Guia de Enfrentamento à Violência Contra Crianças e Adolescentes

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Sumário

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Apresentação

Introdução

A construção do guia

Contextualização: de onde vem a violência e por que estamos diante de um desafio urgente? Criança e adolescente como seres em desenvolvimento

Conceitos básicos sobre violência


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Um breve olhar para a legislação nacional sobre direitos da criança e do adolescente

Rede de Proteção: prevenção e reparação

Os educadores e a escola como integrantes do Sistema de Garantia de Direitos e da rede de proteção Aprendizado na prática e discussão de caso

Considerações Finais

Ficha técnica

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Apresentação

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Diante do cenário de históricas violações de direitos das infâncias e juventudes, as quais foram especialmente agravadas pela pandemia de COVID-19 que teve início em 2020, este guia pretende auxiliar no enfrentamento à violência cometida contra bebês, crianças e adolescentes que consiste em uma tarefa urgente e prioritária. A concretização deste documento partiu do desejo de fomentar a reflexão, apontar estratégias possíveis e produzir um conteúdo que somasse força a iniciativas já consolidadas de tantas instituições, cujo trabalho em prol da proteção e garantia de direitos de crianças e adolescentes é fundamental e referência para toda a sociedade. Compondo esse cenário de diversas iniciativas, o Espaço de Brincar, um programa do Sesc SP, propõe em suas diversas ações, um olhar para a primeira infância que valoriza o cuidado e a atenção com essa faixa etária e tem, como uma de suas atribuições, promover os direitos de bebês e crianças, proporcionando a eles um ambiente acolhedor e propício para o seu desenvolvimento, sempre juntos de seus adultos de referência, sejam eles da família ou das instituições que frequentam. Foram muitas as pessoas, conversas, ideais e dúvidas que deram origem a este trabalho. Na mesma medida em que é urgente, o tema da violência, sobretudo contra crianças e adolescentes, é complexo. Nesse sentido, longe de trazer todas as respostas, este guia é um material aberto que convida educadoras, educadores e demais leitores(as) a uma atuação integrada, em rede, e sensível às mais diversas realidades das infâncias e adolescências, suas famílias e comunidades. Todo o desenvolvimento deste trabalho se deu de forma bastante colaborativa, envolvendo diversas pessoas da instituição e outras que convidamos para compor esta iniciativa com sua experiência adquirida em anos de carreira e militância dedicada ao enfrentamento à violência. O sentimento no ato da entrega deste documento à sociedade é de contentamento pelo eco das tantas vozes que ele carrega, bem como de esperança ativa, na medida em que este é, sim, um passo, mas a estrada é longa e é preciso seguir caminhando. Que este guia possa ser fonte de inspiração e mobilização nas atuações diárias rumo a uma realidade de plena garantia de direitos e desenvolvimento para bebês, crianças e adolescentes.

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Introd

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dução

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Caro(a) Educador(a),

O Guia de Enfrentamento à Violência Contra Crianças e Adolescentes é uma iniciativa ancorada nos valores sociais e na ação educativa e transformadora do Sesc São Paulo. Este guia tem como objetivo auxiliar educadores e educadoras de escolas e outros espaços de socialização de bebês, crianças e adolescentes na identificação, notificação e enfrentamento de situações de violência contra as infâncias e as adolescências, tendo como horizonte o reconhecimento da criança e do adolescente como sujeitos de direitos, em situação peculiar de desenvolvimento e fortalecendo a doutrina de proteção integral, conforme disposto no Estatuto da Criança e do Adolescente. A proposta não é de apresentar modelos de fluxos, protocolos e soluções prontas. O enfoque é motivar discussões e construções coletivas de alternativas frente à singularidade de cada situação de violência enfrentada articulada à realidade de cada espaço de socialização e à experiência de cada educador na interlocução com as equipes de trabalho. Se os desafios são muitos, é importante pensar em possibilidades e compartilhar informações. Para tanto, de início, é preciso ter em mente que a violência é um desafio para toda a sociedade e traz impactos já no começo da vida. Da primeira infância à adolescência, períodos em que os indivíduos são especialmente vulneráveis por estarem numa fase de desenvolvimento peculiar e terem ainda reduzida autonomia, identi-

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fica-se um grande número de vítimas. Assim, é para contribuir que vidas não mais sejam atravessadas ou interrompidas, sem que se saiba como agir, que o presente guia se apresenta. Ele se inicia com uma contextualização, que visa entender de onde vem a violência que se apresenta no dia a dia há gerações, e porque esse desafio urgente de superar índices alarmantes de atos violentos ainda existe. Em seguida, um olhar para as infâncias e adolescências, destacando suas peculiaridades como seres em desenvolvimento e, ao mesmo tempo, afirmando que são sujeitos, e não objetos. Devem ter direitos, ser escutados e protegidos desde o começo da vida. A seguir, o leitor é situado no debate a partir de conceitos básicos sobre a violência; a existência de desigualdades estruturais, as quais, a partir de marcadores como raça, gênero e deficiência, vão influir em quais crianças têm maiores chances de serem vitimadas por determinados tipos de violência. Então, o enfoque para a violência intrafamiliar, ainda muito ocultada em razão de um pacto de silêncio que desestimula intervenções no ambiente familiar. Por ser a violência no âmbito da família a principal ocorrência quando se olha a vitimização de crianças e adolescentes, o guia traz explicações sobre como essa violência, seja física, psicológica ou sexual, pode se dar em tal ambiente. Também são apresentados alguns indicadores de violência, ou seja, pontos de alerta aos quais aqueles que convivem com crianças e adolescentes devem atentar para serem capazes de prevenir ou romper situações de violência. É imprescindível trazer à tona o fato de que uma vida livre de violências é um direito garantido a toda criança e adolescente. Além de uma Constituição que declara que infância e adolescência são absoluta prioridade da nação e que garantir isso é responsabilidade de todos, o Brasil também possui uma legislação reconhecida e elo-

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giada internacionalmente: o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Este guia traz, ainda, outras legislações de destaque no tema de enfrentamento às violências, como o Marco Legal da Primeira Infância, a Lei Menino Bernardo, a Lei da Escuta Protegida, além de apresentar a estrutura do Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente. Para que este sistema funcione, é importante destacar que ele deve atuar como uma rede de proteção, agindo na prevenção e reparação de violências, bem como que é necessário que as pessoas saibam como acessá-lo, por meio dos canais de denúncia oficiais. Ao fim, o documento destaca a importância dos educadores e das escolas, considerando a proximidade com crianças, adolescentes e suas famílias, para que essa rede seja acionada sempre que necessário e, nesse sentido, os indicativos de como estruturar uma atuação de escolas no enfrentamento às violências. E, reconhecendo as dificuldades de lidar com um caso real e com o intuito de contribuir para a consolidação do aprendizado, o documento se encerra com uma situação concreta, a partir da qual é debatido como profissionais da educação podem agir. O presente trabalho é um importante passo para avançar na proteção a crianças e adolescentes, mas é sabido que a verdadeira transformação depende de uma atuação articulada, bem-informada e contínua no tema. Que todos e todas possam contribuir nesse caminho!

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A construção do guia

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A primeira etapa deste projeto foi compor a equipe de trabalho que reuniu profissionais do Sesc Guarulhos, duas assistentes sociais e uma advogada engajadas na luta pela garantia de direitos de crianças e adolescentes. A proposta era de elaborar um guia que atendesse as necessidades advindas das experiências concretas dos educadores a partir de seu cotidiano de trabalho. Para isso, foram organizadas quatro rodas de conversa com educadores da rede pública de ensino, assim como de instituições de educação não formal de Guarulhos, tendo como temática a violência contra crianças e adolescentes, e buscando apreender os principais desafios desses profissionais. Foram estas narrativas que deram vida a este projeto. Com o rico material produzido nas rodas de conversa definimos produzir um guia com enfoque na violência intrafamiliar, cuja redação foi construída coletivamente. Por isso, o Sesc São Paulo, enquanto instituição voltada para a introdução de novos modelos de ação cultural e a crença na educação como pressuposto para a transformação social, acredita que os profissionais envolvidos, não só na construção deste material, mas também em seu cotidiano profissional, serão responsáveis pela concretização deste importante instrumento mobilizador pela proteção de crianças e adolescentes e a efetivação de seus direitos.

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Contextualização: de onde vem a violência e por que estamos diante de um desafio urgente? 14


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Ao pensarmos sobre a violência uma questão se torna central: as pessoas nascem violentas? A literatura consolidada situa a violência não como um dado natural do humano, mas como um elemento da cultura1. Isto significa que a violência é um aprendizado cultural, ou seja, os seres humanos precisam de um aprendizado social, numa determinada sociedade e em período histórico específico para desenvolverem, ou não, uma forma violenta de se relacionar. É da crença de que podemos romper ciclos de violência e construir processos sociais e históricos alinhados à não-violência que este guia nasce. Iluminadas pela escuta de educadores(as) que ocupam o espaço privilegiado das unidades educacionais formais e não formais, visamos descrever as particularizações da violência e oferecer estratégias para atuação em REDE, possibilitando experiências transformadoras, guiadas pela capacitação de tais profissionais e pela consolidação das escolas como parte da rede de proteção de crianças e adolescentes. A centralidade deste guia está nas violências cometidas contra crianças e adolescentes. Para tanto, consideramos o cenário da violência estrutural, relacionada a desigualdades e vulnerabilidades presentes em nossa sociedade, com impactos significativos já na infância e adolescência, como também no exercício de cuidado por mães e pais, a chamada parentalidade. Nesse sentido, é importante reforçar que a família não pode ser compreendida isolada de suas relações com o Estado, a sociedade e o mercado de trabalho, sendo que todos estes atores têm a responsabilidade de apoiá-la. Este guia dedica, inclusive, especial atenção à violência familiar, entranhada nas relações que se dão no interior das famílias e são, muitas vezes, naturalizadas e re-

1 AZEVEDO, Maria Amélia et al. Organização da Infância e Violência Doméstica: fronteiras do conhecimento. São Paulo, Cortez, 1997.AZEVEDO, Maria Amélia e GERRA, Viviane Nogueira de Azevedo. Com licença vamos à luta. São Paulo: Editora Iglu, 1998. AZEVEDO, Maria Amélia e GERRA, Viviane Nogueira de Azevedo. Mania de bater: a punição corporal doméstica de crianças e adolescentes no Brasil. São Paulo: Editora iglu, 2001. FALEIROS, V. de P.; FALEIROS, E. T.S. (2001). Circuito e curtos-circuitos. Atendimento, defesa e responsabilização do abuso sexual contra crianças e adolescentes. São Paulo, Veras Editora

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produzidas por membros familiares. Do total de denúncias de violência e violação de direitos humanos recebidos pelo Relatório do Disque-100 no ano de 2019, 55% eram contra crianças e adolescentes, além disso, a casa foi o local de ocorrência em 52% destas denúncias, e em mais de 70% dos casos a perpetração foi por um familiar2. Vivemos tempos difíceis que testam cotidianamente nossa humanidade. No ano de 2020, a pandemia da Covid-19 nos forçou a uma reorganização do cotidiano em tempo recorde. Indivíduos e famílias em isolamento social tentavam conter o vírus e manter a vida. Este contexto favoreceu a ampliação de formas de solidariedade social, mas também observamos o crescimento da violência nos espaços de convivência familiar. As pesquisas revelam um aumento significativo da violência dentro dos lares. No ano de 2020, uma em cada quatro mulheres foi vítima de alguma violência, sendo que em 7 de cada 10 casos o agressor é conhecido: pai/mãe, companheiro ou namorado, ex-companheiro ou ex-namorado, ou seja, são situações que demonstram que a violência intrafamiliar é interacional, se constituindo nos vínculos e nas relações. Nestes casos, não raro, crianças e adolescentes são testemunhas da prática violenta, o que pode acarretar sérios prejuízos para o seu desenvolvimento. A pandemia foi duramente sentida por essas famílias, tanto que 50,8% das mulheres que sofreram violência acreditam que a pandemia influenciou o agravamento da situação3.

2 Brasil - Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos (ONDH). Disque 100. Relatório violência contra crianças e adolescentes. Brasília, DF: ONDH; 2019/Maio 2020. Disponível em: https://www.gov.br/mdh/pt-br/centrais-de-conteudo/disque-100/relatorio-2019_disque-100.pdf Acesso em: 24 set. 2021 3 Dados compilados pelo Instituto Patrícia Galvão. Pesquisa: “Visível e invisível: a vitimização de mulheres no Brasil. 3 edição. DataFolha/FBSP, 2021. Disponível em: https://dossies.agenciapatriciagalvao.org.br/violencia-em-dados/pandemia-e-violencias-mulheres-seguem-em-vulnerabilidade/ Acesso em: 24 set. 2021.

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Os desafios sociais dos rebatimentos da violência na esfera familiar na pandemia não terminam aí. Os dados indicam que cerca de 130 mil crianças e adolescentes no Brasil ficaram órfãos em decorrência das mortes causadas pela Covid-194, o que demandará esforços do Estado e da sociedade como um todo para a reparação destas perdas e os prejuízos decorrentes. Tais violências representam uma violação à infância e adolescência, enquanto fase da vida que deve ser respeitada no presente, para que seja, também, fonte potencial de esperança e reparação futura para a sociedade. Neste momento histórico somos, todas e todos, convocados a pensar respostas inovadoras na interlocução com as Políticas Públicas, o Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente e a rede socioassistencial como um todo, visando consolidar uma cultura de proteção e enfrentamento da violência contra crianças e adolescentes, por meio do compromisso das instituições, da organização e da articulação dos serviços com o objetivo comum de prevenir e romper os ciclos de violência.

4 Susan D Hillis*, H Juliette T Unwin*, Yu Chen*, Lucie Cluver, Lorraine Sherr, Philip S Goldman, Oliver Ratmann, Christl A Donnelly, Samir Bhatt, Andrés Villaveces, Alexander Butchart, Gretchen Bachman, Laura Rawlings, Phil Green, Charles A Nelson III†, Seth Flaxman† “Global minimum estimates of children affected by COVID-19-associated orphanhood and deaths of caregivers: a modelling study” (Estimativas mínimas globais de crianças afetadas por orfandade associada a COVID-19 e mortes de cuidadores: um estudo de modelagem) Lancet 2021; 398: 391–402 Published Online July 20, 2021 https://doi.org/10.1016/ S0140-6736(21)01253-8.

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Criança e adolescente como seres em desenvolvimento

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Crianças e adolescentes não são miniadultos. São seres de existência plena e complexa, ainda que estejam em uma fase de desenvolvimento inicial e não tenham condições de exercer seus direitos e sobreviver com completa autonomia. Nesse sentido: “Como ‘pessoas em condição peculiar de desenvolvimento’, segundo Antônio Carlos Gomes da Costa, ‘elas desfrutam de todos os direitos dos adultos que sejam aplicáveis à sua idade e ainda têm direitos especiais decorrentes do fato de que: não têm acesso ao conhecimento pleno de seus direitos; não atingiram condições de defender seus direitos frente às omissões e transgressões capazes de violá-los; não contam com meios próprios para arcar com a satisfação de suas necessidades básicas; não podem responder pelo cumprimento das leis e deveres e obrigações inerentes à cidadania da mesma forma que o adulto, por se tratar de seres em pleno desenvolvimento físico, cognitivo, emocional e sociocultural”5 (grifos inseridos). Vale destacar também que o processo de desenvolvimento é intenso, especialmente no começo da vida. Na primeira infância, período que abrange os primeiros seis anos completos de vida da criança, vemos que essa importante fase é influenciada pela realidade na qual a criança está inserida, pelos estímulos que recebe e pela qualidade dos vínculos de afeto que estabelece com os adultos de referência que a cercam. Inclusive, pesquisas nacionais6 e internacionais7 demonstram que, por meio de condições adequadas de vida nesse período, que assegurem especialmente segurança, saúde e afeto, maiores são as chances de a criança atingir sua capacidade plena, transformando-se em um adulto mais estável, produtivo e completo. Justamente por isso, o começo da vida deve receber proteção especial.

5 PEREIRA, Tânia da Silva. Direito da Criança e do Adolescente: uma proposta interdisciplinar. Rio de Janeiro: Renovar. 2008. 6 MIRANDA et al. Criança, um ser em desenvolvimento. 2016. Disponível em: https://www.fmcsv.org.br/pt-BR/ biblioteca/crianca-ser-desenvolvimento/. Acesso em 8 out. 2021. 7 YOUNG, ME; Richardson, LM. Early child development from measurement to action: a priority for growth and equity. (Desenvolvimento da primeira infância da avaliação à ação: uma prioridade para o crescimento e a equidade). Washington, DC: World Bank; 2007. Disponível em: https://openknowledge.worldbank.org/handle/10986/6837. Acesso em 8 out 2021.

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Com isso, ao reconhecermos que crianças e adolescentes estão em uma fase especial de desenvolvimento e que é preciso assegurar que isso ocorra para que se alcance adequadamente as plenas capacidade e maturidade, tanto do ponto de vista físico/ fisiológico, quanto mental/psíquico8, um ponto de atenção se coloca: precisamos assegurar direitos a essa faixa etária considerando e respeitando suas especificidades. Nessa linha, protegê-los da violência é especialmente relevante, dado que, por sua fase de desenvolvimento, estão especialmente vulneráveis - daí a necessidade de medidas de prevenção. Além disso, episódios de violência, especialmente durante a infância e adolescência, podem gerar sofrimentos por toda a vida. Por isso, é preciso lembrar: “As crianças pequenas são detentoras de direitos. (…) Elas têm direito a medidas especiais de proteção, e (…) são especialmente vulneráveis aos danos causados por relacionamentos não confiáveis ou instáveis com pais e cuidadores, pelo fato de crescerem em extrema pobreza e privação, ou cercadas por conflitos e violência. As crianças pequenas são menos capazes de evitar ou resistir [a violência], menos capazes de compreender o que está acontecendo e menos capazes de buscar a proteção dos outros. Existem evidências convincentes de que o trauma resultante da negligência e do abuso tem impactos negativos no desenvolvimento, incluindo, para as crianças mais novas, efeitos mensuráveis nos processos de maturação do cérebro”9. Enfrentar a violência se revela, portanto, uma questão urgente e necessária, desde o começo da vida.

8 AMÂNCIO, João Batista. Aspectos do crescimento, desenvolvimento e fisiologia da criança e do adolescente. In: MELO, Guilherme Aparecido Bassi; CÉSAR, João Batista Martins (Org.). Trabalho Infantil: mitos, realidade e perspectivas: estudos em homenagem ao professor Oris de Oliveira. São Paulo: LTr, 2016. p. 180. 9 ONU, Comitê das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, 2005 apud FMCSV. Early Childhood Matters, 2018. A prevenção da violência deve começar na primeira infância. Disponível em: https://bernardvanleer.org/ pt-br/ecm-article/2018/violence-prevention-must-start-in-early-childhood/. Acesso em 16 out. 2021.

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Conceitos básicos sobre violência

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5.1 VIOLÊNCIA E DESIGUALDADE ESTRUTURAL Crianças e adolescentes são sujeitos de direitos em peculiar estágio de desenvolvimento e, portanto, necessitam de olhar e proteção integrais e especiais em todos os âmbitos de suas vidas. E isso deve ser garantido a todos e todas. Não por acaso, alinhado ao que a Constituição prevê, o Estatuto da Criança e do Adolescente também é explícito ao afirmar que os direitos aplicam-se a toda criança e adolescente, sem discriminação de nascimento, situação familiar, idade, sexo, raça, etnia ou cor, religião ou crença, deficiência, condição pessoal de desenvolvimento e aprendizagem, condição econômica, ambiente social, região e local de moradia ou outra condição que diferencie as pessoas, as famílias ou a comunidade em que vivem. Essa previsão é importante, pois tais marcadores sociais tendem a refletir na vida dos sujeitos, ampliando ou reduzindo vulnerabilidades e privilégios e gerando, com isso, desigualdades que tendem a refletir na incidência de violência, o que chamamos de violência estrutural. Esse tipo de diferenciação ocorre quando uma pessoa, por pertencer a um determinado grupo ou apresentar determinada característica de identidade, deixa de ter acesso a um benefício, direitos ou oportunidades que deveriam estar disponíveis a ela10, motivo pelo qual é preciso atentar para a maior vulnerabilidade social de determinados grupos. A título de exemplo, de acordo com o Mapa da Violência: Adolescentes de 16 e 17 anos11, o homicídio é atualmente a principal causa de morte de pessoas nessa faixa etária no país, sendo que, quanto ao perfil das vítimas, 93% eram do sexo masculino

10 MOREIRA, Adilson José. O que é discriminação?. Cap. 6. 11 FLACSO. Mapa da Violência: Adolescentes de 16 e 17 anos. 2015. Disponível em: http://flacso.org.br/?publication=mapa-da-violencia-2015-adolescentes-de-16-e-17-anos-do-brasil-2. Acessado em: 16 out. 2021.

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e, proporcionalmente, morreram quase três vezes mais negros que brancos. Ainda, dado do IBGE12 em relação à violência de gênero, contra meninas e mulheres, tem-se que mais de 20% das adolescentes de 13 a 17 anos diz já ter sido tocada, manipulada, beijada ou ter tido partes do corpo expostas contra a sua vontade, e 8,8% das meninas nessa idade já foram forçadas ao sexo, a maioria antes dos 14 anos. Ainda, um estudo divulgado pelo Unicef em 2013 revelou que crianças com deficiência têm probabilidade três ou quatro vezes mais alta de serem vítimas de violência – seja negligência, violência física, psicológica ou sexual13. Assim, elementos sociais como a discriminação por raça, gênero, classe, etnia, cultura e deficiência se encontram presentes na vida dos cidadãos desde a primeira infância, e o modo como a família, o poder público e a sociedade como um todo constroem as estratégias frente a isto é relevante pois impacta o desenvolvimento de crianças e adolescentes. Considerar tal aspecto é urgente para entender quais grupos sociais estão mais propensos a sofrerem violência, bem como para construir soluções eficientes, compreendendo que a violência estrutural oferece a base para a violência de comportamento, a exemplo das vivenciadas na família, que reproduzem a violência inerente aos sistemas econômicos, culturais e políticos que excluem e tornam vulneráveis grupos aos quais são negadas as conquistas da sociedade, no que se refere a efetivação de direitos, ao acesso às políticas públicas e as condições mínimas de viver com dignidade14.

12 IBGE. Uma em cada cinco estudantes já sofreu violência sexual. 2021. Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/31579-uma-em-cada-cinco-estudantes-j Acesso em 16 out. 2021. 13 Childhood. Crianças com deficiência: prevenção contra o abuso sexual. 2019. Disponível em: https://www. childhood.org.br/criancas-com-deficiencia-prevencao-contra-o-abuso-sexual#:~:text=Viola%C3%A7%C3%A3o%20 de%20direitos%20de%20crian%C3%A7as,viol%C3%AAncia%20f%C3%ADsica%2C%20psicol%C3%B3gica%20 ou%20sexual. Acessado em: 16 out. 2021. 14 MINAYO, MCS. Expressões culturais de violência e relação com a saúde. In: Violência e saúde [online]. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2006. Temas em Saúde collection, pp. 83-107. ISBN 978-85-7541-380-7. Available from SciELO Books

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5.2 VIOLÊNCIA FAMILIAR E SUAS PARTICULARIZAÇÕES. Vimos no item anterior que a violência pode ser compreendida a partir das relações sociais mais amplas, ou seja, os aspectos econômicos, políticos, sociais e culturais de nossa sociedade e que as desigualdades sociais têm rebatimentos na vida das famílias. Esta informação é muito importante para que possamos entender a violência que ocorre no interior das famílias. A Organização Mundial da Saúde - OMS15 nos ajuda a entender o que é a violência (conceito), onde se manifesta (níveis da vida) e como ela acontece (tipologia). Compreender estes três aspectos é fundamental para facilitar nosso entendimento da violência intrafamiliar. O que é a violência? O entendimento do conceito de violência é complexo e possui várias dimensões: física, psicológica, sexual, estrutural etc. Está no campo da ameaça, da violação de direitos, ocasiona impactos na construção da identidade e do reconhecimento do ser no mundo. Quais são os níveis da vida em que a violência se manifesta? Para reconhecer a violência em suas várias dimensões, precisamos analisar sua manifestação em três níveis que envolvem: nosso cotidiano, nossas relações com familiares, com companheiros(as) (vida conjugal) e a fronteira entre nossa vida íntima (casa) e a ação da sociedade em casos de violência. Ou seja, “em briga de marido e mulher, a sociedade deve meter a colher”.

15 Krug EG et al., eds. World report on violence and health. (Relatório mundial sobre violência e saúde) Geneva, World Health Organization, 2002. Disponível em: https://portaldeboaspraticas.iff.fiocruz.br/wp-content/uploads/2019/04/14142032-relatorio-mundial-sobre-violencia-e-saude.pdf Acesso em: 27 set. 2021.

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Na vida cotidiana

Padrões de relacionamento emocional

Relação entre sociedade e família

Envolve as atividades de

A família é o lugar onde

Compreender esta rela-

vida diária, costumes re-

se forma a personalidade,

ção é fundamental para

lativos a relacionamentos

em sua estrutura psíquica,

aprofundar a compreen-

afetivos, namoro, casamen-

através do processo de

são dos níveis anteriores,

to, parentalidade, enfim, o

socialização (cultura), sen-

por exemplo, a separação

ideário e as práticas.

do assim, as relações cons-

do público e do privado,

tituídas pela violência são

a ideia de privacidade e

reproduzidas no modo de

de que em situações que

se relacionar primeiro intra-

envolvem a família a so-

familiar, e posteriormente,

ciedade não deve interfe-

extrafamiliar.

rir. A ação do Estado e da sociedade é fundamental para o rompimento dos ciclos de violência.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) entende que há relação direta entre a intenção do indivíduo que apresenta ou se envolve num comportamento violento e o ato ou a ação praticada. Tal concepção é importante, pois em situações de violência a responsabilidade é do indivíduo que a comete e não pode ser atribuída a causas exteriores como uso abusivo de álcool, substâncias psicoativas e/ou outras frustrações ou desafios da vida cotidiana.

Como a violência se manifesta? As raízes sociais da violência podem ser entendidas como resultado dos efeitos disruptivos dos acelerados processos de mudança social, provocados, sobretudo, pela industrialização e urbanização. A tipologia da violência corresponde à caracterização dos diferentes tipos de violência e seus vínculos, conforme a estruturação da Organização Mundial da Saúde (OMS), dividida em três grandes categorias:

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A violência autoinfligida

A violência interpessoal

Inclui os atos violentos

Subdividida em comporta-

Subdividida em violência

que acontecem nos

mentos suicidas e autoabu-

comunitária e violência

Na vida coletiva

âmbitos macrossociais,

sos. No primeiro caso, a ti-

familiar. Inclui a violência in-

políticos e econômicos e

pologia contempla suicídio,

fligida pelo parceiro íntimo,

caracterizam a dominação

ideação suicida e tentativas

o abuso infantil e o abuso

de grupos e do Estado.

de suicídio. O conceito

contra idosos. Na violência

de autoabuso nomeia as

comunitária incluem-se a

agressões a si próprio e as

violência juvenil, os atos

automutilações.

aleatórios de violência, o estupro e o ataque sexual por estranhos, bem como a violência em grupos institucionais, como escolas, locais de trabalho, prisões e asilos.

O caminho percorrido até aqui nos ajudou a entender que o conceito de violência não abrange somente o ato concreto, mas também a ameaça e que ela atinge o indivíduo em várias dimensões de sua vida. A violência também pode ser classificada considerando em qual grupo ou pessoa ela é cometida. É a partir desta ideia que são derivados os conceitos de violência doméstica, violência contra a mulher, violência contra a criança e o adolescente, violência contra o idoso, violência intrafamiliar etc. Nosso principal interesse é compreender a violência intrafamiliar, pois como vimos nos dados apresentados no início deste guia, o espaço intrafamiliar é o de maior ocorrência de situações de violência contra crianças e adolescentes.

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Violência Intrafamiliar – se enquadra na categoria de violência interpessoal. Pode ser definida como toda ação ou omissão que prejudique o bem-estar, a integridade física e a psicológica, ou a liberdade e o direito ao pleno desenvolvimento de outro membro da família. Derivado de estudos de família, esse termo é entendido de maneira mais ampla que a doméstica e que a violência contra a mulher, por considerar crianças, irmãos, homens e idosos. Esse tipo de violência é cometido, dentro ou fora de casa, por algum membro da família, inclusive pessoa que passa a assumir função parental, ainda que sem laços de consanguinidade, e que apresentam relação de poder sobre a outra pessoa. A família é a principal responsável pela proteção de suas crianças e adolescentes, mas para exercer esse papel deve ser apoiada pelo poder público e pela sociedade; afinal, esta é uma responsabilidade compartilhada. A família é, também, um lugar privilegiado de perpetração e perpetuação de atos violentos contra estes sujeitos. Neste sentido, é um espaço de interação de vínculos que produzem e reproduzem a violência. A violência no contexto familiar contra crianças e adolescentes pode ser entendida como: uma violência interpessoal; um abuso do poder disciplinador e coercitivo dos pais e/ou responsáveis; um processo de vitimização que às vezes se prolonga por vários meses e até anos; um processo de imposição de maus-tratos à vítima, de sua completa objetificação e sujeição; uma forma de violação dos direitos essenciais da criança e do adolescente como pessoas e, portanto, uma negação de valores humanos fundamentais como a vida, a liberdade, a segurança; um abuso que tem na família sua ecologia privilegiada, dado que, como esta pertence à esfera do privado, a violência no contexto familiar

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acaba se revestindo da tradicional característica de “sigilo”16, que precisa ser desfeita. Para melhor identificarmos os tipos de violência17 praticados contra crianças e adolescentes, que acontecem massivamente no ambiente familiar, destacaremos três:

Violência Física

Violência Psicológica

Ocorre quando há uso de força física nas

Apesar de estar presente em todos os ti-

relações para produzir injúrias, feridas, dor

pos de violências já citadas, por não deixar

ou incapacidade em quem sofre a violência.

marcas aparentes, sua identificação é mais

Comumente utilizada sob o pretexto de efeito

complexa. Caracteriza-se pelo uso de um

“educador”, o qual, em verdade, não subsiste.

conjunto de atitudes e termos utilizados para humilhar, constranger, envergonhar, censurar e pressionar a criança ou adolescente, incluindo o desmerecimento destes por características físicas ou psíquicas. Em geral pode ser caracterizada quando um adulto comete quaisquer um destes cinco atos: rejeitar, isolar, aterrorizar, ignorar ou corromper.

Violência Sexual: Tem uma conceituação mais complexa que as outras e pode ser dividida entre abuso sexual e exploração sexual.

16 BRASIL. Lei n° 11.340 de 7 de Agosto de 2006. Lei Maria d Penha: cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher... Diário Oficial da União. Brasília, DF, 8 ago. 2006. BRASIL. Ministério da Saúde. Violência Intrafamiliar: orientações para prática em serviço. Brasília: Ministério da Saúde, 2001. 96 p. (Série Cadernos de Atenção Básica; n. 8).

17 BRASIL. Lei n° 11.340 de 7 de Agosto de 2006. Lei Maria d Penha: cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher... Diário Oficial da União. Brasília, DF, 8 ago. 2006. BRASIL. Ministério da Saúde. Violência Intrafamiliar: orientações para prática em serviço. Brasília: Ministério da Saúde, 2001. 96 p. (Série Cadernos de Atenção Básica; n. 8).

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Abuso Sexual Caracteriza-se como abuso sexual atos como a penetração (oral, anal ou vaginal, com pênis ou objetos), carícias não desejadas, masturbação forçada e atos sem contato físico como a exposição obrigatória a material pornográfico, exibicionismo, uso de linguagem erotizada em situação inadequada. Pode ser definida também, como todo ato ou jogo sexual utilizado na relação hetero ou homossexual, onde o agressor se encontra num estágio de desenvolvimento psicossexual adiantado em relação à criança ou ao adolescente, e o autor da violência aproveita-se da situação para obter satisfação sexual ou estimular a vítima. Estas práticas são impostas à criança através de ameaça, violência física ou pela sedução e indução de sua vontade. O abuso sexual contra crianças e adolescentes é entendido como o envolvimento das vítimas em atividades sexuais que são incompatíveis com sua fase de desenvolvimento e assim não podem ser compreendidas por ela.

Exploração Sexual Caracterizada pela relação sexual de uma criança ou adolescente mediada pelo dinheiro ou por outras moedas de troca, na qual a criança ou adolescente é tratada como objeto sexual ou mercadoria. Em geral, supõe-se uma rede organizada de exploração sexual, associada ao ato de exploração de crianças e adolescentes visando sua comercialização e de seu corpo. Contudo, ela pode acontecer também dentro da família, onde algum familiar usa a sexualidade da criança ou adolescente para obtenção de ganhos materiais ou financeiros, seja por meio de seu aliciamento, em que uma criança ou adolescente é levada a praticar ato libidinoso ou sexual com alguma pessoa em troca de algum ganho financeiro, ou pela comercialização de fotos, vídeos e desenhos das partes genitais ou sexo explícito de crianças e adolescentes, caracterizando a pornografia infantil. De tal modo, todo o material produzido ou editado é vendido na internet. Muitas vezes, as crianças e adolescentes fornecem fotos e vídeos por acreditarem que estão enviando a amigos que fizeram nas redes sociais, quando na realidade estão sendo vítimas de aliciadores.

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famílias e seus membros que estão enredados em situações de violência apreAs sentam características específicas, sendo alguns elementos para identificação da violência no contexto familiar:

Atores

Autor da violência; Pessoa em situação de violência; Testemunha da violência.

Ideias que sustentam a violência

O autor da violência não é capaz de se controlar; A violência teria função pedagógica; A pessoa em situação de violência é inferior; A família deve se manter unida a qualquer custo; Em questões familiares as pessoas de fora não devem intervir.

Ações As provocações e os maus tratos são elementos frequentes e naturais nas conversações e interações.

Estruturas Familiares

Estão enrijecidas; Predominam sobre os interesses individuais; Mantém uma organização com hierarquias fixas naturalizadas.

Para discernirmos as situações de violência, é necessário observarmos alguns sinais no comportamento da criança/adolescente e da família. É importante sempre analisarmos as situações numa perspectiva de totalidade, ou seja, compreender os sinais emitidos pela criança, por seus responsáveis e a interação entre eles. São indicadores que sinalizam que uma situação de violência está em curso:

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Indicadores Gerais de Violência Física

Indicadores no comportamento da criança/adolescente

Características Da Família

Presença de lesões físicas como queimaduras, hematomas, feridas e fraturas, que não se adequam à causa alegada. Ocultação de lesões antigas e não explicadas.

Muito agressivo ou apático; Hiperativo ou depressivo; Temeroso; Tendências autodestrutivas e ao isolamento; Baixa autoestima; Tristeza; Medo dos pais; Alega agressão dos pais; Relato de causas pouco viáveis às lesões; Fugas de casa; Problema de aprendizado;

Muitas vezes oculta as lesões da criança, justificando-as de forma não convincente ou contraditória; Descreve a criança como má ou desobediente; Abusa de álcool ou drogas; Possui expectativas irreais acerca da criança; Defende uma disciplina severa; Ausente ou resistente ao contato; Tem antecedentes de maus-tratos na família.

Faltas frequentes à escola.

Indicadores no comIndicadores Gerais de Características portamento da criança/ Violência Psicológica da Família adolescente Problemas de saúde, como obesidade, irritação da pele, distúrbios do sono e dificuldades na fala; comportamentos regredidos e/ou não esperados para a idade; escape de urina durante o sono.

Comportamentos extremos de timidez ou agressividade;

Tem expectativas irreais sobre a criança ou adolescente;

Destrutividade e autodestrutividade;

Rejeita;

Problemas do sono; Isolamento; Baixo conceito de si próprio; Abatimento profundo; Tristeza; Ideia de tentativa de suicídio; Insegurança.

Aterroriza; Ignora; Desqualifica; Exigem em demasia; Corrompe; Isola; Descreve a criança como má, diferente dos demais.

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Algumas falsas ideias impedem que o ciclo da violência seja rompido, o que significa sustentar as situações de violência, em especial dentro da família. Por exemplo, no imaginário social a família é sempre um lugar seguro para as crianças e adolescentes; os pais, mães e responsáveis sabem o que é melhor para seus filhos e não seriam capazes de machucá-los física, psicológica ou sexualmente; crianças criam histórias sobre situações violentas para fugir de suas obrigações, da disciplina, dos limites, ou ainda filhos de casais separados utilizam tais artifícios ou porque foram induzidos por um dos genitores ou porque querem ir morar com o genitor não guardião. Essas compreensões equivocadas sobre as situações de violência nos impedem de reconhecer que pais, mães e familiares são capazes de ferir física, psicológica e sexualmente suas crianças e adolescentes. Demonstram, também, o quanto a voz de crianças e adolescentes são sufocadas pelos adultos, quando não acreditamos em suas histórias e invalidamos a realidade que estão vivenciando, causando nelas imensa confusão e medo. Fortalecemos as crenças transmitidas pelos abusadores de que crianças não são levadas a sério, e que ninguém acreditará se elas contarem sobre as situações de violência. É assim que fortalecemos a “cultura do segredo”18 que favorece o acobertamento das situações de violência, em especial as de violência sexual que são mantidas em segredo tanto pelas crianças e adolescentes abusados como por toda a família. Deste modo, o segredo é mantido dentro da família e simultaneamente a sociedade tem dificuldade para “enxergá-lo” e lidar com o problema. Como as crianças não compreendem o significado da violência sexual, muitas vezes, são envolvidas em relações abusivas, não são forçadas fisicamente ou ameaçadas a participar da relação. Na maioria dos casos a criança só percebe a relação abusiva (sexual) sem violência física quando constata a reprovação do meio externo (professores, cuidadores, rede de parentesco etc.), ou quando associa os pe-

18 COHEN, Claudio. GOBBETTI, G.J. “Abuso sexual intrafamiliar”. Revista Brasileira de Ciências Criminais. v.6, n.24, p. 235-43, 1998.

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didos de “segredo” da pessoa que abusa a uma relação que pode ser considerada prazerosa, ou ainda quando tem acesso a informações adequadas sobre violências, seu corpo e a ideia de consentimento. Assim, crianças e adolescentes violentados e seus abusadores formam um “pacto de silêncio” que permeia as relações de violência no contexto familiar e faz a sustentação destas violências, impossibilitando sua comunicação para outras pessoas de fora da família. Tal pacto contribui para a continuidade da violência e para sua perpetuação. Pode ocorrer a partir: Dos responsáveis que se paralisam e agem como se estivessem aliados ao agressor, devido às condições de dependência emocional e/ou econômica, de tal modo que não consideram os sinais dados pela criança ou adolescente. Da criança ou adolescente, que imagina que ninguém pode protegê-lo, por temer perder o afeto de quem a agride (quanto mais próximo o parentesco, mais presente essa característica), receio de ser desacreditada ou julgada culpada pela violência sofrida, além do medo de sofrer represálias19

As crianças responderão de forma diferente ao abuso sexual intrafamiliar20. Crianças pré-escolares até 06 anos externalizam a vivência do abuso em comportamentos; o mesmo ocorre com crianças de 6 a 12 anos, nas quais podem ser observadas alteração de comportamento significativo como agressividade e atitudes e/ou brincadeiras sexualizadas. Alguns indicadores:

19 AZEVEDO, Maria Amélia et al. Organização da Infância e Violência Doméstica: fronteiras do conhecimento. São Paulo, Cortez, 1997. AZEVEDO, Maria Amélia e GERRA, Viviane Nogueira de Azevedo. Com licença vamos à luta. São Paulo: Editora Iglu, 1998. AZEVEDO, Maria Amélia e GERRA, Viviane Nogueira de Azevedo. Mania de bater: a punição corporal doméstica de crianças e adolescentes no Brasil. São Paulo: Editora iglu, 2001. 20 Michael Aaron (2012) The Pathways of Problematic Sexual Behavior: A Literature Review of Factors Affecting Adult Sexual Behavior (Os caminhos problemáticos do comportamento sexual: uma revisão de literatura dos fatores que afetam o comportamento sexual adulto) in Survivors of Childhood Sexual Abuse, Sexual Addiction & Compulsivity (Sobreviventes de Abuso Sexual na infância, adicção e compulsão sexual) 19:3, 199-218.

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Desenha órgãos genitais além do esperado para sua idade; Apresenta comportamento sexual inadequado para sua idade; Mostra interesse não usual por assuntos sexuais. No caso dos adolescentes a tendência é de internalizar a vivência do abuso em comportamentos de retraimento. São comuns quadros depressivos, tristeza, isolamento, ansiedade, queixas de dores no corpo, dificuldade em dialogar etc. Alguns indicadores: Cortar o próprio corpo – cutting; Fugas constantes de casa; Tendências suicidas; Sentimento de culpa ou vergonha excessiva. A intensidade dos comportamentos dependerá da idade da criança/adolescente, da duração do abuso e do grau de proximidade entre a criança e o abusador. O abuso é vivenciado de forma particular e individual, por isso, devemos ter cuidado com as generalizações. Lembrando que trabalhamos com indicadores que poderão ou não se concretizar diante da denúncia e a apuração dos órgãos responsáveis21. Pelo exposto, é importante ficar atento aos sinais de violência, a fim de ter intervenções adequadas capazes de romper a vitimização de crianças e adolescentes e prevenir situações de risco.

21 Leah M. Blain, Fred Muench, Jon Morgenstern, Jeffrey T. Parsons. Exploring the role of child abuse and posttraumatic stress disorder symptoms in gay and bissexual men reporting compulsive sexual behavior (Explorando o papel do abuso infantil e dos sintomas de transtornos de estresse pós-traumático em homens gays e bissexuais que relatam comportamento sexual compulsivo). Child Abuse & Neglect (Negligência e Abuso Infantil) 36 (2012) 413.422.

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Um breve olhar para a legislação nacional sobre direitos da criança e do adolescente 40


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A nossa Constituição Federal, em 1988, inaugurou a chamada “doutrina da proteção integral da criança e do adolescente”, que os reconhece enquanto sujeitos de direito - e não mais como objetos a serem tutelados e que não merecem ser escutados. Além disso, se reconheceu, como trazido anteriormente, sua condição peculiar de desenvolvimento, assegurando assim o seu melhor interesse e a sua absoluta prioridade. Nesse sentido, no Artigo 227 o constituinte prevê: “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”. (grifos inseridos). Assim, a doutrina da proteção integral assegura à criança não só os direitos fundamentais conferidos a todos os cidadãos, mas também aqueles que atentam às especificidades da infância. Entende-se também que é necessário cuidar da criança não só combatendo violações, como também promovendo direitos. “A doutrina da proteção integral e o princípio do melhor interesse da criança são duas regras basilares do direito da infância e da juventude que devem permear todo tipo de interpretação dos casos envolvendo crianças e adolescentes. Trata-se da admissão da prioridade absoluta dos direitos da criança e do adolescente22”. (grifos inseridos) O princípio do melhor interesse da criança assegura que, em qualquer situação ou problema que envolva crianças, seja sempre buscada a alternativa mais apta a satisfazer seus direitos, para que seus interesses estejam sempre em primeiro lugar.

22 ISHIDA, Válter Kenji. Estatuto da Criança e do Adolescente: doutrina e jurisprudência. 14ª ed. São Paulo: Atlas, 2013.

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Portanto, por força do dever constitucional, os direitos fundamentais assegurados à infância e à adolescência gozam de absoluta prioridade, de modo que devem ser respeitados e efetivados em primeiro lugar. Vale destacar que o cumprimento de tais direitos é de responsabilidade compartilhada entre Estado, famílias e sociedade, os quais devem somar esforços e tomar as medidas necessárias para cumprir esse dever. Não poderia ser diferente, uma vez que a peculiar condição de desenvolvimento da criança impõe a necessidade de coordenação dos diferentes atores para garantia plena dos seus direitos. Assim, da mesma forma como a prioridade absoluta consta no texto constitucional porque a sociedade se organizou e pleiteou essa transformação, é pela ação da sociedade, juntamente à família e ao poder público, que devemos atuar pela sua implementação. Para detalhar o conceito de absoluta prioridade e viabilizar a garantia de direitos à infância e adolescência, foi criado o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei 8.069 de 1990. Além de trazer uma previsão detalhada dos direitos dessa faixa etária, prevê diretrizes para atuação em relação a situações relacionadas à convivência familiar, tais como guarda, adoção, destituição do poder familiar; a situações de cometimento de atos infracionais, prevendo a aplicação de medidas socioeducativas; e a tantas outras. Preconiza, ainda, a responsabilidade dos diferentes órgãos na garantia de tais direitos, prevendo medidas de prevenção, reparação e responsabilização. Por fim, vale lembrar que, ao detalhar o conceito constitucional de prioridade absoluta, o ECA prevê, no artigo 4º, que crianças e adolescentes devem estar em primeiro lugar no campo de políticas, serviços e orçamento públicos. Ainda, no artigo 3º, o ECA nos lembra que os direitos nele assegurados aplicam-se a todas as crianças e adolescentes, sem discriminação de nascimento, situação familiar, sexo, raça, etnia ou cor, religião ou crença, deficiência, condição pessoal de desenvolvimento e aprendizagem, condição econômica, ambiente social, região e local de moradia ou outra condição que diferencie as pessoas, as famílias ou a comunidade em que vivem, como citado anteriormente.

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Outro Marco Legal que merece ser aqui mencionado é o da primeira infância. Criado pela Lei 13.257 de 2016, dispõe sobre políticas públicas para essa faixa etária que vai até os seis anos de idade. Nele, definem-se como áreas prioritárias de atuação: alimentação e nutrição, assistência social, convivência familiar e comunitária, cultura, brincar e lazer, educação infantil, espaço e meio ambiente, não exposição precoce à comunicação mercadológica, prevenção de acidentes, proteção contra toda forma de violência, e saúde. Vale dizer que o Marco Legal da Primeira Infância é guiado pela lógica de que é preciso cuidar de quem cuida e, nesse sentido, visa a proteger as famílias, especialmente aquelas em situação de vulnerabilidade. Ademais, em relação à formação de cuidadores, prevê acesso à qualificação por profissionais; atuação com afeto, por ser este um aspecto essencial ao desenvolvimento infantil; escuta adequada às diferentes formas de expressão infantil, dado que essa se manifesta para além do verbal; a existência de educadores de referência, a fim de que a criança possa vincular-se a um adulto e este possa observar e interagir com crianças com maior profundidade; bem como, de maneira transversal, a formação da cultura de promoção e proteção da infância. Além disso, é essencial citar a Lei Menino Bernardo, Lei 13.010 de 2011, nomeada em homenagem a uma vítima de violência contra crianças. Tal lei estabelece o direito da criança e do adolescente de ser educado sem o uso de castigos físicos, de tratamento cruel ou degradante como forma de correção, disciplina, educação ou qualquer outro pretexto. De início, vale conceituar que tratamento cruel ou degradante é qualquer tratamento que humilhe, ameace ou ridicularize; e castigo físico é qualquer ação punitiva ou disciplinar com emprego de força física que, independentemente de gerar lesão ou não, resulta em sofrimento físico na criança. Essa lei vale para mães, pais, integrantes da família, responsáveis ou qualquer pessoa encarregada de cuidar, tratar, educar ou proteger a criança. Conforme a gravidade do caso, as ações fixadas passam por: advertência, encaminhamento a programa de proteção à família; tratamento psicológico ou psiquiátrico, cursos ou programas de orientação.

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Relevante, ainda, é a Lei da Escuta Protegida, Lei 13.431 de 2017, que normaliza e organiza o Sistema de Garantia de Direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência. De início, tal lei conceitua as modalidades de violência: violência física, entendida como a ação infligida à criança ou ao adolescente que ofenda sua integridade ou saúde corporal ou que lhe cause sofrimento físico; violência psicológica, conceituada como qualquer conduta de discriminação, depreciação ou desrespeito em relação à criança ou ao adolescente mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, agressão verbal e xingamento, ridicularização, indiferença, exploração ou intimidação sistemática (bullying) que possa comprometer seu desenvolvimento psíquico ou emocional, ou ainda qualquer conduta que exponha a criança ou o adolescente, direta ou indiretamente, a crime violento contra membro de sua família ou de sua rede de apoio, independentemente do ambiente em que seja cometido, particularmente quando isto a torna testemunha; violência sexual, entendida como qualquer conduta que constranja a criança ou o adolescente a praticar ou presenciar conjunção carnal ou qualquer outro ato libidinoso, inclusive exposição do corpo em foto ou vídeo por meio eletrônico ou não, que compreenda abuso, exploração ou tráfico de pessoas; e violência institucional, entendida como a praticada por instituição pública ou conveniada, inclusive quando gerar revitimização, entendida como a situação em que vítimas são obrigadas a reviver a violência por terem de relatar os fatos sofridos repetidas vezes. Como um dos principais legados da lei, ela cria a escuta especializada e o depoimento especial. Em resumo, a escuta especializada é o procedimento de entrevista sobre situação de violência com criança ou adolescente perante órgão da rede de proteção, limitado o relato estritamente ao necessário para o cumprimento de sua finalidade, de modo a evitar revitimização. Ainda, o depoimento especial é o procedimento de oitiva de criança ou adolescente vítima ou testemunha de violência perante autoridade policial ou judiciária. A lei prevê a integração das políticas de atendimento, especialmente entre saúde, assistência social, segurança pública e justiça, a fim de assegurar um olhar integrado e integral às vítimas.

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Por fim, cabe mencionar que, para que a legislação funcione adequadamente, é essencial a atuação do Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente (SGD). Instituído pela Resolução nº 113/2006 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, o sistema corresponde à articulação e integração das instâncias públicas governamentais e da sociedade civil, na aplicação de instrumentos normativos e no funcionamento dos mecanismos de promoção, defesa e controle para a efetivação dos direitos humanos da criança e do adolescente, nos níveis Federal, Estadual, Distrital e Municipal, com foco especial nas áreas da saúde, educação, assistência social, trabalho, segurança pública, planejamento e orçamento. O objetivo de tal sistema é promover, defender e controlar a efetivação dos direitos civis, políticos, econômicos, sociais, culturais, coletivos e difusos, em sua integralidade, em favor de todas as crianças e adolescentes, de modo que sejam reconhecidos e respeitados como sujeitos de direitos e pessoas em condição peculiar de desenvolvimento; colocando-os a salvo de ameaças e violações a quaisquer de seus direitos, além de garantir a apuração e reparação dessas ameaças e violações. Pelo exposto, fica evidente que o Brasil tem importantes e avançadas leis no tema de proteção a crianças e adolescentes, sendo o nosso desafio a efetivação de tais previsões, a fim de que a infância e a adolescência brasileiras possam viver uma vida livre de violências.

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Rede de Proteção: prevenção e reparação

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A complexidade das questões que envolvem a proteção de crianças e adolescentes que sofreram violência, assim como o seu enfrentamento, exige a atuação conjunta e articulada de várias instituições da sociedade (Sistema de Garantia de Direitos), numa concepção ampliada de atendimento e defesa de direitos. Torna imperativo uma mudança de paradigma envolvendo o trabalho em rede para atendimento emergencial e a reparação dos danos sofridos, numa perspectiva de transformação das condições objetivas, culturais e subjetivas que geram, fazem a manutenção ou facilitam a dinâmica da violência.

7.1 CONCEITO DE REDE A rede23 é uma aliança entre os atores do Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente e outros no intuito de possibilitar o acesso e o atendimento dos casos de violência pela via da Política Pública. Essas instituições/atores – governamentais e não governamentais -, somam forças e articulam ações, estratégias e saberes formando um sistema de ação operacional e política. Necessitamos de redes democratizadas que compartilhem o poder de decisão entre os atores, pelo diálogo contínuo, pela transparência nas propostas, coordenação legitimada, ação compartilhada – interdisciplinar e intersetorial - e avaliação coletiva. Não se trata de encaminhar, simplesmente, o problema, fragmentando as ações, mas se conceber como participante da rede e atuar de forma integrada. No caso das situações de violência contra crianças e adolescentes, os atores do Sistema de Garantia de Direitos formam uma rede que atuará de forma organizada em fluxos de atendimento, defesa de direitos e responsabilização. Simultaneamente devem, sempre que possível, atuar em ações de prevenção.

23 NEVES, Marília Nogueira. Rede de Atendimento social: Uma ação possível?. Revista da Católica, Uberlândia, v. 1, n. 1, p. 147-165, 2009. Disponível em: www.catolicaonline.com.br/revistacatolica. Acesso em 25 fev. 2015. VITORIANO, Isadora Serrano. A ação da rede socioassistencial: quais as possibilidades desta efetivar-se? Jornada Internacional de Políticas públicas- JOINPP. São Luís/MA. 2011.

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7.2 O FLUXO DE ATENDIMENTO: DEFESA, ATENDIMENTO E RESPONSABILIZAÇÃO DOS CASOS DE VIOLÊNCIA O fluxo24 é composto por caminhos distintos, com funções e redes institucionais próprias, envolvendo atores da justiça e instituições que executam as políticas sociais, tais como a assistência social, a saúde, a educação etc. Fluxo de Defesa de Direitos: é composto pelos Conselhos Tutelares, Varas da Infância e da Juventude, Ministério Público, Defensoria Pública e Centros de Defesa. Suas funções são: defender e garantir os direitos de todos os implicados na situação de violência notificada/denunciada protegendo-os de violações a seus direitos. Tem poder de, com base na lei, determinar ações de atendimento e de responsabilização. Fluxo de Atendimento: é composto pelas instituições executoras das políticas sociais e de serviços e programas de proteção especial, bem como por ONGs que atuam nestas áreas. Exemplos de instituições deste fluxo: as escolas, o Centro de Referência de Assistência Social – CRAS, o Centro de Referência Especializado de Assistência Social – CREAS, os Centros da Criança e do Adolescente, entre outros. Suas funções são: dar acesso a direitos, a políticas sociais e de proteção, prestar serviços, cuidar e proteger. Deve dar cumprimento às determinações oriundas do Fluxo de Defesa de Direitos e do Fluxo de Responsabilização, bem como prestar-lhes informações. Fluxo de Responsabilização: é composto pelas Delegacias de Polícia, Delegacias Especializadas de Proteção à Criança e ao Adolescente e da Mulher, Instituto Médico Legal, Varas Criminais e Ministério Público. Suas funções são: responsabilizar judicialmente os autores de violações de direitos, proteger a sociedade, fazer valer a lei.

24 FALEIROS, V. de P.; FALEIROS, E. T.S. (2001). Circuito e curtos-circuitos. Atendimento, defesa e responsabilização do abuso sexual contra crianças e adolescentes. São Paulo, Veras Editora

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7.3 CANAIS PARA DENÚNCIA A revelação das situações de violência em suas diversas particularizações, e em especial a sexual, passa por dois momentos distintos e de extrema importância: a revelação e a notificação. A revelação num primeiro momento é sempre em âmbito privado, sendo que uma criança e/ou adolescente conta a situação para alguém de sua confiança. Esta revelação pode advir de uma “desconfiança” por parte de algum adulto que aborda a questão que então é revelada. Se ao tomar conhecimento da violência a pessoa não toma as ações devidas e não comunica às instituições responsáveis, o ciclo da violência se mantém e se perpetua. Daí a importância das denúncias tornando-as uma questão pública, ou seja, possibilitando a ação em rede. A notificação é a revelação pública da situação que se concretiza no registro da denúncia nas instituições que compõem o fluxo de atendimento. Somente com a notificação é que se pode articular um conjunto de ações para proteção e enfrentamento da situação de violência.

7.3.1 OS CANAIS PARA DENÚNCIAS – NOTIFICAÇÃO25 Conselho Tutelar – acione para denunciar situações de violência/violações dos direitos humanos contra crianças e adolescentes. Os Conselhos Tutelares estão distribuídos territorialmente e recebem as denúncias presencialmente ou por telefone, inclusive de forma anônima. Para encontrar um Conselho Tutelar em seu território: Conselhos Tutelares do município de Guarulhos endereços e telefones disponíveis em: https://www.guarulhos.sp.gov.br/conselhos-tutelares0 Acesso em: 27 set. 2021

25 Dados Da Unicef Brasil. Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/cinco-dicas-para-proteger-criancas-e-adolescentes-da-violencia-em-tempos-de-coronavirus Acesso em: 27 set. 2021.

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Delegacias – procure para denunciar suspeitas ou casos confirmados de violência contra crianças e adolescentes. Se possível, dê preferência para delegacias especializadas de atendimento à mulher e a Delegacia de Proteção à infância e adolescência. Delegacia da Mulher do município de Guarulhos: Rua Itaverava, 48, 1º andar, Vila dos Camargos, Guarulhos, SP. Telefone: (PABX) 2408-7720. Atendimento de segunda à sexta-feira das 9h às 18h.

Disque 100

Ligue 180

Ligue para denunciar violações de direitos humanos contra crianças e adolescentes e outros grupos vulneráveis.

Ligue para denunciar suspeita ou casos confirmados de violência contra mulheres e meninas. Atendimento 24 horas, gratuito e anônimo

O atendimento é 24 horas, gratuito e anônimo Site na internet:

Pode Falar - é um canal do Unicef para adolescentes de 13 a 24 anos que oferece atendimento gratuito e anônimo no âmbito da saúde mental. Safernet Brasil – a rede recebe denúncias de cyberbullying26 e crimes realizados em ambiente online. Para denunciar, acesse: https://new.safernet.org.br/

26 De acordo com o Unicef (2021) o Cyberbullying é o bullying realizado por meio de tecnologias digitais. Pode ocorrer nas mídias sociais, plataformas de mensagens, plataformas de jogos e celulares. É o comportamento repetido, com intuito de assustar, enfurecer ou envergonhar aqueles que são vítimas. Disponível em: https:// www.unicef.org/brazil/cyberbullying-o-que-eh-e-como-para-lo#:~:text=Cyberbullying%20%C3%A9%20o%20 bullying%20realizado,envergonhar%20aqueles%20que%20s%C3%A3o%20v%C3%ADtimas. Acesso em: 01 out. 2021

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Os educadores e a escola como integrantes do Sistema de Garantia de Direitos e da rede de proteção 54


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É preciso reconhecer que o espaço escolar e outros centros de socialização infantil, bem como a atuação de educadores, constituem um lugar privilegiado de prevenção, identificação e enfrentamento da violência em suas diferentes manifestações. Este é, sobretudo, um ambiente de reparação afetiva frente às situações que podem ser extremamente prejudiciais ao pleno desenvolvimento de crianças e adolescentes, tais como a negligência, a violência, o abandono, dentre outros. Assim, a escola pode - e deve - ser um local em potencial para oferecer experiências em tempo e intensidade, com ritmos que permitem à criança e ao adolescente vivenciar uma temporalidade e espacialidade que lhes dê segurança e confiança para que os processos de amadurecimento e desenvolvimento se realizem. Como vimos até aqui, esses processos próprios da infância e da adolescência podem ser atravessados por situações de violência e violações de direitos, prejudicando significativamente a capacidade de essas crianças e adolescentes acreditarem na potencialidade dos adultos no oferecimento de cuidado e proteção. São os educadores nos espaços de socialização infantil e juvenil que podem oferecer um ambiente de sustentação emocional, possibilitando a formação de novos vínculos de confiança com os adultos, com o ambiente protetivo e facilitador do desenvolvimento, favorecendo a ressignificação das experiências dolorosas a partir de relações mais saudáveis e humanizadoras. Em decorrência da situação de vulnerabilidade social, crianças e adolescentes tendem a ser expostos a inúmeras situações em que eles têm de responder a desafios para os quais ainda não estão prontos. São exemplos: trabalho infantil, seja ele dentro ou fora do espaço doméstico, bem como a privação de recursos materiais para a sobrevivência. Outros desafios a que crianças e adolescentes podem ser expostos, em decorrência de situações familiares, são: lidar com pais que fazem uso abusivo de substâncias psicoativas ou álcool e isso impacta seu discernimento e capacidade de cuidado, presenciar violência intrafamiliar, dentre outros.

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Ainda assim, é importante lembrar que as dificuldades na capacidade de exercício da parentalidade não são privilégio das famílias das classes empobrecidas. Por razões diversas, muitas vezes as classes média e alta também não são capazes de oferecer para os seus filhos os cuidados objetivos e subjetivos para o seu desenvolvimento. Diante disto, é preciso reconhecer que em situações nas quais a família não consegue, ainda que temporariamente, oferecer as condições mínimas para o desenvolvimento de sua prole, é urgente a atuação da rede de proteção, que através das políticas públicas presta apoio econômico e social às famílias que dela necessitam. Contudo, esgotadas as possibilidades de a criança e/ou adolescente permanecer sob a responsabilidade desta, entram outros espaços e atores também capazes de garantir ambientes seguros, para que a criança e o adolescente possam se desenvolver. Entre eles, lembrando como trazido anteriormente que o cuidado com a infância e adolescência é uma responsabilidade compartilhada entre todos, o espaço privilegiado são as instituições educacionais. Acreditamos que as instituições educacionais devem ser uma referência para a criança e o adolescente sentirem que as violências sofridas não irão interromper a constituição do seu SER que está em crescimento, dado que nesse ambiente serão acolhidos e por esse espaço serão protegidos. Para isso, é fundamental que haja nas unidades educacionais profissionais qualificados, competentes e valorizados, que sejam também profissionais afetuosos, sensíveis, com escuta qualificada e abertos a lidar com os conflitos de maneira democrática, não violenta, ou seja, um profissional humanizado por excelência27.

27 Conforme preconizado no Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos. Disponível em: http://portal. mec.gov.br/docman/2191-plano-nacional-pdf/file Acesso em: 08 out. 2021 e no Plano Estadual de Educação em Direitos Humanos. Disponível em: https://sedh.es.gov.br/plano-estadual-de-educacao-em-direitos-humanos-e-programa-estadual-de-direitos-humanos Acesso em: 08 out. 2021. No município de Guarulhos a Lei nº7.785, de 03 de Dezembro de 2019, que institui a Política Municipal de Educação e cria o Sistema Municipal de Educação

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Neste sentido, é central o papel da unidade educacional na identificação, notificação e enfrentamento das situações de violência que chegam cotidianamente a este espaço, para além da prevenção. Pensemos a escola e os educadores como integrantes do Sistema de Garantia de Direitos de Crianças e Adolescentes, tecendo as ações e articulações com várias instituições que formam essa rede socioassistencial e possibilitam formas de proteção e reparação diante das agruras da violência. A articulação entre as escolas e os Conselhos Tutelares, o Centro de Referência de Assistência Social – CRAS, o Centro de Referência Especializado de Assistência Social CREAS, as Unidades Básicas de Saúde - UBS, entre outros atores do Sistema de Garantia de Direitos se faz necessária e urgente. Para saber o endereço e telefone do CRAS de seu bairro acesse: www.guarulhos.sp.gov.br/centro-de-referencia-da-assistencia-social-cras

Para saber o endereço e telefone do CREAS de seu bairro acesse: www.guarulhos.sp.gov.br/centro-de-referencia-especializado-da-assistencia-social-creas

Para saber o endereço e telefone da UBS de seu bairro acesse: https://www.guarulhos.sp.gov.br/unidades-basicas-de-saude-ubs

Sabemos das dificuldades, em alguns casos, de a escola conseguir trazer pais, mães e responsáveis para dialogar e oferecer as orientações necessárias em casos de suspeita de violência, por isso, ressaltamos a importância da articulação junto

está ancorada nos princípios dos Direitos Humanos e dá prerrogativas para a construção de um plano de educação em Direitos Humanos seguindo as normativas estaduais e federais. Disponível em: https://leismunicipais. com.br/a1/sp/g/guarulhos/lei-ordinaria/2019/779/7785/lei-ordinaria-n-7785-2019-institui-a-politica-municipal-de-educacao-cria-o-sistema-municipal-de-educacao-de-guarulhos-e-da-outras-providencias Acesso em: 08 out. 2021

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à rede de proteção. Os CRAS, os CREAS e as UBSs (Unidades de Saúde da Família) possuem equipes que conseguem acessar as moradias de crianças e adolescentes e realizar as intervenções necessárias. Falamos anteriormente sobre os canais de denúncia e/ou notificação, instrumentos essenciais para a interrupção do ciclo de violência e ressaltamos que toda ação no espaço escolar e/ou outros espaços de socialização de crianças e adolescentes deve ser pactuado em equipe. As duras e dolorosas exigências a quem identifica e notifica a violência devem ser diluídas na equipe de trabalho, com o apoio da equipe gestora e demais profissionais, e com atenção para os fluxos internos de notificação conforme preconizado pela Secretaria Municipal de Educação e outros órgãos normatizadores. Um educador pode fazer muito por uma criança, mas um conjunto de educadores em ação conjunta com as equipes multidisciplinares pode fazer muito mais. Lembremos que é necessária toda uma aldeia para cuidar de uma criança. A ação deve ser coletiva e pactuada. Assim, a sugestão é que cada escola estabeleça um plano de ação para o enfrentamento à violência contra crianças e adolescentes, que contemple: a capacitação de educadores e de toda a equipe escolar a respeito do tema, contemplando especialmente os mecanismos de escuta e observação de indícios de violências nas distintas faixas etárias; o desenvolvimento de ações de prevenção, especialmente focadas em ações de autoproteção e compreensão do conceito de consentimento por crianças e adolescentes, bem como no compartilhamento de informação a estudantes sobre a quem recorrer em caso de risco ou violência; a inserção de conteúdo temático no projeto pedagógico da escola, em alinhamento à Lei Brasileira de Diretrizes e Bases da Educação, que fixa o dever de “promover medidas de conscientização, de prevenção e de combate a todos os tipos de violência”, bem como de acordo com a Base Nacional Comum Curricular e o Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos;

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a delimitação de um ponto focal da equipe gestora da escola, que deve ter ciência da situação de crianças e adolescentes em risco de violência e que deve ser responsável pela comunicação a autoridades responsáveis; o desenvolvimento de um espaço de diálogo com as famílias para fortalecimento da parentalidade e compreensão a respeito dos prejuízos decorrentes do uso de violência na educação; o constante diálogo com órgãos locais de proteção a crianças e adolescentes para desenvolvimento de ações conjuntas. Desta forma, as escolas podem - e devem - oferecer uma rede de sustentação às famílias para desenvolverem melhor suas capacidades de cuidado e atenção, bem como atuar como um órgão ativo na proteção de crianças e adolescentes.

o que é o cras? O Centro de Referência de Assistência Social - CRAS é a porta de entrada da Assistência Social. É um local público, localizado prioritariamente em áreas de maior vulnerabilidade social, onde são oferecidos serviços com objetivo de fortalecer a convivência com a família e a comunidade. SERVIÇOS OFERECIDOS Serviço de Proteção Integral à Família (PAIF) e o Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos (SCFV), orientação sobre os benefícios assistenciais e inscrição no Cadastro Único para Programas Sociais do Governo.

o que é o creas? O Centro de Referência Especializado de Assistência Social – CREAS é uma unidade pública da política de Assistência Social onde são atendidas famílias e pessoas que estão em situação de risco social ou tiveram os direitos violados. SERVIÇOS OFERECIDOS Serviço de Proteção e Atendimento Especializado a Famílias e Indivíduos (PAEF), abordagem social, serviços para pessoas com deficiência, idosas e suas famílias, serviço de Medidas Socioeducativas em Meio Aberto. Além de orientação e encaminhamento para outros serviços no município, presta informações jurídicas, apoio à família, apoio no acesso à documentação pessoal e estimula a mobilização comunitária.

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Aprendizado na prática e discussão de caso

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Sabemos que, mesmo com as informações em mãos, lidar com um caso real traz desafios para qualquer profissional. Por isso, para auxiliar nesse desafio e contribuir para a consolidação do aprendizado, trazemos, ao fim deste guia, o caso a seguir, baseado em uma história real. 9.1 Um relato de violência na infância. Fernando, 05 anos, mora com o pai e as visitas à mãe acontecem em finais de semana alternados, metade do período das férias e datas comemorativas. A organização familiar materna é composta pela mãe, padrasto e Lorena, sua irmã de 02 anos. A professora de Fernando notara alteração de seu comportamento. Ele vinha se demonstrando agitado, com brincadeiras agressivas com os colegas, dificuldade de concentração nas atividades e constantemente suas atitudes interferiam no ritmo da aula. O pai havia sido chamado para uma conversa e verbalizara as dificuldades da mãe em relação ao cumprimento das visitas, muitos conflitos entre ela e seu atual companheiro e rigidez na imposição de limites e disciplina em relação a Fernando. O pai sinalizou a dificuldade de dialogar com ela sobre questões que envolviam a rotina e a tomada de decisões sobre a vida do filho. Durante uma atividade escolar, Fernando entrou em conflito com um colega e reagiu com agressividade ferindo de forma moderada o amigo. Nesta mesma semana, ele havia feito um desenho que chamara a atenção da professora devido ao conteúdo violento. As medidas em relação ao colega e as intervenções junto às famílias envolvidas foram tomadas. E foram dadas a Fernando oportunidades de expressar suas inquietações através de escuta atenta da professora. Importante destacar que a criança não tinha marcas físicas de violência ou outras características que pudessem denotar violência física ou sexual. A escuta

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de Fernando foi direcionada no sentido de entender sua rotina e suas relações familiares e, como disparador e ponto de partida para a conversa, foi utilizado o desenho que dias antes chamara a atenção da professora, que então pediu para que ele o explicasse para ela. Fernando tinha desenhado um homem grande com uma tesoura nas mãos; ao seu lado tinha um menino que estava com as mãos nos olhos, entre eles, pontos vermelhos que eram a simbolização do sangue que saíra dos olhos do menino. Diante das indagações da professora sobre o desenho, Fernando contara que o padrasto era o homem e ele o menino. Sua fala era tomada por sentimento de culpa em virtude dos seus comportamentos. Aludia que a mãe e o padrasto constantemente diziam o quanto ele era “um menino mau”. No último feriado prolongado em que esteve com a mãe, ele havia contrariado as regras e comido todos os bombons, não deixando nenhum para a irmã. O padrasto ficou furioso e começou a dizer o quanto ele era egoísta, só pensava em si mesmo, e o quanto estragava a vida deles. A mãe interferiu no sentido de proteger Fernando e o padrasto se enraiveceu ainda mais, jogando panelas e outros utensílios no chão. Os vizinhos, diante da discussão e da alteração dos ânimos, chamaram a polícia. Quando a polícia chegou, o padrasto se escondeu e a mãe disse aos policiais que estava corrigindo o filho, pois ele havia desobedecido às suas ordens, convencendo os policiais de que tudo estava bem. O padrasto olhava por entre as cortinas da janela de um dos quartos os policiais em frente ao prédio e dizia para Fernando que, se eles voltassem, a culpa seria dele e que ele iria segurá-lo pelos pés e jogá-lo pela janela, mas antes pegando uma tesoura em cima da cômoda, com a qual disse que iria furar os olhos de Fernando. Fernando não poderia contar para seu pai, pois o padrasto disse que o mataria se ele fizesse algo. Relatou que a mãe e o padrasto brigavam muito e que ele batia nela.

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A professora anotou o relato com as palavras usadas por Fernando. Ofereceu acolhida e se limitou a ouvir e anotar as informações oferecidas pela criança, sem aprofundar ou direcionar sua fala, nem tampouco forçar a obtenção de detalhes sobre a violência sofrida. A professora compartilha seus achados com a equipe gestora da unidade escolar. O pai de Fernando é chamado e comunicado sobre a situação. O conselho tutelar é notificado pela escola. É realizada pela escola articulação com o CRAS do território para que a mãe de Fernando seja atendida, tendo em vista que ela e a filha podem estar em situação de violência. O pai de Fernando aciona a Vara da Família e Sucessões no sentido de regulamentar as visitações da mãe, sem a presença do padrasto. A articulação entre os atores do SGD entende que é necessário acionar a Unidade Básica de Saúde do território para que Fernando possa receber atendimento psicológico e a mãe de Fernando ser atendida pela equipe de Saúde da Família. Nos atendimentos realizados pela equipe de psicólogo e assistente social da Vara da Família e dos profissionais do CRAS, compreendeu-se que a mãe de Fernando naturaliza as violências cometidas pelo seu companheiro, e culpabiliza o comportamento do filho pelo descontrole do padrasto. Deste modo, entendeu-se que, naquele momento, a mãe de Fernando estava com sua capacidade protetiva prejudicada, por estar inserida numa relação afetiva violenta e abusiva, ou seja, a violência estava sendo gestada e fortalecida nos vínculos interacionais entre a mãe e o padrasto. Deste modo, foi sugerido ao juiz da Vara da Família que, visando preservar o direito à convivência familiar e comunitária de Fernando com a mãe e a irmã, com as quais ele tinha forte vínculo, as visitações fossem assistidas.

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9.2 Pontos chave na análise do caso Nota-se na narrativa de Fernando elementos típicos de violência intrafamiliar, envolvendo aspectos da violência psicológica: a) agressões verbais com o objetivo de aterrorizar, rejeitar, humilhar e isolar a criança; b) transgressão do poder do adulto/responsável negligenciando as peculiaridades do processo de desenvolvimento da criança; c) testemunha das violências cometidas contra a mãe, tanto psicológica quanto física; d) a criança não consegue reconhecer a situação de violência e se sente culpada por ter provocado a briga ou a ação do adulto; e) o segredo sobre as situações de violência mantido por Fernando devido às ameaças do padrasto e pela mãe de Fernando, devido aos vínculos interacionais nas quais ela está enredada. Importante destacar que Fernando, aos 05 anos, tem poucos recursos para verbalização e construção de uma narrativa linear e concatenada dos fatos; contudo, ele estava expressando as situações vivenciadas por meio da significativa alteração de comportamento, nos desenhos, no relacionamento com os amigos, em sua diminuição da capacidade de manter a atenção, da agressividade que, juntamente, com os relatos do pai consubstanciavam elementos para uma denúncia e ação da rede de proteção. As reflexões trazidas por este estudo de caso se colocam no sentido de pontuar que as violências cometidas contra a criança e o adolescente nem sempre deixam marcas, e algumas são de difícil identificação. Nesse sentido, destaca-se a necessidade de atenção às diferentes formas de manifestação de crianças e adolescentes, atentando especialmente para o fato de que, mesmo que não verbalizado, isso pode ser comunicado. Adicionalmente, pontua-se a importância do cuidado nesse momento de escuta, que deve ser acolhedor e respeitar o ritmo da criança; idealmente, deve se restringir às informações necessárias para que a comunicação seja feita aos órgãos responsáveis, dado que estes terão melhor estrutura e capacidade técnica para fazer uma escuta adequada e que possa ser registrada para ações futuras, evitando que a vítima tenha que

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repetir uma dolorosa história de violência para diferentes interlocutores e, com isso, revivê-la, o que a colocaria em um cenário de revitimização. Ainda, destaca-se a perspectiva de que a atuação no âmbito da rede de proteção deve levar em conta todos os membros familiares, para que se possa desenvolver estratégias de cuidado e proteção, atendimento integral e avaliação de risco frente a novos episódios de violência. As intervenções se dão com centralidade à proteção e não da criminalização dos envolvidos. É comum na sociedade a ideia que uma situação de violência só é reparada com a condenação do acusado, o que leva à falsa crença de que assim a criança esteja protegida. O que a protege é o olhar atento da rede de proteção, independentemente da esfera criminal.

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Considerações Finais

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O caso final descrito anteriormente se baseia em fatos e tem como objetivo aproximar os leitores deste guia da alta complexidade que envolve as situações de violência, especialmente aquelas que são enredadas nas relações afetivas, familiares e conjugais que afetam não somente a criança e o adolescente, mas todos os envolvidos na trama da violência. Conforme os dados apresentados, o ambiente familiar é o local onde mais se comete a violência contra crianças e adolescentes e os perpetradores são seus familiares próximos: pai, padrasto, mãe etc. Estes dois fatores, a casa e a proximidade com o abusador, tornam ainda mais vulneráveis crianças e adolescentes, pois a violência é vivenciada em seu cotidiano e na relação com aqueles que têm o dever de protegê-los, assim como fortalecem a “cultura do silêncio”, dificultando que o ciclo da violência seja rompido. Nesse cenário, educadores e educadoras são fonte potencial de identificação e notificação, para que a rede de proteção possa intervir e oferecer condições de reparação diante das violências sofridas. É preciso ter em mente que a escola e outros espaços de socialização de crianças e adolescentes são integrantes dessa rede de proteção e, por isso, articuladamente a outros atores do Sistema de Garantia de Direitos, devem se corresponsabilizar na proteção integral de crianças e adolescentes e com prioridade absoluta. Daí a importância da escuta da criança, da compreensão dos fatos narrados por ela a partir de sua capacidade de verbalização de acordo com seu grau de desen-

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volvimento, seu estado emocional, seus comportamentos e de seus familiares. A resposta dada aos diferentes casos deve ser personalizada e pensada a partir da realidade específica de cada indivíduo e família; por isso este guia não preconiza a metodologia apresentada como um modelo pronto, mas como possibilidade de reflexão na busca por soluções conjuntas na Rede de Proteção. O cuidado e a proteção devem ser a tônica, não devemos nos ater ao aspecto da criminalização das situações. A responsabilização é necessária, mas deve estar somada a perspectivas das políticas sociais para proteção integral das famílias, no âmbito da Garantia de Direitos. As equipes de educadores nas unidades educacionais devem refletir, a partir da realidade de cada escola, território e população atendida, em formas internas de planejamento e intervenções nos casos de denúncia de violência, sempre de forma compartilhada entre a equipe. A partir disso, deve-se desenhar posterior articulação com os demais atores do Sistema de Garantia de Direitos, definindo papéis, competências e atribuições. Desse entrosamento pode ser construído um caminho efetivo para a formulação de respostas possíveis aos casos de violência contra crianças e adolescentes e para sua proteção integral. Este é o nosso maior desafio e, também, missão. É somente por meio da atuação compartilhada e articulada que será possível proteger e promover direitos desde o começo da vida.

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Implantado em 2010 e, atualmente, desenvolvido em 40 unidades do regional São Paulo, o Espaço de Brincar é um programa de educação não formal do Sesc que se constitui como um conjunto de ações para, com e sobre a primeira infância, partindo dos conceitos de educação permanente e lazer. O atendimento é voltado para bebês e crianças de 0 a 6 anos de idade, seus adultos de referência, gestantes, assim como para educadores(as) e demais profissionais interessados(as) e envolvidos(as) com o tema das infâncias e do brincar. As ações do programa são pautadas por valores relacionados à cultura do brincar, convivência, empatia, diversidade, pertencimento e prazer, sendo parte de seu propósito discutir o universo de bebês e crianças, de cuidadoras e cuidadores, das implicações do ato de cuidar, das políticas públicas para a infância, dos direitos da criança e da relação com a natureza. O Espaço de Brincar conta com espaços físicos com ambientação cenográfica nas unidades do Sesc, sejam eles ambientes lúdicos fixos ou estruturas itinerantes, e compõe a ação permanente do programa a preparação desses espaços. Diversas possibilidades de montagens educativas e recreativas são mobilizadas e os elementos lúdicos e acervos brincantes são selecionados com a intencionalidade de promover experiências e suscitar fruições individuais ou coletivas pelo brincar. No entanto, o Espaço de Brincar não se resume ao espaço físico. Uma série de ações

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programáticas são desenvolvidas e promovidas para o público, desde oficinas, ações vivenciais e mediação de brincadeiras até apresentações artísticas, rodas de conversa e formações. As atividades envolvem diferentes linguagens, como música, literatura, artes visuais, teatro, dança e movimento. Como elemento fundamental da cultura da infância, o Espaço de Brincar acredita que a brincadeira que surge da própria criança, num movimento espontâneo, onde ela tem tempo e espaço para ser livre, carrega em si uma grande oportunidade para valorizarmos o que é natural da infância. É a partir do brincar espontâneo que a criança encontra meios para se expressar e se desenvolver. Este brincar traz consigo o corpo todo, traz a imaginação e pode carregar também o que mais estiver por perto. A criança não precisa necessariamente de um brinquedo pronto, porque nas mãos dela, tudo pode ser brincadeira, desde uma simples folha de papel até as panelas do armário da cozinha. E é na brincadeira com o outro, seja ele o adulto que a acompanha nas atividades e no ambiente lúdico ou seja no encontro com seus pares, que a criança percebe a diversidade. O brincar não é único, são vários os brincares como são várias as infâncias. E isso não precisa ser ensinado, isso acontece no olhar, no próprio ato de brincar.

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SESC SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO ADMINISTRAÇÃO REGIONAL NO ESTADO DE SÃO PAULO

Presidente do Conselho Regional Abram Szajman Diretor do Departamento Regional Danilo Santos de Miranda SUPERINTENDENTES

Técnico-Social Joel Naimayer Padula Comunicação Social Ivan Paulo Giannini GERENTES

Gerência de Estudos e Programas Sociais Cristina Riscalla Madi Sesc Guarulhos Oswaldo Almeida Jr. Centro de Produção Audiovisual Silvana Morales Nunes EQUIPE SESC

Ana Carolina dos Santos Ferreira Adenilson Muniz de Freitas André Coelho Mendes Queiroz Andrea Matos da Fonseca Angelo Gaglioni Junior Aylton Lelis Joaquim Barbara Martins Sampaio da Conceição  Carla Gonçalves Cardoso  Carlos Alberto Silva  Cherrye Mendes Cristiane Ferrari Cristina Helena de Carvalho Almeida  Dimas Alexandre Stecca  Diego Swerts Micieli  Fernanda Paccanaro Geraldo Giuliano de Macedo  Igor Vinícius Silva Pirola Joana Rocha Eça de Queiroz Johnny Abila Julia Stabel Mara Rita Oriolo Mariana Vieira de Arruda  Mariane Cristina Souza de Oliveira  Ruth dos Santos Rosana Abrunhosa de Souza Sandra Carla Sarde Mirabelli Valeria Ribeiro Pereira

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Mediação das rodas de escuta Fernanda Almeida Elaboração de Texto Thais Nascimento Dantas Viviane de Paula Ilustrações Daniela Franbez Participantes das rodas de escuta Abna Alves Dantas  Alessandra Aparecida Da Penha Santos Soares   Alice Scapini   Carolina Gilli Hadg Karkachi Rocco   Cristiane Cervigni   Cristina Amélia Da Silva   Dalila Eugênia Maranhão Dias Figueiredo   Daniele Neves De Oliveira Lisboa    Debora Da Silva Marques Pereira   Deise Elaine Da Silva Almeida   Edna Alves Da Silva   Elizabeth Reinaldo Molinari Tasaka   Fátima Dos Santos Freire    Fernanda Soares Dos Santos   Fhabiane De Souza Marques   Giselle Cristina Andrade Salazar   Gleice Galeno De Lima    Jaqueline Oliveira Peixoto   Joyce Pitta Costa Luz   Lucília Ribeiro De Souza   Márcia Soares Campos De Almeida   Maria Iraldina Pires   Miriam Renata Da Silva Moreira    Priscila Da Silva   Rosária Do Nascimento Ribeiro   Sandra Soria   Sueli Mariana De Medeiros   Talita Leonardi Braga    Tatiana Leão De Araújo Almeida   Tatsu Shinozaki De Souza   Thalita Ferreira Borges   Valéria Coutinho Villa Nova


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Rua Guilherme Lino dos Santos, 1200 Guarulhos - SP 11 2475 5550 /sescguarulhos

sescsp.org.br/guarulhos

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