.

REPRESENTANTES JUNTO AO CONSELHO NACIONAL

Efetivos: Abram Abe Szajman, Ivo Dall’Acqua Junior, Rubens Torres Medrano Suplentes: Álvaro Luiz Bruzadin Furtado, Marcelo Braga

CONSELHO EDITORIAL | Revista E

Adauto Fernando Perin, Adriana de Souza Francisco, Adriano Ladeira Vannucchi, Alessandra de Assis Perrechil, Aline Ribenboim, Alisson Fabiano Sbrana, Ana Carolina Garcez de Castro, Ana Paula Neves Cabral de Vasconcellos, André Luiz Santos Silva, Andrea de Oliveira Rodrigues, Andreia Pereira Lima, Andressa Kelly Ribeiro Ivo, Antonio Carlos F Barbosa, Barbara Caroline da Silva Ramos de Freitas, Barbara de Carvalho Silva, Betina de Tella, Bruna Gavioli Ramos, Bruna Zarnoviec Daniel, Camila Freitas Curaca, Camila Pinheiro Fogaca, Carolina Balza, Chiara Regina Peixe, Christi Lafalce, Cinthya de Rezende Martins, Claudia Dias Perez Machado, Clovis Ribeiro de Carvalho, Cristina Berti Ribeiro, Davi dos Santos Ferreira, Deborah Dias Matos, Deleni Mesquita, Denise Ramos da Fonseca, Diana Gama Santos, Edmar Rodrigues de Fátima Júnior, Eliani Hypolito de Souza, Erika Luzia da Silveira, Fernanda Alves Vargas, Fernanda de Souza Borges, Flavia Dziersk de Lima Silva, Flavia Rejane Prando, Francisca Meyre Martins Vitorino, Frederico Alves Antonelli, Frederico Rocha de Santana Zarnauskas, Gabriela Camargo das Graças, Gabriela Carraro Dias, Gabriela Grande Amorim, Gabriella Pereira Rocha, Gean Carlo Seno Lopes, Geraldo Soares Ramos Junior, Giuliana Lavorato Genistretti, Giuliano Jorge Magalhaes da Silva, Glauco Gotardi, Gleiceane Conceição Nascimento, Guilherme de Oliveira Gottsfritz, Gustavo Faria, Gustavo Nogueira de Paula, Helton Henrique Cassiano, Henrique Torres de Souza, Isabela Egea Lisboa Lacerda, Ivy Granata Delalibera, Jackeline Reis Ferreira Simon Costa, Joana Rocha Eca de Queiroz, Jose Mauricio Rodrigues Lima, Juan Victor Gonçalves, Jucimara Serra, Julia Parpulov Augusto dos Santos, Juliana Francischett Nogueira, Juliana Neves dos Santos, Karen Cristine Pimentel dos Santos, Leandro Aparecido Pereira, Leonardo Francisco dos Santos Lima, Ligia Helena Ferreira Zamaro, Livia Maria de Freitas Muchiutti, Lucas Geraldo Andrade Costa, Lucas Moura Barboza, Marcel Antonio Verrumo, Marcelo Baradel, Maria Rizoneide Pereira dos Santos, Marina Borges Barroso, Marina Maria Magalhaes, Marina Real Pires Almeida, Michael Anielewicz, Milena Ostan da Luz, Monique Mendonça dos Santos, Patricia Piquera Vianna, Patricia Silva dos Santos, Paulo Henrique Vilela Arid, Priscila dos Santos Dias, Rafael Lima Peixoto, Rafael Matrone Munduruca, Reinaldo Simon Costa, Renan Cantuario Pereira, Renata Barros da Silva, Renato de Araujo Garcia, Renato Diego Alves de Jesus, Renato Shigueru Yoshinaga, Ricardo Graballos do Prado Bretanha, Ricardo Lemos Antunes Ribeiro, Roberta Lima Olimpio da Silva, Rodrigo Eloi da Silva, Romeu Marinho C. Ubeda, Rosana Abrunhosa de Souza, Rosangela Barbalacco, Roseane Silveira de Souza, Sandra Ribeiro Alves, Sara Maria da Silva, Sergio Francisco Seabra Moreira, Sidnei de Carvalho Martins, Stephany Tiveron Guerra, Talita Ferreira dos Santos, Tania Regina da Silva, Tatiana Busto Garcia, Tatiana Fujimori, Thais Amendola, Thais Cristina Kruse, Thiago da Silva Costa, Thiago Fabril de Oliveira, Ueliton dos Santos Alves, Valeria Mantovani de Andrade Alves, Vitor Hugo dos Santos Vieira, Viviane Alves Ramos Lourenco, Viviane Ferreira Alves, Viviane Machado Lemos, Vivianne de Castro, Wagner Palazzi Perez, Walter Bertotti de Souza, William Galvão de Souza.

Coordenação-Geral: Ricardo Gentil

Coordenação-Executiva: Ligia Moreli e Silvio Basilio

Editora-Executiva: Adriana Reis Paulics • Edição de Arte e Diagramação: Estúdio Thema (Marcio Freitas e Thea Severino) • Edição de Textos: Adriana Reis Paulics, Marcel Verrumo, Maria Júlia Lledó e Rachel Sciré • Revisão de Textos: Pedro P. Silva • Edição de Fotografia: Nilton Fukuda • Repórteres: Diego Olivares, Lucas Veloso, Luna D'Alama, Marcel Verrumo, Maria Júlia Lledó , Marina Pereira e Rachel Sciré • Coordenação Editorial Revista E: Adriana Reis Paulics, Marina Pereira, Marcel Verrumo e Rachel Sciré • Propaganda: Edmar Júnior, Jefferson Santanielo, Julia Parpulov e Vitor Penteado • Apoio Administrativo: Juliana Neves dos Santos e Talita Ferreira dos Santos • Arte de Anúncios: Geysa Bernardes, Gabriela Batista Borsoi, Rodrigo Losano, Wendell Vieira, Amanda Lobos, Rodrigo Losano de Camargo e Alexandre do Amaral • Supervisão Gráfica: Rogerio Ianelli • Criação Digital Revista E: Cleber Paes e Rodrigo Losano • Circulação e Distribuição: Vanessa Zago

Jornalista responsável: Adriana Reis Paulics (MTB 37.488).

A Revista E é uma publicação do Sesc São Paulo, sob coordenação da Superintendência de Comunicação Social

Distribuição gratuita. Nenhuma pessoa está autorizada a vender anúncios. Esta publicação está disponível para retirada gratuita nas unidades do Sesc São Paulo e também em versão digital, em sescsp.org.br/revistae e no aplicativo

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Entre os destaques de julho, o projeto Pra Lá do Meu Quintal, dos Centros de Educação Ambiental do Sesc São Paulo, compartilha reflexões sobre o clima

Médico e escritor, Drauzio Varella conta como suas viagens ao rio Negro ganharam as páginas de novo livro, fala sobre seu processo de escrita e o papel da medicina

Saberes e fazeres manuais ganham espaço nos centros urbanos como território de construção de identidade, pertencimento e comunidade

dossiê entrevista artes e tecnologia bio

Entre o rigor e a liberdade de criação, vida e obra do escritor Paulo Leminski transitaram entre os mundos da erudição e da rebeldia

Da antropofagia modernista às metamorfoses do tempo, o legado do diretor e dramaturgo José Celso Martinez Corrêa ganha nova biografia das Edições Sesc São Paulo

Frente aos desafios de acessibilidade e capacitismo, pessoas com diferentes tipos de deficiências usufruem do direito ao lazer viajando por novos destinos

social

Michel Souza (Entrevista); Rodolfo Guttilla (Bio); Jennifer Glass (Gráfica)

Artigos de Ricardo Alexino Ferreira e da dupla Clarice Cudischevitch e Natasha Felizi refletem sobre o alcance da divulgação do conhecimento para todos os públicos

Premiada atriz e fundadora do Teatro Poeira, Andréa Beltrão fala sobre o ofício de contadora de histórias nos palcos e nas telas

Com um livro na mão e uma ideia na cabeça, a educadora Bel Santos Mayer se tornou uma ativista da leitura em defesa do potencial transformador das bibliotecas comunitárias

Maria Valéria Rezende (texto) e Luyse Costa (ilustração)

em pauta encontros inéditos

Conheça cinco eventos literários em São Paulo que aproximam autores e leitores no universo expandido da leitura

Manuela Frattini

8 A 24 AGOSTO 2025

sescsp.org.br/circos

Venda de ingressos online e presencial

A partir das 12h do dia 25 de julho no aplicativo Credencial SescSP, no portal e nas bilheterias das unidades.

Em sua 8ª edição, o festival apresenta 40 espetáculos, além de intervenções, instalações e atividades formativas com companhias de nove estados brasileiros e representantes de 21 países.

UNIDADES DO SESC

14 Bis, 24 de Maio, Avenida Paulista, Belenzinho, Bom Retiro, Carmo, Consolação, Galeria (futura unidade), Ipiranga, Pinheiros, Pompeia, Santana e Vila Mariana.

ESPAÇOS PÚBLICOS

Bulevar do Rádio, Centro de Memória do Circo, Museu do Ipiranga, Parque da Independência, Praça da Sé e Theatro Municipal.

Matheus
José Maria

A Trupe Circus, da Escola Pernambucana de Circo, transformou o teatro do Sesc Santana em picadeiro no espetáculo Circo Science — Do mangue ao picadeiro, que homenageou o músico pernambucano Chico Science (1966-1997). A Escola Pernambucana é um projeto social desenvolvido há 27 anos na periferia do Recife, liderado por Fátima Pontes. A apresentação integrou a 27ª edição do Palco Giratório, maior projeto de itinerância das artes cênicas do Brasil, que neste ano realizou espetáculos de 16 grupos, de 15 estados, em unidades do Sesc São Paulo.

DOSSIÊ

Oficinas, bate-papos, entre outras ações fazem parte da programação do projeto Pra Lá do Meu Quintal, nas unidades do Sesc São Paulo.

O mundo, nosso quintal

Em julho, projeto Pra Lá do Meu Quintal, dos Centros de Educação Ambiental do Sesc São Paulo, convida as crianças e suas famílias a refletirem sobre o clima

Nos Centros de Educação Ambiental (CEA) do Sesc São Paulo, as férias também são um tempo de aprender. Entre os dias 16 e 27 de julho, os CEA das unidades do Sesc Bertioga, Guarulhos e Mogi das Cruzes realizam o projeto Pra lá do meu quintal, programação que convida as crianças e suas famílias a pensarem sobre a natureza e a ciência. Neste ano, o tema norteador é Que clima é esse?

As atividades ampliam a atuação dos CEA como espaços promotores da educação ambiental não formal, com ações lúdicas e que incentivam diálogos coletivos. “Nos Centros de Educação Ambiental, a programação de férias dialoga com as atividades promovidas pelo Sesc ao longo do ano. Em vivências, oficinas,

visitas mediadas, bate-papos, entre outras ações, conhecimentos e experiências estimulam um olhar sensível sobre o planeta”, defende Tania Perfeito Jardim, que integra a equipe da Gerência de Educação para Sustentabilidade e Cidadania do Sesc São Paulo.

Neste ano, o Pra Lá do Meu Quintal se divide em três eixos. Em “Fenômenos da natureza”, as discussões estimulam a percepção sobre os ciclos naturais, a teia da vida e o equilíbrio ecossistêmico; em “Ciência e cidadania”, investiga-se o que acontece ao nosso redor e como nossas ações impactam o ambiente, promovendo o engajamento socioambiental; em “Educomunicação e manifestação das crianças”, parte-se da escuta

para registrar as percepções das crianças sobre o tema. As ações são estruturadas a partir de orientações da pesquisa Escuta sobre a natureza e as mudanças climáticas (2023), realizada por Ana Cláudia de Arruda Leite e Gandhy Piorski, com o apoio do Instituto Alana e da Fundação Bernard Van Leer.

Entre alguns destaques, no Sesc Bertioga, a Expedição ao Universo das Abelhas (11, 18 e 25/7, sextas) apresenta o universo das abelhas nativas sem ferrão, e no Sesc Guarulhos, a vivência Que clima é esse? O que os insetos e as aves podem nos contar (16 e 17/7, 23 e 24/7, quartas e quintas) aborda a interconexão das interações da fauna com o meio ambiente; já no Sesc Mogi, a atividade “Quem quer ser arqueólogo?” (16 e 18/7, quarta e sexta), com Manacá e memória, as pessoas terão a oportunidade de conhecer pequenos sítios arqueológicos, construídos em caixas de areia. Confira a programação completa em sescsp.org.br

Rose Maria de Souza (foto).

GOL DAS MULHERES NEGRAS

De 2 a 26/7, entra em campo o Se Joga, Preta!, no Sesc Consolação. Em sua segunda edição, a iniciativa celebra o protagonismo de mulheres negras em áreas esportivas historicamente marcadas por exclusões de raça, gênero e classe. A ação integra o projeto Sesc Delas, que promove a ampliação do acesso e a permanência de mulheres nas práticas físico-esportivas, valorizando seus corpos, histórias e subjetividades. Ao longo do mês de julho, o público poderá participar de bate-papos, oficinas, aulas abertas e circuitos esportivos que

revelam os caminhos de resistência e empoderamento construídos por meio do esporte e da cultura como territórios de pertencimento. Em 25/7, Dia da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha, um bate-papo musicado reforça a relevância de espaços que deem visibilidade às conquistas, desafios e narrativas das mulheres negras no Brasil. Dele participam a paratleta multicampeã Raíssa Machado, a sambista Yara Rocha e a jornalista esportiva Day Natale. Confira a programação em sescsp.org.br/consolacao

NOTAS LATINAS

Realizado pelo Sesc Carmo desde a década de 1990, o projeto Centro em Concerto explora as linguagens, formatos e estéticas da música de concerto em apresentações gratuitas, realizadas em igrejas e espaços históricos do centro de São Paulo. A temporada 2025, Travessias Latino-Americanas, tem início neste mês e segue até dezembro, com curadoria da clarinetista boliviana Camila Barrientos propondo um percurso sonoro por diferentes povos e culturas. No concerto inaugural – Latinitudes –, dia 8/7, às 13h, na Igreja Nossa Senhora da Paz, Rosa Rhafa convida Nelton Essi e Nathalia Sudario para apresentar um programa que percorrerá os sons e ritmos do Peru, Chile, México, Argentina e Brasil. Saiba mais em sescsp.org. br/centro-em-concerto

Desvendar territórios

Circuitos a pé, passeios e atividades nas unidades do Sesc, durante o mês de julho: esse é o Oba! Bora Passear!, projeto que estimula a cultura de viagem e lazer e oferece diversas atividades do Turismo Social do Sesc São Paulo – ação que promove respeito pela diversidade de territórios. Na programação, voltada para crianças de até 12 anos e seus adultos, atividades para diferentes gostos: do Reino dos Dinossauros ao Mundo das Crianças, e realizadas em unidades da capital, interior e litoral de São Paulo. Entre as temáticas dessa edição: astronomia, natureza, história, gastronomia e teatro. Saiba mais sobre programação e inscrições em sescsp.org.br/obaborapassear

Neste mês, o projeto Centro em Concerto inicia a temporada 2025, Travessias Latino-Americanas

Arquivo Pessoal
(Gol das Mulheres Negras) Wagner Linares (Notas Latinas)
Como parte da programação do Se Joga, Preta!, em 2/7, acontece a oficina de sensibilização com a educadora e mestra

DOSSIÊ

Na onda do break

O Sesc 24 de Maio abre para visitação, no dia 24/7, a exposição imersiva HIP-HOP 80’sp – São Paulo na Onda do Break. A mostra revisita os primeiros passos do Hip-Hop, cultura que chegou em São Paulo no início dos anos 80, inspirada pela cena norte-americana, celebrando seus quatro pilares – MC, DJ, Graffiti e Breaking – e os locais que marcaram essa revolução cultural, a exemplo do próprio Centro paulistano. Com curadoria de OSGEMEOS e Rooneyoyo O Guardião, e

co-curadoria de KL Jay, Thaíde, Sharylaine, ALAM Beat e Rose MC, a exposição reúne mais de 3 mil itens de colecionadores nacionais e internacionais, entre fotografias, figurinos e equipamentos, destacando a força criativa de uma geração que transformou as ruas em palcos de resistência e expressão.

A mostra fica em cartaz até 29/3. Saiba mais sobre os horários de visitação e os recursos de acessibilidade em sescsp.org.br/24demaio

Em cartaz no Sesc 14 Bis, o espetáculo A boca que tudo come tem fome (do cárcere às ruas) leva à cena os desafios vividos por aqueles que passaram pelo sistema prisional brasileiro.

VIDA PÓS CÁRCERE

Em cartaz a partir de 10/7, no Sesc 14 Bis, o espetáculo teatral

A boca que tudo come tem fome (do cárcere às ruas) aborda as dificuldades da reinserção social e reconstrução da vida após a prisão. Encenada pela Companhia de Teatro Heliópolis, criada na

favela de Heliópolis, zona Sul da capital, a peça retrata a vida de seis pessoas que passaram pelo sistema prisional brasileiro e têm suas trajetórias entrelaçadas. As marcas do período atrás das grades permanecem na memória, no corpo e nos afetos.

Exu, o orixá das encruzilhadas e destrancador dos caminhos, aparece como uma presença provocativa ao despertar naqueles sujeitos a fome de novos começos e a avidez por dignidade. Mais informações em sescsp.org.br/sesc14bis

José de Holanda

FAÇA SUA CREDENCIAL PLENA

A Credencial Plena do Sesc é um benefício gratuito para pessoas com registro em carteira, que são estagiárias, temporárias, se aposentaram ou estão desempregadas há até dois anos em empresas do comércio de bens, serviços e turismo e seus dependentes familiares. Com a Credencial Plena você tem acesso prioritário e descontos na programação e serviços pagos do Sesc.

Qual é a validade da Credencial Plena?

A Credencial Plena tem validade de até 2 anos - para estagiários a validade da Credencial corresponde ao período de vigência do estágio e para desempregados a validade é de até 24 meses após a baixa na carteira de trabalho.

Como fazer a Credencial Plena?

On-line pelo aplicativo

Credencial Sesc SP ou pelo site centralrelacionamento.sescsp.org.br Se preferir, nesses mesmos canais, é possível agendar horários para realização desses serviços presencialmente, nas Centrais de Atendimento das unidades.

Relacionamento com Empresas

É o programa que facilita o acesso ao credenciamento dos funcionários das empresas parceiras dos ramos do comércio de bens, serviços e turismo. Nessa parceria, além do credenciamento, os aproximamos de nossa vasta programação e serviços. Saiba mais em sescsp.org.br/empresas Quem pode ser dependente na Credencial Plena?

• Cônjuge ou companheiro

• Filhos, enteados, irmãos e netos até 20 anos ou até 24 anos, se estudantes

• Pai e mãe

• Padrasto e madrasta

• Avôs e avós

Acesse o texto "Tudo o que você precisa saber sobre a Credencial Plena do Sesc"

Ricardo Ferreira
Michel Souza

Médico encantado

Em novo livro, Drauzio Varella compartilha relatos de viagens ao rio Negro (AM) e chama a atenção para a exuberância e a fragilidade da floresta amazônica e para as histórias da população local

POR RACHEL SCIRÉ

Orio Negro, no Amazonas, é considerado sagrado pelos povos indígenas da região, por ter sido a morada de ancestrais e de espíritos que transmitem sabedoria. Em rituais, os xamãs do Alto Rio Negro entram nas águas para se comunicar com o mundo espiritual, ter acesso aos mistérios da natureza e do universo, descobrir como curar males do corpo e da mente. Para eles, os rios físicos refletem os rios espirituais.

Ao navegar por essas águas pela primeira vez em 1992, o médico Drauzio Varella também se encantou por esse “espelho imenso que reflete os céus e as árvores, em imagens virtuais indistinguíveis das que lhes deram origem”. Depois de mais de 30 anos de viagens à região, pesquisando plantas para a descoberta de medicamentos, Varella resolveu compartilhar as belezas que lhe ofuscam os sentidos a cada visita, e contar as histórias de alguns dos 30 milhões de habitantes da Amazônia. O resultado é o livro O sentido das águas – Histórias do Rio Negro (2025), lançado pela Companhia das Letras.

Na obra, sua prosa apurada ganha amplitude na descrição do esplendor da floresta amazônica e na apresentação de um conjunto de relatos sensíveis de ribeirinhos, indígenas, garimpeiros, missionários, pesquisadores, desmatadores, entre outros personagens com “histórias muito mais ricas do que qualquer ficção”, segundo o autor. O estilo narrativo é o mesmo do livro de estreia, Estação Carandiru (1999), vencedor do Prêmio Jabuti de Não Ficção e Livro do Ano.

O sentido das águas é baseado no olhar poético do autor e em seu interesse genuíno pelas pessoas e situações.

A obra também se apoia em estudos de historiadores,

indigenistas, antropólogos, arqueólogos e outros pesquisadores que investigam a bacia do rio Negro desde o século 18. Esse é o vigésimo livro publicado pelo médico cancerologista, formado pela Universidade de São Paulo (USP), que nasceu no ano de 1943, em uma família pobre no então bairro operário do Brás. Ainda na faculdade, Varella começou a dar aulas no cursinho 9 de Julho, e depois fundou junto a João Carlos di Genio o Cursinho Objetivo, onde lecionou física e química durante muitos anos. Essa amizade sustenta também pesquisas na Amazônia, iniciativa realizada pelos laboratórios da Universidade Paulista (UNIP) em colaboração com o Hospital Sírio-Libanês e apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).

Entre os destaques da trajetória profissional, Drauzio Varella atuou por mais de 20 anos na direção do Serviço de Imunologia do Hospital do Câncer e foi referência no tratamento de AIDS no Brasil, durante a epidemia dos anos 1980. Na época, também começou a difundir informações sobre saúde no rádio e ganhou popularidade ao chegar à televisão, à mídia impressa e, mais recentemente, às mídias digitais. O médico, que há 30 anos se tornou maratonista, ainda segue com o atendimento voluntário em penitenciárias, hoje, no Centro de Detenção Provisória do bairro do Belém, na cidade de São Paulo, e com frequência se reúne com um grupo de amigos carcereiros.

Nesta Entrevista, doutor Drauzio, como é carinhosamente conhecido no país, revela seu deslumbramento diante da exuberância da natureza e da população amazônica. Também fala sobre seu processo de escrita, a vocação para a medicina, o papel de comunicador e sua atuação na saúde pública.

O senhor já disse que se ressente por ter demorado quase 50 anos para conhecer a Amazônia. Esse novo livro é uma forma de se desculpar em relação a isso?

Realmente, eu conheci o rio Negro tarde, aos 49 anos. A Amazônia é tão espetacular e, particularmente, o rio Negro. Me senti meio pobre intelectualmente por já ter conhecido vários lugares no mundo, como eu já conhecia naquela época, mas por não ter visto aquilo no país ao qual eu devo tudo. Venho colecionando essas histórias há tempos, mas nunca me sentia preparado para contá-las. A realidade daquela parte do país é tão complexa que eu sempre achei que precisava entender melhor para escrever ou ficaria um relato de um viajante que passou por lá, mas não teve a dimensão do que era o lugar. Agora eu passei dos 80 anos e achei que podia escrever sobre as coisas que eu ouvi e que podem interessar a outras pessoas. Começar a contar aquelas histórias me levou a estudar melhor a região. Li relatos de outros viajantes que passaram por lá, mais preparados, porque eram naturalistas, arqueólogos, indigenistas, antropólogos. Não quero ser uma autoridade, falar da floresta e da preservação como os especialistas, mas contar a história de um viajante ocasional que foi mais de cem vezes para lá. Fiz um livro para leigos, para chamar a atenção para esses lugares, e acredito que as pessoas terão interesse em conhecer um pouco melhor essa parte do país que desconhecem.

O que mais lhe encantou quando visitou o rio Negro pela primeira vez, e o que encanta nesse rio até hoje? O impacto da paisagem. Toda vez que eu chego no rio Negro, olho aquelas águas e falo: “Nossa Senhora!”. O deslumbre não acaba. Porque, de repente, você vê o rio paradão, refletindo o céu, as nuvens, as margens e a floresta, como se fosse um espelho. No tempo em que a gente tirava fotos e revelava, era até difícil saber qual a posição correta da imagem. E à medida em que você vai entrando na floresta e conhece as entranhas, os igapós, aquelas árvores, com orquídeas, bromélias, as copas gigantes, os cipós pendurados, vai descobrindo detalhes que são de uma infinita beleza. A realidade amazônica é tão rica que tudo depende de onde você fixa o olhar, cada canto revela uma floresta diferente. E as pessoas de lá são tão particulares, tão diferentes de outras áreas do país, que você entra em outro universo, com dificuldade até de separar o que real do que é imaginário. Também é fascinante ver como vivem os indígenas, ainda mais quando se toma consciência de que eles estão habitando a Amazônia há 12 mil anos, sendo que a civilização ocidental tem só dois mil anos.

Os textos foram redigidos durante as viagens ou já de volta a São Paulo? E como foi a escolha das histórias que entrariam no livro? Algumas coisas foram escritas lá, mas a maioria, aqui. Tem momentos da vida, em geral carregados de emoção,

Arquivo pessoal

Um dos maiores afluentes do Amazonas, o rio Negro abriga uma rica biodiversidade e importância cultural para os povos indígenas e comunidades ribeirinhas da região.

que você não esquece nunca mais. Então, essas histórias mais contundentes, do ponto de vista emocional, eu escrevia, às vezes, bem depois, porque eu me lembrava dos detalhes. Se elas me causaram esse impacto, poderiam interessar outras pessoas. Eu não sou ficcionista, não tenho a menor capacidade, mas gosto de contar história, relatos verdadeiros, pessoais. Tenho prazer em fazer isso. Um olhar de sofrimento, de alegria, de regozijo, que te encanta por alguma razão. Eu conto uma história de uma indígena que tinha um olhar profundamente triste. Em outro momento, fiquei impressionado com a história de um chá que os indígenas acreditam que quem toma vira bicho, vira onça. A linguagem daquele ribeirinho se confundia com a do personagem do conto “Meu tio o Iauaretê”, do Guimarães Rosa (1908-1967). São associações assim que penso que poderiam interessar às pessoas.

Como é o seu processo de escrita?

Eu escrevo bastante, tenho uma coluna no jornal Folha de S.Paulo, outra na revista Carta Capital, então, é difícil encontrar tempo. Mas de repente, eu me lembrava de algo e resolvia descrever aquilo que tinha visto. Ou visões que tive do avião, que me deixaram absorto e eu me empenhava em registrar. Às vezes, eu fotografava a floresta lá de cima, para não esquecer os detalhes, e fazia a descrição depois, com a impressão que eu tive naquele momento e

A função da medicina é aliviar o sofrimento humano. (...) E você só consegue fazer medicina de verdade quando está aberto ao outro, sem julgar

os detalhes da realidade lá embaixo. Descrever é sempre muito difícil, mas aprendi quando criança. Lembro que a professora da escola primária colocava um tripé da editora Melhoramentos com algumas imagens para a gente descrever, por exemplo, um sapateiro olhando para um sapato furado, sem saber o que fazer, e uma menina maltrapilha ao lado. Os alunos odiavam, mas eu gostava. Vez ou outra, a professora elogiou meus textos e eu guardei o incentivo. A descrição é difícil porque pode ficar muito chata. Por outro lado, pode ser muito criativa. Com poucas palavras, um escritor descreve um personagem ou uma paisagem de um jeito que provoca impacto.

Na escrita de Estação Carandiru (1999) também foi assim?

Foi um processo um pouco diferente, porque eu não era escritor naquela época. Comecei a realizar atendimento médico na cadeia, uma atividade que realizo até hoje, e fiquei muito impactado por aquela realidade, mas evitava comentar os assuntos em casa ou no ambiente social. Por outro lado, eram histórias muito interessantes, inclusive as que eu ouvia do grupo de carcereiros, dos quais me tornei amigo e convivo até hoje. Pensei em fazer uma coluna policial no [jornal] Notícias Populares, mas quando estava começando a escrever, me atrapalhei. Se eu citasse o Pavilhão 8 [um dos espaços mais temidos na Casa de Detenção de São Paulo, também conhecida como Carandiru, por abrigar presos reincidentes], ninguém saberia do que se tratava. Cada vez que eu mencionasse um espaço, teria que explicar para o público leigo e isso me paralisou. Então, resolvi descrever toda cadeia para entender o que eu tinha, o que fez com que eu a enxergasse com olhos de escritor. Senti que cada pavilhão tinha um determinado grupo de presos, uma cultura local, uma forma de comportamento e seria possível fazer um livro a partir daquilo. Acho que esse método serviu de modelo para os livros que fiz depois.

Suas obras revelam um olhar poético dirigido a pessoas que costumam ser marginalizadas pela sociedade, como presidiários, pessoas que vivem com HIV ou, no livro mais recente, garimpeiros e desmatadores. De onde vem essa sensibilidade?

A minha formação médica me leva a esse tipo de olhar. Um cirurgião pode achar que a função da medicina é operar; um clínico pode imaginar que é curar um doente. Tem gente que se ilude. A função da medicina é aliviar o sofrimento humano. A profissão não existe para curar –não se cura hipertensão, diabetes, tantas doenças. E você só consegue fazer medicina de verdade quando está aberto ao outro, sem julgar. Você recebe uma pessoa que pode ter dado um golpe financeiro e trata. Na cadeia, eu não fico perguntando o que a pessoa fez. Nunca fiz isso. Mas a medicina proporciona uma aproximação, não é possível ser um bom médico sem escutar e enxergar o paciente. Quando você tem uma abertura para o outro, fica muito interessado naquela pessoa. Eu sou assim, fico tentando entender cada um. E essas situações-limite, como é o caso da cadeia, que eu frequento há 36 anos, ou da epidemia da AIDS nos anos 1980, ensinam tanto sobre o comportamento humano, sobre como as pessoas lidam com as diferenças e com a morte, que é a contradição fundamental da vida. Sempre me interessou aprender como lidam com esses momentos, não por razões intelectuais, mas do ponto de vista prático, de prestar atenção nas pessoas que vivem assim. Tem uma música do Caetano Veloso que diz que “de perto, ninguém é normal”. Eu penso o contrário, todos são iguais. Por exemplo, um assassino chega doente, eu trato, começo a conversar e percebo que as paixões humanas são limitadas: amor, ódio, generosidade, vaidade... Todos os seres humanos têm isso. Vão dizer que um garimpeiro, pobre coitado, trabalhando em condições sub-humanas, é um monstro? Eu quero ouvir as histórias que ele tem para contar, porque a realidade que ele vive, eu nunca vivi e nunca viverei. E são histórias muito mais ricas do que qualquer ficção.

Em paralelo à atuação médica, o senhor sempre se dedicou a um trabalho de comunicador, que começou no rádio, chegou à televisão,

à mídia impressa e, nos últimos anos, tem crescido nas mídias digitais. Está mais desafiador realizar esse trabalho em um cenário de desinformação e fake news?

Em um país como o nosso, estudar é uma questão de privilégio. Então, você tem que ensinar os outros e pronto. Eu tenho obrigação de transferir conhecimento, de tentar comunicar e tenho acesso à mídia, estou há 26 anos no Fantástico [programa da Rede Globo]. Dá para acreditar que durante a pandemia, no auge daquela tragédia, quando chegamos a perder quase quatro mil pessoas por dia no país, alguém pudesse ser contra o uso de máscara e contra vacinas? Eu chamo essas pessoas de criminosas, porque usavam os meios de comunicação para contrariar medidas que salvam vidas. Se naquela hora eu não me manifestasse diante do absurdo que estava acontecendo no país, não me perdoaria. Imagina amanhã, uma neta ou bisneta dizer: “Vocês estavam vendo aquilo e não falaram nada?”. Tive uma atitude dura e firme, porque era a minha obrigação, e fiz isso na internet e na televisão. Isso gerou uma inimizade, pessoas me xingando, mas apesar de ter essa presença forte nas redes digitais, eu não vejo, não quero saber, nem mesmo aprender a mexer, para não perder meu tempo, ainda mais na minha idade.

Como lida com casos que fazem uso da sua imagem por meio da Inteligência Artificial, para propagar mentiras?

Então, tudo o que veio por essa marginália que vive no esgoto da internet, que quer te paralisar, não chega até mim. Mas eu movo ação contra a plataforma digital e tenho denúncia no Ministério Público, para esses casos em que pegam a minha imagem e a minha voz para divulgar medicamentos sem comprovação científica. Isso é crime contra a saúde pública e a plataforma que publica é cúmplice. O que me dói é que às vezes eu estou na rua e passa uma senhora, com uma sacola pesada, e fala: “Ah, doutor Drauzio, estou tomando aquele remédio do senhor para dor no joelho”. Essa pessoa gastou o dinheiro de uma necessidade para pagar quadrilhas de criminosos e golpistas.

Agora, eu passei dos 80 anos e achei que podia escrever sobre as coisas que eu ouvi e que podem interessar a outras pessoas

Sobre o trabalho de bioprospecção com plantas da Amazônia, realizado há mais de 30 anos, como ele avançou até hoje?

Pegamos os espécimes, folhas, cascas, frutos etc., moemos, diluímos em dois solventes, então transformamos aquela solução em um pó e colocamos em um freezer. Temos cerca de 2500 extratos nos freezers da Universidade Paulista (UNIP), no momento. Vou morrer, provavelmente você também, e não vamos concluir o potencial de análise desses extratos todos. Nós começamos testando contra bactérias resistentes a antibióticos e contra células malignas. Temos cinco extratos com atividade importante para células malignas e 10 a 15 para bactérias resistentes. E aí, você tem que selecionar aquele extrato que tem maior atividade. O extrato é uma espécie de chá que você preparou, jogou aquele pozinho na água, e ali tem várias substâncias. O objetivo é mostrar qual delas é a responsável pela atividade, separando frações, testando tudo de novo. Depois de descoberta, essa fração responsável pelo efeito, ainda precisa ser testada em animais, para entender como a droga se distribui, em quais órgãos ela aparece, em qual quantidade. Só depois disso, vem a testagem em humanos, que é um longo processo. Então, nada pode ser descoberto de uma hora para a outra. Quando ouvir dizer que alguém tem um tratamento milagroso, isso não existe. Hoje, estamos mais fixados em mecanismos, por exemplo, que permitem testar se a droga tem uma ação anti-inflamatória. Se ela age no processo inflamatório, pode ter ação em pneumonia, em infarto do miocárdio, em uma série enorme de patologias reumatológicas. Então, a demonstração do efeito em um determinado mecanismo abre muito o leque das aplicações. Mas é sempre um processo lento.

No livro mais recente, o senhor destaca histórias de pessoas com conhecimentos tradicionais, como dona Elisabel, parteira que depois foi contratada pelo SUS para trabalhar no Hospital Geral de Barcelos (AM). Como o senhor enxerga a incorporação de medicinais tradicionais e saberes na saúde pública?

No caso específico dessa parteira, ela fez mais de dois mil partos! Se você engravidar, se tiver uma gravidez normal, melhor fazer um parto com ela do que com um médico que acabou de sair da residência, durante a qual ele fez 40 partos. É importante pensar como o serviço de saúde absorve essa pessoa, que precisa ser preparada da melhor forma possível, ela não pode depender só do que aprendeu com outras parteiras. O objetivo da saúde pública é melhorar a vida das pessoas, evitar o sofrimento. Está errado chamar isso de assistência médica, é uma

O médico em uma de suas viagens ao estado do Amazonas: em frente à Sumaúma, árvore sagrada para os povos indígenas da região.

assistência à saúde, muito mais ampla do que o atendimento médico. No Brasil, se juntarmos os agentes comunitários de saúde, esses que vão de porta em porta, conhecendo as famílias, com os agentes das endemias rurais, por exemplo, os que matam o mosquito da dengue, temos 400 mil pessoas. Se você me perguntar qual o profissional mais importante na saúde pública, eu diria o agente comunitário, depois, a enfermagem e, por último, o médico.

Qual o papel, então, do agente comunitário na saúde pública?

Aquele agente que bate na porta, ele explica para o Seu João que a pressão alta pode provocar um enfarte, um derrame cerebral, e o convence a tomar o medicamento. Ele consegue algo muito maior do que um médico para tratar um enfarto ou derrame. Estou começando a fazer um trabalho voluntário para o Ministério da Saúde, de ministrar aulas online para os agentes comunitários, com o objetivo de explicar o que precisam saber desse trabalho “de porta em porta”, quais os controles que podem fazer com a população. No Brasil, temos 44 mil unidades básicas de saúde e mais de 90 mil farmácias. Não tem cabimento os farmacêuticos ficarem apartados da saúde pública. Esse contingente tem que ser usado – não para receitar remédios, mas como um canal de comunicação. Por que o farmacêutico não pode ensinar o paciente a anotar a pressão ou a entrar em contato com o médico para dizer que, mesmo tomando remédio, a pressão não está controlada?

A assistência médica tem que ter essa abrangência.

O médico entra quando não funcionou a prevenção.

Arquivo pessoal

De 23 de julho, a partir das 17h, até 30 de julho de 2025

O tratamento odontológico é exclusivo para quem tem a Credencial Plena do Sesc São Paulo. Para fazer a inscrição, baixe o aplicativo Credencial Sesc SP ou acesse o site centralrelacionamento.sescsp.org.br.

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artes e tecnologia

A terceira

MARGEM

Práticas manuais criam territórios físicos e afetivos para construção de identidade, trocas de conhecimento e fortalecimento de laços sociais

Coletivo Xilomóvel fomenta a prática manual da xilogravura, possibilitando encontros entre pessoas em locais públicos.

Da casa para o trabalho, do trabalho para casa ou, para alguns, trabalhar em casa. Soa familiar? Quando o sociólogo estadunidense Ray Oldenburg (1932-2022) refletiu em The Great Good Place (1989) [O melhor lugar, em tradução livre] sobre uma rotina cada vez mais mecanizada, descrevendo os espaços ocupados pelas pessoas – casa (primeiro lugar) e trabalho (segundo lugar) –, ele defendeu a importância de um “terceiro lugar”. Esse “terceiro lugar” seria traduzido por espaços que promovessem uma convivência comunitária, trocas, além de um sentido de propósito e pertencimento.

Na época em que Oldenburg escreveu o livro, a internet e o celular estavam começando a pavimentar esse território digital por onde a população passaria a circular e interagir. Mesmo assim, o sociólogo já previa que a tecnologia, o crescimento das cidades e a cultura do consumo disputariam esse “terceiro lugar”. Na contramão de grandes mudanças provocadas pela era digital, um movimento guiado por saberes e fazeres manuais reivindica, em diferentes partes do globo, o “terceiro lugar”.

Os cenários e atividades são as mais diversas e para todos os gostos – uma roda de tricô, um grupo de desenho, uma vivência com jogos de tabuleiro, uma oficina de marcenaria, um curso de xilogravura etc. Práticas manuais que historicamente promoveram a socialização e a troca de conhecimentos ocupam hoje os parques, praças e outros espaços do centro urbano. Nesse outro lugar, crianças, jovens, adultos e idosos se permitem o exercício da criatividade e a fruição de novas ações e diálogos em comunidade.

À frente desse movimento, coletivos do estado de São Paulo, formados por profissionais de diferentes áreas, constroem o que o sociólogo estadunidense chamou de “infraestruturas dos relacionamentos humanos”. Como arte educadores, observam uma diversidade de pessoas interessadas em fazer desse território físico e afetivo criado pelas práticas manuais um “terceiro lugar”.

ATELIÊ ITINERANTE

Um carro, modelo Veraneio 1976, chama a atenção dos moradores que o avistam, de longe, em Campinas (SP) –hoje a praça vai se transformar em ateliê. Cadeiras, mesas e uma prensa móvel são retiradas do veículo sob o olhar curioso dos transeuntes. “As pessoas já chegam na montagem perguntando o que a gente está fazendo ali, porque a praça, em geral, não costuma ter atividades”, conta a artista Luciana Bertarelli, uma das criadoras do Xilomóvel, projeto que se dedica à pesquisa e difusão da gravura.

Inspirada pelo projeto GRAVURANAKOMBI, no qual trabalhou durante a faculdade de artes visuais, na Universidade de Campinas (Unicamp), Bertarelli criou a iniciativa junto aos artistas Marcio Elias e Simone Peixoto. O objetivo? Tornar acessível o ensino da gravura, bem como os equipamentos e materiais utilizados. De 2009 para cá, o Xilomóvel já rodou mais de 60 mil quilômetros, passando por mais de 80 cidades brasileiras, transformando a rotina de cerca de 10 mil pessoas. Como “uma trupe de circo” que levanta a lona em espaços públicos, os integrantes do coletivo convidam: “A gente vai fazer uma atividade e ela vai ser gratuita, então, se você quiser esperar um pouco, fica aí. A gente já pega uma matriz e vai ensinar você a fazer uma gravura”, descreve a arte educadora. Por onde passa, o Xilomóvel alcança diferentes públicos. Apesar do medo que alguns apresentam de início, a curiosidade

artes e tecnologia

Arte, tecnologia e educação transformam-se em ferramentas lúdicas nas atividades realizadas pelo coletivo Máquina Tudo.

vai abrindo espaços internos para a confiança e o prazer de fazer algo novo. Aos poucos, os participantes deixam de se preocupar. “Aí a pessoa destrava e encontra na gravura um caminho de liberdade para se jogar no novo e fazer do jeito que ela quiser.”

Ao desenhar esse espaço de confiança e diálogo, o Xilomóvel transforma seu raio de atuação em um território de expressão individual e coletiva. “A gente realmente acredita que a questão da manualidade seja muito importante. Seja na gravura ou em outras técnicas, seja colhendo alimentos, plantando uma árvore… Ações que fazem a gente se conectar com o corpo e com outras formas de estar no mundo”, ressalta Bertarelli.

DESATANDO NÓS

Um dedal, herança da avó, foi o que motivou a arquiteta Carol Stoppa a se inscrever nas oficinas têxteis do Sesc Pompeia, em 2014. Foi nas aulas de crochê e tricô que ela se conectou com a memória da avó e se redescobriu entre fios e pontos. “Minha avó é quem fez isso, esse jeito de encontrar com ela, com a história dela e tentar

descobrir coisas que eu não sabia a seu respeito. Tudo isso foi por meio do fazer. Quando a gente está fazendo alguma coisa manual, já está interagindo e se comunicando com a ancestralidade”, compartilha Stoppa.

Em 2015, a arquiteta se reuniu com outras mulheres que também viram nesse lugar um propósito. Juntas criaram o projeto Meio Fio, do qual, posteriormente, participariam diversas colaboradoras. Além dos encontros entre as integrantes do projeto, passou a ser arte educadora, realizando cursos, oficinas e intervenções de tricô e crochê. Nessas ocasiões, reparava nos participantes que, com suas linhas e agulhas, entrelaçava pontos e conversas. Nessa comunidade, tecida por muitos fios, observou o quanto as práticas manuais podem contribuir na construção de identidade e pertencimento.

“Eu tive um relato muito emocionante de uma senhora que foi, durante muitos anos, nas nossas oficinas: a dona Edna. A filha dela veio falar que a mãe não enxergava sua força, mas que dona Edna foi descobrindo isso em nossas oficinas. Ela conseguia explicar o que estava sentindo quando mostrava a materialidade do que tinha feito, na oficina, para a filha”, recorda. Outras participantes das oficinas do

artes e tecnologia

TALVEZ NÃO SEJAMOS NÓS QUE ESTAMOS RESGATANDO OS OFÍCIOS. TALVEZ SEJAM ELES QUE ESTÃO, AOS POUCOS, RESGATANDO TODOS NÓS.

Guilherme Siqueira, multiartesão

Meio Fio também encontraram nesse lugar um espaço para sonhar. “Eu ouvi de mulheres mais velhas: ‘desejo sempre a mesma coisa para meu filho e para minha família: que tudo fique bem’. Mas, a gente pergunta: ‘e qual é o seu desejo?’. Aí, a pessoa começa a investigar isso por meio do fazer manual”, complementa Stoppa.

Há dez anos, o projeto Meio Fio costuma se reunir em cafés na cidade de São Paulo, além de outros espaços, como instituições e equipamentos públicos. E a roda de curiosos e praticantes do crochê e do tricô só aumenta. “Desfazendo nós”, como brinca Stoppa, as manualidades convidam as pessoas a desligar seus celulares para estar no momento presente. Um desafio necessário, segundo a arte educadora, para que haja a possibilidade de reconexão com o próprio desejo e de relação com os demais. “Por isso, acredito que o fazer manual seja uma forma muito potente de criar coletividade”, arremata.

CONSTRUÇÃO DE APRENDIZAGEM

Quando estudou desenho industrial na Universidade Estadual Paulista (Unesp), em Bauru, Leonardo Gallep já flertava com atividades manuais, se arriscando a fazer objetos de madeira que, ao final da faculdade, desdobraram-se em uma instalação cinética. Depois de se formar, em 2009, passou a se dedicar a projetos autorais até que, em 2015, quando precisou desenvolver “uma espécie de máquina maluca e outras geringonças” para a cenografia de uma exposição no Sesc Ribeirão Preto, pediu ajuda aos amigos Alexandre Nacari, designer, Fabricio Masutti, músico, e Gustavo Sarti, criador de jogos. Juntos criaram, naquele ano, o coletivo Máquina Tudo.

Eles se dedicam a projetos interativos que pensam arte, tecnologia e educação como ferramentas lúdicas. Em oficinas ou vivências que prezam pela “construção

de aprendizagem”, como define Gallep, o público cria brinquedos mecânicos e ópticos, jogos de madeira e caleidoscópios, por exemplo. Apesar de notar um crescente interesse por diferentes práticas manuais, Gallep ainda observa algumas resistências no meio do caminho. “Tem aquela pessoa que trava e fala: ‘Ah, mas eu sou péssima nisso’. Até que em uma ou duas horas de atividade, você vê a virada de chave. Vê o quanto a pessoa realmente pode mergulhar”.

Gallep defende que objetos feitos à mão guardam sua real importância no processo, ou seja, enquanto são elaborados. Tanto que em uma oficina de jogos voltada para arte educadores, o designer reforçou: “A ideia não é sair daqui com um jogo pronto.” Para o coletivo, mais interessante do que ter algo concreto finalizado é ver os participantes juntos, pensando no desenvolvimento e nos conceitos para a criação do jogo. “E no meio, ali, a pessoa descobre que tem uma super habilidade com determinada coisa ou, às vezes, ela passa a conhecer um assunto que nem estava sabendo. Como foi o meu caso, até descobrir quais linguagens eu gostava para fazer as instalações, entre outros projetos.”

ELO GERACIONAL

Imersos no universo da ilustração e do grafite, quatro amigos do Vale do Paraíba (SP) resolveram criar um coletivo para somar artes e compartilhá-las em oficinas. Alan de Oliveira (Tubão), Carolina Pereira (Lumina Pirilampus), Daniela Koyama (Dtkoy) e Giuliana Koyama (Giuko) criaram, em 2019, o Coletivo Catota. Assim mesmo: ca-to-ta, para que o nome engraçado e despretensioso instigue a curiosidade de crianças e adultos também. A primeira oficina – Monstrinhos à solta, criação de máscaras de papel de criaturas fantásticas – foi realizada assim que se formou o coletivo. Com a entrada do quinto integrante, Leonardo

A Forjaria Escola compartilha saberes para criação de objetos funcionais a partir de diferentes técnicas, utilizando aço e madeira.
Forjaria Escola

artes e tecnologia

Coletivo Catota aproxima diferentes gerações em oficinas lúdicas que convidam à expressão da criatividade.

Alcântara (Noelodran), veio a segunda oficina –Dançantes animados, criação de “monstrengos” de papel projetados na parede – e outras mais.

Desde então, o grupo busca no fazer manual uma expressão da criatividade, mas também, uma ponte intergeracional. “A gente nunca quis que as nossas atividades fossem somente para crianças. Os adultos acham que vão chegar na oficina, deixar a criança, e ficar olhando. Aí, a gente já puxa uma cadeira para eles e fala: ‘Olha, aqui está o seu kit para você fazer’. Os adultos que mais recusam e passam a aceitar no meio do processo são os que mais se divertem e falam: ‘Nossa, há quanto tempo eu não fazia algo assim’”, descreve Alan de Oliveira, o Tubão.

Se em casa, o momento da brincadeira e da conversa entre pais e filhos perde espaço para as telas do computador, do celular ou dos jogos, práticas manuais que envolvem toda a família se encarregam de mostrar outro caminho para essa relação. Pais, cuidadores e responsáveis somam-se na brincadeira de criar com as mãos monstros de todas as cores, de três pernas, cinco olhos ou o que mais a imaginação permitir.

Próximos, os integrantes do Catota se asseguram de que os mais velhos não vão interferir no processo criativo dos mais novos. “Tem crianças que precisam de ajuda e o responsável ajuda, mas às vezes, ele interfere no processo da criança e a gente fica muito atento para não permitir que isso aconteça. A gente tenta quebrar esse gelo, essa dureza do adulto, e tem que mediar para que haja ali um caminho livre para a criação.” No final, entre figuras estrambólicas, as vivências do coletivo convidam o público a uma grande festa: “monstrengos e catotentos dão risadas”.

ABRIR ESPAÇO

“Era só seguir o fluxo”. Assim pensava o multiartesão Guilherme Siqueira, durante os 21 anos como engenheiro da área de tecnologia em grandes empresas. No trabalho, galgou cargos de maior responsabilidade, viajava constantemente, até perceber, principalmente com o nascimento do filho, que aquele modus operandi não lhe servia mais. Contrariando a expectativa de amigos e familiares, deixou o emprego em 2020 e retomou, durante a transição de

Estúdio Catota

disponibiliza gratuitamente o

carreira, o gosto pelas práticas manuais. “Eu já tinha um chamado porque meu bisavô era marceneiro e minha mãe era artista plástica. Aí, quando meu filho fez dois anos, eu falei: ‘Nossa, eu não vi esse tempo passar, não curti meu filho’. Eu estava presente, de corpo, mas a cabeça não estava lá”, recorda.

A escolha do artesão se multiplica, principalmente entre jovens, como se o Zeitgeist, ou espírito do tempo, provasse a necessidade de criar outros espaços na vida fora do lugar de trabalho. “A saúde mental virou um dos grandes temas do nosso tempo. E talvez parte desse mal-estar venha justamente do quanto nos afastamos de processos reais e concretos – daquilo que exige presença, paciência e envolvimento”, escreveu Siqueira em artigo publicado na revista Mega Feira de Hobbismo em julho. Mas onde seria possível experimentar essa presença e envolvimento? A resposta do sociólogo Ray Oldenburg, que vislumbrou um “terceiro lugar”, foi o caminho traçado por Guilherme Siqueira.

De aprendiz autodidata – “uma hora eu estava tricotando, na outra fazendo marcenaria ou pão de fermentação natural” –, ele passou a se dedicar à

criação de objetos funcionais a partir de madeira e aço. Siqueira entendeu que o conhecimento adquirido deveria ser compartilhado e criou a Forjaria Escola em 2023, com o sócio e marceneiro, Eric Cerdeira. “A Forjaria apareceu como mais um ponto de gravidade para pessoas que pensam parecido. A ideia mesmo é de uma comunidade”, descreve.

Ao longo desse caminho, entender-se como artesão e arte educador foi um processo gradual, de alguns obstáculos. No entanto, ele acredita no movimento que realoca os saberes e fazeres manuais como parte essencial da sociedade, uma vez que “desde os primeiros tempos, usamos as mãos para moldar o mundo: construir, reparar, transformar", constata. Hoje, seja na Forjaria Escola ou em outros cursos que realiza, percebe um número cada vez maior de pessoas interessadas por ofícios manuais. “Talvez todo este movimento não seja só um resgate do passado. Talvez seja, na verdade, um caminho possível para o futuro – um futuro mais consciente, sensível e humano”. E conclui: “talvez não sejamos nós que estamos resgatando os ofícios. Talvez sejam eles que estão, aos poucos, resgatando todos nós”.

Sesc São Paulo
curso EAD Introdução à marcenaria – Móvel modular, com a designer Joici Ohashi.

artes e tecnologia / para ver no sesc

CRIATIVIDADE À SOLTA

FestA! – Festival de Aprender estende alcance e multiplica atividades realizadas nas unidades do Sesc São Paulo em todo o estado

Ao longo do ano, o Sesc São Paulo dedica em sua programação permanente de oficinas, cursos e vivências, um lugar dedicado ao fazer manual e à sua importância para a troca de saberes, diálogos, e sentido de comunidade. Para além das atividades realizadas em todo Estado, os Espaços de Tecnologias e Artes, os ETAs, em mais de 35 unidades, somam projetos que reforçam esse compromisso. Neste mês, o FestA! – Festival de Aprender realiza sua sétima edição de 4 a 13 de julho. Na programação, mais de 460 atividades nos campos das artes visuais e da tecnologia voltam-se a um público de todas as idades, distribuídas em 44 unidades.

“A programação do FestA! propõe encontros que unem artes visuais, saberes tradicionais e experimentações com tecnologias variadas, criando ambientes de construção de identidade, comunidade e redes de afeto. Acreditamos no poder das práticas culturais como caminhos de expressão, identidade, pertencimento e cuidado coletivo, especialmente em contextos urbanos, onde fortalecer os laços comunitários e os espaços de partilha se torna cada vez mais necessário”, explica Juliana Braga, gerente da Gerência de Artes Visuais e Tecnologia.

Confira destaques da programação:

ITAQUERA

Dançantes animados

Com Coletivo Catota

Crie um personagem articulado com papel e experimente texturas variadas a partir da técnica de stopmotion. Criaturas ganham movimentos para conquistar o mundo com dancinhas para lá de divertidas. Ao final, os participantes celebraram juntos uma projeção animada dos dançantes produzidos. Dias 5 e 12/7. Sábado, às 10h. GRÁTIS.

MOGI DAS CRUZES

Experimente a mecânica do Pedra-Papel-Tesoura

Com coletivo Máquina Tudo

Que tal experimentar a mecânica do tradicional jogo Joquempô em duas máquinas criadas exclusivamente para o FestA!? Os jogos partem da mecânica do Pedra-Papel-Tesoura e prometem provocar a diversão e o aprendizado dos participantes por meio de tecnologias analógicas e digitais. Dias 5 e 12/7. Sábado, às 11h. Dias 6 e 13/7. Domingo, às 11h. GRÁTIS.

BIRIGUI

Impressões de Clichês de Madeira

Com Xilomóvel

Nesta oficina, os participantes brincam com a impressão de matrizes de xilogravura recortadas. Os diversos clichês de madeira podem ser montados livremente

para ver no sesc / artes e tecnologia

7ª edição do FestA! –Festival de Aprender reúne mais de 460 atividades nas unidades do Sesc São Paulo, entre os dias 4 e 13 de julho.

pelos participantes em camas de impressão, utilizando duas cores de tinta gráfica e equipamentos tradicionais da gravura, como o rolo de entintagem e a prensa.

Dia 12/7. Sábado, às 14h.

Dia 13/7. Domingo, às 14h. GRÁTIS.

RIBEIRÃO PRETO

Coração Morada

Com Coletivo Meio Fio

O que mora no seu coração?

A oficina convida participantes de todas as idades a bordar livremente, em um tecido, seus desejos e sonhos, sobre um coração anatômico impresso.

Dia 12/7. Sábado, às 15:30.

Dia 13/7. Domingo, às 13h e às 15h30. GRÁTIS.

SESC DIGITAL

Introdução à marcenaria – Móvel modular

Com Joici Ohashi

Neste curso online, a designer de móveis e marceneira

Joici Ohashi apresenta o universo da marcenaria da teoria à prática, ensinando a criar móveis modulares versáteis e funcionais. Para isso, unem-se habilidades técnicas e conceitos de design funcional para o participante explorar a criação manual com autonomia e segurança e descobrir a da marcenaria, como forma de expressão, trabalho e realização pessoal. Inscreva-se em sescsp.org.br/ead.

GRÁTIS.

Nilton Fukuda

Rigor e DELÍRIO

Autor homenageado da Flip 2025, escritor, crítico literário e publicitário Paulo Leminski expandiu os limites da poesia, unindo a precisão da forma à liberdade da invenção

Um mosteiro. A palavra evoca silêncio, recolhimento e contemplação. Um lugar onde os monges se dedicam às orações e aos afazeres relacionados à vida religiosa. Mas nem sempre foi assim. Durante alguns meses de 1958, o cenário era diferente no tradicional Mosteiro de São Bento, ponto histórico do Centro de São Paulo. Ali, Paulo Leminski, então com 14 anos, esteve por uma temporada que foi transformadora em sua vida. Vindo de Curitiba (PR), e longe dos olhares da família pela primeira vez, o adolescente desafiou a tranquilidade do local – mais ou menos como faria com a literatura brasileira nas décadas seguintes.

Como na cena que faz parte do livro Paulo Leminski: O bandido que sabia latim (2001), escrito por Toninho Vaz, na qual o biógrafo relata que um professor da época, ao se deparar com o comportamento irreverente de Leminski, passou-lhe um sermão: “Ou você vem aqui na frente e bate três vezes com a cabeça no chão, ou será colocado para fora da sala! Você escolhe”. O adolescente, que apesar da rebeldia era um obcecado pelos estudos, não teve dúvidas: levantou de seu assento e jogou a cabeça contra o chão por três vezes. Reza a lenda que o eco do impacto ainda se ouve no Mosteiro de São Bento.

Anos depois, o gesto de bater a cabeça no chão soa como uma metáfora da postura de Paulo Leminski diante do mundo: intensa, provocadora, debochada e, ao mesmo tempo, profundamente entregue à busca por conhecimento. Daquele mosteiro, ele carregaria não a fé religiosa, no sentido convencional, mas o contato com uma vasta biblioteca formada por cerca de 70 mil títulos, com a disciplina do estudo e com uma espécie de espiritualidade às avessas – elementos que se refletiram em sua poesia.

Nascido em Curitiba, no dia 24 de agosto de 1944, filho de paranaenses, Leminski foi, desde cedo, um caso raro de erudição e rebeldia. Estudou latim, grego, francês, alemão e japonês. Leu tudo o que pôde – de Homero a Vladimir Maiakóvski (1893-1930), passando por James Joyce (1882-1941) –, mas fez da língua portuguesa seu território de experimentação. Sua poesia nasceu da confluência de múltiplos rios: concretismo, cultura pop, misticismo, haicai, publicidade, música popular. Escrevia como quem compunha um solo de guitarra: ora minimalista, ora virtuoso. Tinha humor, raiva, ternura. E um talento raro para unir o rigor da forma à liberdade da invenção.

Publicou obras autorais que deixaram marcas profundas, como Catatau (1975), biografias [de Matsuo Bashô (1644-1694), Cruz e Sousa (1861-1898) e de Leon Trotsky (18791940)], traduziu clássicos de James Joyce e Samuel Beckett (1906-1989), e foi parceiro e interpretado por artistas como Itamar Assumpção (1949-2003), Caetano Veloso, Guilherme Arantes e Arnaldo Antunes. Era poeta, mas também judoca, redator publicitário, compositor, letrista, performer. Um corpo inquieto, uma mente em ebulição. Tão culto quanto popular, tão marginal quanto central, Leminski criou uma identidade artística que continua a reverberar –em livros, canções, redes sociais, grafites de rua e nas falas de quem ainda tenta assimilar o mundo pela poesia.

É o caso do poeta e pesquisador Jr. Bellé, que conheceu Leminski, primeiro, como leitor apaixonado, e depois como uma espécie de companheiro espiritual. “Existe um momento em que você está construindo a sua voz poética de uma maneira mais intensa: está buscando referências, se entendendo como poeta, como escritor e tentando encontrar a sua forma de escrever. Se você encontra o Leminski nesse período, o efeito é de uma bomba atômica”, define. “Ele vai explodir a sua cabeça e a forma como você pensa a sua linguagem. A sua voz poética é exprimida dentro desse rigor e desse delírio com que constrói sua poesia”, complementa.

Bellé é um entre tantos que encontraram em Leminski um espelho, ou talvez um atalho para enxergar a poesia não como ornamento, mas como ferramenta de leitura do mundo. Tanto que ele dedica boa parte de sua vida acadêmica a estudar a obra do poeta curitibano. Sua dissertação de mestrado na Universidade de São Paulo (USP) teve como tema o livro Vida (compilação das quatro biografias escritas por Leminski, reeditada pela Companhia das Letras), e atualmente escreve uma biografia do autor como tese de doutorado na Universidade Federal do Paraná (UFPR).

VIDA COMO MATÉRIA-PRIMA

É difícil dizer qual caminho é mais labiríntico: entender a obra de Paulo Leminski ou entender o homem. Para Estrela Ruiz Leminski, sua filha caçula, fruto do casamento com a também poeta Alice Ruiz, as duas coisas quase se confundem. “A poesia estava por toda parte – nos livros, claro, mas também na forma como ele falava com a gente, nas brincadeiras, nos bilhetes que deixava, nos apelidos, nos jogos de palavras”, recorda.

Ela ainda destaca que “a literatura não era um lugar que ele frequentava de vez em quando, era o jeito de ele estar no mundo, inclusive como pai”. Talvez por isso, em boa parte de sua obra, Paulo Leminski falava dessa condição. “Escrevo. / E pronto. / Escrevo porque preciso, / preciso porque estou tonto. / Ninguém tem nada com isso”, sintetizou nos versos iniciais do poema “Razão de ser”.

De fato, a palavra era o que havia de mais próximo ao sagrado em seu cotidiano. Após deixar o Mosteiro de São Bento, encontrou de vez sua vocação ao participar, ainda como público e entusiasta, da Semana Nacional de Poesia de Vanguarda, realizada em Belo Horizonte (MG) durante o mês de agosto de 1963. O concretismo era o que havia de mais transgressor na literatura nacional da época, e Leminski se encantou com as falas de Décio Pignatari (1927-2012), Haroldo de Campos (1929-2003) e Augusto de Campos, representantes máximos do movimento. Saiu do encontro inspirado e, no ano seguinte, tornou-se um poeta publicado –cinco de seus poemas fizeram parte de uma edição da revista Invenção, de 1964, dedicada aos textos dos autores concretistas. Iniciava-se ali, oficialmente, uma carreira de escritor que, na maior parte do tempo, conviveu com outras ocupações: professor de cursinho pré-vestibular, jornalista, crítico literário, redator publicitário.

POETA MARGINAL

Foram diversos empregos e alguns pontos em comum: não apenas o manejo apaixonado de frases, pronomes e afins, mas as eventuais dores de cabeça que proporcionava aos patrões, fosse pelas noites viradas em bares, que se transformavam em ressacas homéricas, ou pelas dificuldades práticas de simplesmente pagarem seu salário, já que Leminski não tinha conta bancária. Atitudes como essas rendiam a Leminski um caráter folclórico e único, a personificação da imagem do “poeta marginal”. Escrevia em tudo que via pela frente: guardanapos, listas telefônicas, páginas de jornal. E perambulava com essas anotações até o momento de se sentar frente à máquina de escrever e depurar todo aquele material.

Foi assim que, de um amontoado de anotações registradas ao longo de oito anos, que nasceu Catatau, publicado em 1975. Tido pelo próprio autor como uma mistura entre James Joyce e Guimarães Rosa (1908-1967), o livro apresenta uma prosa com toques enigmáticos, uma tentativa de inaugurar um novo tipo de linguagem, feito de jogos de palavras e da aproximação entre idiomas. No romance, o autor narra a chegada de um personagem inspirado no filósofo francês René Descartes (1596-1650), em expedição pelo Brasil.

A poesia estava por toda parte –nos livros, claro, mas também na forma como ele falava com a gente, nas brincadeiras, nos bilhetes que deixava, nos apelidos, nos jogos de palavras
Estrela Ruiz Leminski, escritora

A casa onde viviam Leminski, a poeta Alice Ruiz e as filhas do casal, Áurea e Estrela, era um ponto de encontro de artistas, músicos e escritores, no bairro Pilarzinho, em Curitiba (PR).

Para ter a obra em mãos, Leminski negociou uma redução de salário com a agência publicitária P.A.Z., na qual então trabalhava, em troca da impressão de duas mil cópias. Satisfeito, não apenas andava sempre com um dos exemplares a tiracolo, como também fez questão de enviar a obra a alguns intelectuais por quem nutria admiração, incluindo Décio Pignatari, Caetano Veloso e Darcy Ribeiro (1922-1997). Assim, entrou de vez no radar do cenário literário nacional.

Ao elaborar a campanha de divulgação da obra, o autor lançou mão de seu caráter provocador. Fez um pôster em que aparecia nu, em posição de lótus, com uma expressão

séria, desafiadora. Consumava assim, mais uma vez, a união entre erudição e irreverência. Estava sedimentada de vez sua figura como alguém impossível de ser ignorado.

Sua literatura, então, floresceu aos olhos do público. Foram seis livros de poesia em pouco mais de uma década, incluindo títulos até hoje celebrados, como Caprichos e relaxos (1983) e Distraídos venceremos (1987). Tornou-se um requisitado pensador do cenário literário e das artes em geral, assinando colunas na revista Veja e no jornal Folha de S.Paulo, além de ter feito uma passagem pela TV Bandeirantes, como comentarista do

programa Jornal da Vanguarda, apresentado por Doris Giesse. Encarou todas essas incursões com a mesma paixão, sem abrir concessões em sua linguagem.

“Eu sempre soube que meu pai não era um pai comum”, declara Estrela. “Claro que havia essa persona do escritor eloquente, cheio de ideias e referências, especialmente entre os seus pares e em público. Era alguém que sabia ocupar a cena, que instigava, que causava. E isso fazia parte da força criativa dele: ele performava ideias com o corpo, com a fala, com a imagem. Mas, em casa, era onde ele era mais humano”, revela. “Pedia cafuné, fazia piada boba, demonstrava suas inseguranças, buscava consolo e silêncio. Tinha um lado muito afetuoso, quase menino, que pouco se via fora do nosso convívio. Ele precisava dessa intimidade para existir por inteiro.”

DE AMOR E CAOS

Essa dimensão afetiva, por vezes frágil ou explosiva, também se refletia em suas relações familiares. Leminski se casou pela primeira vez aos 18 anos, com a desenhista e artista plástica Neiva Maria de Souza. As longas ausências do poeta, sempre às voltas com a boemia da vida noturna, foram distanciando o casal, até que veio a separação, formalizada depois de cinco anos.

Foi com a poeta Alice Ruiz que Paulo Leminski viveu seu amor mais duradouro. Permaneceram juntos por mais de duas décadas e compartilharam não apenas a vida doméstica, mas também uma profunda parceria criativa. Juntos, criaram poemas, letras de música, traduções e até estratégias para equilibrar as contas da casa. “Meus pais intercalavam quem trabalhava fora e quem fazia freelance ou home office”, recorda Estrela. “Num período determinante para mim, por volta dos quatro anos, minha mãe passou a ir diariamente para a agência de publicidade, onde já era diretora de criação. E ele ficou mais em casa, escrevendo livros.”

A casa onde viviam, no bairro Pilarzinho, em Curitiba, era um ponto de encontro de artistas, músicos, escritores e outros amigos. Um lugar onde os filhos cresciam cercados de livros e conversas acaloradas. Ao mesmo tempo em que exercia uma figura paterna amorosa e brincalhona, Leminski também carregava suas sombras: crises existenciais, períodos de reclusão, um consumo excessivo de álcool que já preocupava a família.

Antes de Estrela, o casal teve Áurea e o primogênito Miguel, falecido aos dez anos por conta de um câncer linfático. A perda do filho não foi a única tragédia familiar que Leminski precisou enfrentar. Em setembro de 1986, veio a morte do irmão mais novo, Pedro, com

“Ele queria a poesia além do papel: no outdoor, na camiseta, no grafite, no sarau”, conta Estrela, filha caçula do poeta Paulo Leminski.

quem teve uma relação profundamente turbulenta. Chegaram a dividir a mesma casa durante o começo da vida adulta, escreveram músicas juntos e eram parceiros de caminhada nas montanhas do Marumbi, parque estadual localizado a cerca de duas horas de Curitiba.

A morte de Pedro infligiu uma profunda dor em Leminski e sua escrita ganhou contornos sombrios. É dessa fase o poema “Luto por mim mesmo”, que, além do título ambíguo, traz versos como: “Noite absoluta / Desse mal a gente adoece / Como se cada átomo doesse / Como se fosse esta a última luta”. Além das pistas nos textos, o vício em álcool passou a ser levado até às últimas consequências, o que incluía esconder de parentes e amigos, por muito tempo, um quadro de cirrose hepática grave, que terminou conduzindo seu falecimento em julho de 1989, aos 44 anos.

SEM PONTO FINAL

O legado de Leminski segue presente no mercado editorial. A publicação de Toda Poesia, seleção de boa parte de sua obra, em 2013, pela Companhia das Letras, reacendeu o interesse do público pelo trabalho do autor. Nos últimos anos, muitos estudiosos têm se debruçado sobre seus versos, não apenas na tentativa de decifrá-los, mas, principalmente, para enaltecê-los. “Leminski combina sucesso popular e reconhecimento acadêmico, podendo ser considerado um autor canônico, o que não deixa de ser curioso, pois ele é o poeta anticanônico por excelência”, define Fabrício Marques, autor do livro Aço em flor: a poesia de Paulo Leminski (2024), também poeta e jornalista.

“O leitor percebe o grande entusiasmo pela linguagem e pela vida que Leminski injeta em cada poema. Mesmo falando de dor, de morte, das rasteiras da vida, seus poemas trazem um imperativo, uma urgência, nunca artificial, de que é preciso amar as palavras, amar as pessoas, deixar algum legado para o futuro, mesmo num país como o nosso, onde a desigualdade e a pobreza não são levadas a sério”, completa.

Estrela, que ao lado da irmã Áurea e da mãe

Alice Ruiz atua na preservação da memória e na difusão da produção do pai, resgata uma lembrança pessoal para explicar o interesse crescente em sua obra.

“O que sei é que esses versos combinam com os nossos tempos: são diretos, sintéticos, contundentes, muito inspirados – e sempre além do óbvio. Ele queria a poesia além do papel: no outdoor, na camiseta, no grafite, no sarau. O máximo dito com o mínimo.”

para ver no sesc / bio

FESTA DA LITERATURA

Sesc São Paulo celebra a potência da palavra na 23ª edição da Flip, em Paraty (RJ)

Entre os dias 30 de julho e 3 de agosto, as Edições

Sesc São Paulo participam da 23ª edição da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), na cidade fluminense de Paraty (RJ). Realizado anualmente, desde 2003, o festival ocupa as ruas e as charmosas casas do município histórico, com reflexões e bate-papos sobre literatura nacional e internacional. No ano passado, cerca de 27 mil pessoas passaram pela Flip nos cinco dias de evento. A edição deste ano tem curadoria de Ana Lima Cecilio e o escritor Paulo Leminski como o autor homenageado.

O Sesc São Paulo estará presente na Casa Edições

Sesc, que realiza uma programação literária e cultural protagonizada por autores da editora e convidados, que dialogam sobre temas relacionados às suas produções. Também haverá venda de lançamentos e livros do catálogo. As atividades são gratuitas e voltadas a leitores de todas as idades. Confira a programação completa em sescsp.org.br/edicoes e outras atividades sobre a obra de Paulo Leminski na capital paulista:

PINHEIROS

Chá e Prosa – Nas palavras de Paulo Leminski

Com Rafael Fava Beluzio, Viviana Bosi e Régis Bonvicino Lançamento do livro Quatro clics em Paulo Leminski, de Rafael Fava Belúzio, obra que propõe uma análise da escrita leminskiana, explorando seus múltiplos gestos poéticos. No encontro, o autor conversa com a crítica literária Viviana Bosi e o poeta Régis Bonvicino. Dia 13/8, quarta, às 19h30. Área de Convivência – Térreo.

Leminski 80 – Um mapa afetivo de sua obra

Com Rafael Fava Belúzio

O curso propõe um mergulho na produção literária de Paulo Leminski a partir de leituras, análises e debates. Dias 16 e 17/8, sábado e domingo, às 10h30 e às 15h. Sala de Múltiplo Uso, 3º andar.

Mais informações em sescsp.org.br/pinheiros

UM CORO DE ZÉS

Dois anos após

sua morte, diretor teatral e dramaturgo José Celso Martinez

Corrêa ganha nova biografia e seu canto ainda ecoa

POR MARCEL VERRUMO

No Teat(r)o Oficina Uzyna Uzona, Zé Celso interpreta Antônio Conselheiro na obra Os Sertões - O homem II (2003).

Lenise Pinheiro

Vozes ecoam há décadas da rua Jaceguai, número 520, no bairro do Bixiga. O endereço, no Centro da capital paulista, foi o local escolhido pelo diretor teatral e dramaturgo José Celso Martinez Corrêa (1937-2023) para abrigar o Teat(r)o Oficina Uzyna Uzona. Seria a casa de uma das companhias teatrais mais longevas do país, em atuação desde 1958; palco eleito por gerações de artistas para criar e viver entre mentes e corpos em ebulição, numa espécie de comunidade; destino onde milhares de pessoas foram atraídas pela arte, pela história e até pela curiosidade de presenciar uma nova teatralidade.

O epicentro da dramaturgia de Zé Celso é o Brasil. Nascido em Araraquara (São Paulo), em 1937, desde a infância viveu em um ambiente familiar de discussões sobre os rumos da sociedade brasileira. Embora tenha se mudado para São Paulo para cursar direito na Universidade de São Paulo (USP), logo alterou sua rota e passou a fazer do tablado um espaço para pensar seu tempo e território. Na capital, criou o próprio grupo, a Cia. de Teatro Oficina (1958-1973), que passaria a ser Oficina Samba (1973-1979), 5º Tempo (1979-1983) e, finalmente, Teat(r)o Oficina Uzyna Uzona (a partir de 1984).

Já nos primeiros anos como diretor, em 1967, o encontro com a obra de Oswald de Andrade (1890-1954) foi definidor de sua trajetória, aproximando-o das ideias do escritor modernista, sobretudo do Manifesto Antropófago (1928). “Oswald seria incorporado em definitivo ao repertório do Oficina e elevado por Zé Celso a mito pessoal e combustível de seu pensamento descolonizador (...). A antropofagia, que propugnava a deglutição do hemisfério norte na expressividade brasileira, se somou ao vento renovador do grupo”, escreveu o jornalista Claudio Leal, organizador da recém-lançada biografia colaborativa O devorador: Zé Celso, vida e arte (Edições Sesc São Paulo). Ao mesmo tempo em que elegeu Oswald como um farol, o diretor dialogou com movimentos e artistas contemporâneos, como o cantor e compositor Caetano Veloso, representante do Tropicalismo, e o cineasta Glauber Rocha (1939-1981), do Cinema Novo.

No palco montado por Zé Celso, há um coro de artistas com quem ele trabalhava e de espectadores. “Quando Zé dirigiu Roda Viva, em 1968, um coro invadiu o espetáculo. Eram vozes de pessoas que estavam nas passeatas contra a ditadura. Esse foi o primeiro momento de integração do Oficina com a realidade das ruas. A partir daí, o grupo começou a aprofundar a coletividade dentro de cena e a passar por um processo de se entender como uma comunidade”, conta o biógrafo. A abertura do coletivo para as ruas foi assimilada na dramaturgia, em obras que rompiam os limites entre o palco e a plateia, e na concepção arquitetônica do edifício que abriga a companhia, uma construção integrada ao território que o circunda, e cortada por uma rua.

Tal qual o coro das ruas, a subjetividade do diretor também se expressou em sua teatralidade. “No contexto da ditadura, Zé Celso foi torturado, uma experiência que transformou e aprofundou a sua reflexão sobre o corpo. Em sua teatralidade, o corpo passou a ser tratado como um templo”, observa Leal. Outro ponto de inflexão em sua jornada foi a morte violenta de seu irmão, Luís Antônio Martinez Corrêa (1950-1987), assassinado com 107 facadas. “Nesse momento, Zé Celso diz que a vida é trágica e não há mais espaço para o drama. A partir daí, ele estabelece uma teatralidade baseada na tragicomédia-orgia”, acrescenta.

Ao longo dos seus 65 anos de carreira (1958 a 2023), inspirando-se na antropofagia, Zé Celso criou uma comunidade de artistas e públicos unida pela ânsia de devorar o colonialismo a partir de referências do Brasil, que vomitava uma cultura nacional. Tal qual o manifesto oswaldiano propunha, aglutinou gente unida social, econômica e filosoficamente – um coro de Zés que sobreviveria à morte do seu próprio criador, faminta para abocanhar o imperialismo cultural e, então, forjar novas dramaturgias brasileiras.

Em sua teatralidade, Zé Celso deglutiu o colonialismo a partir de referências nacionais. Na foto, diretor teatral e dramaturgo no espetáculo Macumba Antropófaga.

Zé Celso, Caetano Veloso, Nana Caymmi (1941-2025), Gilberto Gil e Paulo Autran (1922-2007) participam da Passeata dos Cem Mil, no Rio de Janeiro (RJ), em 1968.
Evandro Teixeira

O diretor e dramaturgo se dedicou a criar enredos que pensavam a realidade brasileira. Na foto, Zé Celso em 1980.

gráfica

Ao longo de 65 anos de carreira (1958 a 2023), Zé Celso pensou o Brasil a partir do teatro, aglutinando uma legião de artistas e espectadores.

Bob Wolfenson

Acima, ensaio de Roda Viva (1968), com Chico Buarque. Abaixo, comemoração da 100ª apresentação de Pequenos burgueses, de Gorki (1868-1936); Luiz Linhares (1926-1995), Etty Fraser (1931-2018), Célia Helena (1936-1997), Renato Borghi, Liana Duval (1927-2011), Raul Cortez (1932-2006) e Eugênio Kusnet (1898-1975).

Arquivo Edgard Leuenroth/Unicamp Acervo Zé Celso
Arquivo/Estadão Conteúdo
Zé Celso nos escombros do Oficina, após o incêndio de 1966.
Diretor teatral e dramaturgo com imagem de São Jorge.
Arquivo
Edgard Leuenroth/Unicamp Acervo Zé Celso
Zé Celso faleceu em julho de 2023. Seu velório reuniu uma multidão no Teat(r)o Oficina Uzyna Uzona, no Bixiga, em São Paulo.

ver no sesc / gráfica

FACES DO DEVORADOR

Ensaios e depoimentos de mais de 40 artistas e pesquisadores costuram nova biografia de Zé Celso, lançada pelas Edições Sesc São Paulo

Se o teatro do diretor e dramaturgo José Celso Martinez Corrêa (19372023) é permeado pelo coletivo, traço identificado no coro que compõe muitas de suas obras, sua nova biografia também assimila essa característica. Em O devorador: Zé Celso, vida e arte (Edições Sesc São Paulo, 2025), o jornalista Claudio Leal reúne textos de mais de 40 artistas e pesquisadores a respeito da trajetória e do teatro do diretor. Há depoimentos de Caetano Veloso, Gerald Thomas, Gilberto Gil, Maria Bethânia, Marieta Severo, Renato Borghi, Tom Zé, entre outros.

Organizado de forma cronológica, o livro contempla desde a infância em Araraquara (SP) até as últimas intervenções do biografado, desvelando suas complexidades e contradições.

“Ao acompanhar a vida e a arte de Zé Celso pela voz dele próprio e de quem esteve ao seu lado, a obra revela suas contribuições para a cultura brasileira, não só para o teatro. Também adensa as interpretações sobre a sua linguagem e sobre a sua experiência poética em cada tempo”, conta Leal.

A obra enseja reflexões a respeito de uma figura e de um grupo com uma história que, há décadas, se cruza com a do Sesc São Paulo em diversas ocasiões – em temporadas, circulações, ações formativas, dentre outras atividades. “Com a publicação desta biografia, as Edições Sesc homenageiam um artista brasileiro dos mais brilhantes, colocando em perspectiva crítica as diversas fases de sua antropofagia, que extrapolou os limites do palco e das fronteiras nacionais”, escreveu o diretor do Sesc São Paulo, Luiz Deoclecio Massaro Galina, na apresentação da obra.

EDIÇÕES SESC SÃO PAULO

O devorador: Zé Celso, vida e arte

Organização: Claudio Leal

Edições Sesc São Paulo, 2025. 520 páginas. sescsp.org.br/edicoes

Nova biografia apresenta diretor teatral e dramaturgo a partir de múltiplas vozes.
Lenise Pinheiro

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ACESSO para o mundo

Pessoas com vários tipos de deficiências relatam experiências sobre acessibilidade em viagens e lutam para que sejam incluídas e bem recebidas

O casal Juliana Tozzi e Guilherme Simões Cordeiro em uma das trilhas percorridas por eles, com auxílio da bicicleta Jullieti, criada por Guilherme e comercializada em todo o Brasil, além de Portugal, Estados Unidos e Japão.

Aos cinco anos de idade, quando contraiu um vírus que inflamou sua medula e comprometeu as funções motoras das pernas, Laura Martins jamais pensou que chegaria tão longe. Formada em letras português-francês pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a servidora pública aposentada da Assembleia Legislativa de Minas Gerais apaixonou-se por viagens e, desde 2007, passou a aventurar-se mais a cada dia. Planejou passeios, montou roteiros e pesquisou muito para evitar “perrengues” – que sempre insistiam em acontecer. De feriados a férias por cidades históricas brasileiras e pelo Nordeste, Laura cruzou o Atlântico, em 2008, para conhecer a Suíça e a França.

“Fui sozinha, fiquei um ano me preparando para aquele momento. Acabei perdendo a conexão aérea, minha mala foi extraviada e, mesmo falando bem francês, tive dificuldade para conseguir informações”, lembra. À sua espera, em Genebra, estava um amigo, mas a parte francesa da viagem – que durou duas semanas – ela fez um trecho por conta própria. “Cruzei os dois países num trem de alta velocidade. Em Paris, subi na Torre Eiffel e fui quatro vezes ao Museu do Louvre. Conheci um castelo medieval no Vale do Loire, onde tomei chá e vi o amanhecer numa floresta”, conta Martins, que hoje mora em Lagoa Santa (MG). A partir dessas experiências, numa época em que a mineira utilizava muletas na maior parte do tempo (há cerca de uma década, passou a usar exclusivamente cadeira de rodas), ela constatou que lugares e equipamentos históricos, seja no Brasil ou no exterior, podem – e devem – ser acessíveis, diversos e inclusivos.

Em 2011, Martins criou o blog Cadeira Voadora, que mais tarde se expandiu para o Facebook, Instagram e YouTube. O projeto busca compartilhar experiências de viagens acessíveis para pessoas com deficiências, o que inclui dicas sobre: direitos, saúde e questões arquitetônicas, tutoriais sobre como preparar uma mala, o que pode despachar ou não, equipamentos, remédios e documentos para apresentar na imigração, avaliações de hospedagens e restaurantes, entre outros temas. “Minha logomarca mostra uma cadeirante viajando em um balão, algo que remete a voo, liberdade e alegria. Quero ajudar outras pessoas a

bater asas. O que nasceu como algo despretensioso, logo virou uma missão de vida”, revela Martins.

Ativista em temas de acessibilidade há mais de 30 anos, Martins também participou, na década de 1990, da fundação do Centro de Vida Independente (CVI) de Belo Horizonte, criado para capacitar pessoas com deficiências a terem uma vida mais autônoma. “Antes da Constituição de 1988, não se falava muito nisso, havia mais políticas de assistencialismo. Só que turismo, lazer e cultura não são secundários, são direitos fundamentais. Outro marco para a acessibilidade e inclusão foi a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, promulgada pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 2009”, explica. É importante acrescentar, ainda, a Lei Brasileira de Inclusão (LBI) ou Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146/2015), cujo objetivo é garantir e promover direitos fundamentais – como à cidadania e à inclusão social –das pessoas com deficiências.

Para Martins, uma viagem com acessibilidade deve estar ancorada no tripé autonomia, conforto e segurança. “O caminho é sair de casa. Não devemos ficar confinados. Se a gente não se expuser, os lugares vão continuar inacessíveis, com a desculpa de que são assim porque nenhuma pessoa com deficiência vai lá. A gente se forma no contato com os outros”, acredita.

OUVIR AS DEMANDAS

Segundo o Censo 2022, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o país concentra

14,4 milhões de pessoas com deficiências, ou 7,3% da população acima dos dois anos de idade. Além disso, 2,4 milhões de brasileiros estão no Transtorno do Espectro Autista (TEA), necessitando diferentes níveis de suporte. Para a bióloga, acompanhante terapêutica e doutoranda em saúde pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) Vanessa Giovana Vasques, as deficiências, em sua definição social, são barreiras que as pessoas enfrentam em relação à coletividade e aos ambientes que tentam acessar. “Elas não estão no sujeito, mas nos espaços e nas estruturas sociais. A humanidade é diversa, e isso inclui diferentes corpos, intelectos e modos de estar no mundo”, destaca.

Vasques tem mobilidade reduzida por conta de uma condição genética rara chamada XLH (sigla

em inglês para hipofosfatemia ligada ao cromossomo X). Foi diagnosticada aos quatro anos, já fez 13 cirurgias, usou cadeira de rodas por um período e reaprendeu a andar muitas vezes. No caso da acessibilidade no turismo e lazer, a bióloga defende que é preciso ouvir essas pessoas e suas demandas, além de entender que a acessibilidade é um conceito muito amplo, pois envolve uma gama extensa de indivíduos e de deficiências. “Há surdos ou ensurdecidos, por exemplo, que utilizam implante coclear e ouvem bem; outros se comunicam por Libras ou usam legendas descritivas. Da mesma forma, nem todo cego ou pessoa com baixa visão lê em Braille”, explica. Além da acessibilidade arquitetônica (em banheiros, rampas, pisos táteis etc.), Vasques ressalta a importância da acessibilidade atitudinal e

comunicacional, sem falar nas políticas públicas e de acesso (como meia-entrada e estacionamento grátis) para que as pessoas com deficiências possam, de fato, viajar, passear e transitar pelas cidades.

AR RAREFEITO

Apaixonado por esportes de aventura, o educador físico Eduardo “Morcego” Soares nasceu com deficiência visual, por conta de um exame de raio-X que sua mãe fez durante a gravidez. Sempre em movimento, lutou judô por quase uma década e já participou de uma maratona. Tem como meta de vida escalar as sete montanhas mais altas dos continentes, e já subiu o monte Kilimanjaro (Tanzânia), o Elbrus (Rússia) e o Aconcágua (Argentina). “Gosto de desafios. Quero me tornar a primeira pessoa com deficiência visual da América Latina a escalar os sete cumes, que incluem ainda o Kosciuszko (Austrália), o Vinson (Antártida), o Denali ou McKinley (Alasca, EUA) e o Everest (Nepal e Tibete), a cereja do bolo”, almeja.

Enquanto se prepara e busca patrocínio para as próximas aventuras pelo planeta, Soares –que tem 10% de visão em ambos os olhos e usa bengala para se guiar –treina em trilhas e montanhas brasileiras. Para se exercitar com segurança, há cinco anos, o atleta conta com o auxílio do educador físico e guia de turismo Diego Diniz, do projeto Aventura Inclusiva. “Vou na frente dele, com um bastão de caminhada, seguro em uma ponta e o Edu, na outra. Vou orientando-o, descrevendo o caminho e avisando-o sobre galhos e pedras, para onde virar, se é preciso se abaixar etc.”, conta Diniz.

A administradora e pedagoga Amanda Ribeiro, que realiza treinamentos sobre turismo inclusivo pelo Brasil, ao lado do filho, Arthur, de nove anos, e do marido, Marcelo Ribeiro, na praia de Maragogi (AL), em 2024.

O educador físico deseja que outras pessoas com deficiências tenham as mesmas oportunidades que ele, mas entende que os esportes de aventura envolvem custos altos (com roupas térmicas, equipamentos, transporte e guias) e falta de apoio. “Participo de um projeto na ONG Natureza de Criança, na região central da capital paulista, que atende crianças com e sem deficiências. Já fizemos um dia de remo, e tento mostrar para os pequenos e suas famílias que o mundo é para todos, só precisamos de incentivo e condições favoráveis”, reflete Soares.

Outra dupla aficionada pelas altitudes e pelo ar rarefeito das montanhas é o casal Juliana Tozzi e Guilherme Simões Cordeiro, engenheiros civis e moradores de Caçapava (SP). Há uma década, após enfrentar um câncer de mama, Juliana – então grávida de Benjamin, hoje com nove anos – teve um tumor agressivo na axila direita, o que a deixou com sequelas neurológicas que comprometeram sua fala e os movimentos das pernas. Após um diagnóstico inicial de três meses a um ano de vida, a empresária passou por cirurgia e sessões de químio e radioterapia. “Nós sempre gostamos muito da natureza, é a nossa válvula de escape. Começamos escalando rochas, daí fomos para desafios maiores em trilhas e travessias. Viajamos mais de 600 quilômetros pedalando, além e de carro e motorhome. Quando a Ju adoeceu, perguntei o que ela mais gostava de fazer na vida. A resposta foi: ‘Viajar e subir montanhas’. Ali, entendi que iria batalhar para que isso continuasse por toda a nossa história”, conta Cordeiro.

Após meses de pesquisa, Cordeiro terminou de projetar uma cadeira adaptada, batizada de Julietti,

para que pudesse seguir escalando montanhas pelo Brasil (como o Monte Roraima) e pelo mundo ao lado da esposa. A história de união e superação deles virou o curta-metragem Julietti: Uma vida nas montanhas (2019), dirigido por Wiland Pinsdorf e disponível na plataforma de streaming Globoplay. O filme mostra o casal e alguns amigos tentando subir o vulcão inativo Acotango, na fronteira da Bolívia com o Chile. O dia a dia de Juliana e Guilherme também está presente no projeto Montanha para Todos, que eles mantêm no Instagram e YouTube. “Achei que eu nunca mais fosse escalar uma montanha novamente. Quando consegui, foi uma sensação indescritível, surreal”, conta a engenheira.

Hoje, Cordeiro se orgulha por já ter comercializado mais de 1,5 mil cadeiras Julietti em todo o Brasil, além de Portugal, Estados Unidos e Japão. O casal planeja lançar, em breve, um livro e uma cinebiografia em longa-metragem contando sua trajetória. “Um dos maiores gargalos para viajar, sem dúvida, é a hospedagem, por isso temos um motorhome. Já passamos muito aperto. Cada lugar é de um jeito, não existe padrão. É mais fácil levar um cadeirante para acampar do que arrumar um hotel ou pousada que atenda a todos os pré-requisitos”, conta Cordeiro, que indica a cidade de Socorro (SP), destino de turismo de aventura, como a “meca da acessibilidade”. “Esse deveria ser um modelo para outras cidades, ganhou até prêmio

Criadora do blog Cadeira Voadora, Laura Martins compartilha dicas de destinos, equipamentos, saúde, direitos e acessibilidade arquitetônica.
Marta Alencar

internacional, tem hotel com 100% dos quartos adaptados e 90% de lotação o ano inteiro”, finaliza.

PORTAS ABERTAS

Em abril, o Senado aprovou, por unanimidade, o Projeto de Lei 2.199/2022, que determina a substituição do Símbolo Internacional de Acesso (imagem da cadeira de rodas) pelo Símbolo Internacional de Acessibilidade (uma pessoa dentro de um círculo, representando as diversas deficiências), criado pela ONU em 2015. Isso reforça que a acessibilidade precisa incluir também pessoas neurodivergentes, com as diversas deficiências. Essa é a batalha diária da administradora, pedagoga e empreendedora Amanda Ribeiro (@mamaequeviaja), mãe de Arthur, de nove anos, com nível dois de suporte de Transtorno do Espectro Autista (TEA). Desde 2019, a paulistana percorre hotéis, resorts, parques e atrações turísticas pelo Brasil para capacitar funcionários a receberem da melhor forma pessoas com autismo e com deficiências diversas.

“Meu trabalho surgiu a partir de uma indignação durante uma viagem de férias em família, para Caldas Novas (GO). Preenchi uma ficha informando que meu filho tinha autismo. O hotel respondeu que não sabia lidar com o Arthur,

que ele não conseguiria brincar com as demais crianças, e que eu teria que ficar ao lado dele o tempo inteiro”, recorda.

Desde então, a paulistana já treinou cerca de 100 hotéis e 150 parques e atrações em todo o país, que receberam o selo Empresa Amiga do Autista. “Também presto consultoria a espaços que ainda estão na planta, sendo projetados, para que já nasçam acessíveis. É mais barato e sustentável do que uma reforma ou adaptação”, conta. Em seis anos de atividade, Amanda identificou que muitos espaços não sabem nem o básico sobre pessoas com deficiências, inclusive os termos corretos a serem usados. “Somos consumidores e também queremos viajar, mas só poderemos ir se os lugares estiverem bem-preparados”, resume.

A luta de Ribeiro encontra ressonância no casal Luciana Barros e Raphael Rosa, paulistanos que vivem em Florianópolis (SC), pais de Danilo, 17 anos, e Lara, nove anos – ambos neurodiversos. O garoto recebeu diagnóstico de Transtorno de Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH), com indicativo de altas habilidades, e a menina tem autismo, com nível um de suporte. Barros, que é servidora pública, e o marido, que cursa psicologia e atua como assistente terapêutico de pessoas com autismo, resolveram, então,

A HUMANIDADE É DIVERSA, E

criar o perfil nas redes sociais, Atípicos Viajantes, em 2021. Lançaram também um aplicativo de celular homônimo, com dicas e avaliações de hotéis, restaurantes, serviços, parques, eventos e espaços públicos, entre outros. Os dois fazem, ainda, capacitação de empresas do setor de turismo e lazer na capital catarinense.

O casal sempre gostou de viajar, mas, com o diagnóstico dos filhos, algumas pessoas lhes perguntavam: “Vocês vão ter coragem de viajar com eles?”. Para Rosa, a questão deveria ser: “Como deixá-los presos dentro de casa? A partir daí, nasceu o nosso projeto, com o intuito de incentivar outras famílias a passear e viajar também”. Barros complementa: “Dizem que agora todo mundo tem TEA, TDAH. Não é verdade, não se pode banalizar isso. Pessoas com autismo, em geral, têm comprometimentos de comunicação e socialização, com atrasos e prejuízos reais durante a vida. O que tem aumentado é o número de pessoas neurodivergentes e com deficiências sendo diagnosticadas e saindo de casa”. O casal, que já percorreu vários destinos no Sul e no Nordeste com os filhos, deseja criá-los com autonomia, para que um dia, quem sabe, eles possam fazer intercâmbio no exterior. “Na verdade, o mundo é deficiente para essas pessoas, e não elas que têm deficiências”, conclui Rosa.

para ver no sesc / turismo social

ACESSO, DIVERSIDADE E PARTICIPAÇÃO

Sesc Bertioga e sua Reserva Natural são referências em turismo acessível

O Centro de Férias Sesc Bertioga recebe turistas de todo o país e preza pela acessibilidade em seus espaços de hospedagem e áreas externas. Oferece quartos acessíveis para pessoas em cadeira de rodas, com deficiência visual, que utilizam cão-guia etc. A unidade também vem ampliando o acesso por meio da implantação de passarelas cobertas entre os conjuntos de quartos e as áreas comuns, faz empréstimo de cadeira de rodas, possui rampas e plataformas elevatórias para transporte acessível, e coloca à disposição cadeiras anfíbias que dão acesso à praia e para banhos de mar.

O Sesc Bertioga se dedica, ainda, à acessibilidade comunicacional

a seus diferentes públicos, razão pela qual divulga vídeos com informações em Libras e audiodescrição, por exemplo. Segundo Juarez Michelotti, responsável pela área de Educação para Sustentabilidade no Sesc Bertioga, a Reserva Natural Sesc Bertioga se destaca ao dispor de dois percursos (Trilha do Sentir e Trilha do Tucum) que atendem pessoas com deficiências, além de ter cadeiras de roda anfíbias para empréstimo. No local, há placas de relevo em resina, trazendo uma amostra de espécies da fauna e flora locais, que podem ser manuseadas por pessoas com e sem deficiências. “São 60 hectares de floresta urbana protegida, planejada de acordo com o conceito

arquitetônico de desenho universal, capaz de receber as pessoas mais diversas. Além da caminhada pelas trilhas, oferecemos cursos, oficinas, vivências, atividades físico-esportivas e socioambientais”, explica Michelotti, que também responde pela coordenação da Reserva Natural.

BERTIOGA

Reserva Natural

Sesc Bertioga

De terça a domingo, das 8h30 às 17h30, para visitação livre. Visitas mediadas: de quarta a domingo, às 9h, 11h e 14h (inscrições no local, com 15 minutos de antecedência). GRÁTIS. Informações em sescsp.org.br/bertioga

Dutra
Dentro da Mata Atlântica, Sesc Bertioga e sua Reserva Natural promovem a acessibilidade para receber seus visitantes.

CONHECIMENTO DIVULGAÇÃO DO

Inúmeros são os impactos históricos das diversas áreas do saber no desenvolvimento do mundo em que vivemos: vacinas e medicamentos aumentaram a longevidade e promoveram a qualidade de vida das populações ao redor do planeta; satélites nos auxiliaram a entender se fará chuva ou sol, e são grandes aliados na mitigação das mudanças climáticas; teorias e dados socioeconômicos nos ajudam na identificação dos nossos problemas sociais e apresentam caminhos para a construção de uma sociedade mais justa.

Apesar de tantas contribuições, para muitos a ciência ainda é um “bicho de sete cabeças”. Com o compromisso de mudar esse cenário, profissionais dedicaram-se à divulgação científica no meio editorial, em veículos de rádio e televisão, no cinema e na imprensa, democratizando o saber especializado. Nos últimos anos, foi a vez de criadores de podcasts, séries audiovisuais em plataformas de streaming e redes sociais construírem pontes para que pesquisas, resultados e novos questionamentos alcançassem mais pessoas.

Para a mestranda em divulgação científica pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) Clarice Cudischevitch, gerente de comunicação no Instituto Serrapilheira, e Natasha Felizi, diretora do Programa de Jornalismo e Mídia do mesmo instituto, a divulgação científica pode assumir várias formas. Seja uma contação de histórias, relatos pessoais em blogs ou podcasts que associam literatura ao uni-

verso de grandes cientistas. Mas essa divulgação precisa dar conta de ser transmitida e compreendida por uma diversidade de públicos. “Você não precisa falar de quarks e glúons para falar de quarks e glúons. Você pode falar que, assim como uma casa é composta por vários pequenos tijolos, colados uns nos outros, o universo inteiro também é composto por partículas minúsculas que estão coladas umas nas outras. Falar de ciência pode ir além de ‘falar de ciência’ porque ela está em todo canto e atravessa outros temas de interesse público: saúde, política, economia, esporte, cultura”, ressaltam.

Mesmo que feita a partir da checagem de dados e fontes, a divulgação científica ainda demanda outros pré-requisitos para cumprir seu papel social, segundo o professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), Ricardo Alexino Ferreira: “A divulgação científica eficiente e com comprometimento social é bastante complexa e exige uma formação interdisciplinar e transdisciplinar do jornalista. Ela implica letramentos”. Além disso, complementa Ferreira, que apresenta o programa radiofônico de entrevistas Diversidade em Ciência, veiculado na Rádio USP, “a ciência deve ser vista como acúmulo e convergência de saberes de diversas culturas, dos povos originários à contemporaneidade”.

Neste Em Pauta, Cudischevitch e Felizi, junto a Ferreira, aproximam a lupa sobre cenários históricos, desafios e objetivos da divulgação do conhecimento.

O desafio de comunicar o maravilhoso caos da ciência

O ano era 2020. Todo mundo só falava de um assunto, a Covid-19, e cientistas buscavam por vacinas seguras e eficazes, medicamentos que combatessem a doença e métodos de proteção contra o vírus, tudo ao mesmo tempo. Enquanto eles publicavam o progresso dessas pesquisas, a imprensa do mundo inteiro enfrentava o desafio de comunicar o processo científico acontecendo em tempo real, sob os olhares atentos da sociedade.

Tanto jornalistas especializados em ciência, quanto os mais generalistas imergiram na cobertura da pandemia. Eles reportaram a pesquisa desenvolvida em regime de urgência, cobrindo não só artigos publicados em periódicos científicos, mas também “preprints” – estudos disponibilizados em repositórios online, antes de passar pela revisão por pares.

A pressa da sociedade, dos cientistas e da imprensa em ver resultados somada a um entendimento limitado de parte de alguns jornalistas de como o processo científico funciona levou a uma cobertura um tanto caótica. Repórteres ficaram confusos sobre o que valia a pena ou não noticiar, e pesquisas com resultados errados ou inconclusivos, que até foram retratadas depois, acabaram ganhando manchetes. Ora cloroquina funcionava, ora não. Ora máscaras preveniam a dispersão do vírus, ora não.

Acontece que a pesquisa científica é assim mesmo, um caminho tortuoso – a pandemia só fez com que todo mundo prestasse atenção. Demanda tempo e dinheiro para ser bem-feita e é permeada por erros

e acertos antes de chegar a conclusões robustas, que embasam tomadas de decisão. Até lá, cientistas questionam, duvidam, checam os trabalhos uns dos outros, refazem. Ciência, afinal, é uma atividade humana.

Consensos científicos se constroem a muitas mãos e geralmente ao longo de décadas, e um artigo científico, por si só, não pode cravar muita coisa. Só conseguimos desenvolver as vacinas contra a Covid-19 tão rapidamente devido a anos de pesquisas. Só que pouca gente sabe que é assim que a ciência funciona. Que é desse caldo denso de perguntas, erros e controvérsias que surgem grandes avanços – dos tratamentos contra o câncer à inteligência artificial.

Mal-entendidos têm o potencial de despertar desconfianças em uma sociedade como a brasileira que, embora tenha interesse e confie na ciência, ainda a conhece pouco. Apenas 17,9% dos brasileiros conseguem citar alguma instituição de pesquisa, e 9,6% lembram-se do nome de algum cientista brasileiro, de acordo com o estudo Percepção pública da C&T no Brasil - 2023, do Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE). Tudo isso em meio a um cenário crítico de desinformação: 50,8% do público da pesquisa relata se deparar frequentemente com notícias que parecem falsas; 29,2% se deparam ocasionalmente. E 36,5% admitem já ter compartilhado informações falsas com amigos, parentes ou na internet.

Por isso, a divulgação científica é tão importante. Ela tem um papel social, porque contribui para que as pessoas tomem decisões mais informadas e baseadas em consensos científicos. E também por isso ela não pode se resumir à comunicação de resultados e das grandes descobertas – como se a ciência fosse composta apenas por achados que revolucionam o mundo. Falar sobre o processo científico –incluindo seus vieses, erros e limitações – é fundamental para que as pessoas confiem nele.

A “culpa” dos mal-entendidos, vale dizer, não é exatamente dos jornalistas. A própria lógica da cobertura da imprensa por vezes dificulta uma produção acurada. A pressão por publicar logo – ainda mais na internet, onde notícias circulam rápido – frequentemente conflita com uma apuração rigorosa

e com a checagem dos fatos. Soma-se a isso a precarização da profissão: nos últimos anos, cada vez menos profissionais são responsáveis por um número crescente de tarefas.

Cobrir ciência nem sempre é fácil, e são poucos os profissionais especializados. Um levantamento feito em 2020 pela Agência Bori e I’Max, um dos maiores serviços de mailing do país, constatou que o Brasil teria, àquela época, cerca de 35 mil jornalistas atuantes em redações. Desses, só uns 280 cobriam a área. Então, como comunicar ciência em meio a esses desafios? Como falar de quarks e glúons com o tão almejado “público geral”?

Em primeiro lugar, é preciso entender que isso não vai acontecer. Quem quer que seja o divulgador de ciência – um repórter de jornal, um criador de conteúdo nas redes sociais com milhões de seguidores, um podcaster ou um blogueiro –, ele não conseguirá se comunicar com “todo mundo”. Não há um canal único, nem uma mensagem única que dê conta de toda a sociedade – crianças e adultos, mulheres e homens. É melhor pensar em públicos segmentados, que demandam estratégias diferentes para serem alcançados.

Em segundo lugar, você não precisa falar de quarks e glúons para falar de quarks e glúons. Você pode falar que, assim como uma casa é composta por vários pequenos tijolos, colados uns nos outros, o universo inteiro também é composto por partículas minúsculas que estão coladas umas nas outras. Falar de ciência pode ir além de “falar de ciência”, porque ela está em todo canto e atravessa outros temas de interesse público: saúde, política, economia, esporte, cultura.

Em terceiro lugar, a divulgação científica pode ter várias formas. Pode ser uma contação de história, como o episódio 30 – “Deise e Doroteia” – do podcast Rádio Novelo Apresenta. Pode ser o relato pessoal de uma cientista em uma viagem de campo, contemplando seus medos, frustrações e alegrias, tal qual o texto “Como eu coletei cérebros de baleia no Brasil”, da neurocientista Kamilla Souza, publicado no blog Ciência Fundamental, no jornal Folha de S.Paulo

Por isso, a divulgação científica é tão importante. Ela tem um papel social, porque contribui para que as pessoas tomem decisões mais informadas e baseadas em consensos científicos.

Pode até ser um “exposed” da ciência, com uma cobertura de seus problemas e fraudes e não de suas grandes conquistas, como faz o podcast Ciência Suja. Ou mesmo um mergulho literário no universo científico, a exemplo do podcast Vinte mil léguas, que narra relatos de Charles Darwin (1809-1882), Alexander von Humboldt (1769-1859) e Galileu Galilei (1564-1642).

A ciência, em meio ao seu maravilhoso caos, tem muitas histórias boas para serem contadas. E elas vão além dos resultados grandiosos ou das crises mundiais – nos detalhes cotidianos dos cientistas está boa parte de seu charme. Que a gente não espere a próxima pandemia para dar-lhe a visibilidade que ela merece.

Clarice Cudischevitch, gerente de comunicação no Instituto Serrapilheira, instituição privada, sem fins lucrativos, que promove a ciência no Brasil. Mestranda em divulgação científica pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).

Natasha Felizi, diretora do Programa de Jornalismo e Mídia no Instituto Serrapilheira, mestre em literatura russa e portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP) e Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

em pauta

Letramento midiático, cultural e científico

Desde a segunda metade do século 19, jornais brasileiros criaram as Secções Scientíficas, que no português contemporâneo seriam as editorias de ciências nas atuais publicações. Naquele momento, a ciência nos jornais não tinha uma preocupação com o desenvolvimento do conhecimento. A elite brasileira, ávida para não ser confundida com o popular ou aquilo que ela designava como sendo “selvagem”, elevava a ciência como elemento simbólico para diferenciar ricos de pobres, brancos de não brancos. Tendo como parâmetro o pensamento da elite europeia, a elite brasileira percebia que focar sua atenção na ciência poderia garantir o seu status de “civilidade”.

As matérias jornalísticas daquela época traziam em suas Secções Scientíficas paradigmas já bastantes difundidos na Europa como o positivismo, de Augusto Comte (1798-1857); o evolucionismo, de Charles Darwin (1809-1882); a germanofilia; eugenia; antropometria e outros estudos de então. Os jornais davam destaques, também, para as teorias raciais e para pensadores como o médico legista e psiquiatra brasileiro Raymundo Nina Rodrigues (1862-1906); a antropometria, na perspectiva da criminalística, de Cesare Lombroso (1835-1909), entre outros. Todas essas correntes teóricas se apresentavam nos jornais como justificativas para a escravização e o argumento da superioridade racial de brancos sobre negros. Até mesmo as peças publicitárias dos jornais do século 19 firmavam a credibilidade dos seus produtos, principalmente tônicos capilares e remédios, com o lema: “comprovado cientificamente”.

A educação, também no século 19, era destinada à elite com vieses eurocentrados e destinados às formações, principalmente, nas áreas da medicina e do direito. Na maior parte das vezes, o ensino não se voltava às diferentes realidades brasileiras, agra-

vando ainda mais as diferenças sociais. Um texto jornalístico publicado pelo Província de São Paulo, em 1884, dá essa dimensão. Intitulado “Do exercício da medicina e o novo regulamento da higiene”, diz: “Contra os curandeiros para que os regulamentos possam ser postos em ‘execussão’ sem injustiça, a probidade ‘scientífica’ exige que previamente se prove que os curandeiros erram sempre e que os médicos diplomados sempre acertam”.

Esses tipos de construções ideológicas percorrem boa parte do século 20, quando o pensamento subliminar da colonialidade perpassa a educação, a mídia e, até mesmo, a ciência. Em relação à educação, o flagrante está nos currículos escolares, do ensino fundamental ao universitário. Existe presença preponderante de autores eurocentrados e a quase ausência de autores latino-americanos, africanos e asiáticos na educação escolar, com ênfase no norte global.

No campo da ciência, teorias como The Bell Curve (Curva do sino), apresentada em 1994 pelos estadunidenses Charles Murray, sociólogo, e Richard Herrnstein (1930-1994), psicólogo e professor de Harvard, atribui a inteligência à genética. Eles defendem que, em média, asiáticos e brancos têm o QI superior ao dos negros e que isso se deve a fatores genéticos. A obra Curva do sino, de Murray e Herrnstein, com fortes componentes colonialistas, faz lembrar as matérias jornalísticas da segunda metade do século 19, como é o caso de um texto publicado no jornal Província de São Paulo, de 28 de janeiro de 1878, que afirma: “Pesam mais os cérebros dos alemães, seguem-se ingleses, ‘suissos’, italianos, suecos. O cérebro ‘francez’ entra apenas entre muitos outros povos como lapões, ‘chinezes’, ‘japonezes’ etc.”.

É interessante observar que a grande imprensa acaba por reproduzir, desde a segunda metade do século 19, teorias raciais e outras produções científicas sem uma visão reflexiva ou crítica. Tanto é assim que, durante os séculos posteriores, o jornalista, na cobertura de ciências, se autodefine como intérprete dos pesquisadores e cientistas, quando não, criando uma espécie de identidade de assessores de marketing. Do final do século 20 até o momento, as pautas daquilo que é considerado ciência

A divulgação científica implica, de fato, a capacidade de sujeitos que ressignifiquem constantemente as inúmeras realidades

para o jornalista ainda estão muito calcadas nas áreas de exatas, biológicas e biomédicas. As áreas de humanas e ciências sociais aplicadas ainda são vistas como não ciências. E isso acaba por refletir nas verbas destinadas para esses campos.

Somente nas últimas décadas, as epistemologias da descolonialidade e, posteriormente, da decolonialidade, começam a ser inseridas de forma mais abrangente no processo educativo. Como a Lei nº 10.639/2003, que versa sobre as inclusões da história e da cultura afro-brasileira. Mesmo com essas novas perspectivas paradigmáticas, a divulgação científica (jornalismo científico) ainda está em descompasso. A imprensa ainda coloca como “ciência verdadeira” aquela marcada por uma visão demasiadamente eurocentrada e com características do norte global. Ainda coloca o conhecimento ancestral como sendo não ciência ou não conhecimento e, por isso, não validado. Essas demonstrações midiáticas se dão na escolha de fontes repetidas e viciadas, legitimadas por suas instituições, de preferência, ranqueadas.

Percebe-se ainda que as matérias jornalísticas de divulgação científica perpetuam o consenso, sem contestação do que se é apresentado. A maior parte das matérias não é dialética, fazendo pouco esforço para apresentar o contraditório. Também se observa que não faz parte do conteúdo dessas matérias a apresentação dos métodos ou metodologias. As reportagens de cobertura de ciências quase sempre apresentam apenas o resultado, como se fossem realizadas instantaneamente. Muitas vezes, os títulos são ostensivos e transformam pesquisas, ainda em andamento, em resultados sensacionalistas, absolutos e mágicos.

A cobertura das ciências por parte da imprensa, por si só, não representa desenvolvimento social. A ciência também está sujeita a padrões morais e pode ser reificada, voltada para o lucro, favorecendo alguns segmentos sociais. Isso se observa nas indústrias farmacêuticas, de alimentação, tecnológicas, entre outras. A divulgação científica eficiente e

com comprometimento social é bastante complexa e exige uma formação interdisciplinar e transdisciplinar do jornalista. Ela implica letramentos.

O primeiro deles é entender, de fato, o que é a complexidade científica e livrá-la das editorias de ciências. O conhecimento científico deve ser entendido em todo o processo de elaboração jornalística. Aliás, o pensamento científico deve estar na percepção do mundo como forma de construção do conhecimento em perspectiva decolonial. Essa perspectiva implica em que a ciência deve ser vista como acúmulo e convergência de saberes de diversas culturas, dos povos originários à contemporaneidade.

Torna-se necessário também criar o letramento midiático em que o público deixa de ser uma identidade mercadológica para se tornar um sujeito pensante, reflexivo e crítico. Na década de 1970, o teórico Hans Magnus Enzensberger (1929-2022) já colocava a necessidade de uma mídia mais comprometida com o social e o conhecimento, agregando, principalmente, os movimentos sociais naquilo que seria a corrente teórica Nova Esquerda Alemã.

Portanto, muito mais do que atrelada apenas a um conceito conservador de ciência, a divulgação científica implica, de fato, a capacidade de sujeitos que ressignifiquem constantemente as inúmeras realidades. As ciências, nesse caso, são algo dinâmico que intersecciona camadas de diferentes épocas e origens, possibilitando diversos contextos e conexões.

Ricardo Alexino Ferreira é jornalista, professor associado (livre-docente) da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP); professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Humanidades, Direitos e Outras Legitimidades da USP; diretor, produtor e apresentador do programa radiofônico de entrevistas Diversidade em Ciência, veiculado na Rádio USP.

Arqueóloga da

CENA

Conhecida pela versatilidade na atuação nas telas e nos palcos, Andréa Beltrão se reconhece como uma eterna aprendiz no ofício de contar histórias para preservar a memória

POR MARINA PEREIRA
legenda

Por mais que não tenha sido um caminho intencional, mas “uma feliz mudança de rota”, como ela mesma diz, é difícil imaginar Andréa Beltrão em outra profissão que não a de atriz. A artista iniciou sua carreira nos anos 1980, em produções de teatro, cinema e TV. Ganhou popularidade vivendo a personagem Zelda Scott, na série de televisão Armação Ilimitada, exibida de 1985 a 1988 na TV Globo e considerada um marco de criatividade e ousadia por usar, na edição, a linguagem acelerada dos videoclipes e múltiplas referências à cultura pop.

Atuou em telenovelas como Mulheres de areia (1993), A viagem (1994) e No rancho fundo (2024). Por sete anos, participou da série A grande família (2002-2014), como a personagem Marilda, e por quatro protagonizou, ao lado de Fernanda Torres, Tapas e beijos (2011-2015), como Sueli. No cinema, atuou, dentre outros filmes, em Pequeno dicionário amoroso 1 (1996) e 2 (2015) e A partilha (2001). Também interpretou a apresentadora Hebe Camargo (1929-2012) no filme Hebe, a estrela do Brasil (2019), pelo qual venceu o Prêmio Grande Otelo na categoria Melhor Atriz. Versátil não só na atuação, também é produtora e criadora, ao lado da atriz Marieta Severo, do Teatro Poeira, uma casa de espetáculos, residência artística e espaço para discussão e estudo de novos formatos nas artes cênicas, em Botafogo, no Rio de Janeiro.

A atriz está em cartaz com o espetáculo Lady Tempestade, uma história que traz à cena a luta de Mércia Albuquerque Ferreira (1934-2003), considerada uma das principais advogadas nordestinas na defesa de presos políticos durante a ditadura militar. Sua personagem encara o drama de receber pelos Correios os diários da advogada em uma madrugada de tempestade. “Contar e recontar uma história, muitas e muitas vezes, é uma maneira de impedir que o horror aconteça de novo”, reflete a atriz, sobre o espetáculo. Com direção de Yara de Novaes e dramaturgia de Sílvia Gomez, o monólogo teve temporadas esgotadas no Rio de Janeiro e São Paulo, onde foi apresentada no Sesc Consolação.

Neste Encontros, a atriz relembra momentos da infância e do início da carreira, fala sobre a sua inquietude por estar sempre aprendendo algo novo e sobre a versatilidade na atuação, com papéis memoráveis, cômicos e dramáticos, nos palcos e nas telas. “Eu acredito que contar histórias é uma maneira amorosa de pensarmos juntos no nosso passado, nosso presente e nosso futuro”.

MAR ABERTO

Eu nasci na cidade do Rio de Janeiro, sempre morei aqui. Quando era pequena, morava em Copacabana já, com a minha avó e com a minha mãe, era filha única. Minha mãe já havia se separado do meu pai, e fui criada por essas duas mulheres. Mas

Andréa Beltrão protagoniza Lady Tempestade, que recebeu três indicações ao Prêmio Shell de Teatro em 2025: melhor atriz, direção e dramaturgia.

sonora no palco.

Mas tinha contato com o meu pai, que é uma figura importantíssima na minha vida. A lembrança da minha infância é de muita praia, com muitas brincadeiras, amigos, idas à Ilha de Paquetá na barca, para andar de bicicleta. Acho que são momentos que estão colados em mim como pedaços da minha vida. Infelizmente, eu acho que a maioria não se lembra tanto da infância quanto gostaria, mas foi uma infância boa, feliz, cercada de muito carinho, muita disciplina também. Tudo que eu lembro são momentos bons que estão comigo até hoje.

DESVIO DE ROTA

Eu nunca pensei em ser atriz. Lá pelos cinco anos, comecei a fazer natação no Flamengo. Tentei de todas as maneiras ser uma atleta. Queria ir para as Olimpíadas de Moscou. Então, treinava muito. Só que comecei a perceber, lá pelos 10

ou 11 anos, que eu não alcançaria os tempos que me levariam às Olimpíadas. E aí fui desanimando aos poucos e parei a natação. Meu padrinho, irmão da minha mãe, falou: “Ah, vai fazer alguma coisa, você imita todo mundo, vai fazer teatro”. Então, topei e ele me levou na escola O Tablado. Aí já me apaixonei pela professora, que era Araci Mortê, irmã da Maria Clara Machado e mãe da Cacá Mortê. Eu fui a primeira pessoa da minha família que se aventurou por aí aprendendo e descobrindo um trabalho aqui, outro ali, e assim fui construindo um caminho. Eu nunca tive esse desejo inicial. Foi um desvio de rota muito feliz.

VOCÊ É ARTISTA?

Eu fiz muito teatro de rua, muito mesmo. Uma vez, apresentamos [a peça] Flicts em uma comunidade bem pobre de Brasília (DF). A gente estava se arrumando na pracinha,

aí, de repente, um menininho bem pequenininho, chegou para mim e falou assim: “Você é o quê?”. E eu estava toda vestida de amarelo, toda fantasiada, com purpurina, penas etc. Aí eu falei: “Ah, eu sou artista da peça”. E ele respondeu: “Você é artista? Então faz uma arte aí para eu ver”. Eu: “Não, não é assim, não. Não é ‘faz uma arte’”. Ele ficou me olhando, bem contrariado: “Você não sabe fazer? Então, você não é artista nada”. Eu fiquei com aquilo na cabeça. E essa frase me acompanha todas as horas, em qualquer trabalho que eu vou fazer. Quando fui trabalhar com [o diretor] Amir Haddad, na montagem de Antígona, isso voltou muito forte e muito bonito para mim, como uma disponibilidade total para [ser artista].

EM BOA COMPANHIA

O que eu aprendi muito com Aderbal Freire Filho (1941-2023), Amir Haddad e Yara de Novaes, que para mim é uma tríade de diretores (de teatro) fundamentais, foi: o meu ofício é o de uma pessoa que conta histórias, que representa histórias verdadeiras ou não, ou mentiras que ficam incríveis quando parecem verdade. Eu acho que quando eu estou no palco, que eu vou fazer uma peça com vários atores e atrizes, que é a melhor situação, na minha opinião, isso fica evidente. Porque eu acho um monólogo o maior barato, mas o teatro é muito interessante quando você está bem acompanhado.

ARMAÇÃO ILIMITADA

Guel Arraes era o diretor do Armação ilimitada. Ele estava chegando da França, onde tinha trabalhado muito com o documentarista

A atriz em ensaio da peça Lady Tempestade com o filho Chico Beltrão, que realiza a criação e operação de trilha

Jean Rouch (1917-2004). Guel fez várias novelas de sucesso na Globo, junto com Jorge Fernando (1955-2019), que era um parceiro dele, diretor também. E aí me chamou para fazer o Armação Ilimitada, que se revelou, para mim uma universidade, a melhor que eu tive para o audiovisual, que foi trabalhar com Guel, acompanhá-lo na ilha de edição com João Paulo de Carvalho, mago da edição no Brasil. Então, tudo isso começou a ficar muito compreensível para mim. Como a questão da linguagem, que foi uma coisa muito inovadora que o Guel trouxe para a televisão. E dali, quando eu saí para fazer um filme, uma novela, eu estava com muita bagagem de experimentação e de aprendizado.

ETERNA ALUNA

Eu adoro trabalhar sozinha, ficar até quatro ou cinco horas da manhã em casa estudando sozinha. São horas muito importantes para mim. Além do roteiro, que é meu primeiro material, as conversas com o diretor, com roteirista, com a equipe de criação... Os colegas, leitura de mesa. Adoro ouvir o que cada um de nós está pensando sobre aquilo. É muito importante e traz muito material. Eu tenho uma paixão por ser aluna. Me sinto uma

eterna aluna. Tenho uma paixão por aprender alguma coisa que eu não sei. Na maioria das vezes, eu continuo sem saber o que eu tentei aprender, mas o caminho para mim é o mais interessante. O meu processo é bater com a cabeça na parede, errar, acertar, ficar desesperada, achar que vai dar, achar que não vai dar. Estamos sempre catando coisas, ideias e ouvindo o que os outros dizem. Escutar é muito importante.

HEBE CAMARGO

Quando a Carolina Kotscho [roteirista do longa-metragem Hebe, a estrela do Brasil] me convidou [para o papel], eu pensei: “Bom, por que eu?”. Tive que estudar muito. Fiquei um ano e meio vendo vídeos, entrevistas, programas, lendo calhamaços de teses e livros sobre ela e, muitas vezes, pensava: “Não vai dar”. Bom, aí a gente foi na casa da Hebe gravar um trailer do projeto. Pegamos algumas de suas roupas e joias, além de uma peruca. Fizemos uma maquiagem. A Hebe tinha uma ave chamada Tutu, que estava na gaiola. O rapaz que cuidava da casa perguntou: “Posso soltar? Ele está gritando muito, está nervoso”. E nós: “Pode. Tudo bem”. Bom, o que aconteceu é que essa ave, que

viveu com a Hebe por muitos anos, começou a andar atrás de mim, a gritar e ficar se encostando na minha perna. O rapaz falou: “É que ela está sentindo o perfume, vendo a roupa. A senhora está igualzinha. Pega ela no colo”. Aí eu peguei e ele se aninhou e dormiu no meu colo. Nessa hora eu falei: “Acho que eu vou arriscar mais um pouquinho”.

POEIRA E POEIRINHA

Marieta e eu nos conhecemos quando ela foi fazer uma peça chamada Estrela do lar (1989), dirigida por Mauro Rasi (1949-2003), escrita especialmente para ela. Marieta fazia a protagonista e a peça ganhou muitos prêmios. Ficamos amigas inseparáveis, era uma costura, uma paixão. A Marieta é uma paixão da minha vida. Um dia, em uma de nossas saídas na época de A grande família, pensamos em tentar ter um teatro. O diretor Aderbal [Freire Filho (1941-2023)] descobriu essa casa em Botafogo, com uma faixa de “vende-se”. Fomos nessa casa, ligamos e compramos. Aderbal, Marieta e eu entendíamos de teatro, sabíamos das necessidades e das coisas boas que poderíamos oferecer como um teatro novo na cidade. Assim surgiu o Teatro Poeira e Poeirinha. Fomos muito felizes e somos até hoje. Aderbal criou projetos maravilhosos como Artista Residente, Artista Visitante, Ponte Aérea, Puente Aérea, foram oficinas imensas. Então, foi um furacão que passou na nossa vida e fomos em frente, não tivemos medo.

A atriz Andréa Beltrão participou da reunião do Conselho Editorial da Revista E, no dia 22 de maio de 2025. A mediação do bate-papo foi de Adriana Souza, que integra a equipe do Sesc Consolação.

INVENTAR A BELEZA

POR MARIA VALÉRIA REZENDE

O avô teve pena quando soube que a família tinha escalado o neto caçula, às vésperas dos 20 anos, para ajudá-lo na organização de seus tesouros a encaminhar ao Arquivo Público. Não podia mais guardar tudo aquilo! Lembrava a fala do seu próprio avô: “Mortalha não tem bolso, caixão não tem gaveta...”.

Aos 20 anos, pouco importa o passado, tão curto ainda, muito menos o futuro, longo a perder de vista. Aos 20 anos a alegria de viver era imediata.

Viria o garoto ainda esperando, como quando criança, os casos que o avô tinha armazenado ao longo da vida e contava com talento de ator e ficcionista? Quanto

mais lhe falhava a memória, mais fácil se tornava inventar, a partir de migalhas de lembranças, tornando mais engraçadas ou dramáticas as histórias.

Espalhados pela casa estavam milhares de negativos e das “provas de artista” em papel, em tamanho 18 x 24, de sua longa carreira de retratista. O casarão tinha espaço para tudo aquilo e muito mais. A partida da mulher — amada por sessenta e tantos anos — tinha deixado um imenso vazio. Sentia-se solitário e perdido, apesar da companhia constante do ajudante Zé Pequeno e da velha cozinheira Zina. Três velhos numa velha casa, agora a esperar um sopro de juventude.

Quando o neto, afinal, chegou, o moinho de histórias do avô estava bem abastecido de grãos e pronto para pôr-se em movimento ao vento da expectativa do garoto. Se, de fato, houvesse vento...

Enfim, chegou um fuscão vermelho a roncar como uma tropa de bois assustados. O neto agora era um homem independente e ousado! O longo abraço entre os dois foi de carinho e admiração mútua.

Sem ser preciso nada dizer, dirigiram-se para a grande mesa de jantar. O rapaz não se conteve: “que saudades da Vó!”. Olharam-se os dois e se viram refletidos um na lágrima do outro.

A comilança e a conversa foram quase tão alegres como sempre, estendendo-se até à noite.

Para o avô já era dia alto quando o rapaz acordou. Às oito da manhã estavam suas roseiras podadas, os botões entreabertos arranjados em buquês pelos belos jarros espalhados pela casa, tudo feito só por ele, como desde sempre − para saudar a mulher amada quando ela descia os degraus em seu robe-de-chambre a estender-lhe a mão. Ele, ao pé da escada, como sempre, já banhado, a barba escanhoada, o mesmo perfume entranhado na pele desde a juventude, o perfeito nó da gravata, as calças bem vincadas e os sapatos lustrados.

O menino parece ouvir de novo as várias vozes contando e recontando a bela história de amor que, contra todas as previsões, dera tão certo e persistira por tantas décadas: Ele a viu, a primeira vez, vestida de anjo sem asas, quase uma noiva de véu branco e flores nas mãos, caminhando solenemente para o altar da coroação de Nossa Senhora, a cantar com voz de anjo.

Ela − confessava − também o viu e o amou no mesmo olhar, em sua batina de seminarista, alto e esguio, ao lado do altar. Logo baixou os olhos. Amor impossível. Nem Montecchio nem Capuleto, mas ainda pior: suas famílias eram de grupos políticos irreconciliáveis cujas contendas acabavam frequentemente em tiroteios.

Ele logo tudo descobriu sobre ela: tocava piano e compunha sonatas, falava francês aprendido no colégio das freiras. Ela descobria que ele sabia latim, é verdade, mas pintava belos quadros, sonhava ser artista e não padre como lhe impusera a madrasta.

Também não foi nenhum padre, como o de Verona, mas sim uma amiga qualquer, bisbilhoteira, que se fez de protetora do amor impossível, leva e traz de recados, bilhetes, desenhos e partituras, ajudou a estabelecer o código pelo qual os enamorados combinavam cruzar-se, casualmente, na igreja ou na praça da Matriz. Cada um em sua casa, ambas nos pontos opostos mais altos da cidade, os lenços coloridos pendurados na janela dela indicavam a ele quando e onde a poderia ver.

Viam-se, oblíqua mas apaixonadamente, pelos três meses que duraram aquelas férias, longos demais para permitir que se esquecessem, curtos demais para tanto amor. Ela, por sob a

beira do chapéu, endereçava a ele seu extraordinário olhar: um olho verde quase azul, o outro cor de mel, quase castanho. O olho verde sussurrava “amo-te para sempre e esperarei por ti”, o outro quase bradava “coragem! vai, enfrenta os desafios para pôr teu amor à prova, e volta para buscar-me”.

Ele, então, confessou seu amor proibido a seu padrinho que aconselhou: fosse como quem vai de volta ao seminário, levasse aquela maleta com roupas de homem, à chegada na estação trocasse a batina pelas calças e seguisse para o Rio de Janeiro.

Dali em diante, que tivesse arte bastante para sobreviver. Ele foi, e sobreviveu. Aprendeu a fotografar, fez-se retratista de talento, percorreu por anos os interiores do Brasil café-comleite, a retratar gente de todo tipo, até juntar mais que um bom dote para enfrentar o desafio de pedir a mão dela e obtê-la.

Não, ela não morreu por amor nem por engano enquanto ele corria o mundo para conquistá-la. Apenas recusava todos os outros pretendentes encantados por sua beleza e prendas e esperava por ele, compondo sonatas.

Até que ele voltou, adulto, bonito, profissional de valor e já reconhecido por sua arte. Todos, dos dois lados da cidade, queriam fazer-se retratar por ele, o melhor de todos. Anos se haviam passado e os tiroteios amainado. Embaixadas de ambos os lados antecederam o pedido de casamento, finalmente aceito.

Foi mesmo um amor eterno renovado por um ritual a cada manhã: ele levantando-se com o sol, para correr ao jardim e renovar com botões de rosa todos os vasos da casa, depois banharse, e vestir-se para aguardar, ao pé da escada como Romeu sob a sacada, sua Julieta que descia as escadas, a estender-lhe a mão.

Toda a história passou de novo pela memória do neto como uma lufada de vento, e ele volta ao presente sem querer despertar de novo as saudades eternas no coração do avô:

– “Continua fiel apenas às rosas cor-de-rosa, Vô?”

– “Então! Nunca me interessei por rosas que não sejam cor-de-rosa, uai! Para mim não fazem sentido. Venha, tome seu café enquanto eu dou um pulo lá no mercado que hoje é dia de comprar aqueles abacaxis maravilhosos!”

– “Espere um pouquinho que eu o levo de carro, Vô.”

− “Não, meu filho, se não for para eu andar a pé e apreciar a cidade devagarinho, de que me serve ter operado a catarata dos olhos? É minha compensação, pois essa operação me trouxe também desgosto!”

– “Como, Vô, não correu tudo tão bem, feito pelo melhor oculista do país?”

– “Sim, quanto a isso não há dúvida! Mas acontece que para mim correu bem um bocadinho demais e me trouxe certas desilusões. Agora já não acho mais tão bonitas todas as mulheres! Vejo rugas, papadas, manchas onde antes só via beleza!”

O menino ainda ri quando ouve o clac do portão batendo e despeja o café na xícara. “Esse é o meu avô de sempre”, pensa, “interessa-lhe tudo o que é bonito. Mais ainda quando é ele mesmo a produzir as belezas!”

Maria Valéria Rezende, nasceu em 1942, em Santos (SP), e vive na Paraíba desde 1976. Dedicou-se à educação popular, em diferentes regiões do Brasil e no exterior. Escreve desde que se alfabetizou, e adora contar e escrever histórias, mas só foi publicálas em livros nas vésperas de fazer 60 anos.Publicou mais de 20 livros para crianças, jovens e adultos, recebendo vários prêmios (Jabuti, São Paulo, Oceanos, Casa de las Americas, entre outros). Tem obras traduzidas e publicadas em França, Espanha, Itália, Portugal, Argentina, China, entre outros países.

Luyse Costa nasceu em João Pessoa (PB). É ilustradora e designer editorial. Formou-se em história pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Desde 2012 trabalha na área editorial. Ilustrou vários livros infantis e tem quase 100 capas feitas para diversas editoras. Em 2021, foi medalhista de bronze na categoria Design Editorial pelo Brasil Design Award, um dos maiores prêmios do país na área.

LIVROS SÃO SEMENTES

Para a educadora Bel Santos Mayer, bibliotecas comunitárias cultivam transformações sociais ao reflorestar territórios e imaginários

POR MARIA JÚLIA LLEDÓ

FOTOS NILTON FUKUDA

Quando um livro encontra seu leitor, ambos se tornam polinizadores de novas formas de ver e viver o mundo. A cena acontece em uma biblioteca – território de encontros, leituras e trocas – capaz de transformar realidades de dentro para fora. Para a educadora Bel Santos Mayer, coordenadora do Instituto Brasileiro de Estudos e Apoio Comunitário (IBEAC), “uma biblioteca cria espaços”. Cogestora

da LiteraSampa, organização que integra a Rede Nacional de Bibliotecas Comunitárias (RNBC), Mayer fomentou o nascimento da Biblioteca Comunitária Solano Trindade, em 2001, fruto de um programa do IBEAC de formação de jovens agentes de direitos humanos na Cidade Tiradentes, zona Leste de São Paulo. Cerca de dez anos depois, a educadora acompanhou a criação da Biblioteca Comunitária Caminhos da Leitura, em Parelheiros, zona Sul da cidade. A biblioteca, que ocupou, originalmente, uma Unidade Básica de Saúde (UBS) e, depois, o Cemitério de Parelheiros, tem hoje seu acervo preservado por moradores e parceiros, enquanto aguarda um novo endereço.

Primeira pessoa da família a fazer um curso superior, Bel Santos Mayer prova em sua trajetória o quanto a literatura é uma ferramenta de combate às desigualdades sociais. Nascida em Santo André, Mayer é filha de pais que migraram do Recôncavo Baiano para São Paulo, em busca de trabalho. Em casa, junto às quatro irmãs e às avós paterna e materna, tomou gosto pela contação de histórias antes de ter acesso ao primeiro livro, Capitães de areia (1937), de Jorge Amado (1912-2001), aos dez anos. As escolhas que viriam a seguir colocariam, novamente, um livro no caminho.

Cursou o magistério, alfabetizou jovens, adultos e, depois, crianças, se formou em ciências matemáticas, fez uma especialização em pedagogia social na Itália, e décadas depois, enquanto atravessava um tratamento contra um câncer, voltou ao ensino superior, graduando-se em turismo. Como “uma ativista que vai lutar por

esse lugar político, poético e educacional que as bibliotecas têm”, a educadora planta o sonho de uma sociedade cada vez mais nutrida pela literatura, onde as pessoas estejam a poucos passos de uma biblioteca. Neste Depoimento, Bel Santos Mayer compartilha episódios dessa travessia que aponta para a criação de uma das primeiras bibliotecas dentro de uma floresta.

estreia

Eu me lembro do primeiro livro, com quase 10 anos: a Bíblia ilustrada, daqueles vendedores de rua que vendiam no boleto, e você ia pagando um pouquinho por mês. Ela ficava num pedestal que vinha de brinde. Não era para a gente encostar, era só para tirar o pó da capa e do suporte. Quando meus pais terminaram de pagar a bíblia, o vendedor falou: “Olha, o senhor é da Bahia. Tem um escritor da Bahia que suas filhas precisam ler”. Era a coleção completa de Jorge Amado em capa dura. Meu pai comprou, mas colocou lá na estante, bem no alto, para as meninas não mexerem e estragarem. Meu pai leu toda a obra de Jorge Amado e, às vezes, ele contava um pouco dessas histórias. Quando eu fui para a escola, tinha que ler Capitães de areia (1937), e pude pegar da coleção. Foi a primeira vez que peguei um livro de literatura dentro de casa.

alfabetização

Aprendi a ler na casa de uma senhora da favela do bairro onde eu vivia. Na casa da dona Josefa, no dia da prova, quando você ia mostrar o que aprendeu a ler, Tonho, filho dela, fritava linguiça, jogava farinha e, cada vez que você acertava, ganhava um pouquinho

Educadora e coordenadora do Instituto Brasileiro de Estudos e Apoio Comunitário (IBEAC), Bel Santos Mayer acredita na capacidade transformadora da literatura sobre a vida de indivíduos e, principalmente, coletivos.

da farofa na mão. Isso ficou no meu coração. Depois teve outro fato: estar num bairro onde as pessoas adultas não sabiam ler. Minha mãe mal sabia, minha avó também não sabia escrever e eu escrevia as cartas dela. Então, eu começo alfabetizando jovens e adultos de uma favela por onde eu atravessava para estudar em Santo André. Nesse percurso, tinha um córrego e lá se matavam pessoas. No começo, eram estranhos, depois eram os irmãos dos meus colegas, depois os meus colegas. Você sente um chamado social: “Eu quero ser uma educadora que pode ajudar a transformar a realidade do lugar onde eu vivo”.

bibliotecas

Em 2001, fui professora em Cidade Tiradentes, lugar onde nasceu uma das primeiras “posses”, que

é como o movimento hip-hop denominava essa organização dentro do território. Então, a posse Força Ativa, que depois virou Núcleo Cultural Força Ativa, era daquele território, e eu já tinha contato com o [Mano] Brown, o Rappin Hood e essas pessoas já faziam um trabalho muito conectado com os adolescentes que eram privados de liberdade nas antigas Febem (Fundação Estadual para o Bem-Estar do Menor), hoje Fundação Casa. Os jovens do Núcleo Cultural Força Ativa queriam criar uma biblioteca. Tinha esse espaço que a Cohab deixava para o comércio. A Biblioteca Solano Trindade está lá, na Rua dos Têxteis, e foi meu pai quem reformou o espaço. Então, são bibliotecas que nascem para além dos livros, para uma construção afetiva do valor simbólico que o livro e a biblioteca têm dentro de uma periferia.

parelheiros

No IBEAC, a gente trabalha com direitos humanos, e a Biblioteca Solano Trindade nasce dentro desse programa com jovens agentes de direitos humanos. A gente dava formação para agentes comunitários de saúde numa ação nacional e, de repente, começou a pensar: e se a gente concentrasse as nossas ações em um território?

A gente começou essa conversa em 2006, e em 2008, saiu o Índice de Desenvolvimento Humano Municipal, que fez um ranking da cidade de São Paulo. Parelheiros, extremo sul da cidade, apareceu em último lugar, na 30ª posição, e Pinheiros, em primeiro. Eu passei a incorporar nas minhas falas que o melhor lugar tem uma dívida com o pior lugar. E aí, a gente vai para Parelheiros, onde estão duas áreas de proteção ambiental. A gente

chega lá e encontra os agentes comunitários de saúde que tinham recebido toda a nossa formação em direitos humanos, e eles pedem para a gente começar um trabalho com os jovens. A gente fala sobre escolher um dos direitos humanos para batalhar e eles escolheram o direito humano à cultura, porque queriam reabrir a biblioteca da escola. E aí, em 2008, a gente começa essa história, da Biblioteca Comunitária Caminhos da Leitura.

mobilidade

Uma biblioteca comunitária já nasce com o princípio da interação. Quais são as mobilidades que uma biblioteca proporciona? Mobilidade de corpos, porque os jovens da Biblioteca Caminhos da Leitura passaram a se mover pela cidade. Foi a biblioteca que proporcionou o primeiro encontro deles com os equipamentos culturais do Centro, as bibliotecas públicas, os teatros, cinemas, os equipamentos de gestão social, tudo começou com a biblioteca. Ao mesmo tempo, quando as pessoas começaram a ouvir “biblioteca no cemitério em Parelheiros”, os corpos do Centro também passaram a se mover para a periferia. Editoras e autores começaram a mandar livros autografados. A gente também começou a publicar os nossos livros – Parelheiros, idas e vi(n)das: ler, viajar e mover-se com uma biblioteca comunitária (2022) está em todas as livrarias, e Nascidos pela ler, no melhor lugar para se viver (2021) está nas escolas de Educação Infantil de São Paulo. Isso é uma mobilidade de imaginário e, internamente, de sonhos. Há uma mobilidade social: esses meninos se tornaram os primeiros universitários de suas famílias, estão virando os

primeiros pós-graduandos do território. Ou seja, referências para as crianças do território.

floresta

Um espaço não faz uma biblioteca, mas uma biblioteca cria espaços. A biblioteca [Caminhos da Leitura] nunca parou. Ela saiu da unidade de saúde, depois foi para o cemitério e de lá foi morar em sacolas na casa dos moradores, no Eu (a) guardo a biblioteca. Esses livros estão num espacinho pequeno e a biblioteca está começando a virar uma floresta de pessoas. A gente ganhou um terreno e nele, começou a plantar, no dia 5 de junho, 10.639 árvores – mesmo número da lei contra o racismo na educação, a Lei 10.639, de 2003 –numa campanha: Contra o racismo, eu planto. A gente está plantando árvores e a partir desse plantio, quando essa floresta estiver de pé, a gente vai pensar como é que essa biblioteca nascerá lá dentro.

retrato

A gente tem o desejo de que cada pessoa consiga chegar a pé até uma biblioteca. Agora, estamos vivendo o processo do Plano Estadual do Livro, Leitura, Literatura e Bibliotecas, do qual nós participamos ativamente. A gente precisa conhecer quantas bibliotecas existem, quantas livrarias de rua. A rede LiteraSampa é uma rede que tem 19 bibliotecas atuantes e tem mais cinco bibliotecas que estão distribuídas no estado de São Paulo que querem fazer parte. Então, eu diria que a gente deve ter cerca de 50 bibliotecas comunitárias na grande São Paulo. Mas a gente precisa fazer esse diagnóstico de verdade. Eu sou uma das comentadoras do

Retratos da Leitura no Brasil, que levanta o quanto a gente perdeu de leitores nos últimos anos, e de bibliotecas públicas também. São mais de mil bibliotecas fechadas no país. Você precisa ter editais e investimento para que elas continuem existindo.

curadoria

Leitura é uma tecnologia que exige que a gente pare. Não dá para fingir que leu. A leitura oferece outra coisa: sou eu, leitor, que decido onde continuo, onde eu paro. Você vira um curador da sua leitura. E essa curadoria tem esse lugar, também, de curar a dor, que é individual. Só você pode saber a hora em que fecha o livro, quando abrir e continuar. A leitura captura a nossa atenção de outro modo e traz muitos benefícios em um mundo de dispersões. Todo mundo está querendo sequestrar o nosso tempo. Então, como é que você pode resolver isso? Dedicando tempo para a leitura, construindo essa musculatura. A literatura te dá essa coragem.

Assista a trechos desse Depoimento com a educadora Bel Santos Mayer, realizado no Instituto Brasileiro de Estudos e Apoio Comunitário (IBEAC), em maio de 2025.

ALMANAQUE

Livros por toda parte

Em diversos pontos do território paulista, agenda de eventos expande universo literário e promove encontros entre escritores, leitores, obras e editoras

POR LUCAS VELOSO

Neste mês de julho, os holofotes do mundo literário se voltam para Paraty (RJ), com a sua tradicional Festa Literária Internacional (Flip). Mas São Paulo também realiza as suas próprias festas e feiras dedicadas aos livros, espalhadas pela capital e pelo interior, ao longo de todo o ano.

Desde atividades em espaços icônicos do Centro da capital, como a Praça das Artes e a Biblioteca Mário de Andrade, às feiras que ocupam territórios periféricos, como o Campo Limpo, na zona Sul, o circuito literário paulista cresceu com propostas plurais, acessíveis e

diversas. A Festa do Livro da Universidade de São Paulo (USP), na Cidade Universitária, por exemplo, reúne milhares de leitores, aproximando-os de um acervo diverso e acessível. Já em Ribeirão Preto, a pouco mais de 300 quilômetros da cidade de São Paulo, a Feira Internacional do Livro (FIL) se firma como uma das maiores feiras literárias da América Latina.

Descubra esses e outros eventos literários imperdíveis que fortalecem o acesso à leitura e criam territórios de encontros e trocas entre leitores, autores e editoras.

INTERIOR ENTRE PALAVRAS

Com o tema “Futuros possíveis: entre linhas e parágrafos”, a 24ª edição da Feira Internacional do Livro (FIL) de Ribeirão Preto convida o público a pensar a cultura brasileira a partir de seus caminhos e transformações ao longo da última década. Inspirada na obra do sociólogo italiano Domenico De Masi (1938-2023), a programação deste ano busca estimular discussões sobre identidade, brasilidade e cenários possíveis para o futuro do país. Reconhecida como uma das maiores feiras literárias a céu aberto da América Latina, a FIL é realizada de 15 a 24 de agosto e reúne autores, editoras e leitores em uma

maratona com mais de 400 atividades gratuitas. Em 2025, os homenageados são Domenico De Masi, a filósofa e escritora Djamila Ribeiro, o escritor infantojuvenil André Luiz Oliveira e o romancista da cidade Matheus Arcaro. A expectativa é repetir o sucesso das edições anteriores, que, juntas, somaram mais de sete milhões de visitantes ao longo de 23 anos.

24ª Feira Internacional do Livro de Ribeirão Preto (FIL). De 15 a 24/8, na Praça XV de Novembro, Centro, e outros locais, Ribeirão Preto (SP). GRÁTIS. Mais informações: fundacaodolivroeleiturarp.com

Na programação da 24ª Feira Internacional do Livro de Ribeirão Preto, mais de 400 atividades gratuitas.

ALMANAQUE

LIVROS NO CENTRO

A FLIPEI, Festa Literária Pirata das Editoras Independentes, chega à sua 8ª edição com uma programação robusta que toma conta da Praça das Artes, no centro histórico de São Paulo. Ao longo de cinco dias, o evento reúne mais de 100 editoras independentes em estandes com milhares de livros, mesas de debate, apresentações artísticas, saraus, slams, apresentações de teatro e atividades voltadas ao público infantojuvenil. Mais do que uma feira, a FLIPEI se firma como um espaço de circulação de ideias, incentivo à leitura e valorização da produção editorial independente. Com uma curadoria atenta a temas contemporâneos, e participação de nomes nacionais e internacionais, a festa literária se consolida como referência no calendário cultural do país. Neste ano, acontece de 6 a 10 de agosto.

FLIPEI – Festa Literária Pirata das Editoras Independentes. De 6 a 10/8, na Praça das Artes (Av. São João, 281 – Centro, São Paulo - SP). GRÁTIS. Mais informações: flipei.abraceumacausa.com.br

QUEBRADA LITERÁRIA

Com uma programação promovida em diversos equipamentos públicos da região, a Feira Literária da Zona Sul (FELIZS) reafirma seu compromisso com a descentralização de eventos culturais, com a formação de leitores e o incentivo à produção literária das regiões periféricas. Sua 11ª edição será realizada de 21 a 27 de setembro, com encerramento na Praça do Campo Limpo. Entre oficinas, rodas de conversa, contação de histórias, lançamentos de livros e shows, a FELIZS também se consolida como espaço de visibilidade para artistas e autores periféricos, que têm a oportunidade de divulgar e comercializar suas publicações diretamente com o público. Um dos destaques da iniciativa é a “moeda literária”, dinheiro simbólico distribuído a estudantes de escolas públicas no dia do encerramento. Com ele, os jovens podem adquirir livros na feira, tendo acesso à leitura de forma concreta.

FELIZS – Feira Literária da Zona Sul. De 21 a 27/9, em diversos espaços da zona Sul de São Paulo. GRÁTIS. Mais informações: www.felizs.com.br

Além de promover o encontro entre leitores, autores e editoras, a Festa Literária Pirata das Editoras Independentes realiza mesas de debate, saraus, slams, entre outras atividades.

A literatura atravessa portas e janelas da Biblioteca Mário de Andrade para ocupar as ruas em festival que celebra o livro.

LIVROS MAIS ACESSÍVEIS

Conhecida pelos leitores como uma oportunidade para a compra de obras com descontos, a Festa do Livro da Universidade de São Paulo (USP) realiza sua 27ª edição em novembro, ainda sem data confirmada. Montada na Cidade Universitária, na capital paulista, reúne editoras de todo o país. Organizada pela Editora da Universidade de São Paulo (Edusp), promove o acesso a diferentes gêneros de catálogos que incluem literatura geral, obras acadêmicas, infantis e raridades, comercializados com 50% de desconto. Em 2024, foram mais de 220 editoras participantes e cerca de 150 mil títulos. Com entrada gratuita, costuma atrair milhares de visitantes ao longo de seus cinco dias de programação.

27ª Festa do Livro da USP. Novembro (data a confirmar), na Cidade Universitária – Av. Professor Mello Moraes, Travessa C, São Paulo - SP. GRÁTIS. Mais informações: festadolivro.edusp.com.br

PAULICEIA EXPANDIDA

Criado em 2019, o Festival Mário de Andrade celebra a literatura e o livro para além de quatro paredes. Realizado na Biblioteca Mário de Andrade e em outros equipamentos culturais do município, o evento ocupa o Centro da cidade com livros, debates, música e arte. A edição de 2025, prevista para outubro, marca os 100 anos da biblioteca paulistana, reafirmando seu papel como um polo cultural aberto, acessível e conectado à vida urbana. Com entrada gratuita, reúne editoras, coletivos, artistas e instituições dedicados à leitura. Além da feira de publicações independentes, a programação inclui encontros com autores, rodas de conversa, intervenções artísticas e atrações para o público infantojuvenil. Ao integrar o calendário da Secretaria Municipal de Cultura, a iniciativa celebra a literatura contemporânea e homenageia o escritor modernista que dá nome ao espaço.

Festival Mário de Andrade. Entre outubro e novembro, na Biblioteca Mário de Andrade (Rua da Consolação, 94 – República, São Paulo - SP) e arredores. GRÁTIS. Mais informações: cultura.prefeitura.sp.gov.br

Em sua 27ª edição, a Festa do Livro da USP atrai milhares de visitantes com cerca de 150 mil títulos de diferentes gêneros.

Marcos Santos
Sylvia Massini

Esboços, couves e derivas

Escrever à mão é a solenidade mais íntima que tenho no mundo. O tempo milagroso do desenho das palavras, a fricção que nos une – tal qual a caneta ao papel – me faz pensar se é possível desenhar o tempo, ou se ele se forma sozinho, no entre-espaço das letras. Certas materialidades nasceram para se sobrepor, se inscrever, se entrelaçar, repousar e movimentar-se docemente sobre o mundo.

Aos seis anos, me abrigava dentro das tapeçarias que forravam o chão de casa. Os motivos florais, arabescos e tons de joia me mantinham em uma autoclausura delimitada por bordas geométricas e videiras curvilíneas –como ameias de uma fortificação medieval. As imagens, assim como as palavras, são vivas e nos compõem. Mais do que o porquê das coisas, sempre me moveu o “como”: como se formam, que combinações as tornam possíveis.

Cresci interessada por tudo que fosse minimamente antigo, acidentalmente colecionável, monasticamente insuspeito – ou que guardasse um segredo. Desenhar foi uma das formas de decifrar, de compreender as coreografias do gesto. Desenhar pode ser sério demais, cânone demais. E o que prefiro são os esboços: simples, acessíveis, possíveis de enfrentar face à palidez do papel. Esboçar me tornou mais generosa. A arte, para mim, mais do que talento, é a recompensa por uma longa paciência, encantamento e partilha.

Desenhar, ou estudar história, sempre me pareceu um gesto de insubordinação. Uma recusa ao tempo que mede o valor das coisas em função da produtividade e

da finalidade. O que eu quero, ao contrário, é perder as horas, a cabeça, o rumo – e reencontrá-los um pouco depois, entre laçadas de tricô. Ressoa em mim Elizabeth Bishop (1911-1979): “Não é difícil dominar a arte de perder; tanta coisa parece preenchida pela intenção de ser perdida que sua perda não é nenhum desastre”.

Existe no gesto manual, no fazer, um desvio intencional, uma espécie de deriva. Estar à deriva é permitir-se sair da rota funcional, habitar o intervalo, o excesso, a escuta. Um estado que não visa acumular, mas partilhar e receber. Merleau-Ponty (1908-1961), em um ensaio sobre Cézanne (1839-1906), escreve que o pintor buscava “pintar o mundo, convertê-lo em espetáculo, fazer ver como ele nos toca” – não como ele se apresenta diante de nós, mas como ele se faz sentir em nós.

Certa vez, fui tocada profundamente por uma couve-de-bruxelas. Nunca vi um legume tão comedido, tão “wabisabi” e tão precioso. Me lembrou as gemas que cobrem a capa do Evangelho de Lindau, e tantos outros ofícios singelamente complexos, como a tigela de chá de Kizaemon Ido – tesouro nacional dito conter a própria essência do chá. Assim me lembrei do mestre Yanagi Sōetsu (1889-1961), que via beleza nos objetos utilitários criados por mãos anônimas, artesanalmente, e sonhava – como William Morris (1834-1896) – em dissolver os limites entre arte e ofício, entre artista e artesão. Talvez seja isto: às vezes, um instante banal – uma couve-de-bruxelas, uma tigela de barro, uma linha no papel – interrompe o tempo como o conhecemos. E, nesse intervalo, o mundo inteiro se oferece. Talvez seja esse o nosso terceiro lugar: aquele que germina na paisagem da criação. Um território provisório, mas necessário, onde o gesto manual, a poesia e o viver nos ensinam outra forma de estar no mundo.

Manuella Frattini é bacharel e mestranda em história da arte. Atua como técnica de programação no Sesc Consolação.

sescsp.org.br

CONHEÇA O SESC SANTOS
Bruna Damasceno (foto); Estúdio Thema (colagem)

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