Revistabang5

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[crítica]

5 Estrelas João Seixas recomenda “Carbono Alterado” «Morgan decepa irrevogavelmente o cordão umbilical que prende o eu à carne, solta-o para viajar através do Tempo e do Espaço, prometendonos a vida eterna, sem deus e sem religião.»

H

á livros que têm cheiro. Não é o cheiro do papel, nem da cola, nem da tinta que cobre a superfície branca com as pegadas hesitantes de ideias incertas. Não é o fedor intolerável das planícies de celulose onde morre a originalidade. Nem é o cheiro a bolor que se vai adensando à medida que penetramos, exaustos, passo após passo, no deserto árido de algumas sagas intermináveis. Falo do cheiro que fica do livro depois de pormos de parte a narrativa, as contorções estruturais, as personagens batidas, os floreados da linguagem ou a gramática torturada: e, pondo tudo isso de parte, é o cheiro da Verdade que se exala ao fecharmos este Carbono Alterado. Não me refiro, é claro, à verdade absoluta, à verdade da vida, que enquanto abstracções são desprovidas de sentido, nem à verdade científica, que não se exige de uma obra de ficção; refiro-me àquela verdade que é o sangue da literatura, que é o alimento da obra, a verdade da convicção, a verdade que fica quando tudo o mais já soçobrou. Poder-me-ão dizer que Carbono Alterado não é um grande livro de ficção científica, e que nunca vai figurar ao lado de clássicos como Dune (1965), Foundation (1941) ou Neuromancer (1984). Que nem sequer é um livro muito bem escrito, como são bem escritos os livros de Simmons ou Wolfe. Mas é uma daquelas raras obras que surgem de tempos a tempos, emergindo da memória colectiva do género, construídas de fragmentos de tropos já explorados, das carcaças vazias de histórias que já passaram, dos

motores desmontados de ideias outrora fulgurantes, e que com pintura nova, motor melhorado e aceleração impetuosa, rasgam caminho pelo cemitério de ideias e erguem-se como marcos – não como lápides – sobre a terra revolta. São obras de síntese, que agregam em si a essência de um momento histórico da evolução do género; são obras que anunciam a transição, o renascer, que fazem a súmula do que ficou para trás e mostram o que pode ainda fazer-se com o que se pensava já ultrapassado. E, tal como o Hyperion Cantos (1989-1990) de Simmons e o Book of the New Sun (1980-1983) de Wolfe formam o destilar da história da ficção científica, e enquanto tal são a própria ficção científica, este Carbono Alterado é a essência destilada da FC do virar do milénio. Quiçá mesmo, das preocupações culturais do milénio, informado de tal forma pela guerra ao terrorismo, a violência nos media, a corrupção política, a ignorância científica e o atavismo religioso, e as respostas requeridas do indivíduo que assiste, inútil, ao desabar do estado social, que se poderia dizer pura encarnação literária do zeitgeist. E – foi dito acima – como revista BANG! [ 168 ]


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