Boletim do IRIB em Revista 358 - setembro de 2018

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boletim do

Set 2018

em revista

ISSN 1677-437X

Publicação do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil | nº 358

IRIB DEBATE NOVAS TECNOLOGIAS Blockchain e o Futuro Computação cognitiva Identidade digital do Registro de e o Registro e o Registro Imóveis Eletrônico de Imóveis de Imóveis 31 de março de 2017

2 de agosto de 2017

14 de maio de 2018 1


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ISSN 1677-437X

Publicação do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil | nº 358

DIRETORIA EXECUTIVA Presidente: Sérgio Jacomino (SP) Vice-presidente: Francisco Ventura de Toledo (SP) Tesoureiro-geral: George Takeda (SP) 2º Tesoureiro: Michel Abílio Nagib Neme (PR) Secretário-geral: João Baptista Galhardo (SP) 2ª Secretária: Ana Teresa Araújo Mello Fiúza (CE) Diretora Social: Naila de Rezende Khuri (SP). DIRETORIA NOMINATIVA Diretor de Tecnologia da Informação: Flauzilino Araújo dos Santos (SP); Diretor de Assuntos Agrários: Izaías Gomes Ferro Júnior (SP); Diretor de Relações Internacionais: Ivan Jacopetti do Lago (SP); Diretor Editorial: Leonardo Brandelli (SP); Diretor de Assuntos Institucionais: Daniel Lago Rodrigues (SP); Diretora da Escola Nacional de Registradores – ENR: Daniela Rosário Rodrigues (SP). CONSELHO DELIBERATIVO Fabiana Faro de Souza Campos Teixeira (AC); Jackson Ivan Paula Torres (AL); Nino Jesus Aranha Nunes (AP); José Carlos de Oliveira (SOU); Milton Barbosa da Silva (BA); Ana Carolina Pereira Cabral (CE); Manoel Aristides Sobrinho (DF); Kênia Mara Felipetto Malta Valadares (ES); Gustavo Faria Pereira (IR); Fábio Salomão Lemos (MA); Haroldo Canavarros Serra (MT); Marco Aurélio Ribeiro Rafael (SENHORA); Marcos de Carvalho Balbino (MG); Daniel Marcante (PA); Walter Ulysses de Carvalho (PB); Francisco José Barbosa Nobre (PR); Alda Lucia Soares Paes de Souza (PE); Abmerval Gomes Dias (PI); Eduardo Pacheco Ribeiro de Souza (RJ); Aldemir Vasconcelos de Souza Jr. (RN); Kênnya Távora (RR); Cláudio Nunes Grecco (RS); Francisco Jacinto Oliveira Sobrinho (RO); Christian Beurlen (SC); Sérgio Abi-Sáber Rodrigues Pedrosa (SE); Izaías Gomes Ferro Jr. (SP); Marlene Fernandes Costa (PARA). SUPLENTES DO CONSELHO DELIBERATIVO Rafael Ciccone Pinto (AC); Cicero Antonio Segatto Mazzutti (CE); André Arruda Lobato Rodrigues Carmo (ES); Igor França Guedes (IR); Felipe Madruga (MA); Juan Pablo Correa Gossweiler (SENHORA); Maria Carolina Magalhães (MT); Cleomar Carneiro de Moura (PA); Roberto Lucio Pereira (PE); Caroline Feliz Sarraf Ferri (PR); Milton Alexandre Sigrist (RO); Marcos Costa Salomão (RS); Renato Martins Silva (SC); Carlos Roberto Sales de Menezes (SE); Marcelo Augusto Santana de Melo (SP); Ionize Rodrigues da Silva (PARA).

MEMBROS NATOS DO CONSELHO DELIBERATIVO (EX-PRESIDENTES DO IRIB) Jether Sottano (SP); Ítalo Conti Júnior (PR); Dimas Souto Pedrosa (PE); Lincoln Bueno Alves (SP); Sérgio Jacomino (SP); Helvécio Duia Castello (ES); Francisco José Rezende dos Santos (MG); Ricardo Basto da Costa Coelho (PR); João Pedro Lamana Paiva (RS). CONSELHO FISCAL (CINCO MEMBROS E TRÊS SUPLENTES) Ângelo Barbosa Lovis (IR); Mateus Colpo (MT); Mareliza Alonso Cupolilo (SC); Neusa Maria Arize Passos (BA); Algmar José de Mesquita (RO); Adriano Damásio (RS); Daniela Rosário Rodrigues (SP); Ivan Jacopetti do Lago (SP). CONSELHO DE ÉTICA (TRÊS MEMBROS E TRÊS SUPLENTES) Ademar Fioranelli (SP); Lincoln Bueno Alves (SP); Aurélio Joaquim da Silva (MG); Miriam de Holanda Vasconcelos (PE); Davidson Dias de Araújo (BA); Sônia Marilda Peres Alves (RJ); Cláudio Nunes Grecco (RS); Francisco Jacinto Oliveira Sobrinho (RO); Christian Beurlen (SC). COMISSÃO DO PENSAMENTO REGISTRAL IMOBILIÁRIO – CPRI Alexandre Pinho (SP); Ana Carolina Cabral (CE); Bianca Castellar de Faria (SC); Bruno Berti Filho (SP); Daniela Rosário Rodrigues SP); Emanuel Santos (SP); Fábio Ribeiro dos Santos (SP); Flauzilino Araújo dos Santos (SP); Francisco Ventura de Toledo (SP); Gustavo Faria Pereira (IR); Henrique Ferraz Corrêa de Mello (SP); Igor França Guedes (IR); Jérverson Luís Bottega (RS); Luciano Dias Bicalho Camargos (MG); Marcos Balbino (MG); Naila de Rezende Khuri (SP); Priscila Corrêa (SP); Roberto Lúcio (PE). Sede: Av. Paulista, 2073 – Horsa I – Conjuntos 1201 e 1202 – CEP 01311-300 – São Paulo – SP. Telefones: (11) 3289 3599; 3289 3321 – ww.irib.org.br – irib@irib.org.br Presidente Sérgio Jacomino Editora e jornalista responsável Fatima Rodrigo (MTb 12576) Projeto gráfico, diagramação e edição de arte Patricia Delgado Impressão e acabamento Gráfica Hawaii

Direitos de reprodução: o conteúdo desta publicação pode ser reproduzido mediante expressa autorização dos editores e indicação da fonte.

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EDITORIAL

Sérgio Jacomino

POTENCIALIDADES E DESAFIOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS APLICADAS AO RI

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FÓRUM ECONÔMICO MUNDIAL ELEGE BLOCKCHAIN COMO MEGATENDÊNCIA ENQUANTO CRÍTICOS APONTAM INCONSISTÊNCIAS NO SISTEMA

BLOCKCHAIN E O FUTURO DO REGISTRO DE IMÓVEIS ELETRÔNICO | 31 DE MARÇO DE 2017

20 Don Tapscott TECNOLOGIAS DE BLOCKCHAIN 24 Edilson Osório Junior PERSPECTIVAS PARA A ESCRITURAÇÃO DIGITAL NO REGISTRO DE IMÓVEIS 38 Antonio Carlos Alves Braga Júnior A REVOLUÇÃO BLOCKCHAIN

50 Daniel Lago Rodrigues BLOCKCHAIN: DESAFIOS E SOLUÇÕES Matheus Ribeiro de Miranda 58 Caleb

NOÇÕES E PERSPECTIVAS PARA O REGISTRO IMOBILIÁRIO

COMPUTAÇÃO COGNITIVA E O REGISTRO DE IMÓVEIS | 2 DE AGOSTO DE 2017 | ON-LINE COMPUTAÇÃO COGNITIVA E O RI: “Se ignorarmos os novos 60 tempos, receio que eles também nos ignorem” Caleb Matheus Ribeiro de Miranda

68 Flavio Soares Corrêa da Silva

O QUE É COMPUTAÇÃO COGNITIVA?

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índice COMPUTAÇÃO COGNITIVA E LAWTECHS

Guilherme Novaes Procopio de Araujo

COMPUTAÇÃO COGNITIVA APLICADA AO REGISTRO DE IMÓVEIS

Caleb Matheus Ribeiro de Miranda

COMPUTAÇÃO COGNITIVA E O FUTURO DA JUSTIÇA

Antonio Carlos Alves Braga Júnior

COMPUTAÇÃO COGNITIVA: MITO E REALIDADE

Valdemar W. Setzer

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IDENTIDADE DIGITAL E O REGISTRO DE IMÓVEIS | 2 DE AGOSTO DE 2017

104 DESBUROCRATIZAÇÃO DO BRASIL: BIOMETRIA E CERTIFICADO DIGITAL 110 Manuel Matos IDENTIDADE LEGAL NO BRASIL

Claudio Machado

BLOCKCHAIN E IDENTIDADES DIGITAIS DESCENTRALIZADAS: INICIATIVAS NO BRASIL E NO MUNDO Marco Konopacki

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124 ASPECTOS JURÍDICOS DA IDENTIDADE E SUAS IMPLICAÇÕES PARA A IDENTIDADE DIGITAL 138 Juliano Souza de Albuquerque Maranhão IDENTIDADE DIGITAL E O REGISTRO DE IMÓVEIS

Caleb Matheus Ribeiro de Miranda

A IDENTIDADE DIGITAL E A REGULAÇÃO EUROPEIA PARA A PROTEÇÃO DE DADOS PESSOAIS

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ENTREVISTA REGISTRO DE IMÓVEIS ELETRÔNICO: SREI, ONR E BLOCKCHAIN

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Madalena Teixeira

Entrevista com Adriana Jacoto Unger

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BLOCKCHAIN – PANDORA OU CORNUCÓPIA DA MODERNIDADE?

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isrupção parece ser a palavra-chave de uma nova ordem globalista. Nada há que não possa ou deva ser derruído por trombetas poderosas sopradas pelos arautos da boa nova. Eis que está prometida a fiéis e incréus uma nova Jerusalém eletrônica. Anima-os a esperança derradeira que haverá de resgatar, brasileiros e brasileiras, do pântano miasmático de leis, normas, regulamentos, formalidades, no qual todos chafurdam em pranto e com ranger de dentes. A blockchain é a nova panaceia para todas as mazelas institucionais do país. O lema de seus defensores

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– alguns ingênuos, outros adrede interessados – parece ser este: “vamos enforcar o último burocrata com as tripas do último cartorário”.

Vamos enforcar o último burocrata com as tripas do último cartorário “Senhores, vamos acabar com os cartórios. Vamos acabar com os cartórios. Vamos acabar!”. Quem o diz, com volúpia incontida, é Coriolano Almeida Camargo, importante ator que se inebria com aplausos. Não há plateia que não se dobre ao encantamento desse tipo de convocação. Vamos acabar com

os cartórios, e com eles a transparência nas transações, a regulação social, a fiscalização pelo Poder Judiciário, deixando a autenticação e a contratação privada entregues aos escaninhos da internet – quando não aninhadas nas brumas da Mariana´s Web. Na mesma toada poderíamos bradar: “vamos acabar com advogados, aderindo aos smart contracts”, vamos aposentar os médicos, assinando os protocolos do Watson. Vamos destruir as catedrais porque são o espírito de outro tempo e já não servem para mais nada além de ambiência romântica. Livres do formalismo e do concerto social, tudo é válido, tudo é permitido, tudo é livre.


editorial A tecnologia da blockchain parece ser o assunto da moda, aquilo de que falam todos e todas. O que será que andam sussurrando em versos e trovas? Será um hype? A solução para todos os nossos problemas atuais e futuros? Será a cornucópia da pós-modernidade ou o jarro de Pandora do globalismo? Todos aludem a suas cândidas virtudes quando se trata de substituir os terceiros garantes nas complexas relações interpessoais, especialmente aquelas relacionadas aos intercâmbios de bens imóveis. Trata-se de um novo otimismo, de uma nova esperança. Estamos diante de um Titã redivivo, sem nome, representante de um novo tempo que se consuma instantaneamente, aqui e agora. Sua obra será composta de atos despersonalizados, desterritorializados, atemporais, eternos e imutáveis como nossas arcaicas quimeras.

“Dr. Pangloss recomenda enfaticamente o uso da blockchain para registro de imóveis e tratamento de furúnculos”. Confesso que fiquei verdadeiramente perplexo com as declarações de um jurista respeitável, diretor jurídico de uma instituição igualmente honorável, pontificando perante uma plateia não menos

Afinal, as ideias lançadas de modo ligeiro podem levar a conclusões redondamente equivocadas. Construiu-se, na parolagem inflamada e pseudo-ilustrada, uma narrativa que encanta desavisados. Uma triste irresponsabilidade, desserviço à sociedade e às instituições.

importante. O seu pronunciamento se deu no transcurso do Simpósio Nacional de Combate a Corrupção, promovido pela Associação Nacional dos Delegados de Polícia Federal – ADPF, com intuito de discutir o fenômeno da corrupção epidêmica que assola o país. O evento se realizou no dia 9/11/2017, no auditório das Faculdades Integradas Rio Branco. Causou-me perplexidade e angústia. Afinal, as ideias lançadas de modo ligeiro podem levar a conclusões redondamente equivocadas. Construiu-se, na parolagem inflamada e pseudo-ilustrada, uma narrativa que encanta desavisados. Uma triste irresponsabilidade, desserviço à sociedade e às instituições. Enfim, adiro, inteiramente, à

blague do Dr. Ermitânio Prado: “Dr. Pangloss recomenda enfaticamente o uso da blockchain para registro de imóveis e tratamento de furúnculos”. Dei-me ao trabalho de reduzir a fala do jurista no texto que o leitor pode apreciar a seguir. O acesso ao pronunciamento pode ser feito no seguinte endereço: https://youtu. be/sowb2IDRx6w?t=1h28m4s. Os intertítulos não são do palestrante.

4 bilhões de reais nos últimos 3 anos “Blockchain é uma grande oportunidade de novos negócios e de novas oportunidades de autenticação de documentos na internet.” “Eu vi uma reportagem que os cartórios, com as atas notariais, faturaram 4 bilhões de reais nos últimos 3 anos. Eles removem os documentos da internet e fazem a ata notarial. Vamos supor que com a tecnologia blockchain – supor não, isto é uma realidade! – eu possa certificar esses documentos e dar fé e certeza a esses documentos. Nós não temos hoje as empresas (Certsign, etc.) empresas de certificação que fazem esse trabalho de forma privada (de certificação digital)? Porque a ADPF não pode montar, com tecnologia block-

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Post truth. A história será o que deseja seu narrador

chain, um cartório virtual privado? [Na Escola Nacional de Delegados, na OAB-SP] nós não tiramos xerox para os advogados? Por que não podemos ir na sala de advocacia, e, com a tecnologia blockchain, certificar os documentos que serão utilizados (...) em juízo?” “Senhores, vamos acabar com os cartórios. Vamos acabar com os cartórios. Vamos acabar!” [aplausos]. “Eu vou amanhecer boiando.” [risos].

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“A Igreja fazia a certificação de documentos. O Estado percebeu que isso era rentável e o rei pegou para si, depois a burguesia pegou para si... Mas isto tem que ser devolvido. A FIESP tem hoje convênios com a Junta Comercial para agilização de documentos. Porque a FIESP [...] não pode fazer a certificação de documentos extraídos pela internet e isso virar receita para a indústria, receita para a advocacia, receita para os delegados? Esses 4 bilhões vão ficar só nas mãos dos cartórios? Por que, se nós temos tecnologia para dar fé e certeza aos documentos?!”

Somos todos delegados – de armas e de fé. “A Escola Nacional de Delegados a ADPF – Associação de Delegados de Polícia Federal, em Manaus, monta um grupo de trabalho misto, [composto] por advogados e delegados, dando fé a documentos. Isso vai gerar centenas, milhares de empregos no Brasil, transformando

os cartórios, hoje tradicionais, migrando tudo isso para a iniciativa privada, porque já existe tecnologia para isso.” [...] “A Holanda está estudando a massificação do uso dessa tecnologia para certificação.” “Eu estive na [nome de empresa] acompanhando um cliente e tinha lá o pessoal do blockchain. Eles disseram: ‘Doutor, daqui a algum tempo nós vamos fazer a escritura com o blockchain aqui dentro da empresa e nós mesmos arquivamos e não vamos fazer mais nada com cartórios’”. [...]

Chega de conversa e vamos ao que interessa... “Não vamos ter mais cartórios. Estamos estudando acabar com os Cartórios de Registro de Imóveis, pois temos tecnologia para dar fé, certeza e publicidade a esses documentos sem o uso cartorário.” “Senhores, é a tecnologia! A “uberização” dos negócios, a economia compartilhada... Projeto para a ADPF para amanhã: ficar com um 1 bilhão dessa fatia. Como a Polícia Federal tem credibilidade basta montar um grupo de trabalho com tecnologia blockchain, com a FIESP, para dar fé e certeza a determinados documentos.”


Editorial

(A exposição segue. Para assistir a íntegra, acesse aqui: https://youtu.be/sowb2IDRx6w?t=1h28m4s).

No entanto, ainda que se admita a utilização da blockchain como ferramenta acessória, não se pode tomar a parte pelo todo.

A blockchain substituirá o Registro de Imóveis?

Àqueles que sugerem que o Registro de Imóveis possa ser capturado como presa fácil pelas forças do mercado, a nos impingir um rígido espartilho tecnológico, eu diria que o enfoque é equivocado. A menos que se parta do pressuposto de que o Registro de Imóveis brasileiro não passe de um mero depósito de documentos, e seus registradores menos que singelos amanuenses.

O tema das novas tecnologias aplicadas aos registros públicos brasileiros vem agitando corações e mentes, como vimos na transcrição de trecho da fala do personagem citado. O Registro de Imóveis será substituído e suplantado pela blockchain? Haverá a supressão de órgãos intermediários (notários e registradores)? Venho me manifestando que a blockchain é mera ferramenta tecnológica que poderá ser útil (ou não) às atividades notariais e registrais. Em face de todo e qualquer instrumento tecnológico – carimbos, canetas, máquinas de escrever, computadores, energia elétrica etc., – o importante é coordenar os processos de modernização com os fundamentos tradicionais da atividade. Porém, a preservação dos fundamentos tradicionais da atividade não pode significar um anacronismo histriônico a impedir o franco debate que toda a matéria de interesse direto ou indireto dos registradores deva merecer.

Sabemos que não é assim. O sistema registral brasileiro se assenta firmemente sobre a atividade nuclear de um jurista. Não nos filiamos a sistemas de mero arquivamento acrítico de títulos, documentos e papéis. A blockchain é uma ferramenta plástica, moldável, e pode servir de apoio acessório aos processos de autenticação de registro sem que se prescinda de órgãos intermediários. A intervenção de um terceiro-garante investido do poder de dação de fé pública, nas condições em que os registradores imobiliários e notários figuram na longa tradição do direito brasileiro, é simplesmente fundamental para o bom funcionamento das instituições.

Mas até onde chegaremos com o apoio de máquinas nos processos de registração? A máquina substituirá o homem em suas tarefas básicas e essenciais? Qual o futuro da faina cartorária? Os processos formulários (que existem há séculos na praxe tabelioa) vão se impor em novos e instigantes sistemas inteligentes? Não abdiquei de minha formação e não renunciei aos princípios de direito que animam a minha atividade desde o seu nascedouro. A técnica é fundamental para o desenvolvimento da humanidade. Entretanto, não se fará o caminho da modernização destruindo a tradição. O processo de disrupção tecnológica mal esconde seu ânimo purificador. É um processo que se baseia num discurso utópico e esconde seus propósitos de dominação. Essas e outras importantes questões foram discutidas pelos registradores nos workshops promovidos pelo IRIB que fazem parte desta edição, para a reflexão de todos a respeito do futuro das nossas atividades em tempos de meios eletrônicos e seus recursos computacionais – inteligência artificial, computação cognitiva, machine learning, blockchain, etc. Sérgio Jacomino Presidente do IRIB

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Fórum Econômico Mundial elege Blockchain como megatendência enquanto críticos apontam inconsistências no sistema 10


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onsiderada uma das tecnologias mais disruptivas depois do aparecimento da Internet, a blockchain é tema de discussões em inúmeros eventos realizados em todo o mundo reunindo empresas de tecnologia, bancos, advogados e startups em torno da possibilidade de se criar novos modelos de negócios. A Federação Brasileira de Bancos (Febraban) criou uma comissão e um grupo de trabalho específico para tratar de blockchain em razão de sua importância como ferramenta disruptiva. A tecnologia é muito associada à criptomoeda bitcoin, mas a Blockchain 2.0 é extensiva a outras atividades e já apresenta soluções para diferentes mercados. A tendência é que a tecnologia se estenda e alcance outras funcionalidades, como o registro de ativos. Especialistas avaliam que a blockchain vai revolucionar o armazenamento uma das tecnologias trasbig funcionalidades, o registropara de dados onsiderada digitais. Associada à utilização de data, pode sercomo a alternativa maisdesconectados, disruptivas depoisaumentando do apa- de aativos. reunir dados eficiência e assegurando a transrecimento da Internet, a blockEspecialistas avaliam que a bloparência de cada etapa do processo produtivo. Áreas que exigem certificação chain é tema de discussões em ckchain vai revolucionar o armazesão inúmeros indicadaseventos como realizados aquelas aem serem todo beneficiadas pela blockchain. Ou seja, namentoexpedido de dados em digitais. Associada qualquer tiporeunindo de valorempresas mobiliário certificado papel poderá ser o mundo deou tecà utilização de big data, pode ser a convertido em uma informação na blockchain: certificados de autenticidade, nologia, bancos, advogados e startups alternativa para reunir dados descocarteiras de identidade, diplomas, apólices de seguro, etc. em torno da possibilidade de se criar nectados, aumentando a eficiência e novos modelos Mas nem tudode sãonegócios. boas notícias. assegurando a transparência de cada

O Fórum Econômico Mundial prevê que, até 2025, 10% do PIB mundial estarão em blockchain. De outro lado surgem críticas sobre a efetiva segurança do sistema entre outras questões.

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A Federação Brasileira de Bancos (Febraban) criou uma comissão e um grupo de trabalho específico para tratar de blockchain em razão de sua importância como ferramenta disruptiva. A tecnologia é muito associada à criptomoeda bitcoin, mas a Blockchain 2.0 é extensiva a outras atividades e já apresenta soluções para diferentes mercados. A tendência é que a tecnologia se estenda e alcance ou-

etapa do processo produtivo. Áreas que exigem certificação são indicadas como aquelas a serem beneficiadas pela blockchain. Ou seja, qualquer tipo de valor mobiliário ou certificado expedido em papel poderá ser convertido em uma informação na blockchain: certificados de autenticidade, carteiras de identidade, diplomas, apólices de seguro, etc. Mas nem tudo são boas notícias.

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Questões técnicas ainda dependem de solução na blockchain Nesta edição, um artigo traduzido por Caleb Matheus Ribeiro de Miranda, pesquisador de Novas Tecnologias do IRIB, traz questões fundamentais levantadas pela engenheira de Blockchain norte-americana, Preethi Kasireddy, pesquisadora e desenvolvedora na área. Embora acreditando que essa tecnologia veio para ficar, a autora aponta a necessidade de pesados investimentos e anos de trabalho para a solução de problemas técnicos que impedem sua disseminação. Ela dá seu testemunho de profissional que viu muitos contratos inteligentes envolvendo milhões de dólares serem executados sem qualquer teste, falta que considera inaceitável em qualquer circunstância, principalmente quando são movimentadas elevadas quantias de dinheiro. E observa que um contrato que move tanto dinheiro obviamente está sujeito a ataques.

mas e lidos milhões de vezes em todo o mundo, como este: http://bit.ly/2Ia6Jq0. Ele concorda que adulterar dados armazenados em uma blockchain é difícil, mas afirma que é falso que blockchain seja uma boa maneira de criar dados com integridade. Ou seja, não existe uma “varinha mágica de integridade futurista” que simplesmente transforma dados inseridos na blockchain em dados válidos. E alerta que, em vez do uso de instituições baseadas na confiança, no universo blockchain os indivíduos, não por acaso, são responsáveis por suas próprias precauções de segurança. E se o software usado for mal-intencionado ou com bugs, paciência! O usuário deveria ter lido o software com mais cuidado.

Sistemas blockchain não tornam precisos os dados inseridos neles nem tornam confiáveis as pessoas que acessam os dados, eles apenas permitem que se verifique se foram adulterados.

Blockchain não resolve inteiramente a questão da confiança Há críticas mais ácidas que avaliam que a Blockchain ainda não alcançou adoção plena porque os sistemas construídos sobre confiança, normas e instituições funcionam melhor do que os sistemas sem necessidade de confiança. O ceticismo de Kai Stinchcombe, por exemplo, pode ser conferido em artigos publicados em seis idio-

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Kai Stinchcombe é enfático ao dizer que os sistemas Blockchain são supostamente mais confiáveis quando, na verdade, são os sistemas menos confiáveis do mundo, justificando a afirmação com alguns exemplos reais ocorridos. E esclarece que os sistemas blockchain não tornam magicamente precisos os dados inseridos neles nem tornam confiáveis as pessoas que acessam os dados, eles apenas permitem que se verifique se foram adulterados. Para ele, examinando qualquer solução blockchain é inevitável encontrar uma resposta inábil para recriar as partes confiáveis em um universo sem confiança. É de sua autoria uma crítica mordaz que atravessou fronteiras: “não existe uma única pessoa que tenha um problema por resolver e que descobrisse que uma solução de blockchain fosse a melhor maneira de fazê-lo e que, portanto, teria se tornado um entusiasta dessa tecnologia”.


Potencialidades e desafios das novas tecnologias aplicadas ao RI

Agora novos modelos de negócios são possíveis graças à blockchain, definida como uma nova tecnologia que substitui a necessidade de instituições terceirizadas no fornecimento de confiança. Relatório indica trajetória mundial rumo a uma sociedade conectada e digital Já o Fórum Econômico Mundial, por meio de seu Conselho da Agenda Global para o Futuro do Software e da Sociedade, publicou um relatório cujo objetivo é divisar a trajetória do mundo em direção a uma realidade definitivamente conectada e digital. O estudo contém a avaliação do Fórum e o resultado de pesquisa realizada com mais de 800 executivos e especialistas em informação e comunicação. Esse relatório, de 2015, indica os pontos de inflexão tecnológica capazes de provocar grandes mudanças e impactos sociais. O estudo foi fundamentado em megatendências de software e serviços que estão moldando o contexto mundial. Megatendências não são incertas como as previsões, elas são baseadas em expectativas originadas em mudanças estruturais já ocorridas na sociedade, na natureza e nas economias. O Fórum Econômico Mundial (weforum.org) é uma organização internacional independente desde sua fundação (1971), uma ONG voltada à melhoria do mundo a partir do comprometimento de líderes de todas as áreas em agendas globais. A organização sedia

um encontro anual em Davos, na Suíça, reunindo a elite política e econômica do mundo todo. Em janeiro de 2018, o Fórum realizou sua 48ª reunião anual.

Blockchain é uma das seis megatendências mundiais em software e serviços A tecnologia blockchain é uma das seis megatendências identificadas nesse relatório. As outras cinco são: pessoas e internet (como as pessoas se conectam; a transformação tecnológica produzindo novas formas de interação); informática, comunicação e armazenamento (crescimento exponencial em acesso e uso da internet); internet das coisas (sensores inteligentes nas casas e roupas, nos acessórios, nas cidades, nas redes de transporte e energia, e em processos de fabricação); inteligência artificial (IA) e big data (a influência que a IA e a robótica começam a ter na tomada de decisões e no emprego); digitalização da matéria (impressão 3D). A megatendência relacionada à blockchain diz respeito à economia compartilhada e à confiança distribuída. A internet está levando à criação de redes e de modelos socioeconômicos baseados em plataformas digitais. Agora novos modelos de negócios são possíveis graças à blockchain, definida, para a finalidade da pesquisa, como uma nova tecnologia que substitui a necessidade de instituições terceirizadas no fornecimento de confiança em atividades financeiras, contratuais e de votação. Interessante notar que o Fórum Econômico Mundial projetou que os governos começarão a usar a blockchain antes do público, em 2023. Já a expectativa dos entrevistados (73%) é de que isso ocorra em 2025. A pesquisa indicou que, em 2027, bitcoin e blockchain atingirão o seu ponto de virada, ou seja, o momento em que serão amplamente adotados.

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Ainda que as questões relacionadas ao registro não se reduzam à verificação de autenticidade e existência – razão por que a blockchain não pode ser um substituto para o sistema registral –, a tecnologia pode ser útil como ferramenta complementar de segurança. Software: potencial para mudar drasticamente nossas vidas O objetivo da pesquisa do Conselho de Agenda Global sobre o Futuro do Software e da Sociedade é ajudar as pessoas em todo o mundo a entender melhor e se preparar para as mudanças tecnológicas resultantes da adoção de software. Essas mudanças têm a ver com invenções vistas apenas em ficção científica – como inteligência artificial, dispositivos conectados e impressão 3D – e vão permitir que as pessoas se conectem e inventem como nunca. O crescimento contínuo no acesso à internet vai acelerar as mudanças, que, no entanto, trazem desafios à privacidade, segurança e interrupção do trabalho. Inovações de software aparentemente simples transformarão nossas rotinas diárias. Ou seja, o mundo está prestes a experimentar uma taxa exponencial de mudanças

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através do aumento de software e serviços. O Conselho visa ajudar a sociedade em geral a fazer a transição para o futuro mundo digital e hiperconectado, explicando os impactos sociais gerados pelas principais tendências tecnológicas e os novos modelos de negócios.

Pesquisa: Pontos de Inflexão Tecnológica Em março de 2015, o Conselho de Agenda Global sobre o Futuro do Software e da Sociedade lançou a pesquisa Pontos de Inflexão Tecnológica para investigar 21 pontos de inflexão – momentos em que mudanças tecnológicas específicas atingem a sociedade dominante. Foram coletadas as expectativas de mais de 800 executivos e especialistas do setor de tecnologia de informação e comunicação. A linha de tempo resultante dos pontos de inflexão varia de 2018 a 2027. Onze dos 21 pontos de inflexão apresentaram alta expectativa (mais de 80%) de ocorrer até 2025. Exemplos de mudanças esperadas: robô e serviços (2021); internet das coisas, internet usável, impressão e fabricação 3D (2022); tecnologias implantáveis, big data para decisões, visão como nova interface, nossa presença digital, governos e blockchain, supercomputador de bolso (2023); casa conectada (2024); trabalhos de IA e colarinho branco, economia compartilhada (2025); carros sem motoristas, cidades inteligentes (2026); bitcoin e blockchain (2027). Pontos de inflexão esperados para ocorrer em 2025: 10% das pessoas usando roupas conectadas à internet; 90% das pessoas com armazenamento ilimitado e gratuito; 1 trilhão de sensores conectados à internet; o primeiro


Potencialidades e desafios das novas tecnologias aplicadas ao RI

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farmacêutico robótico nos EUA; 10% dos óculos de leitura conectados à internet; 80% das pessoas com presença digital na internet; o primeiro carro de impressão 3D na produção; o primeiro governo a substituir o seu recenseamento por fontes de big data; o primeiro celular implantável disponível comercialmente; 5% dos produtos de consumo impressos em 3D; 90% da população usando smartphones; 90% da população com acesso regular à internet; automóveis sem motoristas equivalentes a 10% de todos os carros nas estradas dos EUA; o primeiro transplante de um fígado impresso em 3D; 30% das auditorias corporativas realizadas por inteligência artificial (IA); imposto recolhido pela primeira vez por um governo através de blockchain; a primeira cidade com mais de 50 mil pessoas e sem semáforos; a primeira máquina de IA em um conselho corporativo de administração; 10% do PIB global armazenado em blockchain.

Ponto de inflexão: 10% do PIB global armazenado em blockchain (2025 – 2027) A maioria dos entrevistados (58%) espera que bitcoin e blockchain se tornem dominantes e responsáveis por 10% do PIB mundial em 2025. A previsão do Fórum Econômico Mundial é que isso aconteça em 2027. Para se ter ideia do aumento esperado, na data do relatório o valor total do bitcoin na blockchain estava por volta de 20 bilhões de dólares, ou cerca de 0,025% do PIB global (80 trilhões de dólares). Entre os impactos positivos dessa transição foram enumerados: aumento explosivo de bens negociáveis, uma vez que quaisquer tipos de troca de valores podem ser levados para a blockchain; melhores registros de propriedade em mercados emergentes; desintermediação de instituições financeiras com novos servi-

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ços e trocas de valores criados na blockchain; aumento da transparência já que a blockchain é basicamente um livro contábil global de armazenamento de transações. O relatório destacou o fato de a blockchain permitir que duas partes possam criar contratos complexos sem um intermediário, como no caso dos contratos inteligentes (smart contracts), por exemplo.

Ponto de inflexão: primeira tributação de um governo através de blockchain O Fórum Econômico Mundial previu para 2023 a cobrança de tributação por blockchain pela primeira vez. A expectativa dos entrevistados (73%) é a ocorrência desse ponto em 2025. O relatório observa que a blockchain cria oportunidades e desafios até para os países. Por um lado, é desregulada e não supervisionada por qualquer banco central, o que significa menos controle sobre a política monetária. Por outro lado, cria a possibilidade de novos mecanismos de tributação serem incorporados à própria blockchain, como um pequeno imposto sobre transações, por exemplo.

Ponto de inflexão: primeira máquina de IA em um conselho corporativo de administração A data prevista pelo Fórum Econômico Mundial para que a primeira máquina de inteligência artificial faça parte de um conselho administrativo é 2026, mas 45% dos entrevistados esperam que esse ponto de inflexão ocorra em 2025. Além de dirigir carros, a IA pode aprender de situações anteriores para fornecer informações e auto-


Potencialidades e desafios das novas tecnologias aplicadas ao RI

matizar complexos processos de decisão para o futuro, tornando mais fácil e rápido chegar a conclusões concretas com base em dados e experiências passadas. Um sistema de IA que usa processamento de linguagem natural e raciocínio pode ajudar na coleta e extração de informações de grandes fontes de dados. Pelo processo de aprendizagem, esses sistemas de processamento de conhecimento identificam relacionamentos e conexões entre bancos de dados, ajudam na segmentação do mercado e na medição do desempenho ao mesmo tempo em que reduzem os custos e melhoram a precisão. O relatório da Agenda Global para o Futuro do Software e da Sociedade pode ser conferido em http://bit. ly/bir358-2 (acesso em 22/03/2018).

IRIB traz ao debate as potencialidades e os desafios das novas tecnologias As organizações em geral ainda têm muito a compreender sobre os benefícios da blockchain em áreas importantes como segurança e simplificação de processos, entre outras. Neste momento, em todo o mundo, profissionais do governo, de instituições públicas e universidades, de administração, governança e gestão de risco, além de startups e fintechs, se informam sobre as características da blockchain de ser menos burocrática, além de permitir a redução de custos graças a um modelo descentralizado e autônomo. A transparência e a imutabilidade da informação são atrativos poderosos. Conhecer faz parte de um processo contínuo e imprescindível de inovação. Ao promover os workshops Blockchain e o Futuro do Registro de Imóveis Eletrônico, e Computação Cognitiva e o Registro de Imóveis, o

Um sistema de IA que usa processamento de linguagem natural e raciocínio pode ajudar na coleta e extração de informações de grandes fontes de dados.

objetivo do IRIB foi iniciar com o registrador brasileiro uma discussão que está sendo levada a diferentes áreas empresariais, financeiras e governamentais no mundo inteiro. É essencial investigar as potencialidades e os desafios dessas novas tecnologias quando aplicadas às funções registrais, em especial no momento de implantação do registro eletrônico de imóveis no Brasil. Como a tecnologia blockchain pode ajudar o registro imobiliário? Ainda que as questões relacionadas ao registro não se reduzam à verificação de autenticidade e existência – razão por que a blockchain não pode ser um substituto para o sistema registral –, a tecnologia pode ser útil como ferramenta complementar de segurança. Entusiastas da substituição do Registro de Imóveis pela aplicação da tecnologia blockchain limitam-se a apontar as características de autenticidade, segurança dos direitos e imodificabilidade como justificativas à proposta. Esquecem ou simplesmente desconhecem o fundamental, a depuração jurídica com base no princípio da legalidade. Impossível ter segurança dos direitos sem um profissional do direito para qualificar juridicamente os títulos apresentados. Sem depuração jurídica a festejada imodificabilidade não seria uma solução, mas se transformaria em sério problema. Um sistema de registro de direitos não pode prescindir de um profissional do direito responsável pela depuração jurídica das entradas em um sistema de registro eletrônico.

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Potencialidades e desafios das novas tecnologias aplicadas ao RI

Características como fé pública e legitimidade jurídica não isentam o sistema registral imobiliário de oferecer a máxima eficiência em tempos de tecnologia digital.

No entanto, características como fé pública e legitimidade jurídica não isentam o sistema registral imobiliário de oferecer a máxima eficiência possível em tempos de avanços revolucionários em tecnologias digitais, levando a mudanças de comportamento que impactam toda a sociedade. A atualização e adequação às novas tecnologias são essenciais para o bom desempenho da função registral. Hoje não há como imaginar que o Registro de Imóveis possa sobreviver incólume com suas informações impressas em papel à inevitável comparação com a eficiência de outros serviços, por mais díspares que sejam, como chamar um taxi, pedir comida ou alugar um imóvel pelo celular. Como apontou o referido relatório do Fórum Econômico Mundial, inocentes inovações de software estão transformando as formas de viver em todo o mundo. O que puder ser automatizado será.

(Essas ideias e muitas outras sobre blockchain estão na página aberta pelo IRIB para discussão pelos registradores brasileiros: www.circuloregistral.com.br/ blockchain).

Blockchain e o Registro de Imóveis Em entrevista ao Boletim do IRIB em revista, nesta edição, a engenheira mecatrônica Adriana Unger explica que a tecnologia blockchain corresponde a um banco de dados descentralizado em que as informações registradas são ligadas entre si por meio de blocos de informações anteriores e sucessores. Os dados registrados na blockchain não são mera sequência de textos encadeados, mas são dados estruturados que garantem a segurança e autenticidade das informações registradas.

O garantidor das operações é a comunidade digital formada por uma rede com milhares de computadores distribuídos em todo o mundo que registram e replicam todas as transações. No que diz respeito ao universo registral imobiliário, no entanto, todas as informações constantes da matrícula eletrônica serão autenticadas e garantidas por uma rede de três mil serviços de Registro de Imóveis existentes no Brasil. “O registro tal como é feito hoje possui arquitetura semelhante à da blockchain uma vez que não há uma autoridade central do registro garantidora das informações relativas ao imóvel”, diz Adriana Unger. “O serviço é único, mas o poder é distribuído. Cada registrador tem total autonomia dentro de sua respectiva serventia.” E as informações registradas na blockchain não serão aquelas constantes da matrícula. “Cada transação efetuada na matrícula eletrônica, como uma compra e venda, por exemplo, gera um código hash, uma chave criptográfica, que é compartilhada na blockchain privada. Isso quer dizer que um cartório do Nordeste terá acesso a essa chave criptográfica, assim como o cartório de São Paulo terá acesso ao hash gerado por ele. É esse encadeamento dos dados que garante maior segurança ao sistema e impede a fraude por hackers.” Além disso, as informações não são disseminadas, o registrador continua no controle absoluto das informações. E somente os registradores poderão compartilhar as informações salvas no sistema. A blockchain privada é semelhante a uma intranet, a diferença é que as informações na blockchain serão replicadas entre os três mil cartórios brasileiros.

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A REVOLUÇÃO

BLOCKCHAIN O Instituto de Registro Imobiliário do Brasil (IRIB) e a Academia Brasileira de Direito Registral Imobiliário (ABDRI) realizaram, no dia 31 de março de 2017, o workshop “Blockchain e o futuro do Registro de Imóveis Eletrônico” com o objetivo de discutir o potencial, os desafios e as oportunidades da tecnologia blockchain. Esta seção traz as principais ideias apresentadas naquelas palestras.

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A revolução Blockchain

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ntes das palestras do workshop e para apresentar o tema é importante conhecer algumas ideias de Don Tapscott – escritor e pesquisador canadense especializado em cultura digital, coautor de A Revolução Blockchain: como a tecnologia por trás do Bitcoin está mudando o dinheiro, os negócios, e o mundo – expostas numa conferência TED (http://bit.ly/bir-358-1). Para Don Tapscott a tecnologia blockchain que está por trás da criptomoeda bitcoin representa a segunda geração da internet e vai transformar as empresas, a sociedade e a vida de cada pessoa individualmente. A internet da informação, como conhecemos, disseminou o conhecimento. Mas quando se trata do tráfego de bens – dinheiro, ativos financeiros como ações e títulos, pontos de fidelidade, propriedade imobiliária e intelectual, música, arte, um voto, créditos de carbono e outros ativos – não é possível enviar uma simples cópia pela internet. Por isso há grandes intermediários como bancos, governos, cartórios, empresas de cartão de crédito e outras instituições financeiras para estabelecer a confiança na economia. O problema é que enquanto um e-mail dá volta ao mundo, uma transferência de dinheiro pelo sistema bancário na mesma cidade pode levar dias. Com a tecnologia blockchain, que Tapscott define como a internet do valor, todo tipo de ativo poderia ser armazenado, movimentado, trocado e manipulado sem intermediários. Ele descreve essa tecnologia

como um tipo de ledger (livro-razão; livro-registro) global, distribuído, executável em milhões de computadores e acessível. A tecnologia blockchain, subjacente à moeda digital bitcoin, permite que a confiança seja estabelecida não por uma grande instituição, mas pela criptografia e por um código inteligente. Os ativos digitais não são armazenados num local centralizado, mas distribuídos em um registro global (global ledger) usando o nível mais elevado de criptografia. Quando uma transação é realizada, ela é registrada globalmente em milhões de computadores. Para isso, existem os mineradores de bitcoin, pessoas espalhadas no mundo todo com um poder computacional dez a cem vezes maior que o Google. [Dados mais recentes indicam que o poder computacional da rede do bitcoin é 300 vezes maior que o do Google. (NE)] A cada dez minutos um bloco é criado com todas as transações. É quando os mineradores entram em ação, competindo entre si, uma vez que o primeiro minerador a verificar a veracidade e validar o bloco é recompensado com moeda digital (no caso da blockchain de bitcoin, com bitcoins). Finalmente, esse bloco se vincula ao bloco anterior e assim por diante, para criar uma cadeia de blocos (blockchain), e todos recebem uma marca de tempo que Tapscott compara a um selo de cera digital. Portanto, para piratear o bloco e pagar várias pessoas com o mesmo dinheiro, por exemplo, seria preciso piratear esse bloco e todos os blocos anteriores, toda a história comercial dessa blockchain não apenas em um computador, mas em

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milhões de computadores, simultaneamente, com os níveis mais elevados de encriptação, enganando os recursos de cálculo mais potentes do mundo. Tapscott conclui que esse sistema é infinitamente mais seguro que os sistemas informáticos hoje disponíveis.

Ethereum e os contratos inteligentes A blockchain de bitcoin é apenas uma, mas há muitas. O canadense Vitalik Buterin desenvolveu a blockchain Ethereum com a especial capacidade de criar contratos inteligentes. É um contrato autoexecutável, que se encarrega da gestão, do desempenho e pagamento de acordos entre as pessoas. Hoje, a blockchain Ethereum tem projetos em andamento para

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fazer de tudo, segundo Tapscott, desde criar um substituto para o mercado de ações até criar um novo modelo de democracia em que os políticos sejam responsáveis perante os cidadãos. Essa tecnologia tem potencial para provocar mudanças radicais em muitos setores e um deles é o de serviços financeiros, por exemplo. Tapscott explica que com um sistema financeiro de blockchain não haveria liquidação, uma vez que o pagamento e a liquidação são a mesma atividade.

Títulos de propriedade inseridos em uma blockchain são imutáveis Quanto às aplicações, Tapscott propõe metas tão ambiciosas como a prosperidade compartilhada e des-

creve cinco formas de democratizar a produção de riqueza, entre elas a titulação da propriedade e a proteção dos direitos relativos a imóveis mediante registros imutáveis. Citando Hernando de Soto, para quem a titulação da propriedade é essencial à mobilidade econômica, observa que 70% das pessoas que possuem uma propriedade no mundo têm um título precário e muitas vezes são expulsas de suas terras por meio de grilagem até de governos corruptos. E sem um título válido de sua propriedade, a pessoa não pode usar essa garantia para obter crédito e planejar o futuro. Por isso, hoje as empresas estão trabalhando junto aos governos para inserir os títulos de propriedade regularizados em uma blockchain. Uma vez ali, o título é imutável, o que cria as condições para a prosperidade potencial de milhões de pessoas.


A revolução Blockchain

Evidentemente não se pensa em levar para a cadeia de blocos os próprios atos de registro ou os títulos que lhe deram suporte, mas tão somente um código (hash) que pode certificar a higidez e indelebilidade do ato praticado em cada cartório.

Blockchain e o sistema brasileiro de Registro de Imóveis Sérgio Jacomino, presidente do IRIB, observa que a utilização da cadeia de blocos para armazenamento dos títulos transformaria o nosso Registro de Imóveis, que é um registro de direitos, em mero arquivo digital de documentos, o que contraria a modelagem institucional do Registro brasileiro, podendo enfraquecê-lo. Segundo ele, “a cadeia de blocos pode, eventualmente, ser constituída para efeitos de controle interno e mesmo correcional da trama registral, com um registro indelével de todos os lançamentos feitos em todas as

matrículas. Evidentemente não se pensa em levar para a cadeia de blocos os próprios atos de registro ou os títulos que lhe deram suporte, mas tão somente um código (hash) que pode certificar a higidez e indelebilidade do ato praticado em cada cartório”. A blockchain pode ser uma ferramenta auxiliar de segurança para o registro imobiliário. No entanto, não é possível ter segurança dos direitos sem um processo de depuração dos títulos apresentados a registro. O que evita a inscrição de títulos em desconformidade jurídica é o trabalho intelectual realizado pelo registrador na qualificação dos documentos. Jacomino observa que a experiência internacional indica exemplos em que a blockchain está sendo utilizada para mero arquivamento de documentos, sem alterar

substancialmente os sistemas registrais. Em alguns casos – como sinistros, cataclismos, guerras, destruição do acervo – a cadeia pode ajudar na sua reconstituição. Perguntado se a blockchain poderia representar uma privatização dos registros, com a sua captura por empresas privadas, responde que a essência de cadeia de blocos é seu caráter público. “A blockchain, na sua estrutura essencial, é ‘hiper-pública’, no sentido de que não é de propriedade de ninguém e se acha pulverizada em milhões de computadores ao redor do mundo. Será tão privada quanto a própria internet. Para derrocá-la seria necessário que todos os computadores do mundo saíssem da rede e a internet deixasse de existir. Isso é virtualmente impossível”, conclui.

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TECNOLOGIAS DE

BLOCKCHAIN por Edilson Osório Junior Palestra proferida por Edilson Osório Junior, cientista computacional, professor e especialista em segurança da informação e infraestrutura, cofundador da Blockchain Academy. Fundador da OriginalMy.com, primeira empresa brasileira a utilizar a tecnologia blockchain. Para apresentar o panorama geral da tecnologia blockchain o palestrante abordou as diferenças entre os modelos de blockchain disponíveis no mercado, as empresas que utilizam essa ferramenta e a forma como ela vem sendo aplicada em áreas como mobilidade urbana e identificação. 24


A revolução Blockchain

Blockchain: aplicações descentralizadas

Do dinheiro ao bitcoin: características

A principal blockchain surgiu em razão de uma demanda de mercado. A partir da crise financeira ocorrida nos Estados Unidos, em 2008, as pessoas passaram a pensar numa forma de dinheiro eletrônico capaz de dispensar a intermediação do sistema financeiro.

Sabemos que o dinheiro gera direito a se receber algo em troca. Pedras, ouro, sal e papel-moeda já foram utilizados como dinheiro nesse processo evolutivo.

[Satoshi Nakamoto, pseudônimo de uma pessoa ou um grupo de pessoas, desenvolveu um protocolo para moeda digital usando a criptomoeda bitcoin, que permite estabelecer confiança e fazer transações sem necessidade de uma terceira parte (NE).]

Uma das principais características do dinheiro é sua escassez e dificuldade de falsificação. Sem essas duas características o dinheiro não tem nenhum valor como meio de troca. O dinheiro também tem que ser transportável. Antigamente, as pessoas utilizavam animais como moeda. Hoje, o próprio dinheiro físico pode perder a validade. Re-

centemente vimos, na Venezuela, pessoas carregando pilhas de cédulas para serem pesadas.

Bitcoin é o primeiro dinheiro digital que deu certo À medida que o transporte do dinheiro se torna complicado, o dinheiro digital ganha mais espaço. O bitcoin é uma evolução das diversas tentativas de introdução do dinheiro digital ao longo do tempo; uma moeda eletrônica e o primeiro dinheiro digital que deu certo; um dinheiro eletrônico equivalente à moeda tradicional. É escasso, tem emissão finita e conhecida.

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Atualmente, o poder computacional dispendido para a rede do bitcoin é equivalente a trezentas vezes o poder computacional do Google. Todos os pontos (máquinas) que se comunicam dentro da rede são capazes de estabelecer um consenso entre o que é certo ou errado.

A recompensa pelo trabalho de mineração representado pelo esforço computacional dispendido para a segurança do negócio é feita com bitcoins. O minerador é recompensado com criptomoedas sempre que consegue executar uma tarefa complexa. Essa recom-

pensa tem atraído a atenção de pessoas dispostas a investir em computadores. Trata-se de uma concorrência, é recompensado o minerador que primeiro gerar e inserir a blockchain à rede. A cada dez minutos essa competição é reiniciada.

O Problema dos Generais Bizantinos: a grande questão que o bitcoin resolveu O Problema dos Generais Bizantinos é um experimento mental usado para ilustrar os desafios de planejamento em computação quando se trata de coordenar uma ação por meio da comunicação sobre base não confiável. Dois exércitos se preparam para atacar uma cidade. Cada exército comandado por seu respectivo general acampa em sua própria montanha tendo à frente um vale ocupado pelos defensores da cidade. Para ter êxito, os gene-

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A revolução Blockchain

rais devem atacar ao mesmo tempo. A única forma de comunicar o horário do ataque é enviando mensageiros, mas eles podem ser capturados no vale, o que traz incertezas para a tomada de decisão de ambos os generais. Esse foi o primeiro problema de comunicação de computador que se provou insolúvel na presença de falhas decorrentes de comunicação arbitrárias. O Protocolo de Controle de Transmissão (TCP, na sigla em inglês), um dos protocolos em que se apoia a internet, verifica se os dados são enviados pela rede de forma correta, na sequência apropriada e sem erros. No caso das redes de computadores, o problema dos generais bizantinos mostra que o TCP não pode garantir a consistência de estado entre as extremidades, onde falhas de comunicação podem ocorrer.

O bitcoin resolveu esse problema matemático replicando cópias de todos os dados da blockchain a todos os computadores participantes da rede. Essa iniciativa possibilitou a identificação de fraudes em qualquer ponto. Uma vez seja um código aberto em dez (open source) e a licença livre, qualquer um pode se autodeclarar possuidor de dez milhões de bitcoins, mas uma vez constatada a fraude o participante é excluído automaticamente. Isso é

possível graças ao consenso entre os participantes.

Blockchain: infraestrutura de suporte à rede do bitcoin A blockchain ainda não era conhecida quando o bitcoin surgiu. No próprio documento original de Satoshi Nakamoto, o único termo semelhante citado é o chain-of-blocks. Essa tecnologia foi explorada de diversas formas. Observada sob outro ponto de vista, notou-se que o grande potencial dela estava em sua própria infraestrutura. De acordo com essa visão tecnológica, o bitcoin é mero insumo. Isso ocorre porque existe um campo de observação na blockchain do bitcoin, onde é possível jogar uma informação com pou-

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cos bytes, equivalente à metade de um tweet. Com esse pequeno espaço é possível encadear várias transações, uma atrás da outra, configurando informações mais complexas que poderão ser utilizadas como protocolo. Assim, diversos especialistas no mundo passaram a olhar para a blockchain de forma diferente e para outras finalidades. Criaram satélites à moeda bitcoin, criaram plataformas mais inteligentes e capazes de rodar mais aplicações, criaram as chamadas sidechains, plataformas que certificam informações esporádicas na blockchain, introduzindo um novo conceito de negócio.

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Mecanismos de consenso Alguns exemplos de mecanismos de consenso: Proof-of-work – O bitcoin usa como mecanismo de consenso o proof-of-work, prova de entrega ao poder computacional recompensada em caso de sucesso nos cálculos criptografados complexos. É recompensado o minerador que for mais rápido dentro de dez minutos. Existe um aspecto ecológico ruim nesse processo. Com trezentas vezes mais poder computacional do que o Google, é imenso o gasto de energia elétrica para o desenvolvimento dessa atividade. Mesmo assim a recompensa para o registro das informações na rede é em torno de 12,5 bitcoins a cada dez minutos.

Proof-of-stake – Enquanto no proof-of-work o minerador é recompensado por provar a sua capacidade computacional, no proof-of-stake ele precisa provar que é detentor de várias criptomoedas para ser remunerado. O dado preocupante é que se algum milionário adquirir no mercado uma parcela gigantesca das moedas, o consenso ficará sob seu domínio e a descentralização estará comprometida. Com base nisso, pensou-se em modelos mais democráticos que pudessem favorecer a redução de gastos com a computação. DPOS – Delegate proof-of-stake – Esse é um método de consenso que vem sendo testado em algumas criptomoedas de maneira aparentemente satisfatória. Nesse sistema,


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pondo que ele seja o primeiro a validar a transação na rede, o bloco é imutabilizado com uma assinatura digital, dando-se início a novo bloco, após dez minutos, para as transações ainda pendentes de confirmação.

o computador da comunidade com mais criptomoedas é eleito para fazer a mineração, sendo o lucro obtido dividido com a comunidade. Essa iniciativa visa evitar a centralização por uma única pessoa detentora de muitas moedas. Leader Elect – Por esse modelo, elege-se um líder para ser seguido por todas as máquinas.

No Ethereum, essa confirmação se dá em aproximadamente dezessete minutos. Em todas elas, a mecânica é a mesma. A transação efetuada fica estacionada em um pool de transações pendentes de confirmação. As taxas elevadas das transações são um incentivo para o minerador registrar mais rapidamente a transação no bloco. Su-

É comum as pessoas pensarem que mil confirmações equivalem a mil computadores analisando aquele mesmo bloco. Não, se em quatro blocos abertos a minha transação é a primeira do bloco 1, significa dizer que a minha transação tem quatro confirmações. Quando dizemos que uma transação tem quatro confirmações, significa que a transação 1 do bloco 1 é quatro blocos mais antiga que o bloco atual.

Round-Robin – Algumas máquinas são selecionadas aleatoriamente para fazer a mineração.

Blockchain: como funciona a cadeia de blocos Em qualquer tecnologia de blockchain, o encadeamento de blocos não é registrado de imediato na rede. No caso do Bitcoin, por exemplo, a confirmação do registro ocorre a cada dez minutos.

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A primeira informação que deve constar a cada novo bloco é a assinatura que fechou o bloco anterior. Essa medida visa evitar fraudes e impedir o minerador de fazer cálculos criptográficos aleatórios na tentativa de descobrir transações no tempo para encaixá-las no bloco a qualquer tempo. O encadeamento dos blocos garante a segurança do sistema. Se alguém quebrar uma informação constante da transação 2 do bloco 1, terá que refazer a assinatura do bloco 2, refazer os blocos 2, 3 e 4, tudo isso no intervalo de dez minutos e antes que todos os computadores do mundo coloquem o bloco 5 na rede. É praticamente impossível.

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Descentralização: emissão de criptomoedas em qualquer lugar do mundo Sabemos que a emissão de dólares é centralizada, mas a de criptomoedas não. Em qualquer ponto do planeta é possível fazer a emissão das criptomoedas, bastando instalar um programa no computador e rodar o software de mineração. No Brasil, a emissão de criptomoedas não é viável. A recompensa em bitcoins não cobre o alto custo de energia. Uma máquina de mineração gasta o equivalente a um chuveiro elétrico de 220 volts, ligado por 24 horas. Por conta disso, fazendas de mineração acabaram

migrando para locais onde a energia elétrica é barata ou subsidiada. É o caso da maior mineradora da América Latina, uma empresa brasileira sediada no Paraguai graças a um acordo que prevê subsídios em energia elétrica. Essa prática também é comum na África, Islândia e China, onde estão localizadas as maiores fazendas de mineração.

Modelo híbrido: da descentralização à centralização No modelo híbrido, a descentralização não é total. Os nós se conectam ao minerador, e o principal deles conversa com o restante do planeta, como no caso dos Bancos Centrais.


A revolução Blockchain

Desmistificando o paradigma Bitcoin-Blockchain Bitcoin moeda/bitcoin blockchain – Há quem entenda que a blockchain não existe sem a criptomoeda e vice-versa, mas o fato é que existem sim diferenças entre elas. O bitcoin-blockchain é o primeiro dinheiro digital que surgiu e apesar de sofrer ataques há oito anos continua no ar graças a sua alta resistência. Bitcoin moeda/não-bitcoin-blockchain – Podemos falar do bitcoin como moeda sem mencionar sua blockchain. A Blockstack, por exemplo, criou uma ferramenta de iden-

tificação que utiliza o bitcoin para registro, mas não a sua blockchain. A Blockstream também criou um ambiente paralelo à blockchain do bitcoin, mas conectado a ela, para rodar informações mais complexas. Nesses dois casos, o bitcoin é utilizado como mero insumo. Não-bitcoin-moeda/bitcoin-blockchain – Também é possível usar a blockchain sem utilizar o seu bitcoin. Esse sistema é adotado pela Factom, de Honduras, pela Counterparty, que utiliza a blockchain do bitcoin, mas usa a própria Counterparty como moeda; e a NameCoin, que usa a blockchain do bitcoin para registrar domínio, mas a moeda nativa apenas abastece a sua plataforma.

Não bitcoin-moeda/não-bitcoin-blockchain – Outra opção é não usar a moeda bitcoin nem a sua blockchain. É o caso da Ethereum, da Z-Cash, que tem como principal preocupação o sigilo absoluto das transações, além de outras centenas de criptomoedas que surgem a cada dia no mercado. Consenso sem blockchain – É recente o surgimento desses consórcios de instituições. Ripple, Hyperledger e R3CEV são alguns deles. O R3CEV é o mais famoso, porque reuniu mais de cem instituições financeiras globais em um único consórcio, utilizando a tecnologia da blockchain em prol do sistema financeiro global. Apesar

FACTOM

BLOCKSTREAM

NAMECOIN BLOCKSTACK

TEZOS

ETHEREUM

ERIS PEERNOVA

RIPPLE HYPERLEDGER

R3CEV

ORIGINAL MY COUNTERPARTY

Z-CASH

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disso, chegou-se à conclusão de que a blockchain não é eficiente, não é capaz de manter tantas instituições financeiras conversando entre si, uma vez que a instituição ‘A’ não aceita ver a instituição ‘B’ tendo acesso às suas informações. Com esse entendimento, decidiram criar uma nova terminologia, chamada DL – Distributed Leadership, para incentivar sua adoção. Blockchains neutros – Tezos, Peernova, Eris e Original My, são algumas das empresas que utilizam mais de uma blockchain como complementação. A nossa ferramenta de assinatura de documentos e contratos utiliza duas blockchains, a blockchain do Bitcoin e a blockchain do Ethereum. Na blockchain neutra, não importa qual plataforma está funcionando, mas sim entregar a solução.

A blockchain como protocolo: outros usos além da moeda Em 2013, surgiram várias iniciativas ao redor da blockchain do Bitcoin visando fins não previstos na blockchain. Foi quando Vitalik Buterin, fundador do Ethereum, questionou esses sistemas paralelos num documento, discutindo se não seria o caso de criar uma blockchain única para tudo. Sob o ponto de vista corporativo, é muito difícil confiar que um software de código aberto (open source) mantido por um grupo de pessoas desconhecidas funcionará plenamente por um período mais ou menos longo. E que, em caso de pane, a comunidade que dá suporte àquele software continuará traba-

Vitalik Buterin

lhando nele. Seria preciso confiar no software principal e em todos os outros pontos ao seu redor. Não basta confiar na Blockchain do Bitcoin, é preciso confiar também na comunidade Blockstream, Counterparty. Em cada nova conexão, é preciso confiar nas equipes. Vitalik Buterin desenhou um novo modelo blockchain baseado no bitcoin com inteligências aptas a rodar aplicações, tokens nativos que podem ser criados a partir da própria plataforma e smarts contracts. O contrato inteligente, ou smart contract, é um protocolo de computador feito para facilitar, verificar ou reforçar a negociação ou desempenho de um contrato, podendo ser executado ou se fazer cumprir por si só. Para ser considerado um contrato inteligente, a transação deve envolver mais do que uma simples

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transferência de moeda virtual entre duas pessoas – como uma transferência de pagamento, por exemplo; deve envolver duas ou mais partes – como todo contrato; e a implementação do contrato não deve requerer envolvimento humano direto a partir do momento em que for firmado. Dentro da rede do Ethereum, um contrato inteligente é uma aplicação descentralizada, um programa de computador com diversas cláusulas, critérios e linguagens distintas, entre elas a Solidtech, que é semelhante ao Javascript utilizado na criação de sites. A execução desses contratos

não ocorre em uma única máquina, mas em toda a rede e ao mesmo tempo. Embora todo o contrato inteligente seja uma aplicação descentralizada, uma aplicação descentralizada não necessariamente é um contrato inteligente. Na Original My, usamos a plataforma Ethereum para fazer repositório de dados, que são distribuídos por toda a rede e, consequentemente, imutabilizados. O custo refere-se apenas ao registro da transação. Nenhum valor adicional é cobrado para a leitura posterior dos dados. Mas isso não é interessante quando se fala em grande volume de dados.

Usos potenciais da blockchain Objetos físicos (diamantes, pinturas, árvores, etc.) – No final de 2015, a Everledger fez o registro da autenticidade de 850 mil diamantes. O certificado acompanha o percurso do diamante até o seu destino. Cadeia de fornecedores – Refere-se aos dados de pedidos, acompanhamento de estoque. Bancos – Os bancos têm olhado para a blockchain privada como forma de consolidar a informação e para a blockchain pública para facilitar as remessas internacionais.

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‘A’ para ‘B’ fica registrada na blockchain sem necessidade de intervenção por terceiro. Além dos registros públicos também é permitido registrar transferências, isto é, conhecer todos os seus detalhes, por onde passou e pelas mãos de quem passou.

Distributed Ledger Technology (DLT) Hyperledger – Ganhou muito mais força a partir de dezembro de 2015, quando a IBM se juntou à Linux Foundation e à Intel.

Identificação – As tecnologias da blockchain e das DLT’s (Distributed Ledger Technology) têm sido utilizadas para a identificação de pessoas/clientes. Votação – Acompanhamento transparente de votações públicas e privadas. Um grande desafio para a blockchain é fazer com que a informação colocada na rede seja vista apenas por aquela pessoa para a qual foi destinada, uma vez que os dados são públicos, transparentes e distribuídos para todo o mundo. É praticamente impossível utilizar a blockchain em votações secretas, mas em votação transparente não há nenhuma dificuldade. Acompanhamento – Fluxos comerciais e dados de transporte.

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Registros públicos – Referimo-nos ao registro de qualquer coisa: imóvel, automóvel, licenças comerciais, passaportes, ID’s (RG/ CPF), transferências de propriedades, etc. Coleta de intangíveis – são as patentes, marcas, reservas, domínios. Financeiro – Dinheiro, ações, empréstimos, investimento, crowdfunding. A expansão da blockchain deve muito ao interesse manifestado pelo sistema financeiro. Por essa razão, inúmeras ferramentas estão sendo desenvolvidas para auxiliar esse setor. No que diz respeito às transferências de valores é interessante notar que a transferência de

O Hyperledger não é uma blockchain. É semelhante a um banco de dados, mas com a característica de se conectar aos nós, sincronizando e distribuindo as informações de forma automática. Ele é todo modular. Bigchain DB – É um banco de dados com altíssima capacidade de registro (mil por segundo), que possibilita a criação de ativos a partir da blockchain. Um bom administrador de sistemas consegue consertar um erro num banco de dados qualquer sem deixar rastro algum. Com a blockchain, no entanto, o rastro não é apagado. Qualquer que seja a ação – um registro, sua eliminação ou uma troca de informações – ela fica registrada no histórico da blockchain e não poderá ser alterada nem mesmo por um usuário administrador.


A revolução Blockchain

Quorum – Uma bela iniciativa, baseada no Ethereum, que criou uma blockchain privada e uma blockchain pública, permitindo a troca de informações entre elas. As informações privadas ficam sob o domínio de empresas que em algum momento vão trocar informações com o Ethereum Público. Isso ganhou tanta força que a ConsenSys Ethereum resolveu criar um consórcio para impulsionar ainda mais essa iniciativa. Atualmente, mais de trinta empresas integram esse consórcio. R3CEV – Consórcio criado inicialmente para pesquisa e experimentação. Bastava associar-se ao consórcio para experimentar blockchains diversas, ter contato com as instituições integrantes e acesso irrestrito a todas as suas ferramentas. A R3CEV considerou a blockchain uma ferramenta desinteressante para uso pelo mercado financeiro. Resolveu, então, criar o Corda, um ledger distribuído, uma ferramenta open source mais apropriada às necessidades do sistema financeiro. Hoje, já existem mais de sessenta projetos sendo desenvolvidos pela R3CEV.

Comparativos entre as principais tecnologias Hyperledger – rede de consenso: plugável; rede: privada ou

Qualquer que seja a ação – um registro, sua eliminação ou uma troca de informações – ela fica registrada no histórico da blockchain e não poderá ser alterada nem mesmo por um usuário administrador.

pública; smarts contracts: programável em múltiplas linguagens. Ethereum – rede de consenso: mineração; rede: pública ou privada; smarts contracts: programável em múltiplas linguagens. Bitcoin – rede de consenso: mineração; rede: pública; smarts contracts: limitada a poucos scripts. São carteiras multiassinadas em que todos os signatários precisam estar de acordo para que a transferência de fundos seja efetivada. A transferência de fundos pode acarretar o registro de alguma informação na blockchain, portanto, há sim um smart contract no bitcoin que funciona muito bem e não de forma limitada.

Aplicações: BitNation, Slock.it, Nasdaq, OneName, ArcadeCity A BitNation tentou introduzir uma plataforma global de governo descentralizado. Podemos dizer que é um país na internet, provê diversos tipos de serviços cartorários, advocatícios, de identificação e outros gerais. Possui um sistema de identificação reconhecido pelo Governo da Estônia (República da Estônia) que possibilita a identificação de refugiados sírios e autoriza o livre trânsito naquele país. A Slock.it criou uma fechadura inteligente que faz a própria gestão da sua receita e roda a blockchain do Ethereum. Por meio dessa fechadura, é possível fazer a reserva de quartos, por exemplo, sem necessidade de intervenção da administração do hotel. O dinheiro da reserva é direcionado à fechadura, que se reserva e envia ao cliente a chave de acesso. Percebendo dano no sensor, a fechadura licita o mercado, contrata a empresa de manutenção e paga pelo serviço. No final do mês, o seu lucro é dividido com a empresa mantenedora, criada pela própria Slock.it. A Nasdaq começa a fazer testes com leilões privados, e a Estônia já tem algumas empresas licitadas.

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A OneName é voltada à identidade global. A Arcade City é um “Uber” descentralizado. Hoje, a Uber retém 25% do ganho do motorista. No sistema baseado em blockchain o motorista fica com 100% do valor e a rede toda se comunica, fazendo a qualificação do motorista. Futuramente, o pagamento da corrida poderá ser feito diretamente ao carro. O carro poderá se dirigir à sua estação de abastecimento, pagar pelo combustível, seja elétrico ou derivado do petróleo, e pagar por sua manutenção. No futuro, esse tipo de transporte será feito sem motoristas.

Aplicações: Augur, Ujo Music, La’Zooz, Storj, Transactive Grid A Augur é uma plataforma de previsões descentralizadas. Por exemplo, prevê-se que haverá um aumento do dólar em determinada data. Todo o embasamento técnico é direcionado para essa perspectiva. Poderão se manifestar, adicionando criptomoedas, todos aqueles que concordarem ou tiverem mais argumentos que fortaleçam essa previsão. Se a previsão se concretizar, os que apostaram nela ganham todas as criptomoedas. É mais uma plataforma de apostas do que de previsões.

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A Ujo Music apostou na mudança de lógica da indústria da música. Ela recebe e divide com o restante da cadeia. Nessa cadeia, o último ponto é o autor. Nesse caso específico, paga-se o autor e com o uso do smart contract realiza-se o pagamento ao restante da cadeia. Ou seja, todos recebem. A La’Zooz é uma plataforma de compartilhamento de caronas. A Storj tem um interessante armazenamento descentralizado que tinha como base a criptografia do bitcoin. Hoje, migrou para a criptografia do Ethereum. É uma plataforma semelhante ao dropbox. A Transactive Grid, de Londres, começou a produzir energia elétrica a partir de painéis solares e passou a vendê-la aos vizinhos da comunidade local, que aceitaram a criptomoeda para o consumo no mercado.

Outras aplicações: SmartID, Trust Stamp, ShoCard’s, UPort, OneName BitNation Na área de identidade, temos a SmartID, de iniciativa da Deloitte. A Trust Stamp recebeu alguns milhões da Reach Incubator para o desenvolvimento de um sistema de compartilhamento de informações pessoais. Enquanto o SmartID

Futuramente, o pagamento da corrida poderá ser feito diretamente ao carro. O carro poderá se dirigir à sua estação de abastecimento, pagar pelo combustível e pagar por sua manutenção. No futuro, esse tipo de transporte será feito sem motoristas.

procura fazer uma identificação única, distribuída e baseada na blockchain, a preocupação da Trust Stamp é fazer com que as instituições consumam a informação a partir de um só lugar. É claro que, estando dentro da blockchain, não importa muito onde está gravada a informação, o importante é que esse consumo possa se dar por meio da rede. A iniciativa do ShoCard’s talvez seja a mais interessante, pois visa eliminar a utilização de senhas para acesso a sites. Essa iniciativa acaba com os chamados phishings, em que pessoas mal-intencionadas enviam mensagens eletrônicas com pretextos falsos, induzindo o


A revolução Blockchain

receptor a fornecer informações e documentos importantes. Eles desenvolveram uma técnica em que o site se comunica com a aplicação do seu celular. Pode até ser que se peça um PIN para confirmação, mas, como já foi feita a identificação anteriormente, o acesso ao site é liberado automaticamente. A UPort segue a mesma linha, mas a iniciativa é da ConsenSys, grupo comercial pertencente à Ethereum. Por último, a OneName BitNation. Embora tenha só dois anos de atividade, já está defasada em comparação às novas iniciativas que surgem na área de identificação.

OriginalMy.com – primeira empresa brasileira a usar o protocolo Blockchain Sempre estive envolvido com a computação distribuída, com o processamento descentralizado. Em 2011, comecei a trabalhar com a tecnologia do bitcoin, mas desisti porque entendi que os altos custos não valiam os poucos centavos que o negócio rendia. Parti, então, para a pesquisa científica. Em 2013, entretanto, o bitcoin deu um inacreditável salto de US$ 100 para US$ 1.200, o que me fez voltar o olhar novamente para essa

ferramenta. Meu objeto de estudo não era o valor do bitcoin como moeda, eu quis estudar a fundo sua infraestrutura.

tos também é nossa preocupação. Comprovamos a integridade dos documentos e a data de sua existência, mesmo sem armazená-los.

Em 2014, li a notícia de que a Universidade de Nicósia tinha registrado na blockchain a autenticidade de um certificado de conclusão de curso. Percebi, então, que era isso que eu queria fazer e que aquilo envolvia a segurança da informação, o registro, a autenticidade.

Também autenticamos conteúdo na web. Emitimos um laudo relatando que determinado conteúdo se encontrava na web em determinado momento, servindo até mesmo como prova em processos judiciais. Há um processo em que foi deferida liminar favorável à parte com base em provas coletadas por meio de nossas ferramentas tecnológicas.

Em julho de 2015, lançamos o OriginalMy. Duas de suas principais funções são: fazer prova de autenticidade de qualquer tipo de documento digital e resguardar a propriedade intelectual. A lei brasileira diz que o direito intelectual nasce com a obra. Em caso de disputa, de questionamentos, é preciso provar a sua antecedência. A função do OriginalMy, por meio de um timestamp, é dizer que o documento existe a partir de determinada data, tendo a outra parte que provar a anterioridade do seu. O OriginalMy também assina contratos. Antigamente, os contratos eram assinados por videodepoimentos. Hoje os contratos são assinados por App, de maneira confidencial, vinculando as partes ao documento e garantindo validade jurídica, tudo integralmente registrado em blockchain. A integridade de documen-

Para atender à demanda, passamos a fazer protótipos e provas de conceito para distribuição em todo o mercado. A blockchain resolve muita coisa. Não resolve tudo por conta dos custos que envolvem o registro da blockchain. Se a blockchain é privada, não há custos. Na blockchain pública existe custo apenas em relação ao registro, a leitura não gera custos e pode ser feita em qualquer momento, de qualquer lugar e por qualquer interessado. A blockchain pública tem como principais características o seu alto grau de imutabilidade, a transparência, a auditabilidade, o consenso, que garante que as informações registradas não sofreram alterações, e ainda, a eficiência e a redução de gastos, principalmente de infraestrutura.

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PERSPECTIVAS PARA A ESCRITURAÇÃO DIGITAL NO REGISTRO DE IMÓVEIS por Antonio Carlos Alves Braga Júnior

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Palestra proferida por Antonio Carlos Alves Braga Júnior, juiz de Direito substituto em Segundo Grau, em atividade na Câmara Especial do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo; membro da Comissão para Assuntos de Informática do TJSP. Para o palestrante a virtualização das atividades é o caminho a ser seguido, mas a migração dos dados deve respeitar o perfeito encadeamento dos atos registrais. Questões essenciais devem ser consideradas, como a proteção dos dados e a exclusividade de guarda do acervo na blockchain, tecnologia que pode ser útil como ferramenta acessória e chancela de validação externa.


Perspectivas para a escrituração digital no Registro de Imóveis

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osso objetivo é explorar o tema blockchain sob a perspectiva da escrituração eletrônica no Registro de Imóveis. Questionaremos a virtualização dos registros, se de fato é um passo a ser dado e de que forma se dará essa digitalização; as implicações decorrentes da migração, uma vez que praticamente todas as atividades do cartório são voltadas à análise e qualificação dos títulos e não propriamente ao seu armazenamento; os desafios a serem enfrentados; e se é uma opção manter o sistema tal como hoje em que a tecnologia digital é utilizada essencialmente para a troca de dados, mas a ferramenta de operacionalização do cartório ainda é o papel e a autenticação manual. Embora existam algumas iniciativas de implementação de sistemas digitais, ainda não há uma regulamentação que permita a completa escrituração eletrônica dos atos praticados pelos registros. Se o intuito é abandonar de uma vez por todas o sistema em papel, é fundamental que haja uma regulamentação visando à padronização dos procedimentos a serem realizados sob a forma eletrônica.

Desafios da escrituração digital

tiva. Hoje, no entanto, suas atividades são realizadas totalmente no ambiente eletrônico.

Parece evidente que o caminho seja a virtualização da atividade registral. A migração para o mundo digital é uma realidade em vários setores administrativos, judiciais, e em outras tantas atividades humanas, como na medicina, que já usa prontuários médicos eletrônicos; no mapeamento de solos; no controle de trânsito.

No Tribunal de Justiça de São Paulo, por exemplo, todas as varas são digitais. O seu acervo de vinte milhões de processos está 40% digitalizado e em pouquíssimo tempo haverá a completa eliminação dos processos físicos.

O Poder Judiciário sempre foi o último a adotar as novidades tecnológicas ou o primeiro a não querer adotá-las, seja por questões gerenciais, orçamentárias ou mesmo por resistência. O uso de computadores pelo Judiciário aconteceu de forma lenta e grada-

Contudo, é preciso dizer que os processos físicos que ainda perduram no Tribunal possuem característica híbrida. Todo o conteúdo produzido pelo Judiciário, seja por magistrados ou servidores, é feito sob a forma de documento eletrônico cujo original só existe em sistema. Apenas vias impressas sem autenticação compõem os autos.

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Diferentemente do Poder Judiciário, as serventias extrajudiciais sempre estiveram à frente na adoção de novas tecnologias. Desde muito a informática é a principal ferramenta utilizada pelos registros, seja para a virtualização de matrículas, para a criação de bancos de dados, etc. O uso da tecnologia digital parece um caminho natural e inexorável. O seu uso pelos cartórios já é maciço. A própria matrícula, embora impressa e assinada manualmente, é constituída por sistemas internos que garantem a sua validade e segurança. Depois de digitalizada sua versão impressa é alocada em caixas de fichas para ser usada o menos possível.

Heterogeneidade do Registro de Imóveis é o principal desafio Refletiremos sobre o tema em três etapas principais: faremos um alinhamento dos desafios; em seguida, um paralelo com a experiência judicial; por último, uma abordagem sobre o uso da tecnologia blockchain no Registro de Imóveis. O primeiro grande desafio da migração dos sistemas é a transposição dos dados registrais para um cartório virtual, mantendo o exato encadeamento dos atos existentes em papel.

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A tecnologia do papel é muito mais do que mera impressão e assinatura, todos os atos praticados no Registro têm que estar encadeados. Cada matrícula tem sua sequência cronológica, sua sequência numérica e, muitas vezes, está relacionada com outras matrículas da mesma unidade. A tecnologia do papel nos é tão familiar que não nos damos conta da quantidade de informações contidas numa ficha de matrícula que pode, inclusive, sugerir a participação de vários registradores que se sucederam na unidade. Uma das principais características de segurança do papel é o seu registro no tempo. Geralmente uma matrícula aberta há trinta anos é um pedaço de papel amarelado, com manchas que demonstram o passar do tempo. Qualquer pessoa duvidaria de uma matrícula aberta há mais de trinta anos e impressa em papel novo. Essa matrícula é falsa, a menos que tenha havido a restauração do documento. A sequência da escrituração não pode apresentar sinais de intercalação ou interrupção porque isso colocaria em xeque sua autenticidade. No que se refere aos documentos digitais, o seu desencade-

Parece evidente que o caminho seja a virtualização da atividade registral. A migração para o mundo digital é uma realidade em vários setores administrativos, judiciais, e em outras tantas atividades humanas, como na medicina; no mapeamento de solos; no controle de trânsito.

amento poderia ser objeto de dúvida do juiz corregedor em eventual atividade de correição no cartório. Essa suspeita poderia levar até à anulação do ato praticado.

Manter o encadeamento de documentos eletrônicos produzidos em sequência e com espaços de tempo imprevisíveis também é um problema que precisa ser superado. Afinal, não se pode presumir o tempo que levará para ser vendido um imóvel adquirido hoje. É preciso que haja a perfeita transposição dos dados para a tecnologia digital sob pena de quebra da validade da cadeia. Não tenho dúvida de que há um grupo seleto de registradores de imóveis plenamente capazes e devidamente equipados para iniciar


Perspectivas para a escrituração digital no Registro de Imóveis

a escrituração digital com a adoção de protocolos de segurança e validade. Mas não podemos olvidar aquele grupo de registradores para o qual a mensagem não chegará completa por mais que façamos treinamentos, apostilas, cadernos explicativos, orientação à distância ou help desk. A heterogeneidade do Registro de Imóveis no Brasil é o principal desafio a transpor.

Escrituração digital e segurança da informação A validade é comumente confundida com a segurança da informação. A segurança da informação visa à proteção dos dados. Hoje, várias opções são encontradas para a proteção da informação: backups, espelhamentos, armazenamento em nuvem, etc. Mas qual seria o modelo mais indicado para o sucesso dessa mi-

gração? Qual modelo alcançaria aquele cartório que realiza escrituração eletrônica, mas não possui know how para o adequado armazenamento? Como garantir a adoção de um protocolo de segurança confiável por todos os registradores de imóveis do Brasil? Qual seria esse protocolo?

Escrituração digital e confiabilidade para uma sucessão segura A confiabilidade da escrituração digital está diretamente ligada à sucessão segura da delegação. Nós temos notícias de que escriturações eletrônicas vêm sendo realizadas de forma experimental por algumas serventias. Ora, que metodologia está sendo usada para manter a segurança e o encadeamento dos atos? Quais soluções estão sendo empregadas que só aquele cartório ou sua empresa de

software conhece? O que recebe o titular que toma posse da unidade? Um backup? Um banco de dados cheio de documentos eletrônicos? O registrador que assume a serventia e vai emitir uma certidão pode confiar naquilo como um acervo registral imobiliário? Quando visitamos um cartório temos a chance de observar a organização da serventia e a maneira como é feita a guarda e conservação de seus indicadores. Isso nos faz concluir que o cartório é seguro. As informações obtidas por meio de um banco de dados eletrônico precisam ir além dos limites da unidade e precisam considerar o sistema registral imobiliário como um todo. Essa regra também vale para uma atividade correcional. Faz sentido que cada cartório adote uma sistemática diferente de encadeamento dos atos registrais, ou de documentação eletrônica, e o juiz cor-

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Perspectivas para a escrituração digital no Registro de Imóveis

regedor tenha que descobrir caso a caso o funcionamento de cada unidade? Se a pessoa que conhece a tecnologia falecer, quem, além dele, conhece a organização interna do cartório? A organização do acervo é muito mais do que uma coleção de documentos.

Escrituração digital e a proteção dos dados pessoais Os dados pessoais que compõem as matrículas são inúmeros: nome, endereço, estado civil, profissão, RG, CPF, etc. Os dados de identificação de adquirentes de imóveis não estão sujeitos a bisbilhotagens. Embora o registro seja público, são informações que não estão disponíveis para consulta em sua totalidade. Como proteger os dados pessoais em grandes bases de dados? No Judiciário, por exemplo, sempre foi possível consultar processos que trazem em seu bojo dados pessoais de interesse ex1

Não se pode esquecer que, embora público, o processo contém dados pessoais que não podem ser escancarados para consulta meramente bisbilhoteira. Como essa problemática será enfrentada pelo Registro de Imóveis?

clusivo das partes. Apesar disso, a consulta no balcão do cartório nunca foi um problema porque é realizada com cautela mediante identificação do interessado.

bem encaradas por todos, principalmente por jornalistas, que questionam a necessidade do uso de senha para consulta de processos públicos. Não se pode esquecer que, embora público, o processo contém dados pessoais que não podem ser escancarados para consulta meramente bisbilhoteira. Como essa problemática será enfrentada pelo Registro de Imóveis?1

Escrituração digital e a exclusividade da guarda do acervo

E no ambiente digital, como é feita essa identificação? A Lei do Processo Eletrônico estabeleceu a forma de acesso aos processos eletrônicos do Tribunal. Possibilitou acesso livre aos advogados, mas mediante a solicitação de senha às partes e interessados.

Esse é o ponto fulcral do Registro de Imóveis. O guardião da informação é o oficial registrador. É ele o único que pode praticar atos e manter a guarda dos documentos. Mesmo contando com diversas redes compartilhadas, centrais de serviços, bancos de imagens de matrículas, o acervo é de gerenciamento exclusivo dele.2

Essas mudanças não foram

A problemática não é tão críti-

Essa é uma questão que o IRIB já debatia em 2005, no encontro internacional Proteção de Dados, Novas Tecnologias e Direito à Privacidade nos Registros Públicos, realizado em São Paulo nos dias 28 e 29 de setembro, com a participação de grandes especialistas em direito registral e informatização do setor público da Espanha e do Brasil. A discussão de questões trazidas pelos avanços tecnológicos e o cuidado relativo à preservação do direito à intimidade, indispensável ao Estado Democrático de Direito, estavam na base da preocupação em aprimorar o sistema registral imobiliário brasileiro. Apoiaram o encontro, entre outras entidades: Agência Espanhola de Cooperação Internacional (AECI), organismo autônomo do Ministério de Assuntos Exteriores da Espanha; Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB); Corregedoria Geral de Justiça do Estado de São Paulo; Ministério da Justiça; e Ministério Público do Estado de São Paulo (Cao-Cível). [NE] O art. 46 da Lei 8.935/1994 dispõe: “Os livros, fichas, documentos, papéis, microfilmes e sistemas de computação deverão permanecer sempre sob a guarda e responsabilidade do titular de serviço notarial ou de registro, que zelará por sua ordem, segurança e conservação”. [NE]

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ca no Judiciário porque, em última análise, é o tribunal o guardião de todos os processos. Mesmo assim, somente o escrivão e o juiz têm permissão para acessar e movimentar os processos relativos à sua vara. Como é possível preservar a exclusividade de guarda do acervo no mundo digital?

A necessidade de repositórios arquivísticos digitais confiáveis Permitam-me apenas um exemplo: se um bloco de matrículas perfeitamente escrituradas – com todos os sinais de segurança, autenticações, timbres, identificação do cartório, envelhecimento do papel – fosse encontrado num lugar qualquer fora do cartório, questionaríamos: “o que essas matrículas estão fazendo fora do cartório?” Será que esses documentos foram subtraídos? São originais ou meras cópias? Será que integram o Livro 2 do cartório? Será que é mesmo uma matrícula? No ambiente digital não basta que o documento eletrônico esteja autenticado e criptografado por chave assimétrica. É preciso que esteja em local apropriado, em um ambiente que denominamos

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No ambiente digital não basta que o documento eletrônico esteja autenticado e criptografado por chave assimétrica. É preciso que esteja em local apropriado, em um ambiente que denominamos repositórios arquivísticos digitais confiáveis.

repositórios arquivísticos digitais confiáveis. Nós sequer começamos a avançar as discussões nesse terreno. É absolutamente indispensável conhecer a Resolução 43 do Conselho Nacional de Arquivos (Conarq), se quisermos virtualizar a atividade registral imobiliária.

O Judiciário e o processo digital O Poder Judiciário brasileiro está implantando o processo eletrônico em todos os seus tribunais. Alguns estão mais adiantados. Tribunais pequenos já estão cem por cento digitais. É o caso dos Tribunais de Mato Grosso do Sul e do Acre. Dentro de poucos anos o Tribunal de Justiça de São Paulo estará totalmente digital. Em São Paulo, no início de

2012, apenas 2% das varas eram digitais. Eram projetos pilotos, varas experimentais, como o Fórum Digital do Butantã, o Fórum Digital da Freguesia do Ó e o Fórum Digital de São Luiz do Paraitinga cujos processos, após a enchente, foram restaurados no formato digital. Em 2015, todas as varas já eram digitais. A curva da informatização do Judiciário é muito suave. Em vinte e cinco anos essa curva sofreu uma leve ascensão, ocorrendo um salto maior somente nos últimos cinco anos.

Unificação dos sistemas no registro imobiliário brasileiro: como fazer? Em 2012, os processos do TJSP já eram informatizados, híbridos, mas havia ainda no estado dezessete sistemas absolutamente desintegrados e incapazes de conversarem entre si. Algumas comarcas desenvolveram seus próprios sistemas de informática para operação local. Eram ilhas totalmente isoladas e desconhecidas do próprio Tribunal. Com a unificação dos sistemas esse problema foi resolvido. Os sistemas paralelos foram substituídos por processos híbridos, já modulados para o processamento digital, bastando apenas o adequado treinamento em recursos humanos para a habilitação do sistema digital.


Perspectivas para a escrituração digital no Registro de Imóveis

Como promover a unificação dos sistemas no registro imobiliário brasileiro? Quem será capaz de desenvolver e dar suporte a um sistema unificado em caráter nacional?

Desafio: controle centralizado não é a realidade do serviço extrajudicial No caso do Judiciário, o controle é centralizado. O poder de decisão e o poder orçamentário

são controlados pelo presidente do Tribunal, bem como toda sua estrutura administrativa. Saiu dali a decisão para a unificação dos sistemas e o dinheiro para a aquisição de um sistema eficiente para operação em grande escala. O controle centralizado tornou viável a unificação dos sistemas que nos garante hoje uma série de comodidades, uma delas é o direito a quatro atualizações de versão por ano para o acompanhamento processual.

O sistema é operacionalizado sem nenhuma dificuldade por todo o estado. No final de semana fazemos a transmissão de grande volume de dados para os processadores localizados dentro de cada um dos fóruns. Ao serem ligados na segunda-feira, os computadores buscam a nova versão para instalação, que é feita a partir de um servidor local do próprio fórum sem grande tráfego de dados. Todas as máquinas ligadas na segunda-feira só vão funcionar depois de atualizado o sistema.

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Para isso não são necessários treinamentos, apenas alertas são emitidos para que as administradoras mantenham seus servidores ligados durante o final de semana. Essa não é a realidade do serviço extrajudicial.

Integração: Modelo Nacional de Interoperabilidade e Escritório Digital Referimo-nos até o momento à unificação do sistema no âmbito do Tribunal de Justiça de São Paulo. Essa integração, no entanto, precisa acontecer de modo mais amplo, alcançando não apenas os sistemas judiciais como também sistemas externos. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) já teve uma iniciativa de implantação de um sistema único, paralelamente aos seus próprios sistemas, quando optou pelo uso de software livre para o Processo Judicial Eletrônico (PJe). O Tribunal de São Paulo ainda precisa integrar os seus sistemas com os sistemas de outros tribunais, principalmente com os superiores, por conta do grande tráfego de recursos extraordinários e especiais que tramitam nessas esferas. Na verdade, a integração está quase finalizada, faltando apenas

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Imaginemos, em tese, os noventa tribunais do país com sistemas diferentes. Não cheguemos a tanto, mas que tenhamos algo em torno de quarenta sistemas diversificados. Imagine que loucura é para o advogado que milita em vários estados.

um clique para que os sistemas conversem entre si, e a remessa de processos eletrônicos se torne uma realidade. Há também que haver uma integração com os vários interlocutores externos, por exemplo, com a Advocacia, Ministério Público, Defensoria Pública, Procuradorias estaduais e municipais, entes públicos e privados, sistemas bancários, etc. Nós já nos relacionamos com esses entes por meio eletrônico, mas de maneira isolada, caso a caso, consulta a consulta, e mediante mera troca de documentos. Para que essa interação ocorra em grande escala a solução encontrada foi celebrar convênios entre o Tribunal e os municípios, por exemplo, para a distribuição de grande

volume de execuções fiscais por ano. É praticamente impossível que um procurador do município, mesmo com auxílio de uma assessoria, consiga distribuir tantas ações a cada ano. Por essa razão foram criados sistemas de automatização do recebimento dessas ações em blocos, em total alinhamento com o sistema do Tribunal. O Escritório Digital é uma plataforma de iniciativa do CNJ, portanto, de âmbito nacional, para a consulta e peticionamento de processos. É um ambiente único, para utilização pelo advogado, a partir do qual ele poderá interagir com os sistemas de vários tribunais. Imaginemos, em tese, os noventa tribunais do país com sistemas diferentes. Não cheguemos a tanto, mas que tenhamos algo em torno de quarenta sistemas diversificados. Imagine que loucura é para o advogado que milita em vários estados. A partir desse sistema, ele não precisará mais entender do sistema de cada Justiça, pois todos estarão convergindo através do Escritório Digital. O MNI – Modelo Nacional de Interoperabilidade é um pacote de regras que vão reger a implantação desse tipo de iniciativa. O Escritório Digital, portanto, é uma aplicação do MNI.


Perspectivas para a escrituração digital no Registro de Imóveis

Inteligência artificial no Judiciário A inteligência artificial é exatamente o ponto em que nos encontramos. Há outras iniciativas em andamento, mas a inteligência artificial está sendo discutida para aplicação no Judiciário. As promessas são infinitas.

Preservação permanente: tema crítico para o acervo extrajudicial A permanência da informação é um tema de extrema criticidade e vai muito além do âmbito do que está sendo discutido aqui hoje. A principal característica do acervo extrajudicial é a sua preservação permanente. Essa peculiaridade o torna mais crítico em relação ao acervo judicial cujos processos têm prazo finito de guarda. Uma ação de cobrança, por exemplo, pode ser guardada por um período de cinco anos e eliminada depois.

Sistemas digitais e a passagem do tempo Somos todos familiarizados com a tecnologia do papel, sabemos que bem guardado ele

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pode durar séculos ou milênios. Como se preserva uma informação no sistema digital? Daqui a duzentos anos uma pessoa que pretenda consultar uma matrícula digital aberta no ano de 2017, obedecendo aos critérios tecnológicos da época e guardada segundo a arquitetura daquele tempo, conseguirá fazer a leitura do documento? Entropia é um conceito da termodinâmica que mede a desordem das partículas de um sistema físico. É um tema da física perfeitamente aplicável a qualquer área humana do conhecimento.

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Os sistemas digitais também sofrem alterações devido à tendência inexorável de que no instante seguinte as coisas estarão um pouco mais desorganizadas do que estavam no instante anterior. Um exemplo prático disso é o perfume. Quando pulverizamos um perfume no ar, aquilo que inicialmente se concentrava em um só lugar (o frasco), se dispersa e se mistura a todas as moléculas existentes no ambiente. Esse fenômeno que segue um sentido único é denominado seta do tempo. O perfume, uma vez borrifado, jamais retornará ao frasco, ocorrendo o mesmo com o café quando misturado ao leite, com o ovo depois de rompido e em outros tantos casos.

a duzentos anos diante da massa colossal de documentos digitais?

Por mais avançados que sejam a tecnologia e os mecanismos de segurança, os bancos de dados também caminham para essa degradação com a perda de um bit ou outro a cada operação. A própria passagem do tempo causará essa desorganização já que o bit armazenado em suporte físico também sofrerá alteração. Como resolver esse problema daqui

Em um cartório convencional, a partir de um registro escriturado ou através da sequência numérica dos atos, podemos ter acesso a todas as matrículas do cartório e aos documentos que deram origem a elas. Podemos puxar as informações relacionadas com aquele registro, averbações, registros anteriores, identificação de confinantes, etc. Isso quer dizer que a partir de uma primeira informação podemos localizar várias outras graças à eficiência e organização do cartório. A mesma situação deve ocorrer no ambiente eletrônico. A primeira informação consultada deve conduzir a outras da mesma unidade.

Blockchain responde à proteção dos dados e exclusividade de guarda do acervo? A virtualização das atividades é de fato o caminho a ser seguido. São grandes as suas vantagens. A redução de tempo na execução das atividades e a simultaneidade da informação são duas das mais importantes consequências da virtualização. É preciso, porém, que a migração dos dados respeite o perfeito encadeamento dos atos registrais existentes hoje no sistema tradicional.


Perspectivas para a escrituração digital no Registro de Imóveis

O sistema do Tribunal é muito mais do que uma coleção de processos judiciais. A virtualização de seus processos não é simplesmente uma coleção de PDFs certificados. Há um fluxo digital complexo que coordena tudo isso. É impossível a prática de qualquer ato fora do sistema uma vez que os processos estão amarrados às informações que lhe são pertinentes. Como proteger os dados pessoais na blockchain onde as cadeias de dados são replicadas a todos os operadores do sistema? E a criação de uma cadeia própria do Registro de Imóveis, é possível? Isso permitiria uma devassa dos dados pessoais? Existe algum risco em alguém de Rondônia bisbilhotar informações de registros realizados no Rio de Janeiro ou Bahia? E quanto à exclusividade de guarda do acervo na tecnologia de blockchain? O acervo cuja guarda é exclusiva do oficial vai poder ser replicado a quantos forem os operadores da cadeia registral? O registro usaria uma cadeia de blocos pública ou privada? Seria organizada em âmbito nacional ou estadual? São algumas questões que devem ser bem analisadas.

Blockchain como ferramenta acessória e chancela de validação externa Entendo que o sistema da blockchain, ou qualquer outra ferramenta paralela, poderia funcionar como ponto de validação do ato. Todos os atos praticados pelo oficial registrador seriam válidos somente depois de remetidos à blockchain. A validação na cadeia é que garantiria a procedência do ato. Se o documento eletrônico consta na blockchain do registro imobiliário e a data corresponde à data da prática do ato, o documento é válido. Outra possibilidade de utilização da blockchain é como prova da existência do ato registral. Talvez isso dê amarração para a blockchain funcionar como elemento externo ao cartório para a garantia da segurança dos atos praticados. Mas será que todos os registradores estarão habilitados a aplicar o procedimento, as técnicas de edição, geração e guarda do documento eletrônico? Nós não podemos pensar apenas nas inúmeras unidades de Registro de Imóveis que são bem

A virtualização das atividades é de fato o caminho a ser seguido. São grandes as suas vantagens. A redução de tempo na execução das atividades e a simultaneidade da informação são duas das mais importantes.

equipadas, conhecem a tecnologia, têm noção dos riscos e protegem seus dados adequadamente. É preciso pensar no que pode dar errado, naquele que não vai saber fazer ou naquele que vai agir maliciosamente. A reputação da atividade depende da correção. Um pequeno cartório pode contaminar a imagem de todo o serviço.

Nessa migração gigantesca do papel para o documento eletrônico penso que a tecnologia de blockchain pode ser muito útil como elemento externo ao cartório. Sequer haveria necessidade de acesso ao conteúdo do registro, bastando saber que naquele conteúdo consta uma chancela de validação externa sobre a qual o registrador não tem controle.3

O modelo descrito foi concebido no âmbito do SREI – Sistema de Registro Eletrônico Imobiliário – Parte 1 – Introdução ao Sistema de Registro Eletrônico Imobiliário, de Volnys Bernal e Adriana Unger, cientistas da LSITEC (https://goo.gl/eZsQy1).

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NOÇÕES E PERSPECTIVAS PARA O REGISTRO IMOBILIÁRIO por Daniel Lago Rodrigues

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Palestra proferida por Daniel Lago Rodrigues, oficial de Registro de Imóveis, Títulos e Documentos e Civil das Pessoas Jurídicas da Comarca de Taboão da Serra, SP. Diretor de Relações Institucionais do IRIB. Secretário-Geral da Academia Brasileira de Direito Registral. Mestre em Direito Processual pela PUC Minas, e mestre em Direito Internacional pela Universidade Metodista de Piracicaba. Blockchain não seria de fácil implantação no Registro de Imóveis brasileiro cujo sistema jurídico visa à constituição de direitos, observa o palestrante. Seu uso estaria restrito a banco de dados e à validação eventual de documentos públicos.


Noções e perspectivas para o registro imobiliário

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omo funciona a tecnologia de blockchain, de que maneira poderá ser implantada e até que ponto poderá impactar a atividade registral são algumas das questões que suscitamos.

Blockchain: noção preliminar Blockchain é uma tecnologia de estruturação de banco de dados, por meio da qual se cria uma rede colaborativa de distribuição da escrituração de informações (ledger), transparente às pessoas habilitadas com auditoria automática e contínua.

Rede de distribuição do bitcoin

Blockchain no RI: para sistemas que não observam continuidade ou legalidade A tecnologia de blockchain visa à criação de um sistema de reputação objetivo, o que significa que seria desnecessária a participação de uma pessoa ou entidade na validação da transação. O fato de a informação estar dispersa entre os nós, isto é, entre as infraestruturas responsáveis pela validação das transações, demonstraria a hipótese cada vez mais remota de fraude das informações e, consequentemente, de segurança do sistema. O estabelecimento de ligação entre blockchain e Registro de Imóveis é oriundo de países cujo

sistema registral imobiliário não privilegia o encadeamento das informações. São sistemas nos quais os contratos de aquisição são depositados, sobrepondo-se uns aos outros, sem qualquer observância à continuidade dos atos ou mesmo à legalidade de seu conteúdo. Nesses países, toda vez que há conflito de interesses envolvendo o mesmo imóvel, ou alguma fraude explícita em sentido documental, a produção de provas é feita mediante a apresentação de todos os títulos registrados de modo a definir o primeiro título registrado e o verdadeiro proprietário do imóvel. E isso tudo ocorre na esfera judicial. A decisão judicial vai dizer somente que aquele é o melhor proprietário entre os que participaram dos atos.

A rede de distribuição do bitcoin é pública e distribuída por todo o globo terrestre. Eventual rede pública aplicada ao Registro de Imóveis possibilitaria a dispersão das informações e esse não é nosso objetivo.

Mineração Existem cerca de seis mil infraestruturas que se dedicam à chamada atividade de mineração, ou seja, à validação contínua de informações, em troca de remuneração e pagamento de taxas a cada transação.

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Noções e perspectivas para o registro imobiliário

Ou seja, a adoção absoluta do sistema de blockchain pode significar de fato um grande salto para aquele que está sujeito a um sistema registral onde os documentos são meramente arquivados. Porém, no Registro de Imóveis brasileiro, cujo sistema jurídico visa à constituição de direitos, a blockchain não seria adequada nem fácil de ser implementada.

Características da tecnologia de blockchain a) permite uma relação direta (peer-to-peer) entre as partes contratantes, não havendo, em tese, necessidade de intervenção de terceiro; b) permite a confecção de um documento (smart contract) que será encadeado com outros; c) gera um extenso código criptográfico alfanumérico de validação única para cada bloco, mediante a utilização de algoritmos aplicados a partir do conteúdo do documento; d) encadeia esses blocos de notas a partir de referência do código criptográfico do bloco anterior no bloco seguinte; e) permite a validação de toda a cadeia a partir de algoritmos aplicados sobre todos os códigos gerados;

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Uma das principais funcionalidades da blockchain é assegurar a estabilidade da informação escriturada e incrementar sua confiabilidade, especialmente nas relações bilaterais em que uma das partes contratantes acumula, convencionalmente, a função de custodiar essas informações.

f) distribui o banco de dados por toda a rede, de modo que as infraestruturas postas à disposição para validação das cadeias (nós) possuem uma cópia de toda a cadeia, fazendo-se de certa forma um compartilhamento do arquivo. Portanto, em se tratando de um banco de dados compartilhado é preciso analisar os efeitos decorrentes da adoção do sistema blockchain pelo Registro de Imóveis e, sendo o caso, estabelecer os parâmetros para o efetivo compartilhamento. A sua segurança reside na impossibilidade prática de se defraudar

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ao mesmo tempo todas as cadeias de todos os nós, pois a corrupção de uma só informação em toda a cadeia acarretará a rejeição desta pelos demais nós autenticadores. Quanto mais infraestruturas à disposição da rede, maior a distribuição do banco de dados e maior a segurança do sistema. A integridade é determinada com base no consenso, que pode ser modulado para ser alcançado mediante a concordância de 100% dos nós (infraestrutura) ou outra fração que represente uma maioria dessas infraestruturas autenticadoras. Esse fracionamento poderia agilizar a validação da cadeia.

Blockchain: benefícios potenciais e funcionalidades Analisando a blockchain como mecanismo de estruturação de dados que permite a veiculação de um contrato, algumas de suas principais funcionalidades são: a) assegurar a estabilidade da informação escriturada e incrementar sua confiabilidade, especialmente nas relações bilaterais em que uma das partes contratantes acumula, convencionalmente, a função de custodiar essas informações. Em outras palavras, não se dependeria da boa vontade ou ho-

nestidade da outra parte para garantir a integridade da informação; b) criar um sistema de chaves públicas e privadas, mediante criptografia assimétrica, de modo a identificar quem pratica o ato na rede; c) permitir conhecer a data em que o documento foi criado; d) a segurança seria destinada a afastar a necessidade de uma terceira pessoa encarregada de autenticar a transação entre duas partes contratantes. Tal autenticação se daria pela validação difusa na rede de toda a cadeia à qual aquele bloco de notas está vinculado; e) assegurar a integridade do documento, posto que sua defraudação em toda a rede se mostra impossível concomitantemente com a agregação de novos blocos na cadeia e sua nova validação gerada daí por diante; f) a validação da cadeia em várias infraestruturas, simultaneamente, afastaria o risco de sequestro dessas informações; g) permitiria a checagem por terceiros da autenticidade e integridade de um dado documento, até mesmo expedido pelo cartório. Observando as várias possibilidades de aplicação da tecnologia de blockchain, inclusive para o registro de coisas, verificamos a


Noções e perspectivas para o registro imobiliário

sua amplitude em relação às ferramentas que utilizamos hoje.

Modalidades de rede: rede pública e rede privada Na rede pública, qualquer pessoa pode interferir segundo a finalidade e as regras de cada cadeia de blockchain para acrescer mais um bloco de informações. A criação de nós de autenticação da cadeia é livre. Na rede privada, a cadeia é manipulada apenas por uma, ou algumas pessoas autorizadas, sem acesso franqueado ao público. Somente pessoas credenciadas poderão acrescer mais um bloco de informações à cadeia. A criação de nós de autenticação da cadeia é igualmente restrita. Para o Registro de Imóveis, a rede privada é a mais indicada na medida em que seria possível determinar quem e quantas pessoas poderiam intervir na cadeia e ter acesso às informações.

Blockchain: vicissitudes da sua aplicação ao bitcoin No bitcoin, os mining nodes são incentivados a replicar e validar as cadeias de transações pela

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O advento da blockchain não traria grande impacto num sistema cujo acesso aos documentos é feito depois da análise prévia de legalidade. O documento eletrônico produzido com blockchain não se torna imune à qualificação registral.

possibilidade de remuneração pelo próprio sistema com novos bitcoins. No início do bitcoin, as estruturas que faziam a validação do sistema eram bem caseiras. Com o ingresso de diversas empresas no mercado de validação, as estruturas se tornaram mais potentes e o pequeno minerador perdeu seu espaço. Com a extensão da cadeia, a validação das transações tende a tornar-se cada vez mais complexa, com a desvalorização dos blocos e as chances cada vez mais reduzidas de conquista de bitcoins em circulação. A menor remuneração por mineração (proof-of-work) exige cobrança de maiores taxas, e para que uma rede ampla e distribuída de validação seja mantida, a

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tendência será a majoração dos preços. Atualmente, são cobradas taxas extras para a obtenção de prioridade na validação de uma dada transação. Portanto, quanto maior a infraestrutura, maior o custo para o seu processamento e menor a margem de remuneração. A saída de mining nodes da rede propicia maior concentração das informações. Ou seja, quanto maior a cadeia, menor o número de infraestruturas. Quanto menor a distribuição, maior a concentração das informações. Quanto menor a rede, menor a segurança. Algumas iniciativas estão sendo engendradas para impedir o crescimento da cadeia, fazendo com que ela seja fragmentada de maneira a democratizar a validação das transações. Entretanto, as grandes infraestruturas integrantes da blockchain, pelo peso patrimonial que possuem, estão resistentes a isso.

Blockchain e o seu impacto para a atividade do registro Primeiramente, é preciso deixar claro que a tecnologia de blockchain não é a solução para todos os problemas. É apenas um modo de assegurar a informação. Em que ponto esse modo de

estruturação dos dados pode impactar a atividade do registro? O advento da blockchain não traria grandes impactos em um sistema cujo acesso aos documentos é feito somente depois da análise prévia de legalidade. O fato de um documento eletrônico ser produzido com a tecnologia de blockchain, por óbvio, não o torna imune à qualificação registral. Todos os artigos e documentos que tratam da substituição da função registral por algo semelhante à blockchain, ou mesmo a ideia de relação peer-to-peer em que a intervenção de terceiros é totalmente dispensável para a validação da transação, provêm de áreas cujos sistemas são bem menos robustos e complexos que o sistema de registro de direitos. Há uma variedade muito grande de situações no Registro de Imóveis. Diariamente, recebemos negócios aparentemente singelos que trazem em seu bojo situações específicas que decorrem da autonomia da vontade das partes. É difícil imaginar uma forma encadeada que permita abarcar toda e qualquer situação imaginável de manifestação de vontade. A análise de legalidade é de tal forma complexa e variável que dificilmente conseguiríamos padronizá-la, esgotando todas as situações


Noções e perspectivas para o registro imobiliário

possíveis de um contrato. O que dizer, então, do registro imobiliário como um todo?

tende a ser infinita, sendo assim teríamos condições econômicas para viabilizá-la?

A análise da legalidade do conteúdo do título apresentado a registro, sua compatibilidade com todo o fólio e até mesmo com situações não inscritas decorrentes diretamente da lei continuará exigindo a atuação do oficial registrador. O direito constituído pelo Registro de Imóveis é exclusivo e excludente de qualquer outro.

Decidindo-se pela adoção da tecnologia de blockchain é imprescindível o estudo de suas variantes para que se possa verificar a que melhor atende às nossas necessidades.

Blockchain: uso limitado a banco de dados e à validação de documentos públicos Em tese, a rede de distribuição da blockchain pode se espelhar na rede de unidades extrajudiciais, sendo necessária regulação para tanto. Mas um acervo pertencente a uma determinada serventia poderia circular por outras? Até que ponto isso já não ocorre uma vez que somos obrigados a guardar um backup fora da serventia? É mesmo o caso de os cartórios se tornarem nós de validação? Qual o sistema mais apropriado, considerando os milhares de atos registrais praticados no Estado de São Paulo? Uma cadeia privada única

Também há que se pensar na hipótese de a rede não abarcar todos os cartórios. Para que o pequeno cartório possa participar desse processo é fundamental dotá-lo da infraestrutura necessária para operar na validação do sistema. Podemos pensar na criação de uma cadeia privada tanto para os títulos apresentados quanto para os atos de registro em si? Tudo isso vai impactar no custo e no modo como será feito o arquivamento. É óbvio que a cadeia da blockchain jamais vai substituir a cadeia dominial. Mas para que possamos, a cada ato praticado, chegar ao documento que lhe deu origem, em princípio a saída seria a criptografia dos documentos ingressados no cartório. A tecnologia de blockchain poderia fortalecer o instrumento particular? Depende. É possível, mas não a ponto de substituir o instrumento público. Não podemos abrir mão, por exemplo, da atuação preventiva do tabelião no aconse-

A análise da legalidade do conteúdo do título, sua compatibilidade com todo o fólio e até mesmo com situações não inscritas decorrentes da lei continuará exigindo a atuação do oficial registrador. O direito constituído pelo Registro é exclusivo e excludente de qualquer outro.

lhamento das partes. O notário, ao entabular um negócio segundo a lei, está exercendo uma qualificação de legalidade essencial àquele ato jurídico. Sem contar outras questões em que não se pode prescindir da atuação do tabelião, como a identificação das partes e a aferição de sua capacidade.

Portanto, a conclusão a que chego é que em princípio a blockchain impactaria o sistema registral imobiliário de forma restrita, uma vez que o seu uso estaria limitado a banco de dados e à validação eventual de documentos públicos.

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BLOCKCHAIN: DESAFIOS E SOLUÇÕES por Caleb Matheus Ribeiro de Miranda

P

ara a engenheira de Blockchain norte-americana, Preethi Kasireddy, a blockchain é uma tecnologia com potencial transformador e que tem grande espaço para utilização econômica. Contudo, apesar do hype existente, não se deve esquecer que a tecnologia ainda tem algumas barreiras técnicas para sua ampla adoção, barreiras essas que exigirão muito investimento e anos de trabalho até que sejam efetivamente eliminadas. No artigo Desafios fundamentais com blockchains públicas, ela examina essas questões técnicas, além de outras igualmente importantes, como a privacidade, que preocupa indivíduos e organizações. Suas considerações são muito interessantes. Sem desmerecer a impor-

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O registrador Caleb Matheus Ribeiro de Miranda (Juquiá, SP), pesquisador de Novas Tecnologias do IRIB, comenta o atual estágio da blockchain conforme avaliação publicada pela engenheira norte-americana Preethi Kasireddy.

tância e o potencial da tecnologia, ela aponta alguns aspectos cruciais que precisam ser enfrentados. Foram selecionados alguns tópicos principais de seu discurso de maior relevância para os registradores, especialmente tendo em vista a possibilidade de utilização da blockchain para o armazenamento de certos dados registrais. O texto completo pode ser encontrado neste link: http://bit.ly/bir-358-8.

1. Escalabilidade e armazenamento A primeira limitação apontada pela autora é a questão da escalabilidade. Tradicionalmente, a estrutura da blockchain implica que cada nó processe todas as informações e armazene todos os dados. Contu-

do, isso resulta em baixas taxas de transferência, tempos de transação lentos e requisitos de processamento muito custosos, o que pode levar a uma centralização do processamento nos poucos nós que possam custear os recursos que são exigidos. As principais soluções apontadas são: • Utilização de canais de pagamento fora da cadeia: os canais de micropagamentos processariam a maioria das transações fora da blockchain, utilizando-a somente como camada de definição final. Isso resolve os problemas: de taxa de transmissão – uma vez que grande parte do volume é mantido fora da blockchain; e de velocidade de transação – porque ela ocorre no momento do processamento pelo canal de pagamento e


Blockchain: desafios e soluções

não com a confirmação do bloco; e

cem a controlar a maioria da rede; e

• Particionamento da base de dados (sharding): a blockchain seria separada em diferentes “fragmentos”, e cada parte seria armazenada e processada por diferentes nós na rede. Ao invés de cada nó armazenar todas as informações, há um conjunto de nós que dividem ou “distribuem” os dados entre si. O desafio principal, aponta a autora, é manter a segurança e a autenticidade entre um conjunto descentralizado de nós.

3. Desperdício de energia, uma vez que os cálculos da prova de trabalho não têm valor real para a sociedade.

Sem a solução desses problemas, a utilização da tecnologia blockchain se torna inviável na prática.

2. Consenso por prova de trabalho Outro ponto abordado é a questão da inviabilidade da prova de trabalho como mecanismo de consenso. A prova de trabalho exige que os participantes da rede resolvam problemas que são difíceis de resolver (computacionalmente caros), mas fáceis de verificar. Em consequência, o “peso” do minerador na resolução do consenso decorre de seu poder computacional. Contudo, a prova de trabalho apresenta alguns problemas: 1. O hardware especializado tem vantagem; 2. Existe possibilidade de centralização de mineração em grupos, o que pode levar a que alguns grupos come-

A autora apresenta duas soluções possíveis: a primeira é a criação de uma prova de trabalho útil, em que os mineradores utilizem seu poder de computação para resolver algoritmos difíceis, mas que tenham importância prática. Outra solução é a substituição da prova de trabalho por prova de participação, em que os mineradores utilizem seus tokens para a mineração. No entanto, a utilização da prova de participação tem seus próprios desafios (problema de nada-em-jogo, facilidade de ataques de longo alcance e facilidade de formação de cartéis) e ainda não está completamente comprovada, o que exigirá mais pesquisas e experimentação.

3. Falta de governança e padrões Outro aspecto abordado no artigo é a questão de que uma blockchain pública e descentralizada não possui uma autoridade ou organização central tomando decisões. Se, por um lado, isso atende a um ideal de independência frente a governos e instituições, também resulta em que não exista um caminho de atualização seguro para o protocolo, nem uma autoridade responsável por estabelecer e manter padrões.

4. Ameaça da computação quântica A autora ainda aborda a questão de que, com o desenvolvimento da computação quântica, as criptomoedas e a criptografia como conhecemos hoje serão ame açadas. Se atualmente os computadores quânticos ainda estão um pouco limitados quanto aos tipos de problemas que podem resolver, sabe-se que os algoritmos de chave pública mais populares podem ser eficientemente quebrados por um computador quântico suficientemente grande. Daí porque é necessário que, ao se considerar a utilização da blockchain e ao projetá-la e à criptografia que lhe dá suporte, estejamos pensando em como torná-la à prova de ataques com computação quântica.

Conclusão A blockchain é uma tecnologia. E só se pode avaliar corretamente uma tecnologia conhecendo seus pontos fortes, para verificar se sua implementação adiciona potencial ao objetivo proposto, e suas fraquezas, para analisar os riscos potenciais e a forma de superá-los. Sua utilização pelo Registro de Imóveis é uma possibilidade que apresenta vantagens tecnológicas, mas que não pode desconsiderar suas peculiaridades e os pontos que ainda necessitem de aperfeiçoamento.

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Workshop

COMPUTAÇÃO COGNITIVA e o Registro de Imóveis

2 DE AGOSTO de 2017 | ON-LINE

por Caleb Matheus Ribeiro de Miranda

COMPUTAÇÃO COGNITIVA E O RI:

Se ignorarmos os novos tempos, receio que eles também nos ignorem

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Dedicado às potencialidades e aos recursos das novas tecnologias da informação e da comunicação em apoio às atividades registrais, o workshop online Computação Cognitiva e o Registro de Imóveis, realizado no dia 2 de agosto de 2017 – uma promoção do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil (IRIB) e da Academia Brasileira de Direito Registral Imobiliário (ABDRI) – teve o objetivo de trazer mais conhecimento para o debate instaurado no Instituto sobre as possibilidades tecnológicas para o registro eletrônico. As palestras transmitidas ao vivo pela internet tiveram a audiência de registradores em 18 Estados, além do Distrito Federal.

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Workshop

COMPUTAÇÃO COGNITIVA e o Registro de Imóveis

2 DE AGOSTO de 2017 | ON-LINE

Como introdução ao tema do workshop publicamos aqui parte da entrevista de Caleb Matheus Ribeiro de Miranda, pesquisador de Novas Tecnologias do IRIB, publicada pelo Instituto na véspera do evento. A íntegra pode ser lida em https:// goo.gl/euF6sM P – Por que falar sobre computação cognitiva para o Registro de Imóveis? Caleb de Miranda – Primeiramente, é importante sabermos o que é computação cognitiva. Computação cognitiva é o conjunto de procedimentos, rotinas e sub-rotinas, software e hardware, que consegue aproximar o desempenho de um sistema computacional da forma de processamento de informações por um ser humano. A ideia por trás da computação cognitiva é aumentar o campo de atuação de sistemas informatizados de forma a abranger não somente as tarefas usualmente atribuídas a computadores – com dados estruturados e comandos não-ambíguos – como também permitir-lhes trabalhar com dados que não estejam estruturados de forma direta. A computação cognitiva é um passo que implica não apenas o aumento da capacidade de processamento, mas principalmente a diferença no tipo de entrada de dados e seu processamento. O impacto da computação cognitiva no Registro de Imóveis é a introdução da possibilidade de automação de tarefas e rotinas que até então não eram possíveis de serem automatizadas. A importância de discutirmos o tema da computação cognitiva entre os registradores vem do fato de estarmos em face de uma tecnologia que possui algumas características essenciais: 1) potencial de redução de custos; 2) aumento de precisão; 3) aptidão para aperfeiçoamento do desempenho das atividades. Se uma tecnologia atende uma dessas características, ela já é merecedora de atenção no intuito de oferecer melhor serviço. A computação cognitiva atende as três e igno-

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rá-la é ignorar o presente e o futuro do desempenho das atividades na sociedade. Se ignorarmos os novos tempos, receio que eles também nos ignorem.

P – O que seria um exemplo de aplicação de computação cognitiva no RI? Caleb de Miranda – O exemplo mais simples de uma aplicação de computação cognitiva é um sistema que consiga, com base nos dados do imóvel constantes da ficha de matrícula, definir a situação atual do imóvel. O


Computação cognitiva e o RI

sistema pode indicar a presença de ônus, os cancelamentos ocorridos, as transferências posteriores, e oferecer ao usuário um histórico resumido do imóvel ou o relatório de sua situação atual.

A computação cognitiva possui algumas características essenciais: 1) potencial de redução de custos; 2) aumento de precisão; 3) aptidão para aperfeiçoamento do desempenho das atividades.

Um sistema mais avançado de computação cognitiva permitirá uma qualificação prévia e informatizada dos títulos. Isso pode ser realizado tanto no âmbito dos Tabelionatos de Notas (conferência) como dos Registros de Imóveis (qualificação). Terminado o título, o escrevente notarial poderia transferi-lo ao sistema de qualificação prévia e este indicaria pontos específicos onde há necessidade de atenção ou mesmo requisitos do ato notarial que não foram encontrados. De igual modo, antes de iniciar a qualificação do título, o escrevente do Registro de Imóveis poderia digitalizá-lo (se em meio físico) e usar o processamento para fazer uma qualificação prévia. É importante ressaltar que esse trabalho do computador não é perfeito, mas pode servir de auxílio e guia para a complementação e evitar erros comuns na prática dos atos. Além disso, o computador não tem problema em se lembrar dos requisitos de todos os atos registrais possíveis.

P – Há softwares capazes de dialogar com seres humanos, analisar jurisprudência e efetuar diagnósticos médicos. Como utilizar essa tecnologia no RI? Caleb de Miranda – Essas tecnologias podem nos ajudar em praticamente todas as áreas de atuação do Registro de Imóveis. O cartório realiza análises durante toda sua atividade. A qualificação pode ser auxiliada pela

computação cognitiva. A análise da situação dos imóveis registrados e a publicidade dos dados registrais também serão aperfeiçoadas pela computação cognitiva.

Um exemplo para mostrar sua aplicação na publicidade registral foi a solicitação do CREA, algum tempo atrás, de uma relação de todos os procedimentos nos quais havia participações de engenheiros junto aos Registros de Imóveis. Um ser humano poderia ler a matrícula e encontrar as indicações de ARTs, mas havia dois aspectos que impossibilitavam a pesquisa: 1) nosso sistema não estava estruturado para a emissão dessa informação; 2) o trabalho de abrir uma por uma as matrículas e lê-las tornava inviável a busca. Um sistema de computação cognitiva não teria dificuldades em fazer a análise das informações das matrículas e obter um resultado preciso.

Na pesquisa e análise de jurisprudência um sistema de computação cognitiva permite a busca aprimorada pelo oficial. Todos nós já tivemos a experiência de buscar no Google a resposta a uma questão específica. Depois de fazer a pesquisa dispendemos um bom tempo filtrando dezenas de resultados até encontrar um caso semelhante ao nosso. Um sistema de computação cognitiva tem condições de entender o conteúdo do que está lendo, interpretá-lo e oferecer a conclusão que encontrou, bem como indicar resultados efetivamente relevantes. Isso pode significar a diferença entre horas ou minutos de pesquisa, permitindo ao registrador empregar o seu tempo na construção do raciocínio jurídico para a solução do caso concreto em vez de perdê-lo com a filtragem de conteúdo. Além disso, um sistema de computação cognitiva poderia funcionar como um atendente no Registro de

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COMPUTAÇÃO COGNITIVA e o Registro de Imóveis

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Imóveis. A utilização de linguagem natural na pergunta pelo usuário e na resposta pelo sistema levará a um atendimento efetivo e preciso. O que todos queremos é ser atendidos da maneira mais eficiente, para resolver nossa questão ou tirar nossa dúvida. E um sistema de computação cognitiva poderia resolver a maioria das dúvidas sem que percebêssemos a diferença de um atendente humano, por vezes até com mais eficiência.

P – O que a tecnologia de big data poderia trazer ao Registro de Imóveis? Caleb de Miranda – A utilização de métodos de análise de Big Data permite a descoberta de novos dados, conclusões e conhecimento da análise dos dados já existentes. Nós possuímos um conjunto gigantesco de dados em nosso acervo e ele permanece estático. As inferências que podem ser obtidas de sua análise podem ter alto valor para a sociedade. Nossos sistemas não conseguem responder uma pergunta simples como qual o preço médio do metro quadrado em certo bairro. Poderíamos responder essa pergunta e muitas outras (expansão da cidade, melhores bairros para investimento, etc.).

P – Que futuro podemos esperar para o Registro de Imóveis? Por que o registrador deve estar atento a essas novas tecnologias? Caleb de Miranda – O futuro do Registro de Imóveis enquanto instituição depende de nossa capacidade de adaptação às novas demandas, às novas tecnologias, aos já piegas “novos tempos”. Os Registros de Imóveis são órgãos auxiliares da Justiça criados para atender a uma necessidade do mercado. Nosso ramo de atuação é a segurança jurídica.

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Devemos estar atentos às novas tecnologias porque nossa estrutura atende a uma função – segurança jurídica. Mas, se ignorarmos as novas possibilidades e ficarmos vinculados a um modelo anacrônico de funcionamento outras estruturas tentarão surgir do mercado, sugerindo novos modelos, que, ainda que ausentes nossos característicos marcantes e principais vantagens, busquem oferecer essa segurança aos usuários, ao mercado e ao Estado. Quanto ao futuro, podemos esperar uma diminuição do custo e um nivelamento positivo de modo que os Registros de Imóveis do interior e das capitais de todos os Estados possam oferecer um serviço com qualidade muito próxima. O Registro de Imóveis enquanto instituição deve poder investir na tecnologia necessária, fornecendo-a para o uso de cada um dos oficiais. Imagino um Registro de Imóveis como um sistema integrado, organizado, com segurança e celeridade. Um sistema que seja visto como modelo de eficiência. Acredito que devemos trabalhar também pela expansão de nossa atuação de modo a resolver mais questões que hoje são atribuídas ao Judiciário.

P – Quais são os ganhos da computação cognitiva para o trabalho registral? Caleb de Miranda – O principal ganho com a computação cognitiva é em performance. Os sistemas de computação cog-


Computação cognitiva e o RI

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COMPUTAÇÃO COGNITIVA e o Registro de Imóveis

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Ainda, um sistema que a tarefa fosse realizada com computacional pode ser da menor precisão do que faria um ser vantajoso em relação ao humano e de maneira mais demoracusto. Imaginemos um da haveria vantagem para o desempenho das atividades, considerando sistema de computação que um computador pudesse realiSe um sistema de computação cogcognitiva que pudesse zar as tarefas 24 horas por dia, sete nitiva é mais veloz, gastando um midias por semana, e com um custo transformar em nuto para realizar um trabalho que de máquina inferior ao custo de um um funcionário treinado demoraria texto o conteúdo das funcionário treinado. meia hora e, às vezes, mais do que transcrições escritas isso, temos uma vantagem real na P – A computação sua utilização. É o exemplo da qualimanualmente. cognitiva nos cartórios ficação informatizada ou da interpretação automatizada do conteúdo da demanda investimentos matrícula. Nesses casos o sistema pode ler o conteúdo em software, hardware e qualificação apresentado com atenção a todos os detalhes e cláusude funcionários. Por que investir? las constantes do título e realizar o processamento das nitiva se tornam vantajosos quando ultrapassam em grande medida o trabalho realizado pelos seres humanos em um dos seguintes aspectos: velocidade, qualidade ou custo.

informações de maneira mais rápida. Após a emissão de relatório pelo sistema, o funcionário, devidamente treinado, pode fazer a conferência dos apontamentos e dos requisitos que o sistema considerou cumpridos. O sistema atua como um acelerador de desempenho e o ser humano como um controle de qualidade final. Um sistema de computação cognitiva com mais qualidade seria aquele que fosse melhor na prática dos atos do que um ser humano. Um bom exemplo seria um sistema de identificação dos dados de qualificação constantes da matrícula e cruzamento das informações para verificar a existência de disparidades entre os dados referentes à mesma pessoa constantes de atos registrais diversos. Enquanto um ser humano teria grande dificuldade em lidar com esse volume imenso de dados a serem verificados, a tarefa não teria dificuldades em ser realizada por um sistema de computação cognitiva. Ainda, um sistema computacional pode ser vantajoso em relação ao custo. Imaginemos um sistema de computação cognitiva que pudesse transformar em texto o conteúdo das transcrições escritas manualmente. Ain-

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Caleb de Miranda – Por que investir em tecnologia? Por que investir em sistemas informatizados e em impressoras, escâneres e sistemas de backup? O principal ponto é o que desejamos para o futuro da atividade. A aplicação da computação cognitiva demanda investimentos em hardware, em software e em qualificação de funcionários. Demanda, especialmente neste momento inicial de inserção da ferramenta na atividade, uma atitude pronta a aceitar o desafio de construirmos um registro melhor. A grande vantagem da computação cognitiva é, neste primeiro momento, a possibilidade de obtermos resultados mais eficientes. Hoje, a vantagem no uso da computação cognitiva é podermos acompanhar o estado da arte, andar junto ou logo adiante das demais instituições e estruturas do Estado na prestação de serviços nessa nova sociedade. Muito em breve, a questão de adoção ou não da computação cognitiva será uma questão de sobrevivência. De voltar a ser o que éramos. Se os delegados de Notas e Registro não desejarem aplicar as melhores tecnologias no desempenho da atividade, elevando-a ao pleno desenvolvimento de


Computação cognitiva e o RI

seu potencial, certamente haverá outras pessoas dispostas a fazê-lo, e que criarão um sistema que, malgrado não detenha os atributos que nos são tão caros (como a fé pública e a confiança da sociedade), terá tecnologia adequada. Ao mesmo tempo que os oficiais devem estar conscientes de que seu mister não pode ser substituído por um aparato tecnológico – afinal, são profissionais do Direito que desempenham função de alta carga intelectual e interpretativa com fim de assegurar direitos da sociedade –, devem também estar atentos ao fato de que nenhuma instituição pode existir em estado de anacronismo. “Software is eating the world” é o brado que se ouve, anunciando o fim de todos que não quiserem se adequar ao novo mundo. E o fim do anacronismo tecnológico será a morte. Cumpre-nos evitá-la.

Isso não é uma verdade em escopo amplo. O resultado que deve ser perseguido é o aumento do número de atividades desempenhadas, cada qual com um custo menor, a justificar a conservação das instituições, permitindo até o seu crescimento. Precisamos praticar Ao mesmo tempo mais atos, de forma mais eficiente, que os oficiais devem com segurança jurídica e adequada estar conscientes de que remuneração. Precisamos conseguir imprimir maior certeza e segurança seu mister não pode a um número mais abrangente de ser substituído por um atos, de forma a auxiliar na criação de relações sociais melhores, reduzindo aparato tecnológico, o custo do desempenho das outras devem também estar atividades humanas. Nós somos óratentos ao fato de que gãos auxiliares da Justiça. Devemos nos aperfeiçoar no exercício dessa nenhuma instituição caríssima função voltada à satisfação pode existir em estado do justo, eliminando incertezas e inde anacronismo. seguranças.

P – O uso de novas tecnologias é positivo para o desenvolvimento da atividade notarial e registral? Por quê? Caleb de Miranda – As ferramentas tecnológicas podem ser utilizadas pelo ser humano com a finalidade de desempenhar uma atividade de maneira mais eficiente. Nesse sentido, evidentemente o uso das tecnologias, aí incluídas as novas tecnologias, é positivo para o desenvolvimento da atividade notarial e registral. Uma crítica que pode ser feita diz respeito à noção de que um aumento de eficiência implique uma redução do pessoal necessário para o desempenho das atividades.

Nós temos que nos desapegar de algumas pressuposições e avançar em relação a este novo mundo que se nos descortina. Temos novos paradigmas. Se ontem era suficiente a noção de tempo como “não tão demorado”, hoje já não se fala nem em rápido; chegamos à era do instantâneo. E mobile first. E com menos formalidades. E com custo reduzido. O cartório ainda é visto como uma instituição burocrática. Devemos manter o aspecto burocrático – os regramentos e requisitos e verificações e divisões de atribuições – somente enquanto necessários à segurança jurídica. A sociedade tem novas demandas, e elas serão atendidas. Devemos atender a essas novas demandas sem deixar de ser o que somos, mas chegando a ser o que efetivamente podemos ser. (Fonte: Assessoria de Comunicação do IRIB; publicado em 1.8.2017).

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COMPUTAÇÃO COGNITIVA e o Registro de Imóveis

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O QUE É COMPUTAÇÃO COGNITIVA?

por Flavio Soares Corrêa da Silva

Flávio Soares Corrêa da Silva, professor do Instituto de Matemática e Estatística da USP, proferiu a primeira palestra e abordou a nova tecnologia, suas origens (IA/inteligência artificial, redes neurais, processamento de sinais) e variações (machine learning, processamento de linguagem natural, robôs e interação humano-máquina), seu potencial e implicações para as atividades intensivas em conhecimento, estado da arte e limites atuais da tecnologia. 68


O que é computação cognitiva?

A

inteligência artificial nasceu na Grécia antiga. Desde a antiguidade já se pensava na construção de agentes autônomos que se comportassem de forma inteligente. Entretanto, a inteligência artificial como a conhecemos hoje nasceu em 1956. O objeto de estudo da inteligência artificial sempre foi a reconstrução do comportamento inteligente, ou seja, daquele comportamento reconhecido como inteligente por agentes biológicos igualmente inteligentes, e não a reconstrução da inteligência propriamente dita. Alguns aspectos desse comportamento possivelmente vão esclarecer a razão pela qual a inteligência artificial é feita por cientistas. Os fundamentos e princípios da engenharia e da matemática aplicada são as ferramentas utilizadas para a reconstrução do comportamento inteligente em artefatos produzidos como resultado de projetos de engenharia. Saber se cientistas, engenheiros, financistas, construtores de dispositivos e estudiosos em geral seriam capazes de construir dispositivos que manifestem um comportamento inteligente com a utilização de ferramentas que permitam o controle daquilo que está sendo produzido, isto é, que permitam a aferição dos resultados e entendimento das causas que levam a um comportamento x ou y, são desafios que se põem desde o início. A matemática, a física, alguns conceitos de ciências naturais e, mais recentemente, de ciências humanas e sociais são algumas das ferramentas que vêm sendo utilizadas com esse intuito.

Ciclos de desenvolvimento da inteligência artificial (IA) Partindo de suas origens históricas passemos aos ciclos de desenvolvimento da inteligência artificial que vêm sendo repetidos regularmente. São fenômenos que se mostram passíveis de caracterização por meio de ferramentas formais, tais como a matemática e a enge-

nharia, e que possibilitam a criação de novas tecnologias capazes de gerar produtos de utilidade pública. Na década de 1950, as redes de computadores possuíam uma natureza que viabilizava determinado suporte tecnológico para as tecnologias da época. Hoje, os computadores contam com suporte tecnológico mais robusto que permite que novas tecnologias se estabeleçam e possam ser utilizadas. Quando essas novas tecnologias encontram suporte tecnológico adequado elas permitem a caracterização de produtos que uma vez colocados em prática solucionam problemas da forma apropriada, embora com certa delimitação, após a qual começam a gerar frustrações e novas necessidades, realimentando o ciclo que se reinicia. Na área de inteligência artificial existe um ciclo de aproximadamente vinte anos que vem se repetindo com regularidade bastante curiosa. Nos anos 1970 e 1980, a inteligência artificial se caracterizou pela busca de resultados baseados em princípios que se exauriram a partir do final da década de 1970, dando lugar a novos princípios aplicados até 2010. Atualmente, a inteligência artificial vive o meio de seu quarto ciclo de construção de soluções baseado em princípios que estruturam e alimentam as pesquisas científicas e tecnológicas nessa área.

Inteligência artificial: solução ou ameaça? A seguir vamos verificar os ciclos de evolução e a forma como eles se repetem e nos alertam a respeito dos cuidados que devemos tomar para que bons resultados sejam garantidos e maus resultados evitados. Quando a inteligência artificial foi apresentada oficialmente havia a expectativa de que seria algo passível de reconstrução num dispositivo ou artefato de maneira global.

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É curioso observar os nomes de importantes projetos da época, como por exemplo, GPS (General Problem Solver), criado em 1957 com o objetivo de resolver qualquer problema de matemática. Podia, por exemplo, formular novas teorias matemáticas quando fosse necessário. Outro sistema formulado na mesma época, denominado Logic Security, tinha como objetivo construir teorias lógicas que pudessem explicar fenômenos observados eventualmente. Dos anos 1950 aos anos 1970, a inteligência artificial foi fortemente caracterizada pela busca de sistemas capazes de admitir formulações de quaisquer problemas e resolvê-los com base em princípios fundamentais. Nessa mesma época começaram a surgir alguns alertas de autores e pesquisadores de arte, cinema e literatura a respeito dos possíveis riscos de o processo ser bem-sucedido. Um filme bastante marcante na história do cinema foi 2001, uma odisseia no espaço, lançado em 1968, que apresentava pela primeira vez o Hal 9000, um olho de ciclope que monitorava as atividades e matava toda a tripulação de um capitão, único personagem que sobrevive e vence o ciclope. Portanto, a discussão a respeito de ser a inteligência artificial uma ameaça ou uma solução vem desde a sua origem. No final de 1970, a inteligência artificial começou a se fragmentar e gerar soluções baseadas em princípios aplicados a problemas diferenciados. De 1970 a 1990, isto é, no início do segundo ciclo da IA, prevaleceu a seguinte ideia: diferentes maneiras de resolver o problema seriam aplicadas em diferentes

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contextos e situações. Essas maneiras seriam capturadas na forma de regras lógicas e de dedução, por meio de entrevistas com especialistas em inteligência artificial. Foi quando eu comecei a estudar a inteligência artificial na universidade, e as técnicas de entrevistas estavam entre os conteúdos ministrados no curso. Aprendemos a realizar entrevistas com especialistas de várias áreas, médicos, engenheiros e advogados, de maneira que a informação capturada pudesse se tornar um conjunto de regras lógicas e estas, por sua vez, pudessem ser transformadas em sistemas solucionadores de problemas. A qualidade dessas regras era controlada por sistemas matemáticos baseados em álgebras que garantiram a confiabilidade da informação fornecida. Isso funcionou muito bem durante um período e obteve muito sucesso na área comercial. Entretanto, os problemas começaram a ficar mais sofisticados e as entrevistas começaram a se mostrar insuficientes para a captação de conhecimentos necessários à construção dos sistemas.

Das Redes Bayesianas às redes neurais artificiais e arquiteturas cognitivas Por volta dos anos 1990, um novo conjunto de técnicas começou a se estabelecer. Eram técnicas baseadas em relações probabilísticas, as chamadas Redes Bayesianas, que indicam as relações de interdependência entre os fenômenos. Se algo acontece, qual a probabilidade de acontecer uma segunda vez ou de o segundo fenômeno estar relacionado com o primeiro? Essas re-


O que é computação cognitiva?

des de inter-relações probabilísticas solucionadoras de problemas sofisticados prevaleceram até 2006. A fonte inicial de informação – entrevista com especialistas – continuou sendo utilizada, entretanto, ficou cada vez mais dependente das observações experimentais ao redor do mundo para produzir as probabilidades que alimentaram o sistema. A qualidade das redes não é mais monitorada exclusivamente com base em lógica, mas também em teoria de probabilidades, tudo para garantir a qualidade das informações produzidas com o objetivo de que melhores decisões possam ser tomadas. Essa área teve grande florescimento em termos de utilização prática e desenvolvimento científico e tecnológico. A forma de construir fenômenos de comportamento inteligente para a solução de problemas difíceis se tornou um grande desafio hoje, pois vivemos rodeados de redes interconectadas e um volume imenso de dados é cada vez mais indispensável. Atualmente, temos a dominância de sistemas de aprendizado de máquina, redes neurais artificiais e arquiteturas cognitivas, cujas informações geradas são obtidas principalmente por meio de observações experimentais e coleta de dados. Essas informações são agregadas e organizadas de forma arquitetada graças às técnicas de otimização e de manipulação de sistemas, que sofrem perturbação e buscam uma condição de estabilidade. Essa condição de estabilidade deve apresentar uma solução adequada para o problema que se apresenta.

Sistemas capazes de reconstituir comportamentos inteligentes Esses são os ciclos pelos quais a inteligência artificial vem passando. Mas o que eles têm em comum? O objetivo é o mesmo desde o início, utilizar técnicas

formais e cuidadosas de matemática e de engenharia para a construção de sistemas capazes de reconstituir comportamentos inteligentes de tal forma que problemas difíceis e extremamente relevantes possam ser resolvidos com eficiência cada vez maior.

A forma de construir fenômenos de comportamento inteligente para a solução de problemas difíceis se tornou um grande desafio hoje, pois vivemos rodeados de redes interconectadas e um volume imenso de dados é cada vez mais indispensável.

Se de um lado o nome inteligência artificial é perfeitamente adequado, porque o comportamento inteligente tem sido a base e o motor de toda essa jornada de construção científica e tecnológica, de outro, é perigoso por gerar especulações. A sigla IA pode ser interpretada de diversas maneiras e significar até incompetência. Um sistema que incorpore aspectos que caracterizem a incompetência de seu construtor pode se tornar bastante perigoso. Uma panela de pressão, um relógio, um celular com bateria que superaquece podem ser perigosos, assim como qualquer outra coisa mal construída. Um sistema bem construído e projetado deve produzir o resultado para o qual foi projetado. Um sistema não é nem uma coisa nem outra. Não é um perigo e nem a salvação de nada. Se bem construído, reproduz resultados adequados. Se alguém está interessado em obter resultados adequados de um sistema a ser construído, deve cuidar para que essa construção se faça da maneira adequada, utilizando as ferramentas de matemática e engenharia – que podem ser muito difíceis de dominar – para produzir o efeito desejado.

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COMPUTAÇÃO COGNITIVA e o Registro de Imóveis

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COMPUTAÇÃO COGNITIVA E LAWTECHS por Guilherme Novaes Procopio de Araujo

Guilherme Novaes Procopio de Araujo, líder de Watson da IBM Brasil, traçou um panorama das aplicações da computação cognitiva em desenvolvimento e operação no Brasil e no mundo.

O

palestrante apresentou a evolução da tecnologia IBM Watson e algumas das aplicações que existem no Brasil e no mundo. Inicialmente, destacou que a denominação inteligência artificial cognitiva tem razão de ser uma vez que a inteligência artificial não seria possível sem a cognição do ser humano. “A máquina jamais substituirá o ser humano em suas atividades principais, nem é essa a intenção do Watson”, observou.

Surge o Watson: quando a máquina é capaz de mudar um comportamento Cada celular existente gera hoje dados das mais variadas maneiras, seja através de aplicativos como o WhatsApp, de um vídeo ou da postagem de conteúdo nas redes sociais. Cerca de 2,5 bilhões de gigabytes de dados novos são gerados diariamente. Quatro quintos desse volume, o equivalente a 170 mil jornais distribuídos para 7 milhões de habitantes, é o que se denomina como “dados não estruturados”.

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Computação cognitiva e lawtechs

Dado não estruturado é tudo aquilo que não se consegue tabular, portanto, não é inserido em um banco de dados relacional. Por exemplo, uma máquina não está apta a entender a linguagem representada numa foto de Usain Bolt na semifinal das Olimpíadas, ao contrário dos seres humanos, que são capazes de identificar o contexto por trás da imagem. Sabemos quem é Usain Bolt e que a foto foi tirada durante as Olimpíadas de 2016. O contexto Usain Bolt é imprescindível na inteligência artificial.

mentos ensaiados por ele. Resolveu, então, confundir a máquina, deixando de seguir critérios lógicos de um grande enxadrista e venceu a partida.

O telefone levou 75 anos para alcançar a marca de 50 milhões de usuários; o rádio, 38 anos; o PC, 16 anos; a TV, 14 anos. A internet alcançou 50 milhões de usuários em quatro anos; o Facebook em 3,5 anos; o Angry Birds em 35 dias. O Pokémon Go, um aplicativo de realidade aumentada, alcançou 50 milhões de clientes em 19 dias. Hoje o Pokémon Go é o número 1 nesse ranking, com 120 mil usuários ativos.

Em média, o ser humano leva um minuto e meio entre o raciocínio e o movimento de apertar o botão. O Watson faz isso em 0,003 milésimos de segundos, o que lhe dá uma vantagem enorme em relação aos seus oponentes. Por essa razão, sua velocidade foi retardada por um sensor para que o jogo pudesse ser mais equilibrado.

No segundo jogo Deep Blue mudou a estratégia por sua própria conta e derrotou Kasparov em apenas seis movimentos. A partir daí se pensou: “se a máquina foi capaz de mudar um comportamento, talvez ela seja capaz de ser treinada para trabalhar de forma parecida com o ser humano”. Surge aí a IBM Watson. O projeto Watson teve início em 2006, mas somente em 2011 foi oficialmente apresentado em um game-show americano chamado Jeopardy. Nessa ocasião o Watson foi treinado para um jogo com temas variados, porém de forma invertida e com lógica mais complicada. O tema foi colocado em forma de respostas e o jogador devia fazer a pergunta referente àquela resposta. Foram convidados os dois maiores jogadores do Jeopardy.

Voltamos agora vinte anos na história, para o ano de 1997, quando o jogador de xadrez Garry Kasparov perdeu uma partida para Deep Blue, um supercomputador construído e programado pela IBM para jogar xadrez, jogo estatístico, com movimentos específicos e estratégicos. O que a história não conta é que Deep Blue perdeu o primeiro jogo para Kasparov e ninguém entende como o jogador conseguiu a proeza. Kasparov venceu porque percebeu que Deep Blue estava sempre adiantado quatro ou cinco movimentos à frente dos moviKasparov X Deep Blue 73


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Jeopardy X seus dois maiores jogadores

Machine learning: aprendizado contínuo da máquina amplia grau de acurácia O Watson não foi feito e treinado para acertar 100% das respostas. Trata-se de uma plataforma que trabalha com grau de confiança. O seu machine learning vai melhorando o grau de acuracidade no decorrer do jogo, razão pela qual do meio do jogo para o fim o Watson massacra os seus concorrentes e ganha com facilidade. O objetivo do Watson é encontrar respostas para qualquer pergunta a partir da análise de uma massa de dados em linguagem natural. Ele é capaz de entender

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textos, vozes, imagens e vídeos. Mas isso só é possível quando abastecido com as informações sobre as quais se quer a resposta. Assim como uma criança pequena precisa ser ensinada, o Watson também precisa ser treinado para compreender o que vai responder. Esse supercomputador pode ler mais de 800 milhões de páginas por dia. Para participar do Jeopardy ele leu toda a Wikipédia em um único dia. Uma vez processado o conteúdo recebido, o Watson passa a raciocinar como um humano ao ser questionado sobre qualquer assunto. O sistema gera e testa hipóteses a partir do conteúdo estudado e transmite a resposta com certo grau de confiança, que pode aumentar ou


Computação cognitiva e lawtechs

diminuir conforme erra ou acerta a pergunta. Em caso de feedback negativo, procuramos solucionar o problema buscando as prováveis causas do erro.

IBM chamada Bluemix com diferentes APIs – Application Programming Interfaces de analítica, segurança, clima, etc.

Se o Watson é capaz de entender, raciocinar e aprender, também é capaz de interagir com o ser humano. Isso é o que chamamos de aprendizado da máquina, um aprendizado contínuo cujo objetivo é ampliar cada vez mais o grau de acurácia do Watson.

As APIs de análise de personalidade humana (Watson Personality Insights), por exemplo, podem ser utilizadas por empresas para conhecer melhor seus funcionários ou para análise de perfil de clientes. Por meio de uma metodologia chamada Big Five, o sistema retorna as características mais marcantes da pessoa.

Sites de buscas versus Watson: diferencial está em compreender a intenção por trás da pergunta Motores de busca trabalham com palavras-chave e devolvem as respostas com base em popularidade ou em marketing de busca. O Watson compreende a intenção que está por trás da pergunta, independentemente da forma como ela é feita, analisa a evidência, gera as hipóteses e responde com determinado grau de confiança e instantaneamente. Recentemente resolvi testar um motor de busca. Pedi para que me mostrasse figuras de animais, exceto de elefantes. O sistema retornou somente figuras de elefantes. Isso aconteceu porque o motor de busca se baseou unicamente na palavra-chave elefante e não conseguiu entender minha intenção de buscar qualquer tipo de animal, menos um elefante. Essa é a grande diferença entre essas duas tecnologias.

Application Programming Interfaces – APIs O Watson não é um supercomputador, mas um conjunto de microsserviços. Cada um deles tem um uso específico e todos estão numa plataforma aberta da

As APIs fazem parte de um ecossistema aberto. A todo o momento empresas trazem novas APIs que são avaliadas pela IBM para integrarem a plataforma Bluemix. Essa tecnologia é semelhante a uma grande colmeia ou a um brinquedo Lego. Dependendo do tamanho do problema que se quer resolver é possível utilizar determinada peça ou construir o Lego conforme a preferência.

Aplicações Watson no Brasil Atualmente o Watson vem sendo utilizado por empresas que querem melhorar a experiência do seu usuário em suas plataformas digitais, bem como para melhorar a forma como as decisões são tomadas, a partir da compreensão dos sinais de dados não estruturados. O Watson também é muito utilizado na incorporação da cognição de diferentes dispositivos, como robôs, carros, etc. No Brasil, mais de noventa startups utilizam o Watson. Exemplos: Mecasei.com – Empresa de Porto Alegre que criou a Meeka, um

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aplicativo gratuito que funciona como um assistente pessoal para ajudar os preparativos do casamento. Trata-se de uma plataforma tecnológica desenvolvida a partir da computação cognitiva da IBM Watson para organização de casamentos e assessoria a noivos. Cuco Health – Aplicativo assistente de saúde que alerta pacientes com doenças crônicas para o horário certo dos medicamentos de uso contínuo. Esse aplicativo pode também alertar o médico quando o paciente não está tomando o remédio.

Ross é um superadvogado inteligente, uma espécie de advisor que aconselha as partes e auxilia o advogado a tomar decisões mais rápidas e assertivas, embasadas em informações pesquisadas em diversos arquivos e de maneira quase instantânea.

4all – Plataforma digital que conecta diferentes segmentos de mercado e integra toda a cadeia de pagamentos por aplicativos. Seu objetivo principal é garantir toda a jornada de experiências do usuário ao longo do dia por meio do aplicativo. IBM – Na própria IBM o Watson é amplamente utilizado. No Help Desk App, as dúvidas relacionadas a TI são respondidas pelo Watson de forma rápida e didática, desafogando o trabalho do profissional de TI. Em Recursos Humanos, o Watson também é utilizado no esclarecimento de questões próprias do setor, como folhas de pagamento, décimo terceiro, planos de incentivo, etc. Área bancária – Grandes bancos entraram nesse mercado. O Bradesco é o pioneiro e possui a maior instalação de inteligência artificial do mundo. Hoje o Watson conhece todos os produtos e serviços do banco e é utilizado por seus clientes para esclarecer dúvidas sobre produtos e serviços. O Banco do Brasil também está fazendo uso dessa aplicação, principalmente em aplicativos móveis.

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Área jurídica – Nem sempre é fácil treinar o Watson para ler e compreender textos com uma linguagem tão complexa e específica como a de processos judiciais. Mas isso já é realidade nos Estados Unidos, onde o Watson é capaz de informar a probabilidade de vitória de determinado processo e dizer se o juiz de determinada comarca tende a dar o caso favorável para um ou outro lado. Ross é um superadvogado inteligente, uma espécie de advisor que aconselha as partes e auxilia o advogado a tomar decisões mais rápidas e assertivas, embasadas em informações pesquisadas em diversos arquivos e de maneira quase instantânea.

Área tributária – O Brasil é o país com a maior e mais complexa carga tributária no mundo. Imaginem treinar o Watson para entender tudo o que se relaciona com impostos e taxas e ajudar empresas e usuários nos mais diversos desafios da área tributária. Isso já é possível. No Brasil, a referência é a Systax, empresa que criou a inteligência fiscal para acompanhar eventuais mudanças na legislação tributária, mantendo-se sempre atualizada em relação às regras fiscais. Medicina – A área médica foi a que mais recebeu investimentos da IBM. O Watson for Genomics é utilizado pelo Laboratório Fleury na análise de DNA humano e analisa em semanas o material que demorava anos para ser analisado pelo laboratório. Agricultura – Numa iniciativa pioneira no país, a IBM está criando um Watson para o setor da agricultura (Watson Agri) cujo objetivo é dar mais visibilidade e assertividade para toda a cadeia produtiva do campo, incluindo bancos, seguradoras, cadeia logística, etc. Com esse trabalho conjunto é possível saber com maior


Computação cognitiva e lawtechs Computação cognitiva e lawtechs

grau de certeza qual será a produtividade de grãos no país. A plantação é fotografada por drones, árvore a árvore, e o Watson Agri informa qual delas está pronta para a colheita. Essa iniciativa trouxe enorme ganho de produtividade do setor agrícola.

as informações, a plataforma pode pôr o usuário a par de sua agenda, alertá-lo, caso esteja faltando algo na sua geladeira e informar sobre o mercado mais próximo e com o melhor preço. Muito em breve essa tecnologia estará disponível no Brasil.

Cognição incorporada – É a inserção do Watson em robôs ou carros. O robô NAO, produzido na Ásia, já é utilizado no Brasil como concierge no Hotel Hilton. Ele recebeu o nome de Connie e responde a diversas dúvidas dos hóspedes quanto às dependências do hotel, pontos turísticos da cidade e restaurantes.

Outras aplicações Watson O Watson é aplicado em diversas áreas. Processos criativos de música – Analisamos todos os tweets encaminhados a Alex da Kid, produtor musical inglês de hip-hop, para descobrir quais eram as palavras e os temas mais debatidos com ele. A chamada Watson Beat é uma tecnologia que analisa as batidas das músicas. A partir dela analisamos os vencedores do Grammy dos últimos trinta anos para chegar aos ritmos mais ganhadores do Grammy. Isso serviu de matéria-prima para a criação da música Not Easy, de Alex da Kid. Análise dos sentimentos – A IBM Watson também está no trailer do filme Morgan. O Watson foi treinado para entender a emoção das pessoas assistindo aos cem melhores filmes de terror das últimas duas décadas e assim pôde sugerir à Fox os trechos mais relevantes e impactantes a serem selecionados.

Connie - concierge no Hotel Hilton.

GM OnStar – Parceria entre a IBM Watson e a General Motors para criar a primeira plataforma de mobilidade cognitiva da indústria automobilística integrando o Watson aos carros da categoria “veículos de entrada”. Essa plataforma permite ao motorista obter múltiplas experiências e o máximo aproveitamento do tempo gasto no carro. Vantagens do sistema: evitar o tráfego, cartão de crédito integrado ao veículo, evitando que o motorista tenha que descer do carro para fazer o pagamento do combustível. Uma vez catalogadas

Em parceria com a Marchesa, marca especializada em roupas femininas, a IBM Watson lançou um vestido cognitivo que muda de cor conforme o sentimento demonstrado pela modelo que o veste e pelo público nas redes sociais. Ou seja, o Watson identifica as emoções das pessoas que participam do evento com base em posts e tweets, e vai alterando sua forma de acordo com os inputs. Esse mecanismo também foi usado no Torneio de Wimbledon e em outros grandes campeonatos, para detectar o sentimento das pessoas que acompanham o espetáculo. O tipo de análise contribui para melhorar a programação dos sites e a interação com o usuário.

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COMPUTAÇÃO COGNITIVA APLICADA AO REGISTRO DE IMÓVEIS

O pesquisador de Novas Tecnologias do IRIB e Oficial de Registro de imóveis de Juquiá (SP), Caleb Matheus Ribeiro de Miranda, abordou a aplicação da computação cognitiva na prática de atos registrais e suas principais vantagens.

por Caleb Matheus Ribeiro de Miranda

A

computação cognitiva é o conjunto de sistemas de softwares e hardwares, de rotinas e sub-rotinas, que permitem ao computador um desempenho semelhante à cognição humana.

mente não é estruturada, grande parte deles fica fora do âmbito da computação. A computação cognitiva ajuda nesse processo, aumentando o campo de atuação da computação.

A principal vantagem da computação cognitiva é que os dados passados ao computador não precisam estar estruturados. Em geral, o computador processa os dados de modo mais rápido, se comparado ao ser humano, mas é necessário que esses dados sejam preparados para que possam ser lidos e compreendidos. E como a maioria dos dados produzidos atual-

Computação cognitiva ou inteligência artificial costuma causar receio nas pessoas, que tendem a achar que o sistema de computação cognitiva vai substituir o ser humano em suas atividades profissionais. Mas será mesmo que perderemos as tarefas que desempenhamos diariamente para um sistema de computação cognitiva?

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Computação cognitiva aplicada ao Registro de Imóveis

do jogador; e ainda, possibilitou ao público conhecer o pensamento do jogador antes da jogada, uma vez que a intenção do jogador também é objeto de análise pelo computador. Nossa proposta é construir um Registro de Imóveis avançado com ajuda da computação cognitiva. O Registro de Imóveis avançado é aquele que conta com um sistema de computação cognitiva, o que traz vantagens como: níveis de qualificação mais elevados; eliminação de erros comuns, que podem ocorrer por desatenção do oficial ou escrevente; maiores possibilidades de uso dos dados constantes dos registros; e maior efetividade nas pesquisas.

Aplicação da computação cognitiva ao Registro de Imóveis

A aplicação da computação cognitiva no Registro de Imóveis avançado pode se dar em quatro aspectos principais: 1. na aplicação prática dos atos; 2. na publicidade dos dados registrais; 3. na pesquisa de jurisprudência e legislação; e 4. na migração dos dados do sistema atual para um sistema estruturado.

O russo Garry Kasparov, grão-mestre do xadrez e campeão mundial de 1985 a 2000, é conhecido por ter sido derrotado pelo supercomputador Deep Blue da IBM, em 1997.

1. Computação cognitiva na prática dos atos e sua principal vantagem: compreensão da linguagem natural

Após essa derrota, Kasparov não desistiu do xadrez, mas o que fez foi criar uma nova modalidade desse esporte, o xadrez avançado, em que dois jogadores utilizam computadores para consulta das jogadas que pretendem realizar. O computador calcula as alternativas, indica os possíveis riscos e o jogador decide a melhor jogada.

A prática dos atos no Registro de Imóveis abrange as seguintes etapas: leitura do título e registros, interpretação, análise, modelo de registro e nota devolutiva. Ou seja, os títulos apresentados a registro são lidos, interpretados e qualificados pelo registrador. Depois o título segue para registro ou é feita a nota devolutiva.

O xadrez avançado trouxe três grandes vantagens ao permitir a interação entre computador e jogador: elevou o nível de xadrez a patamares nunca atingidos antes nem com o xadrez humano nem com o xadrez computacional; permitiu um jogo sem erros, uma vez que o computador impede eventual jogada equivocada

Para auxiliar o oficial e o escrevente nessa tarefa de qualificação dos títulos, o sistema de computação cognitiva teria que receber treinamento para compreender a forma como são feitas as matrículas e transcrições e a qualificação dos demais títulos apresentados a registro. A principal vantagem da computação cognitiva é a compreensão da linguagem natural.

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Informações usando linguagem natural e linguagem estruturada: Linguagem natural

Linguagem estruturada

João casou com Maria <ato> <tipodeato>casamento</tipodeato> <nubente>Maria</nubente> </ato> Não há problema em lidar com as duas linguagens. No entanto, um modelo que utiliza as duas linguagens concomitantemente traz duas desvantagens. A primeira é que o ser humano não tem condições de conferir se a linguagem estruturada corresponde de fato ao que consta da linguagem natural. A segunda desvantagem é o custo da estruturação dos dados. Em geral, fazemos documentos para que outros seres humanos leiam, portanto, não é usual a confecção de documentos em linguagem natural e estruturada. A principal vantagem da computação cognitiva é a capacidade do sistema em interpretar e compreender a linguagem natural. O sistema pode identificar o tipo de imóvel – rural, urbano, com ou sem construção –; se a especialidade objetiva está cumprida; a área do imóvel; o seu proprietário; direitos reais e limitações eventualmente existentes; os negócios jurídicos e as cláusulas acessórias constantes do título entre outras informações. Basicamente, o sistema recebe o título em papel ou digitalizado, faz sua leitura e interpretação para, então, iniciar o trabalho de qualificação.

Qualificação automatizada: análise e verificações A qualificação é feita pelo sistema em duas ocasiões: na análise dos requisitos e nas verificações rotineiras.

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Registro de Imóveis avançado é aquele que conta com sistema de computação cognitiva, que proporciona: níveis de qualificação mais elevados; eliminação de erros comuns; mais possibilidades de uso dos dados constantes dos registros; e maior efetividade nas pesquisas.

Na análise dos requisitos, o sistema examina os negócios jurídicos apresentados e cria um checklist personalizado para aquele determinado título, fazendo a conferência individualizada de todos os títulos. O sistema identifica os requisitos cumpridos e aqueles ainda pendentes, com um OK e uma flag, respectivamente, e também aqueles requisitos cujo status não consegue identificar.

Feita a análise dos requisitos, o sistema passa a fazer as verificações rotineiras, que são aquelas comumente feitas no cartório, como a confirmação de certidões, CNDs do INSS, CCIR, ARTs, RRTs, autenticidade de selos digitais. Com base na análise dos requisitos e nas verificações rotineiras, o sistema emite três outputs: um relatório de qualificação, um modelo de ato registral e um modelo de nota devolutiva. A primeira função do relatório de qualificação é a transparência. Em geral, a qualificação do oficial ou escrevente é feita a partir do seu próprio intelecto, nada tendo que relatar a respeito. O oficial ou escrevente diz apenas o motivo da devolução, se o caso, e se o título está apto a registro. O sistema de computação cognitiva, ao contrário, precisaria fazer o relatório, identificando as partes constantes do título, as partes constantes da matrícula, o tipo de negócio jurídico, os imóveis objeto do ato, os requisitos que devem ser cumpridos, e se estes foram ou não cumpridos. Esse relatório completo


Computação cognitiva aplicada ao Registro de Imóveis

da qualificação seria arquivado no próprio sistema para posterior conferência pelo escrevente autorizado. Além disso, o sistema também faria modelos de atos registrais, mesmo em caso de qualificação negativa, para que o escrevente possa conferir se interpretou corretamente o título. Se for o caso, faz-se o modelo de nota devolutiva. A qualificação automatizada passa pelas mesmas etapas do processo tradicional de qualificação, isto é, faz a leitura e interpretação da linguagem natural, a análise dos requisitos de qualificação e demais conferências e, ao final, emite o relatório de qualificação e modelos de ato registral e de nota devolutiva.

Vantagens da qualificação automatizada A qualificação automatizada apresenta vantagens e desvantagens. As vantagens são evidentes:

Não se trata da substituição do oficial pelo sistema cognitivo. A proposta é uma qualificação registral híbrida, ou seja, o oficial faria apenas a conferência do relatório de qualificação emitido pelo sistema.

2. Computação cognitiva na publicidade dos atos registrais Um segundo aspecto importante da aplicação da computação cognitiva no Registro de Imóveis é a publicidade dos atos. Basicamente, a publicidade dos atos registrais se dá de cinco formas: pela emissão de certidões de inteiro teor; certidões pessoais; certidões reais; certidões de documentos arquivados; ou certidões em relatório ou em resumo (a menos comum).

VANTAGENS

DESVANTAGENS

- Velocidade: a qualificação automatizada é muito mais rápida do que a qualificação feita por um escrevente. O título apresentado é lido praticamente de forma automática.

A principal desvantagem do uso da computação cognitiva na qualificação registral são os erros e imperfeições que o sistema pode apresentar por não ser capaz de alcançar o poder qualificativo do escrevente ou oficial. Ou seja, embora seja mais rápido e tenha melhor custo, o sistema pode não entender as nuances de uma interpretação ou o significado de determinado texto.

- Custo reduzido: a qualificação automatizada reduz a carga de trabalho do escrevente. - Leitura integral: a qualificação automatizada possibilita a leitura integral de documentos, incluindo contratos muito longos, coordenadas georreferenciadas, fazendo uma conferência efetiva entre mapas e memoriais. - Memória completa: o sistema tem memória completa, o que implica dizer que consegue fazer um cruzamento de checklists para identificar, rapidamente, todos os requisitos necessários ao ato.

Essa única desvantagem, no entanto, não pode servir de motivo para impedir o uso da computação cognitiva nos registros. Não se trata da substituição do oficial pelo sistema cognitivo. A proposta é que a qualificação registral passe a ser híbrida, ou seja, o oficial ou escrevente autorizado se responsabilizariam apenas pela conferência e aval do relatório de qualificação emitido anteriormente pelo sistema. 81


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A computação cognitiva, entretanto, propõe três novas formas de publicidade dos atos registrais: a certidão de situação atual; o acesso a todos os dados do registro; e a utilização do Big Data.

Computação cognitiva propõe certidão resumida

Recebido o pedido de certidão o sistema de computação cognitiva faria a leitura integral dos registros, com a completa compreensão das modificações existentes, e emitiria uma certidão da situação jurídica atual do imóvel com o histórico dos registros anteriores.

São emitidas certidões de inteiro teor ou certidão resumida. O conteúdo da certidão de inteiro teor é impresso de forma automatizada e em ambos os casos a interpretação é feita exclusivamente por meio da cognição humana.

No caso da certidão de inteiro teor, não basta que o interessado faça a leitura do documento para que seu conteúdo seja compreendido. É preciso que ele interprete cada um dos seus aspectos, não sendo possível compreender a situação tal como informada na certidão. É preciso verificar os ônus eventualmente existentes, os cancelamentos e transferências porventura ocorridos. Só assim o interessado terá condições de compreender a situação jurídica atual do imóvel. Na certidão resumida, confeccionada pelo escrevente, a situação é oposta. O funcionário precisa verificar atentamente as informações constantes da matrícula e relatá-las à parte por meio de uma certidão resumida. Essa certidão é mais prática para o usuário, que já recebe a informação atualizada e resumida. Em contrapartida, a emissão desse tipo de certidão custa caro para o cartório, em geral mais que o valor cobrado pelo documento. A computação cognitiva propõe a emissão de uma certidão resumida feita no computador com auxílio do escrevente. Recebido o pedido de certidão o sistema de computação cognitiva faria a leitura integral dos regis-

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tros, com a completa compreensão das modificações existentes, e emitiria uma certidão da situação jurídica atual do imóvel com o histórico dos registros anteriores. Em seguida, o escrevente faria a conferência dos dados com a matrícula, dando fé pública ao documento.

Logo após identificar a situação atual do imóvel, o sistema traria um relato de todos os atos registrais anteriores, indicando: a transcrição anterior; abertura de matrícula; eventuais onerações como, por exemplo, uma doação com reserva de usufruto, em seguida a informação sobre a morte do usufrutuário e a consolidação da propriedade. O sistema também indicaria eventuais alienações, desmembramentos, averbações de construção, etc.

A certidão resumida facilita a vida do interessado porque possibilita a compreensão dos dados estruturados de uma ficha de matrícula.

Computação cognitiva amplia acesso aos dados do registro A publicidade registral imobiliária possui três cortes principais: o teor do registro, o indicador real e o indicador pessoal. São três portas pelas quais podemos acessar os dados do registro, mas não todos. Existem outros dados, igualmente importantes, mas que não integram os cortes, especificamente. Às vezes, a matrícula dá a sensação de ser uma folha dentro de uma cúpula de vidro, ou seja, podemos vê-la, mas não podemos acessá-la e manipulá-la com liberdade.


SEÇÃO 4 Computação cognitiva aplicada ao Registro de Imóveis

O sistema de computação cognitiva possibilitaria novos cortes em relação aos mais variados aspectos: pessoas, estado civil, tipos de garantia, tipos de negócio jurídico, faixa de preço das alienações, taxa de juros dos financiamentos, tipo de imóvel, tabelionato que lavrou a escritura pública, período do financiamento, engenheiro responsável pelas obras, valor venal, existência de avalista, comparativos de aquisições por homens e mulheres, cláusulas específicas, comparativos de aquisições por escritura pública ou instrumento particular, análise de número de parcelas e progresso no tempo. Por exemplo, se houve um aumento de aquisição por mulheres ou diminuição na aquisição por instrumentos particulares. A computação cognitiva consegue realizar todas

essas pesquisas graças a sua capacidade de leitura e interpretação das informações. Hoje, não temos condições de responder a perguntas mais específicas. Por exemplo, quantas transferências de imóveis são feitas por escritura pública e por instrumento particular? Das escrituras públicas, quantas são lavradas por tabelionatos distantes mais de cem quilômetros do local do imóvel? Quantos usufrutos são constituídos por ano em favor dos filhos? Quantas hipotecas são registradas por mês? Qual o valor médio do metro quadrado/hectare? Todas essas perguntas constam dos nossos livros registrais e seriam facilmente respondidas com o uso da inteligência artificial.

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“O Registro Imobiliário deveria ser parabenizado pelo trabalho que teve com a disponibilização do Price Paid Data ... Organizações similares podem aprender muito com o seu exemplo” – Jeni Tennison, Diretora Técnica do Open Data Institute. “Este ato do Registro de Imóveis é uma boa notícia para o povo do Reino Unido que se beneficiaria com o aumento da disponibilização da informação” – Nick Hurd, Ministro da Sociedade Civil.

Big Data pode extrair informações dos acervos registrais de todo o Brasil Big Data é um conjunto de dados armazenados, que, por serem muito volumosos ou complexos, os aplicativos de processamento de dados tradicionais ainda não conseguem lidar. O Big Data não se restringe ao volume de dados, mas à possibilidade de extrair novos conhecimentos desses dados. Recentemente, os Registros de Imóveis do Reino Unido liberaram ao público o documento Price Paid Data, que traz as principais informações sobre as transações dos imóveis, como os dados identificadores, o valor da venda, a data, o endereço, o tipo de imóvel, etc. A repercussão foi positiva, como podemos ver em duas citações:

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Esse é um exemplo em que os Registros de Imóveis fizeram a abertura de um documento para o público em geral. Mas essa não é a única funcionalidade do Big Data. Com os dados constantes dos acervos registrais dos mais de três mil Registros de Imóveis do Brasil, o Big Data poderia indicar regiões do país que têm melhor resultado econômico para investimentos em loteamentos e incorporações; indicar o crescimento das cidades e a direção de sua expansão; analisar o tipo de garantias mais eficientes para os credores; avaliar o custo relativo, para a população e para os cartórios, de processos como usucapião extrajudicial, retificação extrajudicial, consolidação de alienação fiduciária. A tecnologia do Big Data traz benefícios para a sociedade, o mercado e o próprio Registro de Imóveis. A sociedade teria a possibilidade de acesso às informações constantes do Registro, uma vez preservado o direito à privacidade de terceiros. O mercado poderia contar com uma análise preditiva para permitir uma tomada de decisões mais segura e efetiva. E o Registro


Computação cognitiva aplicada ao Registro de Imóveis

de Imóveis poderia mostrar à população sua relevância e efetividade na recuperação de créditos, na solução de questões como usucapião administrativa e retificação extrajudicial, entre outras.

3. Computação cognitiva na pesquisa de jurisprudência e legislação A computação cognitiva também pode auxiliar a pesquisa. O direito registral imobiliário é uma área ampla e é preciso conhecer a normatização das corregedorias estaduais, do Conselho Nacional de Justiça – CNJ, leis e decretos federais, estaduais e municipais, instruções normativas da Receita Federal e do Incra, decisões das Fazendas Estaduais, decisões judiciais dos Tribunais Superiores, decisões administrativas, doutrinas, etc. Enfim, cada um dos três mil registradores de imóveis precisa estar atualizado sobre essa infi-

nidade de dados e informações existentes. Com o auxílio da computação cognitiva, isso se tornaria bem mais simples. Nos Estados Unidos esse sistema já existe e se chama Ross. Suas principais funções são a leitura e compreensão da linguagem natural, a realização de pesquisas, a formulação de hipóteses, a geração de respostas, com referências e citações, a indicação da legislação e jurisprudência aplicável ao caso, e monitoramento de novas leis e decisões para alertar sobre eventual modificação. Aplicado ao Registro de Imóveis, o Ross permitiria uma efetiva redução de custos e redução de horas de trabalho ao impedir que a mesma pesquisa fosse realizada por todos os três mil registradores de imóveis do Brasil. O Ross eliminaria de uma vez por todas a pulverização do conhecimento, permitindo pesquisas mais rápidas e eficientes em todo o território nacional.

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O sistema também poderia ajudar no acompanhamento das alterações e últimas decisões, um trabalho difícil em razão do grande volume de decisões sobre registro. E, por último, poderia contribuir para a otimização do trabalho realizado pelo funcionário, que ficaria dispensado da pesquisa sobre doutrina e jurisprudência. Ainda em relação à pesquisa, o sistema de computação cognitiva é superior ao de um buscador cuja busca se baseia em palavras-chave. O sistema traz conclusões específicas e apresenta resultados mais relevantes, facilitando o processo de leitura, interpretação e aplicação do caso concreto.

4. Computação cognitiva na migração dos dados registrais para um sistema estruturado No Registro de Imóveis a aplicação da computação cognitiva também seria útil na migração de dados. No entanto, se há hoje um sistema de computação cognitiva que pode fazer a leitura e compreensão dos dados constantes

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Computação cognitiva aplicada ao Registro de Imóveis

das matrículas, qual a razão de ser dessa migração? A migração de um sistema de dados não estruturados para um sistema estruturado traz algumas vantagens, a primeira delas é a completa eliminação das ambiguidades. O sistema não estruturado de matrículas ou transcrições apresenta conteúdos ambíguos e exige sempre a interpretação e conferência por um funcionário. Uma vez eliminadas as ambiguidades, os custos com essas conferências seriam reduzidos e consequentemente o sistema seria mais simplificado para os próximos atos.

O sistema não estruturado de matrículas ou transcrições apresenta conteúdos ambíguos e exige sempre a interpretação e conferência por um funcionário. Uma vez eliminadas as ambiguidades, os custos com essas conferências seriam reduzidos e o sistema seria mais simplificado para os próximos atos.

Na migração a computação cognitiva poderia auxiliar os Registros de Imóveis na diminuição do número de horas de funcionários, uma vez que o sistema faria automaticamente a digitação dos dados, e também no redirecionamento de suas tarefas, que passariam a ser exclusivamente de conferência dos dados. Além disso, o sistema não apresenta problemas em lidar com trabalho mecânico e repetitivo, como a conferência de CPFs, redigitações, etc.

A relevância dos dados e informações constantes do acervo registral imobiliário não pode ser impeditivo para o emprego da computação cognitiva pelos Registros de Imóveis. A migração desses dados para um sistema estruturado, especialmente matrículas e transcrições, facilitaria muito a utilização do sistema de forma geral. Uma frase de Marc Andreessen diz: “o software está engolindo o mundo”. Essa é uma realidade. Não existe nenhum sistema e nenhuma forma de prestação da atividade imune às inovações tecnológicas. O

exemplo mais recente é o aplicativo Uber, que modificou para sempre a profissão de taxista no mundo.

Os Registros de Imóveis não ficarão à margem da revolução tecnológica Tenho a convicção de que o registro dos direitos reais imobiliários vai passar por uma transformação tecnológica. Não mais continuará a ser feito em livro ou papel, mas terá que ser feito de forma estruturada e informatizada, se quiser continuar a satisfazer as demandas

da sociedade. Os Registros podem e devem utilizar as tecnologias à disposição para possibilitar essa migração e assim continuar a prestar um bom serviço ao mercado, ao Estado e à sociedade de modo geral. Infelizmente, por vários fatores os Registros de Imóveis no Brasil estão atrasados no quesito informatização, mas vejo na computação cognitiva uma oportunidade de alcançarmos o estado da arte. Esse atraso na informatização pode ser superado por um sistema que facilite a migração dos dados para a forma estruturada e o desempenho das atividades registrais, proporcionando até novos campos de atuação por meio da aplicação do Big Data e do acesso integral aos dados, bem como novas possibilidades de publicidade registral.

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COMPUTAÇÃO COGNITIVA EO FUTURO DA JUSTIÇA

Antonio Carlos Alves Braga Junior, juiz de Direito substituto em Segundo Grau, em atividade na Câmara Especial do TJSP, apresentou as possíveis aplicações da computação cognitiva no Poder Judiciário e suas implicações para a tomada de decisão e substituição do julgamento humano, bem como os limites entre tecnologia e ética.

por A ntonio Carlos Alves Braga Junior

N

osso tema é a aplicação da computação cognitiva no âmbito da justiça e, mais propriamente, no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

Vamos dividir o assunto em quatro tópicos: a aplicação da computação cognitiva na área administrativa; a computação cognitiva na tomada de decisão judicial e a aplicação dessa tecnologia em confrontação com a ética.

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O cenário atual: TJSP tem base de dados gigantesca Hoje praticamente todas as atividades humanas estão apoiadas na rede mundial de computadores. Essa circunstância teve início há vinte anos, em 1997, quando o seu uso deixou de ser restrito a ambientes governamentais e de pesquisa e se tornou acessível ao público em geral.


Computação cognitiva e o futuro da Justiça

Embora a internet tenha sido vista inicialmente como algo incrível, as pessoas sequer sabiam identificar e aproveitar os benefícios dessa ferramenta. E ainda assim estamos. Mesmo após o advento e a democratização do acesso à inteligência artificial, ainda não sabemos ao certo como extrair os benefícios da computação cognitiva.

A grande novidade no âmbito da tecnologia artificial é a sofisticação dos algoritmos. Essa sofisticação somente é possível graças à base tecnológica que temos instalada no Tribunal. A capacidade de processamento, que era um limitador dos computadores, hoje deixou de ser problema. A capacidade de memória também não nos aflige mais.

Todas as palestras deste workshop sinalizam para as mais diversas possibilidades de aplicação da computação cognitiva. Eu acredito que no prazo máximo de vinte anos todas as atividades humanas serão desempenhadas com o auxílio da inteligência artificial. Mas não podemos permanecer inertes, esperando esse tempo chegar para usufruir da ferramenta pronta. Devemos contribuir para a construção e efetiva utilização dessa tecnologia.

Atualmente são 3,7 bilhões de pessoas conectadas no mundo, o que representa metade da população mundial. O Tribunal tem hoje uma enorme base de dados. A base de infraestrutura, que abrange máquinas, data centers, links de comunicação e de alta velocidade, e a base de usuários são gigantescas. E os algoritmos extremamente sofisticados se beneficiam dessa dupla base.

Internet das coisas no cenário do TJSP O próximo passo é incluir a internet das coisas nessa grande base. O celular é uma dessas coisas. Nossos smartphones captam e processam informações independentemente de nosso comando, às vezes até sem nosso conhecimento. Os aparelhos coletam, armazenam os dados em nuvens e nos devolvem serviços, tudo de forma invisível. Quanto mais invisível melhor porque significa que se alcançou maturidade. A ideia é integrar tudo, colocar sensores e dispositivos para coletar informações e encaminhá-las à rede. Fica fácil imaginar o potencial que tudo isso representa quando recordamos a forma como uma inovação qualquer no mundo era distribuída antes da tecnologia digital. Precisávamos de transportes, de estradas, os recursos eram muito escassos. Hoje aplicativos são desenvolvidos na garagem de uma universidade qualquer de Israel ou no Vale do Silício, o conteúdo é inserido na rede e aquilo se torna acessível ao mundo. Esse é um poder jamais imaginado na história. Isso torna o tempo de desenvolvimento muito menor.

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Ferramentas de inteligência capazes de analisar milhões de dados em tempo mínimo permitirão melhores decisões administrativas Os tribunais estão vivendo um momento de aprendizado que vai lhes permitir sair do meramente teórico e informativo e entrar definitivamente na era da inteligência artificial. Esse início de aprendizado inclui a realização de algumas provas de conceito que já estão em andamento com grandes provedores, como a IBM e a Microsoft. As provas de conceitos são fundamentais porque nos permitirão conhecer o funcionamento interno do Tribunal, identificar eventuais problemas e saber a melhor maneira de moldar a inteligência artificial às nossas necessidades. O Judiciário brasileiro é uma máquina gigantesca e as decisões administrativas um assunto que me toca profundamente porque há muito tempo sonho em ver alguma mudança nesse cenário. Refiro-me às decisões de cunho administrativo que envolvem a gestão e organização do Tribunal, aplicação de recursos, capacitação de funcionários, investimentos em prédios, em informatização, viaturas, etc. Atualmente, as decisões são tomadas com base na experiência individual ou na intuição do julgador. Isso se deve à impossibilidade de coleta de dados em uma organização tão vasta como é o Tribunal de Justiça. Em vinte e sete anos de carreira, pude percorrer todo o Estado de São Paulo fazendo visitas a cartórios e fóruns por via da Corregedoria Geral de Justiça. Colecionei numerosas experiências com as unidades que presidi como juiz titular, e também com muitas visitas realizadas pelo Brasil em trabalho realizado pelo Conselho Nacional de Justiça. Mas toda essa experiência

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é ínfima diante da realidade. Essa amostragem, além de tudo, foi construída ao longo de vinte e sete anos de experiência profissional. Isso quer dizer que, muito provavelmente, as informações que possuo podem estar desatualizadas. É com base nessa experiência e, muitas vezes, com base na intuição que tomamos uma decisão administrativa. Obviamente, contamos com um corpo técnico e de estudo e com Business Intelligence, que auxilia muito o trabalho, mas não passam de fotografias parciais da realidade. Nós apostamos, intuitivamente, que o problema número um da Justiça é a falta de funcionários. Mas até que ponto isso é verdadeiro? De fato, conheci unidades em que a falta de funcionários é claramente o maior problema. Há cartórios criminais que contam com dois ou três escreventes. Ora, é impossível concluir decisões judiciais com tão pouca gente. Mas será que é justo afirmar que esse problema abrange todos os tribunais do país? A falta de organização de recursos humanos não poderia ser o problema número um da Justiça? Precisamos de uma base que nos possibilite a coleta de dados em tempo real. Mesmo com base unicamente na intuição e experiência, boa parte das nossas decisões é acertada. Mas surge uma dúvida: estamos de fato acertando ou apenas não sabemos quando estamos errando, uma vez que não há como confrontar as informações? A pesquisa é também uma ferramenta que utilizamos para embasar as decisões que tomamos. Fazemos levantamento interno de dados com auxílio de várias aplicações de Business intelligence e também contamos com a colaboração externa de institutos, universidades e empresas de pesquisas que realizam estudos a partir da nossa realidade. Ocorre que o julgador não tem como esperar o resultado de uma pesquisa, que pode levar de seis meses a dois anos, para tomar uma decisão. Em al-


Computação cognitiva e o futuro da Justiça

guns meses aquela informação estará desatualizada e não fará sentido usá-la. Imaginamos que só por intermédio de ferramentas de inteligência capazes de analisar e compreender milhões de dados num espaço mínimo de tempo é que teremos a possibilidade de alcançar decisões melhores e mais fundamentadas.

O Waze do Judiciário

O julgador não tem como esperar o resultado de uma pesquisa, que pode levar até dois anos, para tomar uma decisão. Só por intermédio de ferramentas de inteligência capazes de analisar e compreender milhões de dados num tempo mínimo é que teremos a possibilidade de alcançar decisões melhores e mais fundamentadas.

Talvez a maior aplicação da computação cognitiva na área administrativa seja o controle de tráfego judiciário, apelidado por alguns como o Waze do Judiciário. Só um sistema inteligente capaz de ler e compreender uma massa gigantesca de dados em tempo real permitirá o controle de tráfego dentro do Judiciário.

O controle de tráfego nada mais é do que o controle do que entra e sai do Judiciário: o que está sendo julgado; o tempo médio de julgamento das ações; o tempo máximo de julgamento, que pode indicar a existência de algum problema; o tempo mínimo de julgamento, que pode significar uma solução, mas também um problema, uma vez que julgamentos rápidos não são comuns, entre outras coisas. Imagine o que representaria para o Judiciário um sistema capaz de apresentar um levantamento de problemas e distorções ocorridas em qualquer comarca antes mesmo de se formular perguntas a respeito e ainda fazer uma confrontação dessas informações. Um sistema que identifique, por exemplo, a partir de um problema levantado, o surgimento de um novo tipo de ação em determinada comarca sobre a qual o Judiciário

não tinha conhecimento. Imagine ainda a possibilidade de o sistema nos informar o potencial de crescimento desse novo tipo de ação, isto é, se esse tipo de feito tende a se alastrar pelo Estado ou se ficará limitado àquela comarca. Imagine poder confrontar todas essas informações com dados demográficos de recursos humanos para conhecer, por exemplo, o desempenho de cada uma das unidades, a faixa etária dos seus servidores e a partir daí descobrir qual unidade funciona melhor, qual possui funcionários mais antigos, as que têm funcionários mais novos ou aquelas cujos funcionários têm meio tempo de casa. Se os melhores resultados foram obtidos com os funcionários mais novos e antigos, o que poderá ter acontecido com aqueles que possuem meio tempo de casa? Será que houve falha no treinamento desse grupo? No que se refere a orçamentos, um sistema inteligente que informe onde está a melhor distribuição de orçamentos, a melhor distribuição de recursos de TI, de viaturas, enfim, um sistema que crie camadas de informações para possibilitar as análises comparativas das informações em tempo real.

Não tenhamos dúvida de que todas essas possibilidades vão tornar muito melhor a tomada de decisões administrativas de forma jamais sequer suposta. Embora a trajetória seja longa caminhamos para isso.

Detecção instantânea do fluxo de processos e detecção de fraudes Ainda no que respeita ao controle de tráfego, outra aplicação viável é a detecção instantânea do fluxo

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COMPUTAÇÃO COMPUTAÇÃO COGNITIVA COGNITIVAeeooRegistro Registrode deImóveis Imóveis

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Computação e oe futuro da da Justiça Computaçãocognitiva cognitiva o futuro justiça

A juntada de petição, a distribuição de processos, a publicação dos despachos, a certificação de que saiu no Diário Oficial, tudo já é feito de modo automático, numa clara demonstração de que o Judiciário vem avançando dia a dia nas automações.

de processos. Atualmente, as nossas varas são cem por cento digitais. Neste momento estamos fazendo acréscimo de módulos de automação de tarefas. A cada dia há uma inovação. São acréscimos quase invisíveis, ou seja, alguma operação que ainda era feita manualmente e que passa a ser feita de maneira automática. É o que já ocorre com a juntada de petição. Esse simples processo eliminou milhões de cliques de funcionários que eram encarregados de executar essa tarefa de mera inserção da petição no processo para posterior análise. A juntada de petição, a distribuição de processos, a publicação dos despachos, a certificação de que saiu no Diário Oficial, tudo já é feito de modo automático, numa clara demonstração de que o Judiciário vem avançando dia a dia nas automações. Um sistema de monitoramento de tráfego também pode mostrar o impacto de uma inovação após seis meses de sua instalação. Outra utilidade da inteligência artificial é a detecção de fraudes. Ainda hoje esse tipo de detecção é feito de maneira analógica, por meio de coleta de dados. Imaginemos uma comarca em que há alta incidência de ações de imposição ao Estado de fornecimento de medicamentos patrocinadas sempre pelo mesmo escritório e cujas prescrições são feitas sempre pelo

mesmo médico. Trata-se de uma situação que pode sugerir uma distorção, uma ilegalidade, mas também uma normalidade porque próprio de cidades pequenas onde o número de advogados e médicos é reduzido. Somente sistemas robustos serão capazes de fazer correlações desse tipo e nos ajudar na detecção de fraudes ou de mau uso da Justiça.

A aplicação da inteligência artificial na atividade jurisdicional A ideia é a utilização de sistemas de inteligência artificial na análise, coleta e seleção de jurisprudências, artigos doutrinários, e legislações aplicáveis ao caso concreto. Há muito tempo o volume de informações supera a capacidade de apreensão por qualquer ser humano. Desde a Constituição de 1988, o Brasil já produziu mais de cinco milhões de normas jurídicas e não temos a mínima condição de nos manter atualizados. O magistrado também não consegue manter-se atualizado das alterações legislativas que ocorrem em cada área do Direito. Mas imagino que dentro de algum tempo teremos os instrumentos necessários para ajudar-nos nesse sentido, uma ferramenta que possa ler essa grande base que conta com mais de cinco milhões de normas e leis, além de outras tantas com jurisprudências e artigos doutrinários, e fazer uma seleção das mais relevantes num processo de aprendizado contínuo. Isso certamente substituirá tarefas do julgador, mas não o julgador. Precisamos de pessoas cada vez mais qualificadas para interagir com essa nova massa de informação, e saber se ela é confiável ou não. Isso já ocorre na medicina, que há bastante tempo utiliza tecnologia de ponta com exames laboratoriais e de imagem inimagináveis há cinquenta anos e nem por isso o médico foi substituído em sua função. Pelo contrário, a medicina vem exigindo médicos cada vez mais quali-

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ficados que possam fazer a leitura daqueles exames e extrair conclusões corretas. A medicina vem obtendo enormes benefícios da computação cognitiva com a comparação de diagnósticos. De um determinado perfil de exames e de anamnese, faz-se confrontações com milhões de outros diagnósticos, com estudos científicos, e novos diagnósticos são sugeridos.

É praticamente impossível manter-se atualizado diante dessa multiplicidade de decisões. Precisamos de assistentes inteligentes, robôs digitais que façam a depuração da informação para que se possa subir um grau na sofisticação dessa atividade intelectual.

O STJ, que é o órgão de uniformização de jurisprudências no Brasil, a quem em princípio cabe uniformizar a jurisprudência dos tribunais, produz quatrocentas mil decisões ao ano. Dentro do próprio STJ não se consegue acompanhar o que as demais câmaras e turmas produzem sobre determinado tema. É praticamente impossível manter-se atualizado diante dessa multiplicidade de decisões. Precisamos de assistentes inteligentes, robôs digitais que façam a depuração da informação para que se possa subir um grau na sofisticação dessa atividade intelectual.

Espera-se que essas ferramentas façam a pesquisa e análise do caso, a compreensão do contexto e das variáveis, a confrontação com precedentes, e de uma maneira dinâmica se possa incorporar essa nova informação a cada publicação, informando não apenas a jurisprudência predominante, mas a sua tendência. Por exemplo, hoje o Judiciário reconhece determinado direito em 78% dos casos, nega nos demais, e apresenta, ainda, uma tendência de crescimento que se vê olhando retrospectivamente para os meses e anos passados. Ou ao contrário, o reconhecimento do direito é alto, mas está em queda porque há uma nova tese divergente que nega a existência desse direito e é essa tese que está crescendo numericamente, em-

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bora ainda não seja maioria. Esse tipo de ferramental vai orientar as decisões dentro de alguns anos e nos permitir trabalhar com mais tranquilidade.

Nas indenizações por dano moral, o STJ está construindo uma tabela de valores de dano moral para servir como norte e evitar disparidades. Imagine um sistema que levante os valores de indenização fixados atualmente no Brasil para um caso envolvendo, por exemplo, dano estético decorrente de um erro médico. Qual a maior ou menor indenização para esse tipo de assunto? As indenizações estão crescendo ou diminuindo nessa matéria? Esse tipo de informação pode melhorar muito, em termos qualitativos, a própria decisão judicial. O arbitramento, que é uma tarefa dificílima do julgador, será feito embasado numa informação universal do que se está adotando hoje. Não se trata de uma imposição, mas de um elemento a mais de informação para a tomada de decisão.

Inteligência artificial versus ética Temos alguns exemplos em que a inteligência artificial pode ser confrontada com questões éticas. Carro autônomo – Veículo autônomo é uma realidade que vem crescendo nos últimos tempos. Já existem caminhões autônomos que percorrem trajetos planejados e regulares, com partidas e destinos conhecidos, sem nenhum ser humano no seu comando. Uma fabricante de cerveja nos Estados Unidos realizou uma entrega de bebidas da fábrica até o destinatário, separados por milhares de quilômetros de rodovias, sem ninguém dentro da cabine. O ato de dirigir significa tomar decisões o tempo


Computação cognitiva e o futuro da Justiça

todo. Imaginem a seguinte situação: um veículo autônomo que esteja trafegado corretamente na faixa, em velocidade segura, e que segue todas as regras de trânsito. Esse veículo vê outro caminhão, com uma carga pesadíssima, vindo em direção contrária para um choque frontal. O caminhão tem uma possibilidade de escapar do choque fazendo imediatamente um desvio que muito provavelmente vai custar a vida de um pedestre. O caminhão tem que decidir entre ir de frente ao caminhão e poupar o pedestre, ou livrar-se do caminhão e ir em direção ao pedestre, provocando um final trágico. Já existe uma discussão em andamento sobre a possibilidade de a fábrica instruir o sistema para tomar decisões a partir de critérios, pesos e valores. As decisões tomadas à frente de um veículo são de responsabilidade do condutor. Nós apenas analisamos as questões posteriores subsequentes à decisão escolhida, ou seja, se o ser humano conduziu certo ou errado o veículo. A questão é que tipo de instrução pode ser dada a um sistema automatizado? Drones – Outra questão em discussão envolve as atividades desempenhadas por meio de drones. Essas pequenas aeronaves não tripuladas não são mais controladas por controles remotos, mas a partir de instruções recebidas remotamente. O drone recebe instruções para percorrer e chegar a determinado destino, sobrevoar o local e identificar potenciais alvos de ameaça, armas, aglomerações de pessoas, etc. Embora o drone cumpra ordens, sua atividade é desenvolvida autonomamente. Contudo, ainda não se discute a possibilidade de um drone decidir quando e em que ou em quem pode atirar. A questão não é mais tecnológica, mas ética. Podemos permitir esse tipo de aplicação tecnológica sob o ponto de vista ético, moral e jurídico? Judge as a service – Já existem os softwares as

a service e a infrastructure as a service, e agora o juiz como serviço, um sistema em nuvem em que o sistema, a partir de dados do caso fornecidos por um juiz, confronta as informações com outras decisões e casos semelhantes e sugere a decisão. Não temos dúvida quanto ao necessário desenvolvimento tecnológico que ora se põe, mas a que custo? Em termos éticos podemos entregar a tomada de uma decisão a um sistema automatizado? Seria razoável um ser humano ser condenado por um sistema de computação cognitiva? Podemos até chegar a um consenso de que a qualidade e o nível técnico e de precisão das decisões podem superar a média do ser humano, mas certamente estaremos entrando em um debate moral, ético e jurídico sobre a possibilidade de um sistema cibernético condenar alguém na esfera cível, criminal e administrativa, colocando o ser humano na condição de supervisor dessa decisão. Poderia o juiz ser não mais o aplicador da decisão, mas o supervisor de decisões aplicadas por sistemas cibernéticos? Isso não está tão longe de nós. Remetendo-me novamente à medicina, diagnósticos médicos já são realizados por essa forma e com um enorme grau de acurácia. O médico precisa se colocar acima dessas questões e aceitar a posição de crítico de um diagnóstico realizado por um sistema computacional. Eu sempre traço um paralelo entre a atividade médica e a atividade do magistrado, entre o funcionamento de um hospital e o funcionamento de um fórum porque as profissões são muito análogas. Lidamos com uma variedade de seres humanos e temos que empregar a técnica, a razão e a precisão ao mesmo tempo. Uma vez superadas as barreiras morais, éticas e jurídicas, entendendo-se que essa medida não fere nenhum preceito valoroso para o ser humano, poderemos dar um salto enorme na sofisticação da atividade. Por-

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Poderia o juiz ser não mais o aplicador da decisão, mas o supervisor de decisões aplicadas por sistemas cibernéticos? Isso não está tão longe de nós. Diagnósticos médicos já são realizados dessa forma com enorme grau de acurácia.

tanto, creio que seremos muito beneficiados por essas inovações tecnológicas.

Detector de mentiras – Outra aplicação em que a tecnologia e a ética são confrontadas é o detector de mentiras. Não demorará muito e teremos sistemas que irão indicar a veracidade, ou não, de um depoimento testemunhal. Sistemas melhores que nossa percepção humana identificarão o grau de confiabilidade do que está sendo dito no depoimento, com base em leitura corporal, na análise de mudança de voz, gestos, expressões faciais, etc.

Mais uma vez, pergunta-se: Poderemos deixar a critério de uma máquina selecionar a prova válida dentro dos autos? Isso será adequado sob o ponto de vista ético, moral e jurídico?

“Máquina do tempo de Veneza”

80 quilômetros de documentos dos últimos mil anos: livros de anotações, livros contábeis, informações de compras de mercadoria, mapas, plantas da cidade que mostram os endereços dos habitantes, gravuras das fachadas em diversos momentos, prédios que foram demolidos e no lugar deles outros que foram construídos. A ideia é compilar toda essa informação em um sistema de inteligência artificial que terá a tarefa de analisar e compreender o estilo da escrita adotado ao longo dos séculos e a partir daí descobrir o significado das letras e as palavras que formam. Esse é um trabalho de interpretação e aprendizado. A partir de todo o material disponível vai ser possível identificar, por exemplo, o vendedor de frutas que morava em determinada casa com tal fachada.

A cidade de Veneza, no norte da Itália, tem registros históricos, livros, bibliotecas, mapas, gravuras da arquitetura, de pessoas, tudo muito bem preservados.

A ideia é construir um mapa 3D da cidade que permita uma viagem no tempo. Para isso pretendem empregar uma tecnologia ainda não disponível, mas que em cinco anos estará sendo operacionalizada pelo Instituto de Tecnologia da Suíça, a utilização de uma tomografia computadorizada para o escaneamento dos textos sem a necessidade de abertura dos livros, em atenção à sua preservação.

Por uma série de razões, geográficas principalmente, Veneza foi um porto muito importante, um lugar de troca de mercadorias e conhecimentos, uma cidade muito rica em informações. Foram calculados

Os pesquisadores estão estudando as tintas utilizadas na escrita das várias épocas retratadas naqueles documentos, o tipo de elemento químico utilizado nas tintas, para usá-los como marcadores para o tomógra-

Esse caso interessantíssimo saiu publicado na Revista Nature, no dia 17 de junho de 2017, e mostra uma aplicação do Instituto de Tecnologia da Suíça, chamado “Máquina do tempo de Veneza”.

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Computação cognitiva e o futuro da Justiça

fo. O intuito é que o tomógrafo leia o livro, frente e verso, página por página, e faça o escaneamento do livro em 360 graus, sem sequer precisar abri-lo. Com base na coleta da totalidade dos dados armazenados sobre Veneza seria possível reconstruir a história da vida de pessoas comuns, onde moravam e como viviam, a história do surgimento do sistema bancário, a evolução do sistema de medidas, a propagação de doenças, entre outras informações.

Esse estudo é um bom exemplo de aplicação da computação cognitiva em documentação histórica, e que tem tudo a ver com nossas atividades no Judiciário e no Registro de Imóveis.

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COMPUTAÇÃO COGNITIVA e o Registro de Imóveis

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COMPUTAÇÃO COGNITIVA: MITO E REALIDADE

O Workshop Computação Cognitiva e o Registro de Imóveis, promovido pelo IRIB no dia 2 de agosto, despertou a atenção dos registradores para as imensas possibilidades de a tecnologia atuar em vários setores da sociedade.

entrevista Valdemar W. Setzer

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ando continuidade ao tema, o presidente do IRIB, Sérgio Jacomino, entrevistou Valdemar W. Setzer, professor titular aposentado, ainda ativo no Departamento de Ciências da Computação da USP, fundador e diretor do Centro de Computação Eletrônica e do Centro de Ensino de Computação dessa universidade (www.ime.usp.br/~vwsetzer).

servidos ou serviremos às máquinas? O que será feito dos empregos? VALDEMAR SETZER - É impossível fazer uma previsão para os próximos anos. O desenvolvimento tecnológico tem se acelerado brutalmente.

Nesta entrevista, o professor Setzer comenta o que há de real e imaginário a respeito da chamada inteligência artificial ao fazer clara distinção entre ficção científica versus ciência e realidade.

Antevejo uma gradual substituição do ser humano no controle de máquinas, como automóveis e aviões. A maior parte dos acidentes são devidos a falhas humanas, e as máquinas tendem a cometer menos erros. Robôs com tarefas específicas (como limpeza de centrais nucleares) também serão cada vez mais empregados.

SJ – As máquinas estão paulatinamente substituindo tarefas tipicamente humanas. O que se pode esperar para os próximos anos? Seremos

O grande perigo está em substituir decisões humanas, especialmente as sociais, pois as máquinas jamais terão sentimentos, como mostrei no meu artigo IA - Inteligência Artificial ou Imbecilidade Automática? As

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Computação cognitiva: mito e realidade

máquinas podem pensar e sentir? (https://www.ime. usp.br/~vwsetzer/IAtrad.html) Por outro lado, máquinas também cometem erros, especialmente de software. É praticamente impossível provar formalmente que um programa complexo está matematicamente correto, isto é, faz o que se deseja dele para quaisquer dados de entrada. Isso pode representar um perigo muito grande se não houver um último controle por parte de seres humanos. Imagine se máquinas forem decidir se soltam foguetes nucleares! Já houve alarmes falsos – o mais famoso foi os americanos terem detectado uma invasão que, na verdade, era um reflexo do radar na Lua. Os foguetes não foram enviados para a Rússia, pois alguém no caminho do comando considerou que a situação com aquele país não justificava uma invasão. Houve também casos do lado da Rússia. Além disso, se computadores tomam decisões, os critérios tendem a se congelar, isto é, a sociedade deixará de ter o dinamismo necessário para se adaptar às mudanças culturais e do ser humano, ou este terá sua evolução prejudicada.

SJ – Até meados da Revolução Industrial o homem era capaz de assimilar em parte o conhecimento humano produzido nos séculos anteriores. Hoje não. O conhecimento produzido pelo ser humano a cada dia não pode ser açambarcado individualmente. Já a máquina pode processar, combinar, extrair sínteses e concluir com base em toda sorte de dados (big data). Serão mais confiáveis as respostas que possam ser dadas pelas máquinas em áreas como medicina, direito, meteorologia, estatística, jurisprudência etc.? VALDEMAR SETZER – Novamente, aqui entra em consideração a questão do erro. Os erros médicos são enormes.

Em https://goo.gl/rYoRtH, do prestigioso Johns Hopkins Medicine, lê-se que 10% das causas de morte nos EUA são devidas a erros médicos, a terceira maior causa de morte. Se as máquinas fizerem diagnóstico e prescreverem tratamentos, é possível que esses erros diminuam. Mas não seria sadio que os médicos confiassem exclusivamente nas sugestões do computador.

SJ – De fato, em certas áreas da medicina, o diagnóstico feito pela máquina se revela mais preciso do que o feito por especialistas. Nenhum especialista é capaz de assimilar o que se produziu nos últimos seis meses na sua especialidade... VALDEMAR SETZER – Sim, mas ocorre que a medicina não é uma ciência exata; e se máquinas fazem diagnósticos, o ser humano é tratado como máquina, como expus acima. O problema está em que as máquinas poderão cometer menos erros do que os seres humanos, e com isso poderão substituí-los. Mas, ao mesmo tempo, perder-se-á o tratamento individual e o efeito de empatia entre médico e paciente.

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Workshop

COMPUTAÇÃO COGNITIVA e o Registro de Imóveis

2 DE AGOSTO de 2017 | ON-LINE

SJ – Já não é possível formar um médico em nossas universidades, já que o aluno aprende o que se produziu há décadas... VALDEMAR SETZER – Quando houve a publicação sobre péssimos resultados de avaliação de nossos estudantes, o jornal O Estado de São Paulo publicou uma nota minha no Fórum dos Leitores: “O ensino está tão ruim, mas tão ruim, que até computadores ensinam melhor.” Note-se que não se sabe como o ser humano aprende. Se isso fosse conhecido, o curso de Medicina não levaria seis anos... Esses dois casos mostram onde estão os problemas, e que a introdução de máquinas pode até melhorar a situação, mas não resolve o problema pela raiz: os médicos e os professores deveriam ser melhor preparados e não substituídos. Pacientes e estudantes tratados e ensinados pelo computador são tratados como qualquer computador trata um ser humano: como máquina. Isso representa um perigo muito grande para a humanidade. Os nazistas trataram seres humanos como animais; os computadores farão muito pior. Tratar seres humanos como máquinas induze-os a tratarem outros seres humanos como máquinas, isto é, sem calor humano, sem compaixão. Preve-

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jo enormes problemas psicológicos e sociais no futuro. Além disso, devem ser considerados muitos outros fatores. Por exemplo, o desemprego causado pela automação. É uma falácia dizer-se que o que há é um deslocamento de funções. Ocorre que as áreas tecnológicas exigem um alto preparo técnico. Por exemplo, os caixas de supermercado precisam saber muito pouco, e se eles forem substituídos, dificilmente poderão ser treinados para atuar na alta tecnologia. Sou totalmente a favor da substituição do trabalho humano em áreas que o degradam, desde que se ofereça um trabalho mais digno. O ser humano precisa trabalhar, precisa sentir-se útil e parte da sociedade, pois em caso contrário advêm inúmeros problemas psicológicos.

SJ – No livro “Big Data: A Revolution That Will Transform How We Live, Work, and Think”, MayerSchonberger e Cukier (Amazon) sustentam que a tecnologia do big data representa um novo paradigma nos modelos estatísticos, dentre outros. Segundo eles, é possível obter respostas sem que uma pergunta tenha sido feita. Paradoxalmente, o Google chegou a concluir acerca da expansão da gripe aviária a partir das respostas já consolidadas. Derivar as perguntas a partir das respostas que a máquina nos fornece pode ser praticamente impossível. Teremos respostas para perguntas que já não saberemos formular?


Computação cognitiva: mito e realidade

SJ – O que é exatamente computação cognitiva? A máquina será capaz de aprender a pensar? O que é machine learning? VALDEMAR SETZER – Não existe machine learning. Essa é mais uma corrupção da nossa linguagem feita pelo pessoal de computação. Tomemos, por exemplo, a memória. Não sabemos como a nossa funciona, mas sabemos como o armazenamento de dados funciona no computador; inteligência artificial – não sabemos o que é inteligência etc. Uma máquina não aprende, ela armazena dados e calcula parâmetros.

VALDEMAR SETZER – Há um problema enorme em tratamentos estatísticos: eles eliminam a individualidade. Cada ser humano é diferente, e deveria ser assim tratado, por exemplo, na medicina e no ensino. Isso não invalida estudos estatísticos para serem aplicados a massas, como usar big data para determinar origens e destinos de sistemas de transportes. Mas eles não deviam ser aplicados individualmente.

Houve um enorme avanço do erradamente chamado “aprendizado de máquina” com a extensão das redes neurais artificiais. Novamente, não sabemos como os neurônios funcionam; as redes neurais artificiais não têm quase nada em comum com as redes de neurônios. Nessas redes artificiais, há uma camada de sinais de entrada e uma de saída. Durante muito tempo, havia uma só camada adicional entre as duas, pois o cálculo dos parâmetros transformando cada entrada de cada nó em uma saída dirigida para outros nós era extremamente complexo. Hoje, conseguem-se redes com dezenas de camadas, e isso possibilitou o avanço desse tipo de processo, auxiliado na velocidade por computação paralela. Nessas redes dão-se, tipicamente, sinais de entrada e de saída conhecida para eles. Por exemplo, introduzem-se figuras de gatos e de outros animais, e no caso dos gatos a saída deveria codificar a resposta “sim” e nos outros casos “não”. Isso possibilita à máquina calcular os parâmetros da rede, o que está sendo conseguido com muita precisão. Máquinas jamais vão pensar como o ser humano, como mostrei no meu artigo citado acima. O meu argumento central é que qualquer pessoa pode ter a vivência de determinar seu próximo pensamento, pelo menos por alguns instantes, indicando que temos livre arbítrio no pensar. Computadores não podem ter livre arbítrio, pois

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Workshop

COMPUTAÇÃO COGNITIVA e o Registro de Imóveis

2 DE AGOSTO de 2017 | ON-LINE

são matematicamente programados e estritamente sujeitos às leis físicas; da matéria não pode advir liberdade.

SJ – O que o Sr. pode nos dizer acerca da pesquisa https://goo.gl/vrrGAR e Singularaty (http:// consc.net/papers/singularity.pdf)? VALDEMAR SETZER – Chama-se singularidade o ponto no futuro em que as máquinas vão suplantar a inteligência humana. Só que não se sabe o que é inteligência e como ela surge e se desenrola no ser humano. Há máquinas que ganham um torneio de xadrez com campeões mundiais. Veja meu artigo Reflexões sobre xadrez eletrônico – https://www.ime.usp.br/~vwsetzer/xadrez.html – onde eu mostro como não se compreende como um ser humano ainda pode empatar ou ganhar um jogo dessas máquinas, que testam centenas de milhões de lances à frente, como ocorreu no torneio Deep Blue vs. Kasparov. Saber jogar xadrez muito bem mostra uma inteligência nessa atividade, e não nas outras. Até hoje, as máquinas têm comportamento “inteligente” sempre especializado em uma determinada tarefa. Em minha concepção, hoje em dia, a inteligência mais importante é a social, denominada por Howard Gardner de “inteligência interpessoal” e por Daniel Goleman de “inteligência emocional”. Em segundo lugar, coloco a inteligência artística, e só em último a inteligência intelectual, que engloba a científica. Computadores jamais terão uma verdadeira inteligência social; como eu disse, jamais terão sentimentos e compaixão. Computadores fazem obras de arte, mas para isso seguem regras rígidas, não tendo a criatividade de um artista. Uma obra de arte feita por um computador transforma a arte em matemática, que é objetiva e não é arte, pois deve ser feita conscientemente, e qualquer atividade artística envolve algo de subconsciente e subjetivo. Computadores jamais terão livre-arbítrio.

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(...) os seres humanos têm capacidades semânticas, isto é, de compreensão, impossíveis de serem introduzidas em um computador, que é necessariamente uma máquina sintática, seguindo estritamente regras matemáticas de manipulação de símbolos.

Não se pode dizer que nossa inteligência será suplantada algum dia. Para isso, seria necessário saber o que é inteligência. É bem característ ico que Chalmers, autor do segundo artigo, considera que os seres vivos são máquinas puramente físicas, o que pode ser duvidado. Curiosamente, ele mesmo escreveu há muito tempo um artigo na revista Scientific American dizendo que para se compreender a consciência seria necessário descobrir um tipo de energia ainda desconhecida. Um outro filósofo, John Searle (citado por Chalmers), em seu artigo, “Can computers think” (https://goo.gl/KxQLQ8) mostrou, com sua famosa alegoria do “quarto chinês”, que os seres humanos têm capacidades semânticas, isto é, de compreensão, impossíveis de serem introduzidas em um computador, que é necessariamente uma máquina sintática, seguindo estritamente regras matemáticas de manipulação de símbolos.

SJ – Seremos imortais? Ou zumbis? VALDEMAR SETZER – Não há nenhuma, repito, nenhuma esperança de se implantar chips em cérebros humanos para aumentar sua capacidade. Para isso, seria necessário conhecer o código usado pelo cérebro. Tudo o que se tem feito de detecção de impulsos cerebrais ou de introdução de impulsos dentro dele é empírico (começando pelas experiências do Miguel Nicolelis), e não é baseado no conhecimento de como o cérebro funcio-


Computação cognitiva: mito e realidade

na. Tenho uma conjetura que aquele código jamais será descoberto, pois não existe. Em todas essas especulações, deve-se sempre levar em conta que não se conhece o funcionamento do cérebro, portanto não é válido fazer especulações que o envolvam. Isso é tudo ficção científica, e não ciência ou realidade. Mas mesmo sem conhecer o funcionamento do cérebro, muita coisa poderá ser feita e já está sendo feita, como implantes eletrônicos que ajudam a diminuir ataques epilépticos. Infelizmente, praticamente não há avanços éticos e morais para que se possam colocar limites no controle do ser humano por máquinas. Não estamos conseguindo controlar as emissões de gases estufa. Isso mostra que não estamos controlando as máquinas. A mentalidade egoísta e ambiciosa impera em quase toda a humanidade, como estamos vendo muito bem no Brasil, com desastres na natureza e na sociedade. Um caso extremo é a Internet. O ser humano não está preparado para ter tanta liberdade, e os desastres estão se avolumando, como o caso dos “crimes cibernéticos”. Como eles estão aumentando exponencialmente, há estudiosos que estão prevendo que a internet vai acabar tornando-se inviável. Considerando o alto risco de ela produzir dependência (entre 10 e 20% dos seus usuários são dependentes), conjeturo que os seus benefícios estão sendo ultrapassados de longe pelos seus malefícios, por exemplo a terrível influência que exerce sobre crianças e jovens. Eles já estão se tornando zumbis!

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IDENTIDADE LEGAL NO BRASIL por Claudio Machado

Claudio Machado, especialista em gestão da identidade do cidadão e planejamento de tecnologia da informação, tratou dos conceitoschaves para o entendimento do Sistema Nacional de Identificação, trouxe um breve histórico e o panorama atual da identificação civil no Brasil e falou de iniciativas internacionais relevantes.

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Uso de tecnologias digitais para identificação está cada vez mais próximo Hoje de manhã, vindo a São Paulo para esta apresentação, resolvi fazer um teste. Geralmente quando embarcamos, costumamos fazer o check-in online e, em seguida, apresentar um documento de identificação. Hoje fiz o check-in, imprimi o bilhete e usei o aplicativo do novo documento nacional de identificação para me identificar. Funcionou. A atendente da companhia ensaiou fazer uma pergunta, mas conferiu o nome e a fotografia e liberou o embarque. Trata-se de um protótipo, um projeto piloto, mas a expectativa é de que esse aplicativo esteja disponível ao público no mês de julho. A grande dúvida é se os serviços, como cartórios, estão preparados para recepcionar alguém que se identifique dessa forma, por meio de um aplicativo. A temática da identificação digital tem amadurecido. Embora ainda haja muito a aperfeiçoar, as perspectivas de uso de tecnologias digitais para identificar o cidadão estão cada vez mais próximas. Temos diferentes arranjos no mundo em relação à forma de provimento do serviço de identidade. A Inglaterra, por exemplo, criou um modelo de identidade parecido com a nossa ICP-Brasil, um modelo descentralizado de parceria público-privada. Outra questão é a existência de pessoas sem identidade. Uma estimativa do Banco Mundial publicada este ano dá conta de que 1 bilhão de pessoas no mundo ainda não têm nenhuma prova oficial de identidade. Esse problema não existe no Brasil porque aqui se reconhece a identidade legal. Com a quase universalização do registro civil no Brasil, com a erradicação do sub-registro, o Brasil fica de fora dessas estatísticas. O nosso desafio é trazer a temática da identidade legal para a realidade brasileira.

Brasileiros arriscam a vida para recuperar seus documentos Todos nós nos lembramos do recente acontecimento trágico envolvendo o Edifício Wilton Paes de Almeida [que desabou em incêndio no Centro de São Paulo, no dia 1º de maio de 2018]. Destaco um depoimento: “Eu estava dormindo, acordei meu marido gritando ‘fogo, fogo, fogo’! Peguei meus filhos e saí. Não consegui salvar os documentos dele, consegui salvar só os meus. Estou aqui no meio da rua, com roupa de dormir, sem nada.” A pessoa deixou tudo para trás, mas arriscou a própria vida para salvar os seus documentos. É possível observar que esse comportamento não ocorre apenas em situação de desespero, como no risco iminente de um incêndio, desabamento etc., mas é frequente em qualquer situação. Ou seja, dois dias depois, aquelas pessoas arriscaram as suas vidas voltando ao edifício para buscar seus documentos. Esse não é um caso isolado. Estudos da professora Mariza Peirano, da Universidade de Brasília (UNB), mostram casos semelhantes em que pessoas chegaram a morrer na tentativa de recuperar seus documentos. De forma racional, ninguém arriscaria a vida para salvar seus documentos, mas é preciso refletir sobre esses acontecimentos porque eles não são isolados. Por que o brasileiro se preocupa tanto com o seu documento a ponto de arriscar a própria vida? A erradicação do sub-registro representou um grande avanço no país. Foi uma pactuação que envolveu os poderes Executivo e Judiciário e as entidades representativas do Registro Civil, como Arpen e Anoreg. Esse trabalho cooperativo superou todas as divergências causadas pelas perspectivas diferentes e atingiu um objetivo nacional importante. 105


onde fixou residência. É frequente, nos aeroportos, pessoas com dificuldades de embarcar por conta de divergências na documentação, mulheres que apresentam documento com nome de solteira e são casadas, certidão do nascimento dos filhos em que consta um nome e o documento apresentado outro, etc.

Múltiplos documentos de identificação e fraude em programas sociais Falsificação de documentos e falta de integração entre emissores Mas será que a erradicação do sub-registro é suficiente? Será que basta fazer com que cada criança ao nascer possa ter o seu registro, ou precisamos avançar mais? Quem nunca se deparou com um caso de falsificação de documento de identidade? Houve um caso de uma pessoa que se apresentou para a emissão de um certificado digital com documento falso. A equipe desconfiou do documento e solicitou ao apresentante que providenciasse outro documento para fins de identificação. Ao se retirar, a pessoa simplesmente jogou aquele documento no lixo. Essa atitude demonstrou claramente que se tratava de um documento falso. A falta de integração é outro problema corriqueiro. Uma pessoa com mais de um documento de identidade é algo absolutamente legal no Brasil. É muito comum encontrar pessoas portando dois documentos de identidade, com numerações diferentes, um referindo-se ao Estado de origem e outro tirado no Estado

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Se fizermos um levantamento exaustivo, vamos verificar que cerca de 21 documentos podem ser usados no Brasil para as mais diversas situações. Seis desses documentos são aceitos legalmente para fins de comprovação de identidade. A habilitação de motorista pode ser usada para identificação pessoal. Há uma mistura de conceitos que precisa ser analisada. As fraudes em programas sociais e políticas públicas também são frequentes. Toda semana vemos casos como o da Suframa – Superintendência da Zona Franca de Manaus, que estava dando benefícios fiscais para beneficiários do programa Bolsa Família. Onde está a fraude, no Bolsa Família ou na Suframa? Ninguém sabe, o que se sabe é que um problema de divergência cadastral gera graves prejuízos ao país.

Dificuldade de acesso aos documentos A dificuldade de acesso é uma questão que talvez explique o apego das pessoas aos documentos. Podemos excluir o Estado de São Paulo, que conta com uma rede ampla de atendimento, mas em cidades um pouco mais afastadas dos grandes centros o documento de identidade ainda é solicitado em uma delegação de polícia e leva cerca de 180 dias para ser gerado. Essa é uma situação contraditória, uma vez que


Identidade legal no Brasil

estamos tratando de um documento que possibilita o acesso à cidadania. Além disso, não é conveniente que esse serviço seja prestado por uma delegação de polícia, deslocando-se a força de trabalho que deveria estar dedicada à segurança pública para fazer um trabalho administrativo. Vimos vários projetos naufragarem no país porque buscaram soluções mágicas, quando sabemos que esse é um esforço de reorganização das instituições públicas e privadas, um esforço continuado, com estratégia, e que vai além da tecnologia. A tecnologia é hoje um grande auxiliar. Há uma gama de tecnologias favoráveis à integração, à segurança, e seu uso e aceitação estão bem maiores, mas nem tudo se resolve por meio da tecnologia. Os aspectos legais e institucionais são muito importantes.

Os cadastros são uma questão dramática no Brasil. Trabalhei muitos anos tentando fazer integração e vimos que todas as propostas se depararam com um problema básico: não se pode fazer integração sem a criação de uma forma única de representação do cidadão. E não estou falando da criação de um grande cadastro único, mas apenas que haja políticas públicas que conversem entre si. Se existe uma política pública voltada para a segurança nutricional do cidadão, ela precisa dialogar com as políticas de educação e de saúde para que seja aperfeiçoada. No Brasil, a característica dos cadastros continua sendo de silos de informação, cria-se um cadastro único e ele acaba virando mais um cadastro único. São vários os cadastros únicos no Brasil.

Identificação Civil

Sendo assim, como poderíamos organizar o É importante que se crie uma base de identificação que eu denominaria sistema nacional de identifinacional para evitar os casos de duplicidades, divergêncação no Brasil? Quais elementos devem ser tracias e fraudes. Essa base nacional, obviamente, não retados de forma ordenada e coerente de modo que solverá todas as questões, mas apenas alguns elementos. esse problema seja minimizado ao longo do tempo? Índia quer cadastrar biometricamente 1,2 bilhão de pessoas em menos de dez anos.

Cadastros administrativos não são voltados à identificação Dói ouvir colegas dizendo que o problema no Brasil é a quantidade de identidades como CPF, NIS, PIS, Cartão do SUS, etc. Nada disso é identidade. São cadastros administrativos voltados a políticas públicas e aos atributos do cidadão, não à identificação do cidadão. Muitas vezes se quer resolver o problema da identidade criando um novo cadastro, o que é uma grande distorção.

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Registro Civil

Registro Civil – Identificação civil – Cadastros administrativos.

Trata-se da fundação do reconhecimento legal do cidadão. O direito à identidade nasce no Registro Civil.

A guinada para o mundo digital é inevitável. Ela acontece em todos os segmentos, mas muitas vezes surgem iniciativas voltadas à transformação digital que não estão exatamente em consonância com a atualidade. Há vários projetos em andamento nesse sentido.

No Brasil, registro civil e identificação civil são coisas diferentes. Conceitualmente, essa integração deveria ser orgânica. Registro civil e identificação civil são etapas de um mesmo processo, o reconhecimento biométrico é apenas um método de identificação para garantir a unicidade da pessoa.

ICP-Brasil e identidade digital Esse quarto elemento é fundamental quando tratamos da identidade digital. O Brasil tem uma proposta de identidade digital que é a ICP-Brasil. O certificado digital está associado à identidade digital e hoje é a forma de se fazer uso do meio eletrônico, de maneira segura e reconhecida por lei. A identidade digital se sobrepõe a essa fundação

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O Registro de Imóveis eletrônico está em ampla discussão e perpassa interesses de toda a sociedade.

Digitalização: iniciativas internacionais relevantes O anseio em colher os dividendos da digitalização é mundial. Há exemplos de sucesso no mundo, como no caso do Projeto Aadhaar, da Índia [sistema de identificação por meio da digitalização de impressões digitais, olhos e faces]. Existem questionamentos relacionados à privacidade dos dados pessoais, mas não se pode negar o esforço da Índia em cadastrar biometricamente 1,2 bilhão de pessoas em menos de dez anos.


Identidade legal no Brasil

Criar uma identificação digital é uma fundação para o processo de digitalização do país. Outro projeto nacional da Índia que é fruto desse esforço de digitalização é o IndiaStack, que possibilita ao cidadão, por exemplo, tomar empréstimos de forma remota. São soluções totalmente digitais e igualmente financiadas de forma digital. Na última semana, numa atitude ousada e muito questionada, a Índia decidiu extinguir as duas cédulas em papel mais utilizadas no país – equivalentes às cédulas de 10 e 20 reais no Brasil – para pressionar a população a usar o dinheiro digital.

Identificação Civil Nacional (ICN) busca integração

Um componente essencial da identidade digital é o Registro Civil. Espanta verificar que, no Brasil, ainda se discute a necessidade de integração do registro civil e da identificação civil. Essa discussão já está superada em todo o mundo.

Um componente essencial da identidade digital é o Registro Civil. Espanta verificar que, no Brasil, ainda se discute a necessidade de integração do registro civil e da identificação civil. Essa discussão já está superada em todo o mundo.

O ministro João Otávio de Noronha usa o termo modernizar, que está muito associado à modernização dos processos internos, mas no âmbito dos serviços notariais e registrais a melhor expressão é a digitalização dos processos bem como no atendimento ao cidadão. Se quisermos discutir seriamente a identidade digital no Brasil, nós precisamos discutir a digitalização do Registro Civil. Não basta a adaptação dos serviços de maneira a possibilitar o atendimento dos cidadãos que buscam ser identificados a partir de um aplicativo de celular. A responsabilidade dos registros públicos vai além da preparação para a identificação digital.

A identidade digital só será possível a partir da união de todos os segmentos públicos em torno de um processo que tenha como objetivo o fortalecimento da digitalização do Registro Civil. Não tenho nenhuma dúvida de que todos os projetos anteriores voltados à identificação fracassaram porque tentaram começar do zero, ignorando o que já existia no Registro Civil. Sempre defendi o projeto de Identificação Civil Nacional (ICN) porque assume a direção contrária em busca da integração. Há ainda muito o que aperfeiçoar, mas vejo como um projeto promissor nesse sentido.

Essa discussão toda serviu para unir o número do CPF, a identificação biométrica e os dados do registro civil, todos num único documento digital. No norte de Minas Gerais, há uma rede de atendimento de 6 mil novos postos para a emissão de CPF baseada nas informações do Registro Civil. Isso mostra que o crescimento da identificação digital no Brasil só acontecerá quando essas dimensões forem respeitadas, o que favorecerá uma identificação sólida e segura do ponto de vista tecnológico.

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DESBUROCRATIZAÇÃO DO BRASIL: BIOMETRIA E CERTIFICADO DIGITAL por Manuel Matos

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Manuel Matos é administrador de empresas, titular do Comitê Gestor da Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira, vinculado à Casa Civil da Presidência da República e representante titular da Câmara dos Deputados no Comitê Executivo do Programa Brasil Eficiente, que visa facilitar o acesso a serviços e diminuir o tempo gasto para se cumprir obrigações junto a órgãos governamentais. Em sua palestra falou sobre conceito legal de identidade e meios de prova tecnológicos; histórico da adoção do certificado digital no Brasil; atuação na Comissão de Desburocratização da Câmara Federal; contexto e desafios da identificação biométrica e novas tecnologias.


Desburocratização do Brasil: biometria e certificado digital

Brasil Eficiente: objetivos, criação e colegiado Temos hoje em andamento uma iniciativa chamada Brasil Eficiente, que tem por objetivo assessorar e sugerir itens ao Presidente da República, qualquer que seja o cidadão que esteja ocupando essa função.

Conselho Nacional para a Desburocratização – Brasil Eficiente A identidade digital e a assinatura digital, no Brasil, têm uma infraestrutura robusta, sólida, e só existe no formato atual em função da coragem de alguns agentes públicos, nos quais incluo os registradores e notários. Isso porque não sabíamos onde iríamos chegar, tínhamos apenas algumas referências e provocações intelectuais, como as de Sérgio Jacomino, que, desde 1998, em sua inquietude, antevia a reprodução de sua atividade no mundo eletrônico. Farei referência ao modo pelo qual essas peças se encaixam, apresentando o tecido que utiliza três pilares básicos para a modernização do Estado brasileiro. Todas as fases que serão aqui apresentadas referem-se a coisas que existem. Eu me abstive de mencionar projetos e declarações de intenções ou o que ainda não está em prática.

A iniciativa também tem a missão de coordenar e orientar a elaboração das propostas de desburocratização no âmbito da administração pública federal – porque os municípios só serão tratados a partir de janeiro de 2019 – e estimular os órgãos e entidades do Poder Executivo Federal. Essa iniciativa teve início na Câmara dos Deputados, com o Ofício de indicação nº 2325/2016, que foi acatado pela Presidência da República, transformando-se em decreto presidencial (Decreto Sem Número – DSN, de 07/03/2017), e, por fim, em uma lei que trata da desburocratização, da retirada do ônus da Administração Pública sobre o dia a dia do cidadão. O sistema de governança é muito simples. Há um Conselho Nacional e um Comitê Executivo. O Conselho Nacional é presidido pelo Ministro da Casa Civil e conta com a participação de ministros de Estado, de um representante do Senado e da Câmara dos Deputados. O Comitê Executivo conta com a mesma composição, acrescendo-se apenas os secretários executivos dos ministérios.

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A iniciativa também conta com a participação de algumas peças fundamentais, como o Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão – MPDG, pois uma de suas atribuições é coordenar e concertar a atuação dos demais ministérios com relação à modernização de seus processos, e a Escola Nacional de Administração Pública – ENAP, que realiza eventos com o objetivo de estimular o pensamento crítico e a modernização do serviço público.

Pesquisa sobre serviços públicos do Governo Federal As pesquisas foram encomendadas para dimensionar a quantidade de serviços oferecidos com os recursos à disposição da Administração Pública e também a forma de interação do cidadão com os serviços públicos prestados. Nesse sentido, as pesquisas demonstram que o bal-

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cão ainda é a forma de interação mais significativa entre o cidadão e o prestador de serviços. O celular, esse cordão umbilical que nos une, ainda representa uma semente. Cláudio Machado comentou a respeito da identificação digital aceita em aeroportos. Esse tipo de identificação era mesmo de ser aceita porque antes da identidade chegar ao celular a passagem aérea já estava lá. A pessoa que está acostumada a reconhecer um bilhete eletrônico não tem dificuldade em reconhecer uma identidade porque mudou o seu sistema cognitivo antes. E é por isso que cito como um ponto de inflexão na modernização dos serviços públicos brasileiros, o dia 30 de setembro de 2005.

Processo judicial eletrônico é realidade Naquela data, no Rio de Janeiro, sob a coordenação do então presidente do STF, Nelson Jobim, e do


Desburocratização do Brasil: biometria e certificado digital

presidente do STJ, Edson Vidigal, o Judiciário adentrava uma infraestrutura denominada Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira, dando os primeiros passos em direção ao processo judicial eletrônico. Ora, hoje o juiz não tem nenhuma dificuldade em identificar a Infraestrutura de Chaves Públicas, um certificado digital, e julgar uma ação peticionada e assinada digitalmente. Ele mesmo faz uso da tecnologia. Assim como no balcão da companhia aérea foi fácil reconhecer uma identidade digital, porque se faz uso do bilhete eletrônico, o juiz também conhece dessa infraestrutura porque faz uso dela no seu dia a dia. Hoje, nenhum advogado consegue peticionar nos tribunais superiores sem certificado digital. O processo judicial eletrônico é uma realidade no país. O maior receio quando se adentra a um novo campo do conhecimento é saber como o poder conservador vai julgar as demandas. O fato de o Judiciário conhecer da identidade digital utilizada no país facili-

tou muito a nossa vida até os dias atuais. Os níveis de digitalização dos serviços também foram mensurados pela pesquisa. Os conflitos que havia em relação aos documentos em papel, que foram posteriormente digitalizados, ou documentos que já nasceram digitais, foram superados com o tempo. Hoje o que interessa saber é se o serviço está no celular e está sendo utilizado.

Ponte para a cidadania digital O programa Brasil Eficiente é constituído por serviços públicos prestados no formato eletrônico sob dois pilares: Identidade Civil Nacional – ICN. Trata-se de uma identidade civil nacional de melhor qualidade. A identidade só precisa ser um pouco melhor do que é hoje. Não temos a pretensão de que ela seja perfeita porque tudo se aprimora ao longo do tempo.

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Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira – ICP-Brasil. Identidade digital é absolutamente diferente de identidade civil no formato digital. Na identidade civil não há assinatura digital e serve para identificar pessoas. A identificação digital serve para a identificação de partes distantes ou remotas. Nesse caso, há uma assinatura digital com validade jurídica calcada em um robusto arcabouço jurídico de presunção de validade e equivalente a uma assinatura de próprio punho, com reconhecimento notarial por autenticidade, portanto, tem um valor probante muito maior. A Identidade Civil Nacional não é uma estrutura tecnológica, mas jurídica. É agnóstica em relação à tecnologia.

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Comecemos por desfazer a confusão que existe entre a biometria e a ICP-Brasil. Elas estão relacionadas porque a biometria faz parte de uma qualificação melhor da identidade civil e serve para qualificar partes presentes. Você precisa estar junto da sua biometria. A biometria não tem nenhuma validade na qualificação de partes distantes por um motivo jurídico muito simples: ela é única, mas não é secreta. Nem me refiro aos artefatos rústicos, como os dedos de silicone com pulsação sanguínea. Qualquer que seja a característica da biometria, ela não é secreta. Portanto, à luz da tecnologia existente, ela não serve para driblar o fraudador eletrônico em partes ausentes. Ela é parte de um componente de identificação presencial.


Desburocratização do Brasil: biometria e certificado digital

Enquanto um documento fraudado em papel continua produzindo efeitos até que se consiga alcançá-lo, uma identidade digital tem seus efeitos cessados no momento da revogação.

Fala-se de outras tecnologias, por exemplo, da blockchain. A legislação que dá suporte a uma infraestrutura de chaves públicas já trata disso (art. 10, §2º). É facultado às partes utilizarem a forma de identificação que quiserem, entretanto, a qualificação não é a mesma da ICP-Brasil. Essa infraestrutura trata de uma série de componentes que não são tecnológicos, como é a revogação. Enquanto um documento fraudado em papel continua produzindo os efeitos até que se consiga alcançá-lo, uma identidade digital tem seus efeitos cessados no momento da revogação, que pode ocorrer a qualquer momento a pedido do titular ou por determinação das autoridades certificadoras.

A aceitação da sociedade brasileira é absolutamente pacífica a partir de 2005, quando o Judiciário aderiu ao sistema eletrônico e constituiu a sua própria autoridade certificadora, assim como a OAB e os registradores e notários, para que pudesse ser um pilar importante das suas atividades. Isso foi muito importante porque permitiu o conceito norteador da modernização, que era o conceito das centrais de serviços eletrônicos compartilhados, o conceito da base primária da nação, principalmente o registro civil, que é o arco da cidadania que se inicia com a certidão de nascimento e sofre atributos e impactos ao longo da sua existência até que finda com uma certidão de óbito.

O sucesso depende de entender para onde caminham os usuários e chegar lá primeiro De tudo que já vi na modernização do Estado brasileiro, tenho a convicção de que não tivessem o judiciário e o extrajudicial adentrado na participação desses dois pilares (Identidade Civil Nacional – ICN e Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira – ICP-Brasil), nós teríamos um Brasil absolutamente caótico e arcaico. Foram esses movimentos que deram a confiança necessária para que pudéssemos ousar e seguir em frente. A frase que citávamos é: “Não estamos mais sozinhos”. A sociedade brasileira pacificou e anda nessa direção. Mas várias pessoas participaram disso, não apenas os personagens aqui citados. O agente público que tomou a decisão de colocar a declaração de imposto de renda na internet foi um cidadão que a história vai saber reconhecer. O próprio processo judicial eletrônico, a nota fiscal eletrônica, imaginem o Brasil, hoje, sem a nota fiscal eletrônica. Imaginem as filas para declarar imposto de renda. Imaginem como seriam os peticionamentos dos advogados. O Brasil cresceu, a população aumentou, os municípios continuam se desenvolvendo. É necessário que novas ferramentas possam substituir o formato anterior. No dia 18 de fevereiro de 2018, se encerrou todo o processo de conversão de 70 milhões de CNHs para o formato digital. Quem não possui ainda, é só solicitar a segunda via pelo celular, basta acessar o site do Denatran e ativar sua identidade eletrônica. E assim também para todos os demais documentos e serviços prestados no âmbito do governo federal. Com relação aos cartórios, nem ouso dizer a quantidade de aplicações disponíveis no formato digital porque todos os seus idealizadores estão aqui presentes.

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Esse foi um trabalho coletivo da sociedade brasileira que impulsionou o poder público. Nenhum governo aderiu aos serviços eletrônicos de qualidade por livre manifestação, mas impulsionado pelo movimento do contribuinte, que aderiu primeiro. Nesse sentido, há uma regra que diz que o sucesso depende de você entender para onde estão caminhando os seus usuários e chegar lá primeiro. Se todos estão integrados, o governo também tem que estar. Para que o governo possa cumprir a sua função, o seu serviço precisa estar à disposição do cidadão.

Nem carro, nem celular, a identidade é o produto mais roubado no país Muita gente pensa que o objeto mais roubado no país é automóvel ou celulares. Não é. A identidade é o produto mais roubado no país, porque proporciona uma série de irregularidades. O conceito é muito simples: serviços públicos rea-

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lizados na forma online, tendo por base uma identidade mais confiável e uma infraestrutura de declaração de vontade de partes distantes. Não tem complexidade. A tecnologia pode ser a que for, criptografia assimétrica, blockchain, a que se quiser. Não é uma exigência da infraestrutura o tipo tecnológico, até porque toda a tecnologia que conhecemos hoje está muito próxima de se tornar obsoleta com a vinda dos processadores quânticos, cujo processamento é muito mais rápido e, portanto, conseguirão quebrar chaves criptográficas de forma muito mais eficiente. As universidades que participam de pesquisas científicas avançadas pesquisam a computação pós-quântica, ou seja, os efeitos e o tratamento dado aos sistemas de segurança computacional para que consigamos superar esta fase. Por que o governo precisa criar vários tipos de identidade, se ele pode estender o braço e pegar uma que esteja disponível? Naquela época, havia apenas cinco leis que fala-


Desburocratização do Brasil: biometria e certificado digital

vam sobre a ICP-Brasil. Hoje são centenas. Isso é infraestrutura. Há milhares de instruções normativas e circulares no âmbito da administração pública federal, estadual e municipal que citam textualmente a ICP-Brasil, e isso facilitou a vida do cidadão.

Hoje os cartórios são exemplo de eficiência

Nenhum governo aderiu aos serviços eletrônicos de qualidade por livre manifestação, mas impulsionado pelo contribuinte, que aderiu primeiro. O sucesso depende de você entender para onde caminham os seus usuários e chegar lá primeiro.

Vocês sabiam que desde 18 de fevereiro ninguém mais pode ser multado por não estar de posse da sua habilitação ou do documento do veículo? Isso porque o formato eletrônico está disponível para o agente que o aborda. Imaginem os tempos em que se era multado por esquecer o documento do automóvel. Isso representava o peso de um Estado sobre a deficiência dele próprio.

São esses passos que vão mudando a vida do cidadão e que nos animam a estar aqui hoje, principalmente como uma forma de agradecimento aos registradores e notários. Os registradores e notários mudaram definitivamente a forma do Estado brasileiro, em especial da Administração Pública, de enxergar a infraestrutura. É claro que ainda é necessário um tempo para que haja a inversão da prestação do serviço no formato presencial para a prestação do serviço no formato online. Mas ninguém melhor do que esses profissionais para dar o depoimento dos impactos da infraestrutura nos seus negócios e na efetividade da prestação de seus serviços.

em um passado que vai ficando para trás, um modelo de burocracia e ineficiência. Hoje é também um exemplo de eficiência.

Deixo aqui o meu agradecimento, de forma muito enfática, aos registradores imobiliários da cidade de São Paulo que acreditaram naquela reunião ocorrida no Mosteiro de São Bento. Agradeço também aos registradores civis da cidade de São Paulo que deram exemplo para o restante do Brasil. Nós também acreditamos no Brasil Eficiente e na comissão mista formada na Câmara dos Deputados para o aprimoramento de todo esse conjunto em que a lei impactava o avanço da modernização.

Nós fizemos tudo isso em dois anos, e os registradores e notários participaram ativamente desse projeto, que está terminado. A comissão mista de desburocratização foi presidida pelo deputado Júlio Lopes, teve como relator o senador Antonio Anastasia, e contou com a participação da sociedade brasileira. Avançamos baseados num único credo: se o governo não fizer o seu papel indutor, adaptando as suas aplicações, a sociedade civil e as entidades privadas seguirão certamente esse caminho, porque deixaram a marca de duas infraestruturas que servem como pilares vigorosos de uma modernização não apenas dos serviços públicos prestados de forma online, mas de toda e qualquer prestação de serviços ao cidadão.

A sociedade brasileira reconhecia nos cartórios,

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BLOCKCHAIN E IDENTIDADES DIGITAIS DESCENTRALIZADAS: INICIATIVAS NO BRASIL E NO MUNDO por Marco Konopacki

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O cientista político que coordenou o debate público para regulamentação do Marco Civil da Internet, Marco Konopacki, coordenador de projetos na área de Democracia e Tecnologia do ITS Rio, apresentou o conceito de identidades digitais soberanas, nas quais os indivíduos têm total controle sobre seus dados, que são legitimados de forma distribuída pela rede de confiança. E falou das iniciativas, no Brasil e no exterior, sobre o uso de blockchain para identidade digital descentralizada.


Blockchain e identidades digitais descentralizadas: iniciativas no Brasil e no mundo

ITS Rio: uso de novas tecnologias com vistas à inclusão O Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio desenvolve pesquisas e projetos no âmbito da tecnologia digital, visando compartilhar seus benefícios com toda a sociedade, e tem como objetivo apresentar soluções criativas e tecnológicas para problemas públicos. A área da qual sou coordenador – Democracia e Tecnologia – tem por objetivo analisar meios para o aprimoramento das democracias e políticas a partir do uso de novas tecnologias de maneira a garantir, em um cenário de intensas transformações tecnológicas, uma inclusão cada vez maior da população nas discussões políticas do nosso país.

Identidades digitais e a tecnologia de blockchain – críticas e centralização

sido abordada sob os mais diversos aspectos, e o uso da blockchain para esse fim tem recebido muitas críticas.

A nossa proposta é apresentar as identidades digitais no contexto dessa tecnologia emergente chamada blockchain.

Cláudio Machado falou, em sua palestra, da importância de haver uma separação entre os cadastros administrativos e a identificação do cidadão em si. Apesar disso, há hoje uma necessidade de concentração desses atributos para a construção de um ambiente de provimento da identidade. A consequência disso é a criação de mais um cadastro único.

Em 2013, o ITS formou um grupo de pesquisa chamado Blockchain Hub, envolvendo diferentes atores dos setores público e privado. Desde então, o ITS vem acumulando discussões relacionadas à blockchain, como é o caso das identidades digitais. A identidade digital e a blockchain são temas novos que vêm sendo pesquisados por diferentes centros de pesquisa no mundo. Por ser uma temática nova, tem

Há um cenário de intensa concentração de dados por parte dos agentes provedores de identidade no país.

A Identificação Civil Nacional – ICN vem, de certa forma, tentar resolver um problema de identidades estabelecidas pelos Estados da Federação, reconcentrando a base única nacional de identificação e criando mais um processo centralizado de identificação.

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Identidades digitais – descentralização resolve alguns problemas e gera outros Há serviços e outras instituições que já começaram a caminhar para um processo de descentralização. No caso do Brasil, a descentralização resolve alguns problemas, mas gera outros. Em um cenário em que, além do problema da identificação se tem outros serviços entrantes que requerem muitas vezes a validação da identidade do usuário do serviço, o problema se torna ainda pior. Isso porque a descentralização das formas de identificação encontra problemas nos processos de integração. Há que se valer, no entanto, das diferenças entre os graus de necessidade de validação de identidade. É claro que uma identidade construída e validada por uma assinatura ICP-Brasil tem a garantia do não-repúdio. Não é necessário associar a minha identidade ao meu certificado para me identificar em serviços como Facebook, pois não se está realizando, naquela plataforma, nenhum ato que exija isso. Mas imaginemos que serviços dentro dessa plataforma possam evoluir a tal ponto que isso seja necessário um dia. A construção desse processo integrador, ainda assim, é extremamente dependente de autoridades centralizadoras que geram e determinam quem pode ser uma autoridade de identificação e concessão de certificados. Apesar de uma aparente descentralização no provimento de identidades, o ecossistema de provimentos ainda é extremamente concentrado e oligopolizado. Essa é uma questão importantíssima a enfrentar, especialmente porque em um contexto altamente digitalizado o ecossistema precisa seguir um modelo distribuído. O avanço precisa ir além do sistema descentralizado justamente porque não depende de orga-

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nismos e entidades centrais que validem ou concedam a autoridade para identificar se fulano é fulano e sicrano é sicrano. Nesse sentido, é importante fazermos a seguinte pergunta: a identidade é só um pedaço de papel ou de plástico? O plástico, aqui, inclui o certificado digital que poderia corresponder à identidade de uma pessoa. Será que a identidade pode ser considerada apenas aquele documento utilizado para identificação da pessoa? Em um cenário distribuído em que não há um único ente atribuindo e validando identidade, as identidades são construídas através de relações de confiança e por múltiplos agentes. No cenário centralizado, a confiança, seja a validação de uma assinatura ou o reconhecimento de um ato, é atribuída a um ou poucos agentes. Isso quer dizer que eu, não sendo um tabelião ou um agente certificador, poderia ser um elemento que poderia atribuir algum tipo de confiança a outro agente, estabelecendo um processo de confiança distribuído nesse circuito de agentes. Mas o que a blockchain tem a ver com essa questão?


Blockchain e identidades digitais descentralizadas: iniciativas no Brasil e no mundo

No modelo descentralizado seria possível constituir uma carteira cujos dados só seriam compartilhados mediante a autorização, revogável, de seu proprietário.

A blockchain é uma tecnologia que permite a construção de redes de confiança descentralizadas. Há diferentes nós dentro de um cenário de troca de informações. É um banco de dados público que pode ser lido e verificado por qualquer computador pertencente a essa rede. Ao mesmo tempo, a autoridade é distribuída e compartilhada igualmente entre os agentes da rede. Não há um ente centralizador que verifica e atribui confiança à informação.

Transferindo o pensamento para o cenário das identidades digitais, imaginemos a blockchain sendo utilizada como um banco de dados público capaz de armazenar os atos ao longo da vida do cidadão, todo o seu histórico de ações, estabelecendo a identidade e reputação do indivíduo nesse momento da história. A blockchain poderia ser utilizada para formação de reputações com base em tokens acumulados pelas pessoas. Na rede da blockchain, token é uma unidade básica que representa o ativo de relações que a pessoa acumula dentro da rede. Sendo assim, a blockchain poderia servir de instrumento para a construção de reputações estabelecidas de forma pública, e poderia se tornar um agente atribuidor e construtor de identidades públicas, verificáveis por qualquer rede de agentes interessados. No processo descentralizado e distribuído de confiança para a construção de identidades, por pessoas naturais ou por instituições, o agente tem domínio to-

tal sobre os dados, o que quer dizer que ele pode até escolher a forma como quer que esses dados sejam compartilhados.

Descentralização: meus dados, minhas regras No modelo centralizado é necessária a construção de grandes bancos de dados, para a constituição do histórico de vida das pessoas, que devem ser mantidos por entidades centralizadas que desfrutam da confiança dos agentes. No modelo descentralizado seria possível constituir uma carteira cujos dados só seriam compartilhados mediante a autorização, revogável, de seu proprietário. Isso é muito importante num momento em que cada vez mais os dados pessoais são temas de discussão e objeto de disputa dado o imenso valor que possuem na consolidação da sociedade da informação. Imaginemos o processo de identificação utilizado por casas noturnas para garantir que a pessoa é maior de idade e está apta a entrar na casa. A pessoa apresenta o seu documento de identidade com uma gama de informações como nome, filiação, data de nascimento, número do RG e outras informações que não são relevantes para verificar se o indivíduo é ou não maior de idade. Em um modelo descentralizado de verificação da informação, uma possibilidade seria simplesmente indicar e responder se a pessoa é ou não maior de idade. Esse é o dado relevante. Por que preciso compartilhar todas as minhas informações com aquele ente verificador, se o que ele precisa saber é apenas se sou maior de idade? Com a blockchain, a indicação e a autodeclaração poderiam ser verificadas pelo ente público interessado.

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Identidade digital – iniciativas: ID2020 Pilot Development Esse projeto conta com um consórcio enorme de organizações atuantes. Relembrando um dado trazido pelo palestrante Cláudio Machado, hoje ainda há 1 bilhão de pessoas sem qualquer tipo de identificação no mundo. O ID2020 busca, até 2020, a partir da construção de um modelo de identidade soberana descentralizada, criar algum mecanismo de identificação dessas pessoas que ainda não estão identificadas. Uma das organizações participantes desse consórcio é a Identity Foundation. Há uma grande quantidade de empresas que apoiam e dão suporte a essa fundação.

Construção de modelos descentralizados de identidade A identidade digital vem se estabelecendo como um grande tema. Diferentes organizações e empresas vêm investindo maciçamente na construção de modelos descentralizados de identidade. Pensar no uso da blockchain na construção de mecanismos de identidades é justamente pensar nos modelos de identidades soberanas1, em que os usuários têm domínio total sobre seus dados pessoais e a forma como são compartilhados. As identidades soberanas não são verificáveis por um ente centralizado, mas pelo conjunto da rede, garantindo a proteção da privacidade das pessoas em sua relação com o meio.

Identidade digital – iniciativas: Trust Core ID Esse é um projeto do Mit Media Lab, laboratório que vem criando um protótipo para a construção de um modelo de identidades digitais soberanas com o uso de blockchain pública para fazer o registro e armazenamento das informações.

Identidade digital – iniciativas: Uport O Uport é um projeto de identidades digitais soberanas da Consensys, empresa que faz grandes investimentos em tecnologias de blockchain.

Identidade digital – iniciativas: Bitnation Governance 2.0 O Bitnation não é exatamente um projeto de

Ver artigo do palestrante sobre o tema, Blockchain e identidades digitais: caminhos para uma nova democracia: http://bit.ly/ bir-358-3 [NE]

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Blockchain e identidades digitais descentralizadas: iniciativas no Brasil e no mundo

Pensar no uso da blockchain na construção de mecanismos de identidades é pensar nos modelos de identidades soberanas, em que os usuários têm domínio total sobre seus dados pessoais e a forma como são compartilhados.

construção de identidade digital, mas a identidade digital é meio para a proposta que eles vêm construindo.

O Bitnation repensa o modelo de jurisdição no mundo propondo a criação de um modelo de jurisdição líquida em que as pessoas possam criar suas próprias jurisdições digitais, negociar contratos a partir de regras estabelecidas nessas jurisdições, utilizando a identidade digital descentralizada como um instrumento para tornar possível a construção desse modelo jurisdicional.

Identidade digital – iniciativas: Blockchange É um projeto do The Governance Lab, laboratório de inovação cívica baseado na cidade de Nova Iorque. O Blockchange também tem um projeto próprio de construção de identidades digitais no âmbito da blockchain.

Identidade digital – iniciativas: ID.org. br – Login Cidadão No Brasil, o ID.org.br é uma tentativa de avançar com o modelo Login Cidadão, um provedor de identidade descentralizada utilizado pelo governo do Rio Grande do Sul, que editou um decreto reconhecendo-o como o modelo oficial de identidade para acesso a serviços públicos.

O Login Cidadão, no entanto, ainda é um modelo de identidade orientado, isto é, o usuário não tem total poder sobre as suas informações. E o ID.org.br é justamente o processo utilizado para a construção de um modelo de identidade digital soberano e descentralizado no Brasil.

Identidade digital – iniciativas: Mudamos.org Inspirado na Medida Provisória 2.200, o Mudamos é um aplicativo para assinatura de leis de iniciativa popular, desenhado e idealizado pelo ITS Rio, que realiza uma tarefa muito simples, permitindo aos cidadãos assinarem digitalmente leis de iniciativa popular. O Mudamos possui em seu núcleo uma unidade de chaves para assinaturas, utilizando-se dessa tecnologia para a validação das assinaturas e a criação de contratos entre cidadãos que querem assinar leis de inciativa popular, substituindo, com isso, o modelo em papel até hoje vigente. Eu convido todos a acessarem a URL http://bit.ly/ idsoberanas para conhecerem o que estamos experimentando com o Mudamos nos últimos tempos. Ao criar essa unidade de identificação dos cidadãos para participação política, vislumbramos a possibilidade de expansão do Mudamos para outras aplicações. Vimos experimentando a expansão do aplicativo, possibilitando a terceiros a utilização da wallet gerada pelo Mudamos na assinatura de outros atos e documentos pelo aplicativo. Acreditamos que o futuro das identidades digitais soberanas seguirá por esse caminho dos serviços e aplicações que compartilhem as suas unidades de confiança e os dados com os quais trabalham, e da criação de um ecossistema de validação para a construção de identidades possíveis de serem validadas de modo descentralizado.

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IDENTIDADE DIGITAL E O REGISTRO DE IMÓVEIS por Caleb Matheus Ribeiro de Miranda

Aumento nas interações com os cartórios por meio digital Temos notado um aumento nas interações com os cartórios pelo meio digital em razão da existência de sistemas de serviços registrais disponíveis online. Além disso, tem havido um número crescente de solicitações por e-mail e interações por redes sociais e aplicativos de mensagens. Toda a base normativa trata o assunto basicamente sobre o mesmo enfoque: Lei 6.015/73 (LRP), art. 17, parágrafo único; e Lei

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Caleb Matheus Ribeiro de Miranda, Oficial do Registro de Imóveis, Títulos e Documentos e Civil de Pessoas Jurídicas de Juquiá (SP) – pesquisador de Novas Tecnologias do IRIB – apresentou a palestra que deu título ao evento, trazendo as implicações do Provimento CNJ 61, e de outros dispositivos legais, bem como da implantação do SREI na atividade dos registradores imobiliários.

11.977/09, art. 38 – segundo as quais a comunicação eletrônica é comunicação com certificado digital ICP-Brasil; Provimento CNJ 47/2015 – fala em informações com certificado digital emitido pelas centrais; Recomendação CNJ 14/2014 – recomenda a adoção do SREI e também indica nesse sentido; Provimento CNJ 61/2017 – única fonte normativa que aborda o assunto de forma diferente ao trazer o e-mail como elemento de qualificação da parte. As solicitações por e-mails e WhatsApp são frequentes. Em Juquiá, metade das solicitações de certidões e informações são feitas por meio eletrônico.


Identidade digital e o Registro de Imóveis

SREI – Sistema de Registro de Imóveis Eletrônico Teremos também a implantação do SREI cujo acesso será virtualizado. Para se ter uma ideia, eu estava em Boston e perguntei por um cartório. A pessoa não me indicou o endereço, mas me deu um para acessar. Os registros de imóveis vão continuar o atendimento no balcão, mas, muito em breve, o acesso será 100% virtualizado.

Identidade digital e os desafios do Registro de Imóveis Apresento três tópicos que entendo importante abordar. Recebimento de solicitações pelo RI – Como o Registro de Imóveis vai recepcionar as solicitações que não venham assinadas por certificado digital? Envio de informações e notificações pelo RI – Como o Registro de Imóveis vai se certificar do recebimento das informações e notificações enviadas pelo cartório? Especialidade subjetiva digital – Existe uma dimensão digital da especialidade subjetiva? Já podemos falar em uma especialidade subjetiva digital?

Solicitações recebidas em meio digital Toda solicitação recebida pelo Registro de Imóveis precisa passar por uma dupla análise: primeiro, a identidade da parte, em seguida, sua legitimidade para aquela solicitação. A Lei de Registros Públicos (LRP) trata as partes

que ingressam no Registro de Imóveis sobre quatro aspectos qualificativos: Parte – O interessado direto na relação jurídica. O art. 16 dispõe que o Oficial deve fornecer às partes as informações solicitadas. Interessado – Pode requerer a retificação (art. 213, II), as averbações (art. 246, §1º), e o cancelamento mediante apresentação de documento hábil (art. 250, III). Em todos esses casos, o interessado pode manifestar um interesse em algum dado constante da matrícula ou em algum documento que ainda não conste da matrícula. Apresentante – Aquele que vai constar do protocolo (art. 175, III) pode requerer suscitação de dúvida (art. 198) e pode desistir do registro (art. 206). Qualquer pessoa – A lei ainda menciona a possibilidade de qualquer pessoa requerer certidão do registro, sem declarar o seu interesse ao Oficial (art.17).

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Na forma digital, nós temos três formas principais de comprovação dessa identidade: formas com validade legal, formas por indicação autêntica e formas por mera alegação.

A qualificação no meio digital Esses quatro qualificativos apresentam diferenças no que se refere à comprovação na modalidade digital. Parte – Tem que comprovar apenas a sua identidade, a partir da qual o oficial pode verificar na matrícula se ela de fato é parte e pode requerer. Interessado – O interessado tem que comprovar a sua identidade e o seu interesse. Se o interesse constar da matrícula, basta comprovar a identidade porque o interesse já está comprovado. Se o seu interesse ainda não estiver na matrícula, como é o caso dos credores e compromissários compradores que não registraram seus documentos, a identidade e o interesse precisam ser comprovados.

Validade legal – A comprovação com validade legal se dá por meio do uso do certificado digital ICP-Brasil ou por meio das assinaturas eletrônicas dos tribunais, que também são uma forma de assinatura com certificado. Portanto, um documento digital com essa forma de comprovação é suficiente para ingressar no registro. Indicação autêntica – A pessoa indica o e-mail no requerimento ao cartório. O oficial recebe uma comunicação através do e-mail indicado, entendendo-se, assim, que se trata da pessoa indicada. A indicação em site oficial também pode ser feita e é mais comum no caso das pessoas jurídicas. O site indica um WhatsApp ou um endereço de e-mail e entendemos que se trata de uma indicação oficial e a informação é aceita. O mesmo também ocorre com os perfis de redes sociais, como Facebook e Twitter, cuja verificação é feita pela própria rede.

Qualquer pessoa – Só a identidade é suficiente.

Mera alegação – A comprovação por mera alegação é a mais comum. Recebemos um e-mail ou WhatsApp, que diz “eu sou fulano de tal”, comprovação mais simples e aceita pelos registros.

Comprovação da identidade

Comprovação do Interesse

O palestrante Marco Konapacki mencionou na sua abordagem os graus de comprovação da identidade.

O interesse também pode ser comprovado por três formas: através de documento com validade legal,

Apresentante – Só a identidade é suficiente.

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Identidade digital e o Registro de Imóveis

como a assinatura com certificado digital1, digital simples ou mera declaração. Validade Legal – Se dá nos casos dos documentos natodigitais e documentos desmaterializados, ou seja, o tabelião recebe a via física, cria uma via digital e dá fé pública. Digital Simples – É um simples documento escaneado. Mera declaração – A pessoa declara o seu interesse no corpo do e-mail ou WhatsApp. A ideia é fazer uma análise casuística dos diversos atos solicitados ao registro de imóveis, e, em relação à sua importância, verificar o grau de comprovação que seria exigido.

Importância dos atos: do mais importante ao que tem menor potencial de risco O quadro mostra que os atos com reflexos registrais diretos, como a desistência do protocolo e o requerimento de cancelamento, ocupam o topo da escala e exigem comprovação da identidade e do interesse por um meio que possua validade legal.

a parte apresenta. Nas certidões de registro específico, a parte faz apenas a alegação da identidade. Para as outras certidões, a parte deverá comprovar a identidade – em geral, basta a alegação – e o interesse, e é o oficial que vai qualificar a forma pela qual se dará essa comprovação.

As certidões, embora sejam de elementos que constem no Registro de Imóveis, podem afetar de forma indireta a privacidade da pessoa, um segundo aspecto da identidade que precisa ser protegido.

Temos alguns exemplos de solicitações em que é necessário qualificar o interesse: 1- Solicitação de certidão de todos os imóveis adquiridos ou transferidos ou de propriedade de uma pessoa em tal período; 2- Listagem de todos os procedimentos de intimação de devedor fiduciante com relação a certa pessoa; 3- Certidão de ordens de indisponibilidade com

Fornecimento obrigatório de certidões mesmo sem exposição do motivo A Lei traz duas previsões diferentes: que o oficial é obrigado a lavrar certidões do que for requerido (LRP, art. 16, §1º), e que, nas certidões de registro, é desnecessário declarar o motivo (LRP, art. 17). Ao analisarmos os termos exatos da lei, a pessoa que solicita a certidão de uma matrícula ou transcrição, ou um registro do Livro 3, não precisa declarar nenhum motivo. Mas, para outros tipos de certidões, pode ser necessária a qualificação da justificativa que Medida Provisória nº 2.200-2/2001, Art. 10, §1º.

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referência a certa pessoa, constantes do arquivo do cartório. Em todos esses casos existe um elemento comum que exige a qualificação do interesse. As certidões, embora sejam de elementos que constem no Registro de Imóveis, podem afetar de forma indireta a privacidade da pessoa. A privacidade é um segundo aspecto da identidade que precisa ser protegido. Nesses casos, se a certidão for simples, como a certidão negativa de imóveis geralmente solicitada em financiamentos imobiliários, basta que se faça uma alegação. Entretanto, para algumas certidões mais específicas que podem afetar a privacidade, seria recomendável que o oficial exigisse uma melhor forma de comprovação.

Atos relacionados ao protocolo Há também outros atos relacionados ao protocolo: Complementação do título – Ocorre, particularmente, nas averbações premonitórias. No requerimento de averbação premonitória, a pessoa indica que quer averbar na matrícula, mas não relaciona as matrículas em que quer averbar a existência da execução. Se indicou o e-mail no requerimento, nós encaminhamos a nota devolutiva solicitando que informe as matrículas objeto do ato requerido. Ela responde, nós imprimimos o e-mail e fazemos a averbação sem maiores problemas. Portanto, temos aceitado a mera indicação autêntica. Suscitação de dúvida – O procedimento é o mesmo. Se a pessoa não concorda com a exigência e quer suscitar dúvida, basta nos enviar um e-mail. Desistência do protocolo – O ato não só é irreversível como também gera a renúncia da prioridade do protocolo. Portanto, nesse caso específico, temos exigido um documento com validade legal.

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Atos registrais: identificação e comprovação do interesse Em relação a alguns atos registrais – nas retificações do artigo 213 da LRP, nas averbações do artigo 246, §1º, no cancelamento com base em instrumento – temos exigido, seja em meio físico ou digital, um documento com validade legal, tanto para a identificação como para a comprovação do interesse.


Identidade digital e o Registro de Imóveis

Conclusões iniciais: comprovação de identidade e interesse para o registro e a renúncia de direitos

Trago uma análise pessoal sobre os graus de comprovação necessários. Os atos de mais importância exigem maior segurança, já para os atos de menor risco potencial a comprovação pode ser facilitada.

Podemos retirar duas conclusões iniciais dessa análise casuística: que tanto nos atos registrais como nos atos de renúncia de direitos é exigido documento com validade legal para a comprovação da identidade e do interesse.

Essa classificação pode vir desde a mais grave, com a desistência do protocolo e o cancelamento, para as menos graves, como as retificações, averbações, complementação do título, suscitação de dúvida, outras certidões e a certidão de registro específico, como atos que apresentam menores riscos potenciais. Cabe ao oficial, quando receber uma solicitação em meio digital, verificar o grau de importância ou os riscos potenciais para, então, exigir o grau de comprovação da identidade e do interesse, de acordo com a classificação que fizer.

Comunicações às partes no meio digital Esse tópico diz respeito às comunicações que o cartório pode enviar às partes por meio digital. As comunicações podem ser enviadas por: E-mail – O CPC previu a possibilidade da comunicação se dar por e-mail; o Provimento CNJ 61/2017 determinou a inclusão, portanto, contamos com uma referência legal para esse envio; e também, como referência de legislação próxima, o Decreto 70.235/1972, do procedimento administrativo fiscal, que permite a intimação por e-mail. WhatsApp – Onze Tribunais de Justiça já permitem a utilização do WhatsApp nas intimações judiciais, entre eles os tribunais do Acre, Maranhão, Minas Gerais e Paraná. Embora o CNJ tenha autorizado a utilização desse meio, o TJSP ainda não tem permitido o uso dessa ferramenta para as intimações judiciais.

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Intimações eletrônicas ou por WhatsApp A intimação eletrônica ou por WhatsApp traz algumas consequências importantes: a) a diminuição de custos de deslocamento, b) menor estresse dos funcionários, porque não vão ouvir as reclamações das partes; c) a facilidade de localização dos destinatários, porque as pessoas estão sempre com seus celulares e acessam o e-mail de onde estiverem; d) a agilidade no recebimento das intimações; e e) menor visibilidade das intimações, evitando assim o constrangimento do intimado.

Regramentos sobre intimação eletrônica Eu fiz uma análise de cada um dos regramentos que dispõem sobre a intimação eletrônica. Código de Processo Civil – dispõe que os atos processuais podem ser digitais (art. 193, caput) e que a mesma regra se aplica aos atos registrais (art. 193, parágrafo úni-

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co). Traz também a obrigação do advogado em manter atualizado o endereço de e-mail junto ao processo (Art. 106, §2º), e que o CNJ deve regulamentar a comunicação eletrônica e, supletivamente, os Tribunais de Justiça locais também devem regulamentar (Art. 196). Provimento CNJ 61/2017 – prevê o e-mail como elemento de qualificação das partes, mas apenas com relação aos requerimentos. Não menciona a inclusão na matrícula. Estabelece que o oficial deve diligenciar para que o requerimento tenha todas as informações, só dispensando em caso de impossibilidade ou de ser extremamente oneroso (Art. 4º, caput e parágrafo único). O curioso é que não regulamentou a utilização do e-mail como canal de comunicação. Ou seja, não trouxe regras específicas orientando o registrador sobre o uso do e-mail. Decreto 70.235/1972 – Também prevê a intimação eletrônica por e-mail (art. 23), no entanto, é necessária a autorização do sujeito passivo. Dispôs a obrigação da administração tributária de informar normas e condições de sua utilização e manutenção (art. 23, §5º). Por-


Identidade digital e o Registro de Imóveis

tanto, exige-se um consentimento, que é qualificado, para que a pessoa possa receber as intimações em meio eletrônico. No que se refere ao WhatsApp, a Portaria Conjunta nº 1/2015, do Juizado Especial Cível e Criminal de Piracanjuba/GO e a OAB local, a primeira Portaria do Brasil a dispor sobre a utilização do WhatsApp pelos juizados, prevê a adesão voluntária, a confirmação do recebimento das intimações, dispondo que, em caso de não confirmação do recebimento pelo intimado, será feita a intimação convencional, e também que a mensagem deve ser lida, no máximo, em 24 horas.2

Primeiras conclusões: RI pode enviar comunicações eletrônicas, ainda que sem normatização específica As primeiras conclusões que se extrai disso tudo em relação ao Registro de Imóveis é que nós temos possibilidade de enviar comunicações eletrônicas, mas não temos uma normatização específica com relação às obrigações e consequências. É importante lembrar que o Registro de Imóveis faz dois tipos de comunicações: as notificações e intimações nas retificações, usucapiões nos procedimentos que envolvem devedores fiduciantes, todas com reflexos registrais diretos; e os avisos e comunicações dos resultados de qualificação e decurso do prazo de purgação de mora. As duas situações têm que ser tratadas de formas diferentes.

Comunicação digital – interpretações Com base no arcabouço legislativo existente há algumas interpretações de oficiais em relação à comunicação digital enviada pelo Registro de Imóveis. Regras do CPC – Uma primeira interpretação, mais

avançada, dá conta de que, uma vez disciplinado o uso do e-mail pelo Provimento do CNJ 61/2017, aplicam-se as regras do CPC. Uma vez que a parte informou o e-mail, é sua obrigação atualizá-lo junto aos cartórios, matrícula a matrícula, em decorrência do princípio da rogação.

Onze Tribunais de Justiça já permitem a utilização do WhatsApp nas intimações judiciais, entre eles os tribunais do Acre, Maranhão, Minas Gerais e Paraná. O CNJ autorizou a utilização desse meio.

Essa posição tem bons fundamentos. O art. 167, II, item 5, prevê a averbação de “outras circunstâncias que, de qualquer modo, tenham influência no registro ou nas pessoas nele interessadas”. E o artigo 169 dispõe que os atos do artigo 167 são obrigatórios. Adotada essa interpretação no sentido de que as regras do CPC são aplicáveis imediatamente, quaisquer avisos, intimações e notificações podem ser enviados por e-mail ou outro canal de comunicação informado pelas partes. E o oficial considerará como recebido com mero envio ao canal informado. Necessário regramento – Uma segunda posição, bem mais conservadora, entende que enquanto não houver um regramento específico, não podem ser enviadas comunicações com efeitos registrais por meios eletrônicos, especialmente por não ser possível verificar o recebimento. E a indicação de e-mail e WhatsApp é possível, mas servem somente para envio de avisos. Não podem ser utilizados para notificações e intimações. Anuência expressa da parte – Uma terceira interpretação é de que é possível o envio de comunicações por

Ver: http://bit.ly/bir-358-4 e http://bit.ly/bir-358-5

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via eletrônica desde que haja anuência expressa da parte. Nessa autorização estariam previstos a obrigação de manter atualizados os canais junto ao Registro de Imóveis, e o esclarecimento ao usuário dos exatos efeitos da indicação, resguardando, dessa forma, eventuais questionamentos futuros. Recomenda-se aos cartórios que adotarem essa interpretação que façam uma Portaria do Registro de Imóveis, indicando a forma como será feita essa anuência, e também um termo de autorização assinado pela parte, fazendo constar também os canais de comunicação eletrônica autorizados, a obrigação de manutenção dos dados atualizados, os efeitos das comunicações enviadas e recebidas pelos canais autorizados, e ainda, as regras referentes à publicidade dessas informações sensíveis. Portanto, até que venha um regramento espe-

cífico para o Registro de Imóveis, são essas as três interpretações possíveis para a aplicação da comunicação eletrônica.

Especialidade subjetiva: atributos Este último aspecto consiste na indicação precisa dos atributos de um ente para a sua perfeita identificação. No que se refere à pessoa física, nome, RG, CPF, – no futuro, o DNI – Documento Nacional de Identificação –, profissão, nacionalidade, estado civil e domicílio. Em relação à pessoa jurídica: denominação jurídica, CNPJ e sede. O legislador considerou algumas características desses elementos. Entendeu que o RG, o CPF e o CNPJ têm unicidade e permanência. Unicidade, porque identifica uma só pessoa, e permanência, porque não se alteram ao longo do tempo. Os elementos nome, denominação, nacionalidade, estado civil e sede têm uma permanência natural e um encadeamento que permite, através de um órgão central, verificar todas as modificações ocorridas ao longo do tempo (RCPN, para as pessoas naturais e Junta Comercial ou RCPJ para as pessoas jurídicas).

PROFISSÃO

RG

CPF DIN PESSOA FISICA

NACIONALIDADE

DOMICÍLIO

NOME

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ESTADO CIVIL

Os únicos elementos que não têm unicidade, permanência e nem encadeamento são a profissão e o domicílio. Todos os elementos trazidos pela lei têm uma função específica: Nome - Denominação - RG/CPF/ DNI - CNPJ - Profissão - Nacionalidade - Estado Civil, servem para determinar o sujeito titular dos direitos ou


Identidade digital e o Registro de Imóveis

delas. É natural a troca de número de telefone, WhatsApp, e-mail, perfis nas redes sociais. Sendo assim, como manter um controle e uma especialidade com base em elementos tão mutáveis?

SEDE

PESSOA JURÍDICA

CNPJ

DENOMINAÇÃO

obrigações. Domicílio e Sede têm a função principal de localização. É interessante notar que recebemos muitos pedidos de certidão em que a pessoa não quer conhecer a situação do imóvel, mas o endereço do proprietário, seja porque precisa de uma anuência ou porque quer comprar o imóvel.

Novos elementos de qualificação Telefone, e-mail, WhatsApp, redes sociais: podemos enquadrar esses novos elementos de qualificação na especialidade subjetiva? A ideia é que esses elementos sejam utilizados para a complementação da qualificação subjetiva.

A efemeridade ou ausência de permanência, ou uma permanência vinculada apenas no desejo da pessoa não é absoluta. Quando comparamos, por exemplo, o endereço de e-mail com o domicílio, em algumas situações, o e-mail é muito mais permanente. Uma pessoa que muda de país, mantém geralmente o seu endereço de e-mail. Uma segunda peculiaridade é a ausência de encadeamento dos dados. Para os aplicativos de rede social, de mensagem ou mesmo WhatsApp, o que as pessoas fazem é mandar uma mensagem geral atualizando. Uma terceira peculiaridade são os dados sensíveis. Se são meus dados, precisam ser minhas regras. Como informar dados tão sensíveis na matrícula? Penso sempre nos estelionatários. Talvez alguém aqui já tenha recebido um trote dizendo que o filho foi sequestrado, pedindo em troca alguns milhares de reais. Se o número de telefone e endereço de e-mail já são suficientes para aplicar esse tipo de golpe, imagine vinculados a mais dados na matrícula. São essas algumas peculiaridades que precisamos enfrentar.

Soluções à efemeridade dos elementos de qualificação

Peculiaridades dos elementos de qualificação

Uma solução talvez seja que essas informações constem somente de uma base de dados do Registro de Imóveis, indicando-se na matrícula a informação de que aquele dado foi noticiado ao cartório.

Todos os elementos de qualificação apresentam algumas peculiaridades que os diferenciam dos demais dados qualificatórios. A efemeridade é uma

Uma segunda solução seria a autorização do usuário para informar esses dados a terceiros. No cartório do qual sou o titular, temos o costume de anotar o tele-

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fone e endereço de e-mail de todos os usuários. Caso alguém solicite a informação no balcão, ligamos para a pessoa e perguntamos a ela se autoriza a divulgação daquela informação.

CONSIDERANDO que as regras processuais sobre prática eletrônica dos atos processuais aplicam-se, no que for cabível, à prática dos atos registrais (Art. 193, parágrafo único, do Código de Processo Civil);

Uma terceira solução seria a criação de uma central de endereços eletrônicos. Isso poderia ser feito a nível nacional, especialmente pelo IRIB. Um cadastramento central de todos os endereços de e-mails, telefones, WhatsApp, aplicativos de redes sociais, de forma que a pessoa atualizaria uma única vez os seus dados, sempre por essa central, e os oficiais teriam, então, acesso aos dados atualizados daquela pessoa, promovendo um encadeamento das informações.

CONSIDERANDO a necessidade de que os serviços registrais sejam prestados com eficiência, aproveitando-se dos meios tecnológicos, e com a segurança necessária;

Eu quero concluir com esta frase de Eric Schmidt, atual presidente da Alphabet Inc., mais conhecida pela sua principal subsidiária, Google: “A identidade será o bem mais valioso para os cidadãos no futuro, e ela existirá principalmente online”.3

CONSIDERANDO a previsão de citação e intimação eletrônicas no processo judicial (Arts. 246, inc. V, e 270, caput, do Código de Processo Civil), como forma de agilizar a prestação do serviço;

É óbvio que os Registros de Imóveis não são guardiões completos da identidade, mas somos guardiões da identidade no seu aspecto patrimonial e imobiliário. E, em relação a esses aspectos, precisamos estar atentos às mudanças, às novas demandas, para que possamos atender com eficiência os usuários que confiam a nós as suas informações.

ANEXO 1 PORTARIA Nº (número) – AUTORIZAÇÃO PARA UTILIZAÇÃO DE CANAIS DE COMUNICAÇÃO ELETRÔNICA (NOME DO OFICIAL), Xº Oficial de Registro de Imóveis de (Cidade), pela presente, CONSIDERANDO a possibilidade de que os atos processuais sejam feitos pela forma eletrônica (Art. 193, caput, do Código de Processo Civil); 3

CONSIDERANDO a inexistência, até o presente momento, de regulamentação da comunicação eletrônica no âmbito dos Registros de Imóveis pelo CNJ e pelo Tribunal de Justiça Estadual (Art. 196, caput, do Código de Processo Civil);

RESOLVE

SEÇÃO I – DA INDICAÇÃO DOS CANAIS DE COMUNICAÇÃO ELETRÔNICA Art. 1º. Fica autorizada a indicação por qualquer pessoa ao Xº Registro de Imóveis de (Cidade) de canais de comunicação eletrônica com finalidade de: I - receber avisos e comunicações; II - receber notificações e intimações; e III - solicitar informações e procedimentos. Art. 2º. A indicação dos canais de comunicação decorrerá de ato voluntário do usuário, que será informado das regras concernentes à sua indicação, especialmente quanto à necessidade de manter atualizados os canais junto ao Registro de Imóveis. Art. 3º. Fica autorizada, desde já, a indicação dos

“Identity will be the most valuable commodity for citizens in the future, and it will exist primarily online.” – http://bit.ly/bir-358-6

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Identidade digital e o Registro de Imóveis

NÚMERO DE TELEFONE

TELEGRAM ENDEREÇO DE EMAIL

AUTORIZADA COMUNICAÇÃO ELETRÔNICA

WHATSAPP

SKYPE

seguintes canais de comunicação eletrônica: I – número de telefone; II – endereço de e-mail; III – número de WhatsApp;

Parágrafo único: No caso de criação e implementação de Central dos Registros de Imóveis que conte com módulo de cadastro dos canais de comunicação eletrônica dos usuários, o usuário será informado pelo Registro de Imóveis de que seus dados serão remetidos à Central, e, a partir dessa comunicação, deverá o usuário manter atualizados os canais junto à referida Central.

SEÇÃO III – DAS INFORMAÇÕES TRANSMITIDAS E RECEBIDAS PELOS CANAIS Art. 5º. As comunicações recebidas pelo Registro de Imóveis que provenham dos referidos canais serão consideradas como recebidas do usuário que os indicou, ressalvados os casos em que, por determinação legal, exija-se a comprovação da identidade do subscritor por outra forma.

SEÇÃO II – DA ATUALIZAÇÃO DOS DADOS

Art. 6º. As intimações e notificações a serem realizadas pelo Registro de Imóveis ao usuário cadastrado serão feitas, preferencialmente, por meio dos canais de comunicação eletrônica indicados, considerando-se como recebidas com o envio de resposta pelo mesmo canal com os dizeres “acuso recebimento”, “mensagem recebida” ou equivalente.

Art. 4º. É dever do usuário manter atualizados junto ao Xº Registro de Imóveis de (Cidade) os canais de comunicação eletrônica, especialmente em caso de utilização indevida (invasão), de alteração ou de descontinuidade na sua utilização.

Parágrafo único: Em caso de não ser confirmado o recebimento em até 48 horas do envio, as intimações e notificações deverão ser consideradas como não recebidas por meio digital, procedendo-se às intimações e notificações por outra forma.

IV – número ou nome de usuário de Telegram; V – nome de usuário de Skype.

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SEÇÃO IV – DA PRIVACIDADE DOS DADOS Art. 7º. Ao realizar a indicação dos canais de comunicação, o usuário poderá optar pela publicidade que será atribuída a cada um dos dados informados, escolhendo uma das seguintes opções: I - incorporação dos canais nas matrículas: os canais de comunicação eletrônica serão mencionados nas matrículas dos imóveis do usuário e serão averbadas, em cada matrícula, as alterações a cada modificação dos canais. Em consequência, tais informações constarão das certidões de registro emitidas; II - incorporação dos canais à base de dados do Registro de Imóveis, autorizada a indicação a terceiros que declararem interesse: os canais de comunicação eletrônica serão mantidos na base de dados do Registro de Imóveis, e, eventualmente, transferidos à Central, mas não constarão das matrículas dos imóveis, podendo, contudo, o Registro de Imóveis compartilhar as informações dos canais de comunicação para pessoas que desejem obter os números de contato do usuário, desde que justifiquem seu interesse. Nesse caso, o Registro de Imóveis informará o detentor dos dados, logo em seguida, das informações que foram repassadas e a quem o foram; III - incorporação dos canais à base de dados do Registro de Imóveis, com exigência de autorização expressa para indicação a terceiros: os canais de comunicação eletrônica serão mantidos na base de dados do Registro de Imóveis, e, eventualmente, transferidos à Central, mas não constarão das matrículas dos imóveis, podendo, contudo, o Registro de Imóveis compartilhar as informações dos canais de comunicação para pessoas que desejem obter os números de contato do usuário, somente com expressa autorização prévia do detentor dos dados.

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(Cidade), (data) (assinatura) (Nome Completo - Oficial Registrador)

ANEXO 2 TERMO DE AUTORIZAÇÃO PARA UTILIZAÇÃO DE CANAIS ELETRÔNICOS DE COMUNICAÇÃO (NOME COMPLETO), (qualificação), venho por meio desta declarar o quanto segue:

DOS CANAIS AUTORIZADOS Autorizo o Xº Registro de Imóveis de (Cidade) a utilizar como endereço para comunicações dirigidas à minha pessoa os seguintes canais de comunicação: A) números de WhatsApp: (XX) AAAAA-BBBB; (YY) CCCCC-DDDD; e B) endereços de e-mail: aaaaaaaaaa@gmail.com ; bbbbbbbbbb@hotmail.com .

DA ATUALIZAÇÃO DOS DADOS Comprometo-me a manter atualizados junto ao Xº Registro de Imóveis de (Cidade) os meus canais de comunicação, especialmente em caso de utilização não autorizada (invasão), de alteração ou de descontinuidade de seu uso. No caso de implementação de Central dos Registros de Imóveis que conte com módulo de cadastro dos canais de comunicação eletrônica dos usuários, uma vez recebida por mim comunicação nesse sentido, comprometo-me a manter os canais atualizados junto à Central,


Identidade digital e o Registro de Imóveis

bem como autorizo a remessa dos dados constantes do Xº Registro de Imóveis de (Cidade) para a Central.

DAS COMUNICAÇÕES RECEBIDAS PELOS CANAIS Autorizo o Xº Registro de Imóveis de (Cidade) a considerar como recebidas de minha pessoa as comunicações que provenham dos referidos canais, ressalvados os casos em que, por determinação legal, exija-se a comprovação da identidade por outra forma.

DAS INTIMAÇÕES E NOTIFICAÇÕES Autorizo que as intimações e notificações a serem realizadas pelo Xº Registro de Imóveis de (Cidade) à minha pessoa sejam feitas por meio dos referidos canais, e que sejam consideradas como recebidas com o envio de resposta pelo mesmo canal com os dizeres “acuso recebimento”, “mensagem recebida” ou equivalente, comprometendo-me a não permitir que terceiros não autorizados tenham acesso aos meios de comunicação. Em caso de não ser confirmado o recebimento em até 48 horas do envio, as intimações e notificações deverão ser consideradas como não recebidas por meio digital, procedendo-se às intimações e notificações por outra forma.

DA PRIVACIDADE DOS DADOS Fui cientificado das opções de privacidade quanto a cada um dos canais de comunicação, quais sejam: Opção 1: indicação dos canais na matrícula Os canais de comunicação eletrônica indicados constarão nas matrículas dos meus imóveis e, em consequência, tais informações constarão das certidões de registro emitidas.

Opção 2: canais informados a quem declarar interesse Os canais de comunicação eletrônica indicados serão mantidos na base de dados do Cartório, sem constar das matrículas dos meus imóveis. Contudo, o Oficial poderá informar os canais de comunicação para pessoas que desejem obter meus endereços de contato, desde que justificadamente, e informando-me de tais ocorrências, quando houver. Opção 3: exigência de autorização individual para repasse dos canais Os canais de comunicação eletrônica indicados serão mantidos na base de dados do Cartório, sem constar das matrículas dos meus imóveis. O Oficial só poderá repassar meus canais de comunicação para pessoas que desejem obtê-los mediante expressa autorização prévia minha. Indico, a seguir, as opções de privacidade em relação a cada um dos canais de comunicação: 1) número de WhatsApp (XX) AAAAA-BBBB: opção 2: dados informados a quem declarar interesse; 2) número de WhatsApp (YY) CCCCC-DDDD: opção 3: exigência de autorização individual para repasse dos dados; 3) endereço de e-mail aaaaaaaaaa@gmail.com : opção 2: dados informados a quem declarar interesse; e 4) endereço de e-mail bbbbbbbbbb@hotmail. com : opção 1: dados na matrícula. (Cidade), (data) (assinatura – com firma reconhecida ou assinado perante o Registro de Imóveis) (Nome Completo)

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ASPECTOS JURÍDICOS DA IDENTIDADE E SUAS IMPLICAÇÕES PARA A IDENTIDADE DIGITAL por Juliano Souza de Albuquerque Maranhão

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Juliano Souza de Albuquerque Maranhão, Professor Associado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), optou por uma exposição mais filosófica do que técnica, voltada aos conflitos jurídicos que envolvem o ambiente digital. E levantou a questão jurídica de se conciliar os três mundos da identidade digital: o virtual, o virtual jurídico e o mundo real.


Aspectos jurídicos da identidade e suas implicações para a identidade digital

denciadas, para aproximá-los do rigor das duplicatas mercantis. Propõe, também, a desnecessidade de protesto para a execução do título, podendo o documento lavrado servir como título executivo.

Realidades distintas: virtual digital, virtual jurídico e real físico Esse tipo de conflito envolve uma relação entre três realidades distintas: o mundo virtual digital, em que o boleto é emitido, o mundo virtual jurídico, que é um mundo autônomo em relação à realidade física, e a própria realidade física.

PL-9327/2017 regulamenta duplicata virtual (escritural) O projeto de lei 9327/20171 busca enfrentar as relações de compra e venda mercantil, ou prestações de serviços, geralmente lançadas e cobradas por meio de um boleto bancário. O que ocorre é que o boleto passou a ser admitido a protesto, passando a valer como título executivo por força de decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ).

Um conflito como esse envolve a forma pela qual o conteúdo de um mundo autônomo determina o conteúdo do outro. Percorrendo essas relações, vemos que a duplicata é vista como a corporificação física de uma relação jurídica. Relações de compra e venda ou de prestação de um serviço geram créditos e débitos, noções abstratas que fazem sentido dentro do Direito. A duplicata é vista como um documento que corporifica a relação. A ideia de que o documento é algo que revela um fato é uma tradição antiga do Direito que surge no século XVI com o colonialismo. Como exercer o domínio sobre uma colônia além-mar?

O projeto trouxe a preocupação do protesto indevido. A emissão de boletos bancários não se cerca de todos os cuidados com autenticação ou mesmo com a verificação da relação subjacente. Ocorrem vários processos indevidos, que provocam impactos relacionados com os direitos à personalidade dos sacados, sem que exista uma relação causal subjacente ou autenticação equivocada.

Felipe II (rei da Espanha e rei de Portugal e Algarves a partir de 1581) era chamado de “rei papeleiro” porque criou todo um mecanismo de escrituração e documentação dos atos reais para exercer sua soberania nas colônias. Portanto, a ideia de que o documento representa um fato é forte e se origina aí. Aquilo que é real é o que consta dos documentos porque não havia outra maneira de acessar a realidade.

A solução proposta pelo projeto sugere a criação de um mecanismo de regulação da emissão de boletos por instituições financeiras, ou outras instituições cre-

A duplicata, que representa aquela situação jurídica, passa a ser tangível e corpórea e pode ser transmitida.

Projeto de Lei 9327/17, do deputado Julio Lopes, regulamenta registro eletrônico de duplicatas (http://bit.ly/bir-358-7).

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Duplicata virtual e o impacto na esfera individual do mundo físico e digital A primeira discussão importante entre os juristas diz respeito à duplicata virtual. Se o documento precisa ser corpóreo, a duplicata virtual pode ser considerada um documento? O Código Civil, nos artigos 225 e 889, reconhece que reproduções eletrônicas e títulos emitidos pelo computador fazem prova plena de fatos. Para lidar com essa abstração do documento virtual, incorpóreo, vai se dizer que, na verdade, não há uma diferença ontológica, apenas de suporte. O documento digital é tão corpóreo quanto o papel. Temos aqui uma metáfora: primeiro, a realidade do mundo jurídico que ganha uma corporificação no

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mundo físico; e, segundo, carregando uma metáfora do mundo físico para o mundo virtual, tentando localizar lá algo corpóreo. A doutrina e o Direito começam a lidar com esses conceitos fazendo comparações por meio das metáforas. A decisão do STJ (Resp. 1024691/2011) que admite o protesto e a execução de boletos bancários não traz preocupação em identificar o documento como algo corpóreo. A duplicata é vista como uma relação causal, o que importa é a prova da relação de compra e venda mercantil e o protesto. Esses dois característicos identificam o título como executivo. O projeto de lei acaba por amarrar um ato que é independente. O problema não está propriamente com o protesto, mas com a escrituração de um boleto que não passa por controles de escrituração e de autenticação. O protesto simplesmente dá a notícia da diligên-


Aspectos jurídicos da identidade e suas implicações para a identidade digital

cia do credor. É, portanto, um ato jurídico independente que permite identificar o inadimplemento. O problema está no protesto indevido, que precisa ser corrigido.

A primeira discussão importante entre os juristas diz respeito à duplicata virtual. Se o documento precisa ser corpóreo, a duplicata virtual pode ser considerada um documento?

É interessante notar a preocupação levantada pelo projeto de lei ao analisar o protesto sob a perspectiva do impacto na personalidade do sacado protestado indevidamente, principalmente nas relações contemporâneas em que a propagação da informação é muito rápida e abrangente, diferentemente de uma duplicata documental do passado cuja relação ficava circunscrita ao credor e devedor. O protesto pode impactar de forma importante essa esfera individual construída no mundo físico e digital.

No conflito jurídico criado a partir dessa proposta legislativa, é possível verificar as diferentes formas pelas quais as três realidades começam a se interconectar. É interessante analisar de que maneira podemos considerar o mundo jurídico virtual, de que maneira se pode criar uma realidade autônoma.

Realidade autônoma: a propriedade é um fato institucional Essa é uma construção da era moderna por meio de uma série de fatos não propriamente físicos, mas institucionais, que enxerga o Direito como uma espécie de ordenamento e um complexo de relações jurídicas. São fatos institucionais criados por regras constitutivas de relações, mas que só fazem sentido dentro de determinada instituição. O casamento é um exemplo disso. Eu sou casado, mas não há nenhuma marca ou distintivo que me identifique ou me distinga como casado ou solteiro. Embora a aliança possa representar

um sinal, é meramente uma referência a um fato institucional existente em outro plano e é constituída na medida em que se passa por um rito e se emitem determinadas declarações que, conforme as regras da instituição, são tomadas como autoridade. No momento em que elas ocorrem, todos acreditam de uma forma objetiva que um novo fato foi criado. Mas é um fato um tanto distinto que tem a ver com um universo formado por regras.

A propriedade é outro fato institucional. Não é o fato de eu dominar ou utilizar um bem que me torna proprietário, mas isso é determinado por um conjunto de regras que estabelecem determinadas relações jurídicas. No começo da era moderna existia uma discussão entre Pufendorf e Locke em relação ao conceito de propriedade. Pelo conceito de propriedade de Locke, essa é uma relação que se estabelece de fato entre aquele que utiliza o bem e impõe sobre ele a sua propriedade, a sua própria ação para transformá-lo e utilizá-lo. Já para Pufendorf, Adão não poderia ser proprietário porque ser proprietário envolve a instituição da sociedade civil e implica a exclusão dos direitos dos outros de usar. A propriedade, nesse sentido, deixa de ser uma relação que reflete um determinado fato e passa a ter sentido simplesmente num universo de regras. O Direito é construído inteiramente em cima desses fatos institucionais. Existem regras constitutivas que dizem o que conta como proprietário, o que conta como credor, o que conta como devedor. E nesse o que conta como o que é absolutamente central a ideia dessas unidades que formam o complexo de relações jurídicas. No Direito a própria definição de pessoa é abs-

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Nós temos um mundo físico que determina a estrutura do mundo virtual jurídico. Por outro lado, assim como a duplicata virtual é um bem corpóreo, isso acaba determinando a estrutura do mundo digital.

trata, não trata de nenhuma característica física ou intelectual do ser humano. No âmbito do mundo jurídico, pessoa nada mais é do que o sujeito de direitos, aquele que é capaz de ter e transmitir direitos. Nessa definição de pessoa não vemos nenhuma entidade. A pessoa nada mais é do que aquele feixe de relações. Isso é algo que Kelsen percebe bem e leva ao extremo, atacando alguns de seus opositores com uma tendência à antropomorfização, ou seja, quando se fala em sujeito de direitos se fala de relações jurídicas.

Mundo físico determina a estrutura do mundo virtual jurídico O que está por trás da ideia moderna de um direito formado por um conjunto de relações institucionalizadas por meio do Estado, que é o garantidor desse mundo que se configura paralelamente ao mundo físico, é uma conexão com o próprio mundo físico. Na verdade, o Direito é construído sobre a concepção do homem como alguém que tem uma identidade prévia à socialização. A identidade é construída no âmbito privado e de forma independente. E a constituição da sociedade civil se dá com a emissão do ato de vontade, que é o pacto social. Muito embora esse pacto não guarde nenhuma referência com o mundo real, é, de novo, uma abstração que explica a constituição do status.

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É importante perceber que o indivíduo tem sua individualidade formada previamente à socialização. Ele entra no corpo social e se socializa como alguém com a sua identidade previamente construída. Na relação entre o mundo jurídico e o mundo físico podemos perceber alguns traços no sentido de que, no mundo jurídico, o sujeito nada mais é do que um nome, mas esse nome faz referência a um determinado indivíduo que antecede à própria ordem jurídica, e que pode ser distinguido por meio de marcas pessoais, como impressão digital, assinaturas, etc. A propriedade, por sua vez, também é um conceito do mundo jurídico que nada mais é do que a sucessão de sujeitos de direitos. Se eu for a um cartório de Registro de Imóveis verificar o que é uma propriedade, eu vou ver uma sucessão de sujeitos de direitos. Isso é propriedade no mundo jurídico. A propriedade, no entanto, faz referência a um bem corpóreo no mundo físico. Os direitos pessoais também são complexos de relações jurídicas que existem no abstrato mundo jurídico. Porém, para que eles possam circular, existem, por exemplo, os títulos de crédito ou os documentos que precisam ser certificados para que reflitam de forma autêntica as relações entre aqueles indivíduos. Os notários e registradores têm o papel importante de construção dessa ontologia jurídica, constituindo os fatos institucionais e conectando-os ao mundo físico. Não faria nenhum sentido que esses mundos existissem de forma independente. Ele é baseado numa identidade unívoca porque é construído sobre a ideia do indivíduo que antecede à sociedade e entra nessas relações de comunicação. Nós temos um mundo físico que determina a estrutura do mundo virtual jurídico. Por outro lado, assim como a duplicata virtual é um bem corpóreo, isso acaba determinando a estrutura do mundo digital. Como o mundo jurídico é construído sobre o mundo físico, nas


Aspectos jurídicos da identidade e suas implicações para a identidade digital

relações jurídicas, quando o Direito lida com o mundo digital, a tendência é impor aquela estrutura ao mundo digital. É nesse momento que começam a aparecer os problemas.

Identidade digital: internet produz espaços em que identidades distintas podem ser construídas Em relação à identidade no mundo digital, um problema latente começa a apresentar algumas de suas expressões, que é exatamente a forma pela qual a identidade é construída no mundo virtual.

por meio do nome e de algum traço distintivo, como Diógenes, o cético, ou Tales de Mileto, portanto, por formas que diferenciam o sujeito no espaço público. Hoje temos algo muito parecido no âmbito da internet, um espaço de comunicação em que em tese indivíduos se comunicam em pé de igualdade e nele se está livre das amarras do mundo físico. O conceito chave no mundo digital é a liberdade de expressão, a liberdade de participação no debate público e na forma pela qual a informação sobre nós mesmos é veiculada. Nesse ambiente digital é central a forma pela qual se constrói a identidade.

Temos uma ideia arraigada de que a identidade é formada num espaço privado. Mas essa ideia é uma abstração que surge na era moderna. Na Grécia Antiga, a individualidade não era determinada propriamente no espaço privado, mas construída no espaço público. É nesse espaço público em que atua o sujeito que tem o status de liberdade. O universo privado, na verdade, liga o indivíduo às suas relações de sobrevivência. Dentro de uma estrutura hierárquica, não se lida com iguais, ainda se está preso às necessidades vitais, portanto, não se é livre nesse sentido. A Ágora é o espaço onde se exerce a liberdade na medida em que se participa do debate político. É a partir dos feitos e das contribuições que se dão naquele espaço que o indivíduo é diferenciado. Portanto, a identificação não tem nada a ver com a concepção moderna, mas é construída no debate público e por meio dessas possibilidades de diferenciação. Hoje a identificação se dá com o nome e sobrenome que indicam a família e aquele espaço privado. Na Antiguidade a identificação era feita

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A palestra do Caleb terminou com uma frase do diretor do Google dizendo que a identidade é um elemento do maior valor e ela se dá online. É bem essa a expressão, a identidade é construída nas relações de comunicação que se dão na internet.

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Diferentemente do que ocorria na Grécia, na internet nós temos várias Ágoras. Diversos ambientes podem ser criados e, portanto, temos diversos provedores de identidade. Há diversos espaços em que identidades distintas podem ser construídas ou, em linguagem atual, diferentes perfis.


Aspectos jurídicos da identidade e suas implicações para a identidade digital

Agentes virtuais versus cidadão jurídico Isso cria um problema que é o fato de que, no ambiente virtual, lidamos com diferentes perfis e variações de uma mesma identidade que podem ser reconduzidas ao mundo físico ou a uma identidade unívoca. Porém, nessas relações comunicativas na internet, e na construção da personalidade, muitas vezes é importante a fragmentação em diferentes perfis, em diferentes domínios ou identidades. Essa fragmentação se manifesta naturalmente no espaço privado. Geralmente os indivíduos se sentem mais confortáveis em criar diferentes identidades. Por outro lado, no âmbito do mundo jurídico que foi construído sobre essa unidade existe uma preocupação com a segurança, que traz a exigência de determinados ritos e formalidades capazes de garantir que aquele sujeito jurídico tem permanência. Essas preocupações fazem parte de uma tradição, que agora enfrenta uma realidade bastante diferente.

Identidade digital: múltiplos cidadãos? Um dos desafios na discussão da identidade digital é se faz sentido reconfigurar a forma de o Direito lidar com a identidade no espaço físico ou num novo espaço de virtualidade em que a identidade é multifária. De que maneira isso pode ser feito? Essa é uma questão importante que pode ter reflexos, tais como a unicidade da identidade digital. Muito embora a unicidade da identidade digital possa trazer mais segurança e evitar que cada indivíduo no mundo físico tenha que buscar construir diferentes identidades, quando a identidade é unívoca traz um efeito que pode ser delicado do ponto de vista da

Outra preocupação diz respeito à dinâmica das relações digitais, uma dinâmica muito viva e veloz que entra em choque com a ideia tradicional de segurança jurídica baseada num indivíduo unívoco.

autodeterminação informacional e da proteção de dados, porque a unicidade amplia o leque de relações jurídicas, que passam a ser explícitas e vinculadas a um só nome. Tendo em vista que essas informações podem ser descontextualizadas e depois recontextualizadas pela criação de um perfil que não parte de mim, mas de outro, pode-se perder o controle e a possibilidade de direcionar a identidade que é construída no espaço social ou de comunicação. É o que se dá com a proteção dos dados e a autodeterminação informacional. Se de um lado há vantagem, de outro, abre-se um flanco em termos de proteção de dados. Por fim, outra questão diz respeito aos agentes que podem atuar no mundo virtual, que são os agentes eletrônicos. Estes também devem ou não ter identidades reconhecidas pelo mundo jurídico? Outra preocupação diz respeito à dinâmica das relações digitais, uma dinâmica muito viva e veloz que entra em choque com a ideia tradicional de segurança jurídica, centralizada e baseada num indivíduo unívoco.

Essas são algumas das preocupações que estão por trás de toda a discussão que envolve a identidade digital. Colocada como questão jurídica, ela necessariamente vincula e nos desafia a conciliar esses três mundos: o virtual, o virtual jurídico e o mundo real.

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A IDENTIDADE DIGITAL E A REGULAÇÃO EUROPEIA PARA A PROTEÇÃO DE DADOS PESSOAIS por Madalena Teixeira

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Madalena Teixeira, Conservadora de Registo Predial em Portugal, trouxe a experiência portuguesa na definição de identidade digital e visão geral da GDPR – General Data Protection Regulation, bem como sua conciliação com o direito à informação registral.


A identidade digital e a regulação europeia para a proteção de dados pessoais

N

ão podemos falar de identidade digital sem começar por falar em identidade pessoal. Do que falamos quando falamos em identidade pessoal? Essa é quase uma pergunta retórica porque a resposta é intuitiva. Nós falamos do conjunto de características e traços distintivos que tornam o homem um ser único, indivíduo irredutível. Se pensarmos na identidade pessoal do ponto de vista de finalidade, podemos pensar em vários conceitos que se tornam quase polissêmicos, porque virão tantos conceitos de identidade pessoal quantas as finalidades implicadas. Quando estou a pensar no Registro Civil, na identificação civil, os elementos que preciso para compor um conceito de identidade pessoal são o nome, o sexo, a filiação, e, eventualmente, o estado civil. Já se eu estiver a pensar em termos de registro imobiliário, a identidade pessoal relevante para mim já não é a filiação, que, nesse caso, é um elemento prescindível, mas o

nome do cônjuge, o regime de bens do casamento, e outros dados que em geral nem ligamos à identidade pessoal, como é o caso do número de identificação bancária ou o número de identificação fiscal. Na palestra do colega registrador Caleb, nós o vimos comentar a respeito da necessidade de que esses elementos sejam incorporados à ficha do registro ou se seria melhor fazê-los constar apenas de uma base de dados. Esses dados, visíveis ou invisíveis, não deixam de ser atributos da pessoa. Não são atributos clássicos, mas são os novos atributos exigidos em função das novas finalidades que são determinadas pelo meio utilizado pela nossa atividade.

A oportunidade do continente tecnológico O meio tecnológico está carregado de potencialidades que ampliam e transformam as necessidades e pedem mais e mais atributos.

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Cartão de Cidadão versus Bilhete de Identidade Veja o exemplo paradigmático do cartão de cidadão e o bilhete de identidade. O bilhete de identidade era um documento físico que continha um conjunto de elementos necessários à comprovação da identidade, o nome completo, a filiação, a naturalidade, a data de nascimento, o sexo, a residência, a fotografia e a assinatura. O bilhete de identidade era um documento físico baseado em arquivos manuais.

O art. 35 da Constituição portuguesa, ao centrar-se na utilização da informática, autonomiza o conceito de privacidade, cria um conceito novo, que é o direito à uma identidade informacional.

Cartão do Cidadão A partir do momento em que a identificação civil se move para o ambiente eletrônico, passa-se a ter o cartão de cidadão, que continua a ser um documento físico contendo dizeres impressos, elementos visíveis de identificação, número de identificação civil, número de identificação fiscal e número de utente dos serviços de saúde. Mas é muito mais do que isso. Ele é processado em ambiente eletrônico. Esse processamento no meio tecnológico altera tudo e cria novas possibilidades, um novo mundo. Passa a contar com uma zona de leitura ótica onde constam os apelidos, nomes próprios do titular, nacionalidade, data de nascimento, sexo, República Portuguesa enquanto Estado emissor, tipo de documento, número do documento e data de validade. Além disso, há também uma informação em circuito integrado que tem alguns elementos de identi-

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ficação visíveis no cartão de cidadão: a morada, que é um elemento invisível no cartão de cidadão físico – para acesso somente pelo circuito integrado –, a data de emissão, a data de validade e impressões digitais. E mais. Conta com certificado para autenticação segura, um certificado qualificado para assinatura eletrônica qualificada, aplicações informáticas necessárias ao desempenho das funcionalidades do cartão de cidadão e à sua gestão de segurança, e a zona livre que o titular pode usar para arquivar informações pessoais.

Com o cartão de cidadão é emitido um certificado para autenticação e um certificado qualificado para assinatura eletrônica qualificada necessários à sua utilização eletrônica. O certificado de autenticação é sempre ativado no momento da entrega do cartão de cidadão, que pode ou não utilizá-lo. Quando pretende utilizar alguma das funcionalidades de certificação eletrônica ativadas no cartão de cidadão, o respetivo titular tem que inserir previamente o seu código pessoal (PIN) no dispositivo adequado para o efeito. Confesso que a cada mudança governamental em Portugal, acrescenta-se mais uma funcionalidade ao cartão do cidadão. Essa é a grande marca da desformalização e desmaterialização. Um dos desenvolvimentos mais recentes foi a possibilidade de certificação de atributos profissionais (por exemplo, advogado, médico, engenheiro), empresariais (gerente, administrador) e públicos (trabalhadores em funções públicas) através do cartão de cidadão. Essa certificação é efetuada através do Sistema de Certifica-


A identidade digital e a regulação europeia para a proteção de dados pessoais

ção de Atributos Profissionais e constitui comprovativo legal da qualidade profissional em que assina.

Publicidade versus privacidade

Quando um advogado quer pedir um registro online e não pretende utilizar o seu certificado digital profissional, basta usar o seu cartão do cidadão. Portanto, é mais um elemento adicional de reforço da validade do cartão de cidadão, não apenas como um documento de identificação civil, mas como um documento de identificação múltipla que contém uma identidade digital multifuncional. Essa é uma possibilidade que só é permitida porque o meio é tecnológico.

Falar de privacidade a propósito de registro imobiliário ou predial talvez não seja uma correlação muito adequada. Penso que não vale a pena falar do propósito de privacidade justamente porque se trata de fatos da vida que podem e devem ser divulgados, tendo em vista a sua oponibilidade em relação a terceiros.

Quando falamos de registro imobiliário eletrônico, o que temos? Temos, desde logo, identidade digital relevante para acesso ao serviço eletrônico através da interação com as plataformas eletrônicas. Portanto, a primeira manifestação de identidade digital nasce com o pedido e o acesso aos serviços do registro por via eletrônica e através precisamente do uso do cartão do cidadão ou de certificado digital qualificado. Depois, na fase da realização dos registros propriamente ditos, voltamos a ter uma manifestação de identidade digital justamente através da divulgação dos dados pessoais em ambiente eletrônico. De que dados pessoais estamos a falar? É importante ter em conta a finalidade do registro predial ou imobiliário. O registro imobiliário tem como função publicitar os fatos jurídicos relativos aos prédios, tendo em vista a segurança do comércio jurídico imobiliário. Ao inscrever fatos jurídicos estou a publicitar direitos e, se estou a publicitar direitos, eu tenho que indicar os seus titulares e, para indicar os seus titulares, eu preciso indicar os dados pessoais que os distinguem dos demais.

Portanto, aqui não há nenhum problema de recolha e divulgação de dados pessoais. O problema não está na divulgação dos dados pessoais, mas na utilização indevida e diversa daquela que determinaram a recolha dos mesmos. Talvez por isso penso que não valha a pena a discussão entre publicidade e privacidade, uma vez que essa questão é meramente aparente. De que dados, então, estamos falando? Não se trata de quantidade. O número será exatamente o que for necessário para alcançar o propósito do registro predial, que é divulgar a situação jurídica do prédio. Portanto, o que nos interessa é a qualidade. Os dados a recolher para efeitos de registro imobiliário serão exatamente aqueles necessários, pertinentes, adequados à finalidade do registro imobiliário.

Proporcionalidade, qualidade e finalidade dos dados As palavras-chave serão sempre proporcionalidade, qualidade e finalidade dos dados. Os dados a recolher no âmbito da atividade registral terão de ser aqueles estritamente necessários à atividade registral visível ou invisível. O que quero dizer com isso é que não somente os dados que se manifestam na ficha do registro, do ponto de vista da publicidade, devem ser recolhidos, mas também aqueles necessários à relação entre o serviço e o cidadão. Por exemplo, o número de autenticação bancária não vai para o registro, mas fica incorporado à base de dados e serve para sinalizar a pessoa como

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usuário ou apresentante do serviço de registro.

A proteção dos direito à proteção dos dados pesdados pessoais soais enquanto liberdade de dispor não se dá pelo das informações pessoais concreticonsentimento. Tem zada na preservação da “sua própria identidade informática”. que ser através dos princípios da finalidade O que se protege? e da necessidade. A Não os dados pessoais, mas finalidade da recolha o direito a determinar a finalidade e a ação exercida sobre os dados de dados decide pessoais. A proteção respeita às acerca do seu destino pessoas e não aos dados. futuro. Como se protege?

O meio tecnológico de fato constitui uma oportunidade de ampliação dos elementos que compõem o conceito de identidade. O tratamento dos dados pessoais pode ser considerado como benefício, desde que se respeite a finalidade, tudo em obediência à proporcionalidade. O meio tecnológico não pode constituir um pretexto para o não jurídico, para um mundo virtual desapegado dos quadros jurídicos. Por essa razão, temos na Constituição da República portuguesa uma disposição fundamental que estabelece as regras relativas à utilização da informática. Estabelece designadamente que qualquer pessoa tem acesso aos registros informáticos para conhecimento dos dados pessoais deles constantes; que a pessoa tem direito à não interconexão dos dados; que tem direito ao não tratamento de certos dados pessoais (dados sensíveis). A Constituição também contém uma proibição de atribuição do número nacional único, porque a possibilidade de concentração da informação numa base de dados única, detida pelo Estado ou por uma entidade privada, em nome do interesse econômico, do interesse público qualquer difuso, que transforme o indivíduo num ser transparente, não é isso que se quer. O art. 35 da Constituição portuguesa, ao centrar-se na utilização da informática, autonomiza o conceito de privacidade, cria um conceito novo, que é o direito à uma identidade informacional, um direito de terceira geração que se junta às liberdades do direito da primeira geração, aos direitos sociais da segunda geração, e é o

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Através do consentimento? O conceito de consentimento, quando se pretende adquirir um bem ou um serviço, é meramente ilusório. Ninguém pensará duas vezes na proteção de seus dados pessoais quando impende que sejam oferecidos como condição para aquisição do bem. Portanto, é ilusão o escrúpulo da proteção de dados. A proteção dos dados pessoais não se dá através do consentimento. Tem que ser através dos princípios da finalidade e da necessidade. A finalidade da recolha de dados decide acerca do seu destino futuro. A finalidade determina o tratamento dos dados e também a sua destruição ou anonimização. Em Portugal, esse compromisso legal é encontrado no Regulamento (EU) 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho de 27 de abril de 2016, relativo à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados. Esse regulamento entrou em vigor em 25 de maio de 2018. É o diploma legal que temos de utilizar nos


A identidade digital e a regulação europeia para a proteção de dados pessoais

casos de proteção dos dados pessoais. Os elementos fundamentais constantes desse regulamento são, basicamente: 1) A proteção das pessoas singulares relativamente ao tratamento de dados pessoais é um direito fundamental; A nossa Constituição portuguesa já o previa no art. 35. 2) O tratamento dos dados pessoais deverá ser concebido para servir as pessoas; ou seja, não para servir a interesses da Administração Pública ou entes privados de interesse econômico. 3) Só pode haver tratamento lícito com base no consentimento do titular ou em fundamento legítimo previsto em lei; não é necessário que seja uma lei do parlamento, mas tem que ser um fundamento previsível pelo interessado, portanto, um fundamento normativo jurídico. 4) O tratamento de dados pessoais para outras finalidades exige compatibilidade entre a finalidade inicial e a finalidade posterior. Aqui há um problema porque não existe um conceito de compatibilidade. Uns entendem que a finalidade compatível é qualquer uma que não se mostre absolutamente avessa à finalidade anterior. Há, no entanto, constitucionalistas que entendem de modo diverso, no sentido de que não se pode

considerar compatível qualquer finalidade fundada em qualquer interesse público ou difuso. Portanto, o conceito tem que ser afinado à compatibilidade. 5) É admitido tratamento posterior, independentemente da compatibilidade das finalidades, desde que o interessado tenha dado o seu consentimento ou o tratamento se baseie em disposições legais de interesse público geral. 6) Anonimização (direito ao esquecimento). Obviamente que o direito ao esquecimento não vai se refletir no registro imobiliário porque precisamos sempre do histórico do prédio e, portanto, seja a informação visível ou invisível, deve continuar no RI. A verdade é que o Regulamento, que não se aplica somente às atividades públicas, mas também ao tratamento dos dados pessoais no âmbito das atividades privadas, prevê o direito ao esquecimento.

Um aparte a propósito da blockchain A blockchain é uma euforia e está em toda a parte. Nem todos sabem o que é, mas querem experimentar. O que importa a nós é verificar como conciliar a blockchain com o direito ao esquecimento. Já há no meio acadêmico quem levante essa ques-

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tão e quem alerte para o fato de a blockchain não ser uma moda, mas uma tecnologia de base científica pesquisada. E, também, de que é necessário haver um enquadramento legal preciso relativamente à blockchain. A euforia chega a passar um pouco no meio acadêmico quando se chega à conclusão de que é preciso fazer o cruzamento entre o jurídico e a tecnologia que, afinal, não é tão neutra, visto que o jurídico muitas vezes tem que se curvar a ela. Diariamente nós lidamos com essa realidade de termos de aceitar conceitos que não estão ajustados do ponto de vista jurídico, mas que são as condições oferecidas pelas plataformas eletrônicas. Voltando ao Regulamento Europeu, para que todos os direitos ínsitos no regulamento relativamente à proteção dos dados pessoais possam ser efetivamente alcançados e concretizados, foi necessário estabelecer no próprio regulamento alguns mecanismos de tutela, como: Privacy by design – Isso quer dizer que, no momento em que se estão a conceber as plataformas eletrônicas já se tem que pensar em termos de aspectos técnicos e organizativos que vão antecipar a proteção dos da-

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dos pessoais, por exemplo, uma gestão muito fina dos perfis de acesso, os mecanismos que evitem a automatização com a transmissão dos dados pessoais para finalidades diversas, e, ainda, questões relativas à interoperabilidade dos sistemas informáticos. Portanto, é fundamental que sejam tomadas essas cautelas. Privacy by default – O objetivo é garantir que não haja uma utilização abusiva dos dados pessoais e, portanto, que os dados recolhidos sejam utilizados para a finalidade determinante de sua recolha. Para a utilização para outras finalidades é preciso outro critério de compatibilidade, ou, no caso de finalidades incompatíveis, que haja uma norma legal habilitadora fundada no interesse público. Data protection officer – Essa figura criada pelo regulamento, que denominamos como o encarregado dos dados pessoais, determina que todas as entidades públicas têm que nomear esse encarregado da proteção dos dados. Tem funções de pedagogia junto a empresas das entidades públicas e de seus funcionários. Tem também uma função de controle em cooperação com entidade de controle que, em Portugal, é a Comissão Na-


A identidade digital e a regulação europeia para a proteção de dados pessoais

cional de Proteção de Dados Pessoais, a quem compete a aplicação de coimas (sanções pelo não cumprimento das disposições), que são extremamente pesadas e tem gerado grande preocupação entre as entidades, sobretudo as privadas.

muito oportuna e aplica-se exatamente aos serviços de Registro Imobiliário.

O Regulamento também prevê a possibilidade de regulação de uma lei interna com a especificação de suas regras. Mas, em Portugal, essa questão está em stand by porque ainda há que se afinar determinadas questões relativas à nomeação do encarregado dos dados pessoais.

Em Portugal, o dever de informar é tratado pela Constituição. Trata-se de um princípio geral, o cidadão tem o direito à informação e nós o dever de informar. Mas também temos o dever de calar. O dever de calar começa justamente quando o pedido da informação tem em vista a utilização abusiva dos elementos e a utilização para uma finalidade distinta daquela que determinou a sua recolha.

No caso do Tribunal de Justiça português será nomeado um encarregado para o universo das entidades, o que não me parece que trará resultados porque são muitas as entidades agregadas ao mesmo ministério.

Quanto aos dados biométricos Quanto aos dados biométricos, há uma regulamentação muito detalhada no regulamento em que se sobreleva, em geral, a necessidade do consentimento ou um interesse público importante.

Reflexo do REPDP no registro imobiliário Quanto ao reflexo do Regulamento sobre a proteção dos dados pessoais do Registro Imobiliário, a informação recolhida no Registro Imobiliário é, por definição, uma informação comunicável ou divulgável. Por isso entendo que não vale a pena insistirmos no discurso da privacidade, até porque o conceito de privacidade é dinâmico e é tão elástico que até se torna imprestável para o discurso jurídico. Falemos, antes, do delicado equilíbrio entre o dever de informar e o dever de calar. A expressão não é minha, é de uma professora espanhola, mas que é

Temos o dever de informar. É a nossa função. É a nossa razão de ser. Com vistas à segurança, é certo, mas a nossa primeira função é informar.

Em Portugal, salvo os casos expressamente previstos em lei, é impossível prestar informação com base no arquivo pessoal. É impossível, seja qual for o interesse, dizer a uma determinada pessoa quantos imóveis existem em nome do cidadão A ou do cidadão B. A informação é prestada com base na indicação do imóvel, ou seja, eu posso solicitar a informação relativa ao prédio, não à pessoa titular dele. Obviamente que a informação relativa ao imóvel vai agregar a informação relativa à pessoa, mas o foco da atividade do registro é o prédio. Portanto, só se faz busca no arquivo real. As buscas feitas no arquivo relativo às pessoas serve apenas para auxiliar a sinalização do prédio pretendido. Esse é o delicado equilíbrio que temos de fazer diariamente nos serviços, entre o dever de falar e o dever de calar. Há exceções, por óbvio, que estarão sinalizadas na lei. Seja na regra, seja na exceção, há sempre uma barreira intransponível que não precisa constar da lei, basta que estejamos no Estado democrático de direito, qual seja, a insuscetibilidade de criação de uma base de dados única, detida pelo Estado ou por uma entidade privada, seja em nome de que interesse for. Quando ultrapassamos essa barreira entramos na sociedade da evidência inimiga de todas as liberdades.

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REGISTRO DE IMÓVEIS ELETRÔNICO: SREI, ONR E BLOCKCHAIN Saiba mais sobre as possibilidades do Sistema de Registro de Imóveis eletrônico (SREI), Operador Nacional do Registro de Imóveis eletrônico (ONR) e Blockchain.

A

driana Jacoto Unger – engenheira mecatrônica, mestranda em Engenharia de Produção e Gestão de Tecnologia da Informação na Escola Politécnica da USP – é pesquisadora e consultora especializada em gestão por processos. Atuou como líder da equipe de modelagem de processos de negócio do projeto SREI para o Conselho Nacional de Justiça – CNJ. Nesta reportagem ela examina as características e funcionalidades mais importantes do sistema.

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Somente para lembrar, a Recomendação 14/2014 da Corregedoria Nacional de Justiça (https://goo.gl/ FBvYdj) dispõe sobre a divulgação do resultado de estudos realizados para a especificação do modelo para implantação de Sistemas de Registro de Imóveis Eletrônico – SREI. As corregedorias estaduais e “associações de classe dos Oficiais de Registro de Imóveis” deveriam adotar “os parâmetros e requisitos constantes do modelo de sistema digital para implantação de Sistemas


Registro de Imóveis eletrônico: SREI, ONR e Blockchain

de Registro de Imóveis Eletrônico – SREI elaborado pela Associação do Laboratório de Sistemas Integráveis Tecnológicos – LSITEC” (arts. 1º e 2º da Recomendação 14/2014). No entanto, somente uma fração do sistema foi colocada em prática. Ficou pendente de implementação o núcleo do SREI, a reestruturação do próprio sistema registral em bases inteiramente eletrônicas.

Matrícula eletrônica e certidões fracionadas por interesse específico “Uma das mais importantes ferramentas previstas no âmbito do SREI é a matrícula eletrônica, que não se confunde com a matrícula online”, observa Adriana Unger. A matrícula online, serviço disponível na internet, consiste na visualização da imagem da matrícula do imóvel. É a simples conversão das informações em papel para o formato digital. “Já a matrícula eletrônica é um documento natodigital, concebido originariamente em meio eletrônico, cujos dados estruturados visam permitir o armazenamento organizado e seguro das informações bem como garantir a inviolabilidade e permanência dos registros lançados.” Hoje a certidão de matrícula traz discriminadas todas as informações relativas ao imóvel como sua localização, metragens, proprietários, além dos eventuais ônus sobre o bem. “Com o SREI será possível a emissão de certidões de propriedade, ou fracionadas por tópicos ou quesi-

tos, conforme o interesse específico do solicitante, revelando a situação jurídica de um determinado imóvel, sem a reprodução redundante de informações que já não são relevantes. Essa customização vai contribuir para o aumento no volume de pedidos de certidões, inclusive por órgãos do governo e Poder Judiciário.”

SREI e a tramitação do documento totalmente eletrônica Adriana Unger compara a transição do registro físico para o eletrônico com a que ocorreu na migração do sistema de transcrição para o sistema de matrícula instituído pela Lei de Registros Públicos. “No momento em que o SREI entrar em operação e se realizar a primeira escrituração eletrônica de imóvel todos os atos subsequentes deixarão de ser registrados na forma física e seguirão eletrônicos dali em diante. Nenhum outro documento será confeccionado em papel, pois o registro válido é o que integrará a base eletrônica de dados. A matrícula em papel continuará a

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existir durante o período de transição da tecnologia, mas apenas para consulta. Será o tempo necessário para as pessoas se acostumarem com a nova forma de registro.” No entanto, o que se verifica nos dias que correm, é que mesmo os cartórios da capital de São Paulo, que segundo a engenheira contam com excelente infraestrutura para receber documentos em XML estruturado como, por exemplo, os contratos de financiamento da Caixa Econômica Federal, acabam imprimindo o arquivo para tramitação interna. “Ou seja, o título que ingressa na serventia na forma digital pode gerar mais dispêndio do que o documento que entra em papel. Isso acontece porque o documento não é 100% digital e nem tramita de maneira 100% digital. O cartório é obrigado a fazer o cruzamento das informações físicas e eletrônicas sem dispor, muitas vezes, de ferramentas adequadas para o tratamento interno do documento. Além disso, o usuário tende a supor que os prazos de qualificação serão menores em função da tramitação digital, o que na verdade não ocorre nesses casos.” O que falta é o pleno desenvolvimento do registro eletrônico sob a perspectiva interna dos cartórios. Adriana Unger esclarece que o Sistema de Registro de Imóveis eletrônico (SREI) estará efetivamente implementado quando todas as serventias imobiliárias estiverem capacitadas a gerar matrículas natodigitais.

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Registro de Imóveis eletrônico: SREI, ONR e Blockchain

O ONR foi concebido como organismo “Para isso, é preciso provê-las com as ferramentas necessánormaliza­dor, para rias à recepção e análise de conconcretizar e executar tratos estruturados, de modo que a tramitação ocorra totalmente o Sistema de Registro eletrônica, sem necessidade de de Imóveis eletrônico impressão ou digitalização para conferência do documento.” (SREI) em âmbito nacional, sem retirar atribuições Desafio do SREI: dos registradores nem criar infraestrutura interferir na competência para ser normativa do Poder operacionalizada por todos Judiciário. os cartórios A heterogeneidade das serventias extrajudiciais em todo o Brasil é uma questão que não pode ser esquecida. A infraestrutura interna precisa ser melhorada em todos os sentidos, uma vez que foram visitados cartórios onde sequer havia energia elétrica e computadores. Por isso Adriana Unger entende que o maior desafio do SREI é a criação de uma infraestrutura mínima para ser operacionalizada de imediato por todos os registros imobiliários do Brasil. “Esse desafio talvez comece pela implantação do protocolo eletrônico e da matrícula natodigital. Mas é fundamental que o Operador Nacional do Registro de Imóveis eletrônico (ONR) viabilize uma estrutura escalonada de transição para auxiliar aqueles que não possuem condições de implantar os dois serviços de uma só vez. Nesse ponto é imprescindível a atuação do IRIB e do ONR, órgão que tem competência para definir as diretrizes de desenvolvimento e aplicação gradativa do registro eletrônico.”

Recepção de títulos à distância vai aumentar volume de serviços

“O ONR terá que prover condições para que os cartórios das pequenas comarcas possam operar no novo modelo, mas antes é essencial demonstrar a esses registradores as vantagens da implantação do protocolo eletrônico na serventia. Os benefícios são muito maiores do que as dificuldades iniciais e a adesão ao sistema representará mais segurança e agilidade na qualificação e tramitação dos títulos.”

As características essenciais do ONR – Operador Nacional do Registro de Imóveis eletrônico estão indicados no documento de base: SREI – Sistema de Registro Eletrônico Imobiliário – Parte 1 – Introdução ao Sistema de Registro Eletrônico Imobiliário, de Volnys Bernal e Adriana Unger, cientistas da LSITEC (https:// goo.gl/eZsQy1). A normatização, ou seja, a competência legal e constitucional para baixar normas técnicas sobre o registro permanece exclusiva do Poder Judiciário. O § 4º do art. 76 da Lei 13.365/2018 confirma isso, já que estabelece que caberá à Corregedoria Nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça “exercer a função de agente regulador do ONR e zelar pelo cumprimento de seu estatuto”. O ONR visa modernizar o sistema registral brasileiro, mantendo a coordenação dos registradores na construção do SREI, sob a regulação e fiscalização do Poder Judiciário como seu órgão regulador e fiscalizador.

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O ONR foi concebido como organismo normalizador, para concretizar e executar o Sistema de Registro de Imóveis eletrônico (SREI) em âmbito nacional, sem retirar atribuições dos registradores nem interferir na competência normativa do Poder Judiciário. “Imagine o que representaria para um cartório pequeno realizar a mesma quantidade de atos praticados por uma serventia maior, que conta com dez ou vinte funcionários! A adesão ao SREI tende a aumentar o número de operações realizadas e elevar a renda da serventia.” Adriana Unger explica que a implantação e manutenção do sistema será um investimento comum a todos os registradores. “O protocolo eletrônico vai permitir a recepção dos títulos à distância. Esse ganho em agilidade significa um benefício extraordinário para uma comarca pequena em que os deslocamentos de uma cidade a outra eram insuperáveis.”

Demandas da sociedade moderna não podem ser ignoradas Relatório do Fórum Econômico Mundial, realizado em janeiro de 2018, sobre o futuro do consumo confirma que as tecnologias disruptivas continuarão a acelerar o ritmo das mudanças (https://goo. gl/48y5C3). O estudo fornece uma perspectiva sobre a razão por que as instituições precisam se transformar rapidamente. Além disso, alerta que os avanços nas tecnologias digitais e as mudanças no comportamento dos consumidores têm profundos impactos potenciais na sociedade. A chamada Quarta Revolução Industrial acelerará a introdução de novas tecnologias que vão permitir empreendimentos e transações antes impossíveis. A capacidade de responder às necessidades de mudança serão fundamentais para o sucesso futuro. As instituições terão que reinven-

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tar-se, buscando ser ágeis e duradouras num mundo altamente disruptivo. Na próxima década, como cita o relatório, os consumidores terão mais escolhas e controle do que nunca. Haverá uma crescente variedade de produtos e serviços personalizados para suas preferências específicas, além de abordagens inovadoras para atender as suas expectativas. No entanto, essas mudanças fomentam a importância de como os dados são utilizados e compartilhados, portanto tende a crescer o receio dos consumidores em relação a privacidade, segurança e transparência. Para sobreviver à disrupção e prosperar no futuro, as instituições devem se modernizar e encontrar o seu objetivo, o que demanda uma mudança em cada componente do modelo operacional, incluindo como ele é governado, como implanta processos e tecnologias, como organiza as pessoas para fazer o trabalho.

Transferência da propriedade sem comparecer ao cartório “Com o SREI a transferência de uma propriedade poderá ocorrer sem o comparecimento das partes ao cartório. Essa é uma demanda da sociedade moderna”, diz Adriana Unger. “Em tempos de inteligência artificial não faz nenhum sentido continuarem existindo serviços obrigatoriamente presenciais.”

Publicidade versus sigilo dos dados: a importância da atividade registral “Com a matrícula digital do imóvel concebida no âmbito do Sistema de Registro de Imóveis eletrônico todas as informações em papel ou em algum banco de dados de acesso restrito estarão disponíveis para todo o Brasil. Isso traz outro desafio, que é o de lidar


Registro de Imóveis eletrônico: SREI, ONR e Blockchain

com a facilidade de acesso aos dados e com o risco ao sigilo das informações.” Segundo a engenheira existe um conflito entre dois direitos fundamentais, o sigilo e a publicidade da informação, ambos de responsabilidade do registrador, o que evidencia a importância da atividade registral.

Vivemos em um mundo de transformações expo­nenciais. Hoje contamos com a tecnologia blockchain, mas amanhã surgirá outra ferramenta. Não se pode garantir a perenidade da tecnologia, mas sim sua migração em caso de perecimento do modelo adotado.

“Com o uso de inteligência artificial será possível responder a perguntas valiosíssimas para as políticas públicas e os setores financeiros. Em pouco tempo poderemos construir um tesouro semelhante à mineração do bitcoin” estima. “Haverá uma série de dados de interesse das políticas públicas, mas uma devassa na vida particular das pessoas não pode ser permitida. Caberá ao ONR garantir a segurança das transações, o sigilo e a privacidade de terceiros.” A segurança da informação é um desafio que vai surgir já nos primeiros minutos da implantação do registro eletrônico, como alerta Adriana Unger. “Todas as gerações de notários e registradores passaram, em algum momento, por transformações em suas atividades. Esses são alguns desafios que se impõem aos registradores de hoje.”

Uma nova certidão A certidão não deve mais ser vista como uma reprodução da matrícula. Os cartórios poderão fornecê-la de forma fracionada, contendo informações específicas para atender o interesse do solicitante. “Os Registros de Imóveis terão que atender às

expectativas e demandas do governo e do usuário em geral. Os registradores continuarão sendo os guardiões da informação, é seu dever garantir a proteção e a segurança jurídica dos negócios, portanto, nada mais justo que continuem a ser recompensados pelo fornecimento da informação. Seja qual for a consulta, o cartório receberá por ela.”

“O processamento e a emissão de certidões geram um custo enorme para os cartórios, muito maior do que o próprio valor cobrado para a emissão do documento. Pode até ser que o preço da certidão seja menor na forma fracionada, mas a quantidade de emissões será vinte vezes maior. O registrador precisa encarar o SREI como o órgão que vai possibilitar a operacionalização do registro eletrônico em sua serventia.”

Registros devem acompanhar a modernização dos sistemas, as novas tecnologias e as expectativas da sociedade “Imagine se as matrículas fossem confeccionadas em Word e a Microsoft deixasse de existir daqui a alguns anos!”, propõe Adriana Unger. Vivemos em um mundo de transformações exponenciais. Hoje contamos com a tecnologia blockchain, mas amanhã surgirá outra ferramenta. Não se pode garantir a perenidade da tecnologia, mas sim sua migração em caso de perecimento do modelo adotado.

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“No Sistema de Registro de Imóveis eletrônico as matrículas são criadas a partir de padrões abertos que permitem a migração para nova tecnologia. A grande preocupação é acompanhar sempre a modernização dos sistemas, o surgimento de novas tecnologias e as expectativas da sociedade.” “A matrícula eletrônica continuará sob a guarda exclusiva do registrador, mas é a partir dessa semente digital representada pela matrícula que nascerão outras iniciativas. Hoje essa semente é um papel que não se relaciona com nenhuma outra infraestrutura. O marco zero da matrícula eletrônica é uma iniciativa que deve partir do ONR, único órgão com representatividade nacional e capacidade legal para tanto.”

Registro eletrônico depende apenas de marco legal e normativo “O IRIB precisa estar preparado para promover o imediato funcionamento do registro eletrônico pelos serviços de Registro de Imóveis de todo o Brasil. O

arcabouço legal está pronto, dependemos apenas do marco legal e normativo para tornar o registro eletrônico uma realidade no país.” Para a engenheira, permanecer parado é mais arriscado do que dar o primeiro passo. “Os workshops de tecnologia que realizamos tiveram a finalidade de disseminar a nova tecnologia e conscientizar os registradores da importância desse momento para a atividade registral. O registrador é o detentor da informação, ou seja, ele é o representante da sociedade. Somos nós mesmos cuidando dos nossos próprios dados.”

Blockchain: informações da matrícula eletrônica autenticadas e garantidas por uma rede de registradores em todo o Brasil Adriana Unger explica que a tecnologia blockchain corresponde a um banco de dados descentralizado em que as informações registradas são ligadas entre si por meio de blocos de informações anteriores e sucessores. Os dados registrados na blockchain não são mera sequência de textos encadeados, mas são dados estruturados que garantem a segurança e autenticidade das informações ali registradas. O conceito de blockchain é completamente diferente do modelo de banco de dados utilizado pelas instituições financeiras em que todas as informações e transações efetuadas em conta – débitos, créditos, transferências – são armazenadas em um banco de da-

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Registro de Imóveis eletrônico: SREI, ONR e Blockchain

dos centralizado. Na arquitetura de um servidor os bancos são autoridades centralizadoras e garantidoras das transações efetuadas pelo cliente. Na blockchain as transações não precisam passar pelo crivo de bancos. Todas as transações são registradas e replicadas por uma rede com milhares de computadores distribuídos em todo o mundo. O garantidor das operações é essa comunidade digital.

O SREI vai manter a atual arquitetura e moderni­zar a tecnologia subjacente, garantindo que a informa­ção permaneça sob a guarda dos registros, isto é, do próprio cidadão. A ideia é criar uma blockchain privada, uma rede de computadores formada por todos os registradores de imóveis do Brasil.

No que diz respeito ao universo registral imobiliário, todas as informações constantes da matrícula eletrônica serão autenticadas e garantidas por uma rede formada por três mil serviços de Registro de Imóveis do Brasil. Não haverá mais um único garantidor da informação, mas uma rede. O registro tal como é feito hoje possui arquitetura semelhante à da blockchain, uma vez que não há uma autoridade central do registro garantidora das informações relativas ao imóvel. O serviço é único, mas o poder é distribuído. Cada registrador tem total autonomia dentro da sua respectiva serventia. “O SREI vai manter a atual arquitetura e modernizar a tecnologia subjacente, garantindo que a informação permaneça sob a guarda dos registros, isto é, do próprio cidadão.” A ideia é criar uma blockchain privada, uma rede de computadores formada por todos os registradores de imóveis do Brasil. “É preciso deixar claro que não são as informa-

ções constantes da matrícula que são registradas na blockchain. Cada transação efetuada na matrícula eletrônica, como uma compra e venda, por exemplo, gera um código hash, uma chave criptográfica, que é compartilhada na blockchain privada. Isso quer dizer que um cartório do Nordeste terá acesso a essa chave criptográfica, assim como o cartório de São Paulo terá acesso ao hash gerado por ele. É esse encadeamento dos dados que garante maior segurança ao sistema e impede a fraude por hackers.”

Na blockchain privada, as informações não são disseminadas. Portanto, o registrador continua no controle absoluto das informações. Como sabemos, todos os títulos que ingressam no cartório precisam ser lançados no Livro Protocolo ao final de cada dia. Na blockchain, os protocolos podem ser encaixados a qualquer tempo. Não existe horário comercial para envio de documentos pela internet. Uma vez protocoladas, as transações ficam disponíveis em tempo real. Na forma privada de blockchain somente os registradores poderão compartilhar as informações salvas no sistema. É como uma intranet, a diferença é que as informações na blockchain serão replicadas entre os três mil cartórios. Um hacker não encontra dificuldade para alterar a titularidade de um bem registrado e armazenado em um único computador. Na estrutura da blockchain, as chaves criptográficas são interligadas umas às outras. Para

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fraudar um registro, o hacker precisaria atacar todos os computadores que integram a rede e alterar todas as chaves criptográficas registradas até chegar ao registro de seu interesse. Não há mineradores nem moedas, como na primeira geração de protocolos da blockchain. Na blockchain 1.0, os mineradores investem em alto poder computacional com a única finalidade de minerar as moedas digitais bitcoin e recebê-las em troca do trabalho. Trata-se de uma infraestrutura terceirizada para a realização de processamentos criptográficos.

No que diz respeito ao uni­verso registral imobiliário, to­das as informações constantes da matrícula eletrônica serão autenticadas e garantidas por uma rede formada por três mil serviços de Registro de Imóveis do Brasil. Não have­rá mais um único garantidor da informação, mas uma rede.

A blockchain 2.0 não tem fins monetários, mas é voltada ao armazenamento permanente de registros. Cada registrador tem seu próprio computador. Serão três mil computadores fazendo a mesma coisa, sem necessidade de realizar grandes investimentos financeiros ou computacionais. A descentralização dos dados é a forma mais eficiente de garantir a segurança da informação. Quanto maior a centralização, mais atrativo para o hacker. As instituições financeiras são grandes centralizadoras de informação, por isso são as que mais sofrem ataques.

Prenotação remota dos títulos: um avanço para a atividade registral O Operador Nacional do Registro de Imóveis eletrônico (ONR) vai criar mecanismos de financiamento para o desenvolvimento e a operacionalização do registro eletrônico, segundo Adriana Unger.

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“Não é preciso que a estrutura esteja totalmente pronta para o pontapé inicial. O protocolo eletrônico é uma iniciativa que pode ser implantada a qualquer momento nos cartórios. A possibilidade de prenotação remota dos títulos significa um grande avanço para a atividade registral imobiliária. O IRIB vai designar uma equipe de tecnologia para cuidar desse projeto.”

Os cartórios não serão substituídos e nem sofrerão a perda dos dados sob sua guarda e responsabilidade. Os livros de registros continuarão existindo no SREI, mas na forma digital. Os registros serão criptografados e possuirão uma linguagem própria, o que implica dizer que os dados e as informações só serão compreendidos pelo leigo quando transformados em certidão.

“As mudanças sempre vão existir. Da mesma forma que os registradores de imóveis souberam enfrentar outras grandes transformações na atividade, como o fim da transcrição e o advento do fólio real, também saberão enfrentar as que agora se apresentam.” “Não sabemos se a matrícula eletrônica vai durar para sempre. Provavelmente não. Mas outra tecnologia virá e é importante buscar meios de propiciar uma migração segura. É preciso enfrentar os riscos utilizando os melhores recursos disponíveis, como a blockchain. Quando bem empregada, a tecnologia pode contribuir imensamente para a desburocratização e segurança dos processos”, conclui Adriana Unger.


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