revista Observatório #20

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POLÍTICAS CULTURAIS PARA A DIVERSIDADE

Tanto na produção cultural das sociedades dominantes quanto nos programas estatais de “modernização” que buscam superar passados “atrasados”, a implementação prática e retórica da comemoração da anulação dos povos indígenas existe em todos os níveis sociais e em todos os campos políticos. Como consequência, as lutas pelos direitos e ­bem-estar indígenas não só transpassam os parâmetros legais das sociedades dominantes e os estados discriminatórios que as representam como também respondem à incursão dos interesses empresariais que buscam dominar, conter e comercializar o mundo natural a qualquer custo – ainda quando esse custo seja uma vida humana ou uma forma única e insubstituível de entender o mundo e existir nele. Frente a tal ameaça existencial, compartilhada agora por aproximadamente 350 milhões de pessoas em âmbito mundial,5 Quispe reitera uma mensagem disseminada por várias gerações de indígenas ativistas e autodefensores de seus próprios povos – começando na época colonial e passando pelo nascimento dos estados republicanos, antes de chegar à traição das promessas republicanas no passado e no momento atual: “No somos un pasado inexistente, sino más bien [...] pueblos e comunidades indígenas que aún estamos, que aún existimos, que resistimos”.6 A primeira linha de defesa é sempre, talvez por necessidade, um manifesto resoluto de vivência. Mas a isso não se limita e não se pode limitar nunca. Como, então, começar a interpretar o momento atual desde uma perspectiva comparada, transnacional e transcontinental sem simplificar ou até encobrir a infinita heterogeneidade dos mais de 370 milhões

Tracy Devine Guzmán

de indígenas que hoje formam parte de 90 estados-nações, além das suas próprias nações e tribos?7 Após o reconhecimento formal e legal de direitos, interesses e prioridades indígenas em âmbito nacional e internacional durante as últimas três décadas, como entender o fato de que os povos Quéchua, Adivasi, Aborígenes e Nativos (por exemplo) estão muito longe de alcançar níveis de bem-estar social e representação política a par das populações dominantes ou maioritárias dos países onde residem como cidadãos e portadores de direitos? Por que tendem a fracassar os esforços realizados através das políticas públicas para gerar as condições de possibilidade a fim de construir mais equidade social e poder incorporar perspectivas e prioridades indígenas nos programas de “modernização” e “desenvolvimento nacional”? Considerando a ampla circulação de uma variedade de respostas a essas perguntas – fomentadas e formuladas maiormente desde o âmbito privado empresarial e os setores públicos de educação, serviço civil e governabilidade8 (e em todos os casos, exceto o da Austrália, com pouca ênfase nas populações indígenas) –, podemos afirmar que a boa vontade e o simples passar do tempo não são mecanismos suficientes para desfazer cinco séculos de heranças coloniais, nem para acabar com as propensões políticas maioritárias e colonialistas dos nossos dias. Ao mesmo tempo, se a estratégia de “encher vagas” tipicamente associada aos sistemas de cotas e outras políticas de “ação afirmativa” talvez seja coerente com o já estagnado mandato “multiculturalista” da “diversidade”, pensar a representação em termos numéricos é só

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