revista Observatório #20

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OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

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máquina com várias utilidades – extrapola a política tradicional de software. Sua história é muito mais Borges do que Lawrence Lessig. Assim como o seu destino. Pode ser destruído? É possível deletar essa simulação, e é desejável fazê-lo? Existe uma lata de lixo grande o bastante para o Big Delete? Mesmo se fosse possível impedir toda a futura aquisição de dados, com certeza deve haver um backup em algum lugar, o duplo idêntico da simulação, de tal forma que, se deletarmos um, o outro afligirá para sempre a história até ser redescoberto por futuros arqueólogos da IA (Inteligência Artificial) interessados em suas próprias origens paleolíticas. Se fosse possível, nós o enterraríamos? Precisaríamos de sinalização ao seu redor, como a produzida para o depósito de resíduos radiativos da Montanha Yucca, para evitar futuras escavações desavisadas? Aqueles que tiverem a “sorte” de estar vivos durante esses 15 anos desfrutariam de uma certa imortalidade ilegível, curiosidades para qualquer entidade metacognitiva que montar o quebra-cabeças do nosso passado usando nossas atividades on-line, tanto públicas quanto privadas, orgulhosas e furtivas, cada um de nós erguendo-se de novo daqui a séculos, cada de nós um pequeno Ozymandias de vídeos de gato e Pornhub. À luz disso, a Pilha Negra poderia vir a significar coisas muito diferentes. Por um lado, implicaria que essa simulação seja opaca e não mapeável – não desaparecida, mas totalmente obscurecida. Poderia implicar que, a partir dos fragmentos arruinados dessa história, seja possível elaborar outra totalidade coerente em sentido oposto, mesmo a partir da profunda recombinância na

camada Terra da Pilha e abaixo dela. Sua cor preta é a superfície de um mundo que não pode mais ser composto por adição porque está tão absolutamente cheio, superescrito e sobredeterminado que acrescentar algo significa apenas mais tinta no oceano. Ao contrário da tabula rasa, esta tabula plena só permite criatividade e figuração por subtração, como a raspagem de tinta de uma tela – só uma retirada, por morte, por substituição. A lógica estrutural de qualquer sistema em Pilha permite a substituição de seja o que for que ocupa uma camada por outra coisa, enquanto o resto da arquitetura continua funcionando sem pausa. Por exemplo, o conteúdo de qualquer camada – terra, nuvem, cidade, endereço, i­ nterface, usuário – poderia ser substituído (inclusive a ficção histérica masoquista do usuário individual, tanto neoliberal quanto neo-outras-coisas), enquanto as demais camadas continuam sendo um arcabouço viável para a infraestrutura global. A Pilha é projetada para ser refeita. Essa é sua forma técnica, mas substituir um tipo de usuário por outro é mais difícil do que substituir fio de cobre por fibra óptica na camada de transmissão TCP/IP. Hoje estamos fazendo isso acrescentando mais coisas, e de diferentes tipos, à posição de usuário, como apontamos anteriormente. No entanto, também deveríamos permitir deslocamentos mais abrangentes, não apenas elevando coisas ao status de agentes ortécnicos sujeitos políticos, mas abrindo caminho para posições genuinamente ­pós-humanas e inumanas. Com o tempo, talvez no eclipse do antropoceno, a fase histórica do Google ­Gosplan ceda lugar a plataformas sem estado


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