Vida no cárcere: sofrimento duplo para homossexuais

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Vida no cárcere: sofrimento duplo para homossexuais O preconceito é mais um fardo para os privados de liberdade, mas o maior presídio do Estado é pioneiro na atenção à diversidade sexual. A terceira galeria do pavilhão H do Presídio Central de Porto Alegre, conhecida como “terceira do H”, não é uma galeria comum. Ela mantém presos 34 homens que foram excluídos dentro e fora das grades. O local, inaugurado em 23 de abril de 2012, abriga travestis e homossexuais. Nem a metade recebe visita. A maioria é réu primário. A galeria lembraria uma pensão de oito quartos, divididos por um corredor, se não fosse a dureza das grades. Móbiles em formato de borboletas e flores colorem o cinza do presídio considerado o pior do país. Um mural de fotos exposto em uma das paredes da frente e uma imagem de São Jorge pintada ao fundo revelam a necessidade que sentem de não esquecerem as origens e a fé. O apenado F. dos Santos, ou Fabíola, como é chamada, comanda a galeria desde outubro de 2012, após a saída de Nalanda, a primeira representante, que hoje está no regime semiaberto. As dificuldades vão além das pré-existentes no cárcere. Para a preservação do espaço e da integridade física das travestis, elas se alimentam na própria galeria, recebendo comida da cozinha do presídio. “Mas faltam panelas e geladeira para armazenar e preparar os alimentos. Quando vem visita, a gente não tem onde guardar as carnes e os doces. Tem que fazer pouquinho senão estraga tudo”, conta Fabíola. Existem regras para manter o respeito e a organização, inclusive para amar. Os relacionamentos seguem a moda antiga: não pode nem pegar na mão. “Se quiser namorar, tem que casar, senão vira bagunça! Só quando se casa que pode fechar o quieto [lençol preso nas laterais da cama, formando uma espécie de barraca]. Aqui somos obrigados a olhar para a cara um do outro. Tem que se respeitar”, explica Fabíola sobre o casamento contraditório, já que é tradicional e, ao mesmo tempo, nada convencional. Amores sem liberdade “Foi olho no olho e aí já era”, palavras de P. Carvalho, 23 anos, sobre o início de sua paixão por Milena, travesti e ex-detenta. P. está preso há dois anos por roubo e extorsão e um “Maria da Penha”. Tem três filhos lá fora, dois são gêmeos, que não


conhece e, talvez, nunca conheça. Foi casado quatro vezes e hoje quem o visita na “terceira do H” é a paixão que conheceu na cadeia. Milena está livre das grades, mas não do amor de Carvalho. A colega de cela, Carla (na verdade, J. Brito), tem 24 anos e está há três meses no Central. “Fui muito bem recebida aqui”, comenta. Vai passar o próximo aniversário dentro das celas, em 25 de outubro. Descobriu aos 12 anos que gostava de meninos. Aos 16, começou a se prostituir. “Conheci um rapaz. Ele era mais velho, tinha maturidade. Toda mulher gosta de alguém com experiência. Mas não era amor, era química. E eu era um menino, correndo pela rua com a segurança de ter tudo em casa. Mas foi por causa dele que hoje estou aqui”. O marido de Carla era traficante e ela acabou entrando para o mundo do crime também. No presídio, Carla casou novamente. Duas vezes. A primeira durou apenas uma semana, a segunda, 10 dias. O segundo relacionamento acabou quando descobriu, em 11 de setembro, que era portadora do vírus HVI. “Foi o mês mais dolorido. Mas como diz minha mãe, sou uma fênix, renasço das cinzas”, diz a travesti, que tem o desenho da ave pintado em sua cama. Para ter certeza, ela fez o exame várias vezes, todas deram resultado positivo. “O meu maior erro foi ter confiado em alguém e me relacionado sem camisinha”. Quinze dias antes de entrar no cárcere, Carla brigou com a irmã. “Ela me chamou de puto. Pode me chamar de tudo, menos disso”. A irmã acabou levando uma coronhada. Ao ver a briga, a mãe teve um infarto, que resultou na colocação de um marca-passo, dificultando a visita à filha. A travesti diz que se arrepende e que, quando sair, pretende voltar a fazer o que mais gostava: dançar. Funk e hip hop. Por conta disso, recebeu o apelido “Kikando”, tatuado na pele negra, braço direito, abaixo do desenho de um diamante. Carla, que diz gostar de homens mais velhos, fugiu à sua própria regra quando decidiu se envolver com W. Silva, de apenas 18 anos. W. Silva foi o casamento de uma semana de Carla. Está pela segunda vez no Central. Os crimes: 155 e 157. Furto e roubo. Cursou até a oitava série, resolveu “se juntar” com uma garota e teve um filho. Trabalhava como garçom quando sua companheira resolveu ir embora. “Depois disso, joguei tudo para o alto”. Ele não fala mais com os pais, que não sabem que está preso, e


nem tem notícias do filho, que viu somente uma vez. “Como me dou bem com as ‘bichas’, vim pra cá. Aqui ficam elas e os ‘embolado’”. Carla e W. Silva ainda não foram condenados. Uma luta de todos Segundo o tenente Carlos Norberto Guerin, analista do Setor de Atendimento Técnico (Sat) do Presídio Central, todas as travestis fizeram a carteira social e irão receber o documento quando em liberdade. A carteira social permite que as travestis sejam reconhecidas pelo nome que adotaram. A psicóloga Carolina Santander e a assistente social Denise Lunardini, responsáveis pelo atendimento individual, afirmam que o trabalho melhorou após a criação da ala, mas que a assistência específica fica a cargo da Ong Igualdade - Associação de Travesti e Transexual do Rio Grande do Sul. A coordenadora da Ong, a travesti Marcelly Malta Schwarzbold, de 61 anos, acompanha quinzenalmente os presos da galeria. Ela iniciou o trabalho no presídio em setembro de 2011 e nunca mais parou. A realidade encontrada foi perturbadora. Histórias de agressão física e psicológica, e travestis sendo obrigadas a carregar drogas e celulares dentro do próprio corpo sensibilizaram a coordenadora. Isso tudo somado aos pedidos das detentas fez com que a travesti decidisse voltar mais vezes. “As travestis estavam nas piores celas, com os piores detentos. Lá sofriam muita violência e estupros”, fala Marcelly consciente da importância de sua busca. Hoje, conta com o apoio de uma equipe de estudantes e professores de Psicologia e Assistência Social do Instituto Porto Alegre da Rede Metodista de Educação do Sul (Ipa/Metodista). Os encontros da Ong com os presos levam outras formas de passar o tempo, como a criação de peças artesanais. Os artesanatos confeccionados por eles são vendidos em dias de visita para familiares dos outros detentos. “Nem tudo é um mar de rosas. Lá dentro elas ainda não podem trabalhar [na cozinha, por exemplo]. E são vaidosas, querem maquiagens, só que isso é coisa cara, nem sempre conseguimos levar”, relata Marcelly. A preparação para depois das grades


A assessora de Direitos Humanos da Superintendência dos Serviços Penitenciários (Susepe), Maria José Diniz, explica que a definição do espaço é só um início. “Não adianta construir um castelo cor de rosa, se lá fora eles não têm isso. Precisamos dar oportunidades a essas pessoas para enfrentarem o momento de saída. Para isso, a Assessoria de Direitos Humanos vem buscando inserir na galeria cursos profissionalizantes, voltados à realidade dos travestis”, comenta Diniz. [Box] A primeira frase do Artigo 5ª da Constituição Federal define que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. Aqueles que infringiram a lei e pagam com a sua liberdade, também tem o direito do respeito à diversidade garantidos dentro do maior presídio do Rio Grande do Sul. Com cerca de 4,4 mil detentos, o Presídio Central foi o primeiro a criar uma ala para homossexuais. Quatro outros estados (Minas Gerais, Paraíba, Mato Grosso e Bahia) começaram a aderir às galerias específicas depois da iniciativa. Em maio deste ano, a Susepe recebeu da Associação da Parada do Orgulho GLBT de São Paulo (APOGLBT) o prêmio Cidadania Em Respeito à Diversidade, em reconhecimento à criação da galeria. O agente penitenciário administrativo, Leandro Sanchez, homossexual, foi quem representou a instituição, apesar de ainda não conhecer a “terceira do H”.


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