Outono

OU TO NO Manoel Alves Proença

OU TO NO

OU TO NO Manoel Alves Proença

Manoel Alves Proença, 1967 a 1970 © Nelson Guimarães Proença, 2021.

Pãooupães Editorial Rua Pascoal Vita, 347 – Ap. 16-B 05445-906 São Paulo – SP

Brasil

e-mail: ruyproenca@gmail.com Organização: Nelson Guimarães Proença.

Revisão: Ruy Proença.

Capa e editoração eletrônica: Luciana Inhan.

Apresentação

I

nicialmente quero pôr em destaque uma característica da pessoa idosa, relacionada com sua memória. À medida que ocorre o envelhecimento os acontecimentos recentes vão sendo esquecidos, enquanto os mais antigos vão sendo recordados com mais clareza. É isto mesmo, a pessoa idosa passa a recordar com nitidez episódios ocorridos na infância e na adolescência.

Já comparei a memória com uma pilha de papéis que vão sendo colocados um sobre o outro. Ficam por cima os que foram mais recentemente colocados, por baixo os mais antigos. Com a chegada da velhice os papéis de cima vão caindo, a pilha vai diminuindo e vão ressurgindo, nítidos, os mais antigos.

Meu pai redigiu estas crônicas nos anos 1967 a 1970, quando já estava se aproximando dos oitenta anos de idade. Em parte, elas registram episódios que acompanhou, |5|

ocorridos em seu passado distante, nos tempos de adolescência e de idade adulta, ainda jovem. O interessante é que a quase totalidade deles jamais foram contados a nós, seus filhos e netos.

Estavam armazenados lá no fundo de sua memória, esquecidos, porém preservados. Com o correr dos anos — já passados dos setenta de idade — estes episódios de sua vida emergiram e surgiu o desejo de deixá-los registrados, sob forma de crônicas. Foi assim que nasceu esta coletânea, que agora fica à disposição de quem gosta de uma leitura amena.

Destaque-se: as crônicas mais antigas referem-se a episódios ocorridos nas primeiras décadas do século XX. Ele próprio as datilografou em sua máquina de escrever portátil, uma Lettera. Os originais permaneceram guardados por minha irmã Esther que os passou a meu filho Ruy em 2016, quem, por sua vez, entregou-os a mim em 2020.

Meia dúzia de textos, por destoarem do conjunto, não foram aqui incluídos.

Ao providenciar a impressão de suas crônicas é meu desejo oferecer a seus descendentes um pouco mais de recordação sobre o Vô Proença. E mais, que possam desfrutar momentos de prazerosa leitura.

Nelson Guimarães Proença

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1 TEMPOS DE VIAJANTE

Conversas de bonde

Ao tempo em que morava na Alameda Franca, e lá se vão vinte anos, ao me dirigir de bonde ao emprego, passei a notar a presença de um passageiro idoso, de cabelos inteiramente brancos, aparentemente mais de setenta anos de idade. Sempre bem aprumado, também ele reparou em mim, porque um dia em que me viu dependurado no estribo do pesado veículo, acenou para que fosse sentar-me a seu lado, recuando para me dar lugar.

— Tenho notado que seguimos sempre o mesmo destino — falou à guisa de exórdio. — Trabalha no comércio?

— Sim, sou comerciário.

Nossos encontros eram diários, criando uma mútua corrente de simpatia entre nós. Sua palavra era fácil e bastante agradável, discorrendo sobre qualquer assunto com fluência e profundo conhecimento. Tinha um leve toque do falar nordestino. |9|

Parecia ter sempre um lugarzinho para mim, ao seu lado, e ao me ver no ponto de embarque, acenava de dentro para que me acercasse dele.

Um dia mencionei o seu ecletismo e respondeu: — Fui homem de empresa e viajei muito. Conheço o mundo todo, em função de meus afazeres.

Seu nome era Amado Mendes e contou-me sua vida.

Fora comerciante em Belém do Pará, onde possuiu o maior empório da região, abastecendo a vasta zona amazonense.

Sua casa mantinha o maior estoque de borracha do país, exportando-a para as mais distantes nações. Fez grande fortuna, era expoente e líder na vida da cidade, presidente permanente da Associação Comercial de Belém, com imenso prestígio em toda a região nordestina.

Em atendimento de seus negócios, realizou inúmeras viagens ao Exterior, incluindo o Oriente. Fez mais de uma vintena delas, o que lhe possibilitou falar correntemente muitos idiomas.

Um dia aconteceu o inesperado: os negócios da hévea rodaram, em consequência da eclosão da guerra europeia e a sua fortuna ruiu, como um castelo de cartas, sem meios de evitar o descalabro. Queria deixar um nome limpo e fechou a empresa, retirando-se para o Sul. Por felicidade tinha uma filha bem casada em São Paulo, com um moço da família Arruda Botelho, que o acolheu carinhosamente.

Não desejava constituir-se em um fardo para eles e conseguiu, por intermédio de amigos, colocação na Secre| 10 |

taria de Agricultura do Estado. Isso não foi difícil, em reconhecimento de seus méritos. Ganhava um ordenado de três contos de réis, considerado razoável para a época. Seu serviço era traduzir tudo quanto aparecesse de interesse naquela área do governo, para orientar os agricultores.

— Sou como o senhor — disse. — Adquiri hábitos de disciplina mental e sou um dos primeiros a chegar à Repartição, embora dispensado do ponto.

Uma manhã notei que estava com a fisionomia contraída, ofegante, com evidentes sinais de dispneia e perguntei: — Está sentindo alguma coisa?

— Realmente, não estou me sentindo muito bem, hoje. É o velho coração que começa a me pregar sustos e saí sem prevenir os meus, para que não fiquem preocupados comigo.

— Não acha que devia ficar em casa?

— É coisa passageira e logo mais estarei passando melhor. Trabalhando, o tempo passa mais depressa.

Contou-me ter passado os maiores dissabores peculiares à vida comercial, muitos aborrecimentos na política e, finalmente o maior deles, o desmoronamento da fortuna. Suportou tudo estoicamente, mas uma coisa não podia aceitar com agrado, causando-lhe mesmo repulsa instintiva, a morte.

— Amo a vida, apesar de tudo. Li que o filósofo Sócrates, ao ser condenado à morte, teria dito a seus discípulos: “por que chorais, se eu já tinha sido condenado a morrer quando nasci?”. É filosofia indiscutível, mas me revolto ao pensar que a qualquer momento poderei deixar este mundo e saber que meu corpo se desintegrará irrevogavelmente! | 11 |

Lembrei-me dele anos depois, quando minha mãe manifestou idêntico amor à vida. Tinha levado uma existência bastante atribulada, trabalhando sem cessar e perdendo entes que lhe eram queridos. Eu lhe dizia que ninguém mais que ela era credora da vida eterna, num Éden onde os anjos entoavam hosanas. Não obstante ser profundamente crente, respondeu prontamente: — O Paraíso deve ser muito bonito, mas prefiro ficar por aqui mesmo, enquanto Deus for servido...

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Firmino Tamandaré Era um tipo curioso de boêmio este meu companheiro de trabalho!

Homem inteligente, forrado de vasta cultura humanística, Firmino Tamandaré de Toledo juntava às muitas láureas que possuía, como correspondente de inúmeras instituições científicas, professor da Escola de Farmácia e Química de São Paulo, mais uma: a de consagrado botânico.

Seus trabalhos como pesquisador de nossa flora valeram-lhe a descoberta e classificação de novas plantas ainda não identificadas, que entraram para o Compêndio de Botânica Universal, publicado na Alemanha, precedidas de seu nome em latim — “Tamandaréas” — portanto, imortalizando-o.

Tamandaré era um displicente e inveterado boêmio.

Chefe de numerosa família, os ganhos da Cátedra, mais os do emprego no comércio, nunca cobriam as necessidades | 13 |

do lar, levando-o a aceitar alunos particulares em casa, que preparava para exames de prático de farmácia.

Dono de dialética fluente e erudito, sabia intercalar em suas prédicas observações humorísticas, quando a matéria se tornava árida. Por seu espírito folgazão, não deixava de ser estimado por todos aqueles que dele se aproximassem.

Com tal maneira descuidada de agir, era natural viver constantemente em apuros financeiros, recorrendo aos amigos e colegas por meio das habituais “facadas”. Nem mesmo quando certa vez ganhou o prêmio maior de vinte contos na Loteria Federal, conseguiu equilibrar as finanças avariadas, porque Tamandaré foi sempre assim, um incorrigível boêmio.

De gênio alegre e inalterável, prestativo, amigo dos amigos, estava permanentemente disposto a servir.

Certa ocasião em que o consultei sobre pequeno distúrbio intestinal de meu primeiro filhinho, de um ano de idade, pediu licença para afastar-se do serviço, tomou o bonde e dirigiu-se imediatamente a minha casa, no longínquo bairro do Jardim Paulista, para resolver o problema, como bom curandeiro que era.

Maria o apreciava imensamente, como também a esposa dona Cecília, com quem mantínhamos excelentes relações.

Um dia Tamandaré adoeceu gravemente. Insidioso mal, em estado avançado, obrigou-o a afastar-se dos empregos por mais de dois anos, indo morar em Tremembé da Central do Brasil, nas proximidades de São José dos | 14 |

Campos. Quando se julgou melhor, voltou para retomar o serviço.

Boníssimo, ao morrer deixou-nos muitas saudades. Seu filho Cássio, formado pela Faculdade de Direito, é hoje o Secretário da Escola.

Esta digressão vem a propósito de um passeio pelo Itaim, perto da Avenida São Gabriel, onde eu procurava determinada rua. Olhando as placas para orientar-me, súbito dei com uma delas que me deixou sinceramente comovido, relembrando o grande companheiro e amigo de outros tempos. Tratava-se de homenagem póstuma, prestada ao velho colega de trabalho e dizia: “RUA PROF. TAMANDARÉ TOLEDO, cientista”.

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Cochilos

Tenho por hábito ler os artigos de fundo do “Estado”, em suas “Notas e Informações”.

Pontificam ali os luminares da Redação, em “Assuntos Internacionais”, ou mesmo em questões relevantes da vida nacional. São estudos aprofundados, de acuradas observações, o que não impede de surgir mui raramente um ou outro comentário menos pertinente.

Foi o que aconteceu hoje, lendo um artigo intitulado “Pesos Argentinos e Cruzeiros”, em que o articulista bordava considerações sobre câmbio, mas estas não tinham qualquer relação com as duas moedas.

Penso então na angústia de alguns redatores, obrigados a preencher alguns espaços vazios do jornal, à hora crucial de rodar o prelo. São levados a alinhavar qualquer coisa, às pressas, quer tenham ou não disposição para escrever.

Na minha mocidade, quando trabalhava na Livraria Magalhães, em permanente contato com diversos escrito| 16 |

res da época, interpelei um dia conhecido articulista sobre o significado de certo escrito seu, publicado em um diário, que me trouxera certa confusão.

Respondeu: — Ora, menino! Você me pergunta uma coisa difícil de explicar. Eu próprio, ao ler no dia seguinte o que saiu publicado, não consegui entender!

Contou-me, então, da penosa luta da gente da imprensa para botar na rua, a tempo e hora, as edições dos jornais.

Redatores e linotipistas se matam a fim de evitar o atraso na confecção dos diários, porque a máquina está esperando e os contínuos atropelando, para entregar o serviço.

— Muitas vezes, pela madrugada adentro, caindo de sono e de cansaço, somos forçados a alinhavar escritos, apressadamente. O prelo está no instante de engolir a montanha de bobinas de papel que irão proporcionar a leitura do noticiário, no despontar do dia. Milhares de residências, leitores ávidos de novidades, não há tempo a perder!

Então, deixam de ser incomuns alguns cochilos, como aconteceu no começo deste ano a Glycie Mendes Carneiro, responsável pela seção turística do “Estado”, incidindo nessa falha ao escrever comentários por ocasião de mais um aniversário da fundação da cidade de São Paulo. Alinhou ali as maravilhas de nossa megalópole, lembrando o concurso da inúmeras colônias estrangeiras. Citou todas elas esquecendo, por um lapso de memória, a laboriosa colônia italiana, justamente a mais numerosa e a que mais contribuiu para a formação étnica da nossa população. | 17 |

Como era de se esperar choveu na Redação, vindo de todos os recantos de nosso País, um sentido protesto pela estranha omissão: cartas e telegramas, de velhos colonizadores italianos, até de seus descendentes.

Glycie publicou na edição seguinte um comovente ato de contrição, confessando honestamente sua culpa.

“Gente, esse artigo foi escrito de madrugada, às pressas, quando me achava extenuada e a cair de sono. Creiam que sinto terrivelmente a falta, quando tenho na família descendentes da Península e quando ainda recentemente conduzi ao Sul, em vilegiatura de turismo, grande turma de universitários, onde predominavam os nomes italianos.”

Luís Martins contou, em um destes dias, que Sérgio Porto, o excelente escritor há pouco falecido — que conhecíamos sob o pseudônimo de Stanislaw Ponte Preta – não deve ter sucumbido de morte natural, mas sim de um “suicídio laboral”, dada a exaustão de que era acometido em função da sua intensa atividade na imprensa.

A conclusão é que devemos compreender e tolerar os cochilos que esporadicamente venhamos a encontrar nos jornais pois, como diz Martins, trabalhar em jornais é quase um suicídio.

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Um varão de Plutarco

Alexandre da Cunha Campos era um dos homens mais ricos de Uberaba, ativo, empreendedor e benquisto de todos.

Sua casa comercial era um verdadeiro empório, onde se encontrava de tudo e em grande quantidade, como convinha a um estabelecimento destinado a suprir extensa área do Triângulo Mineiro. Era ainda proprietário da Companhia Telefônica local, esta devida a seu espírito criador. Possuía ainda casas na cidade, como igualmente possuía grandes áreas periféricas.

Um dia sentiu desejo de levar vida mais tranquila, somente possível vendendo o estabelecimento comercial, o que acabou fazendo.

Amigo nosso, veio a entrar como sócio comanditário na casa em que eu trabalhava, passando a repartir sua existência entre o Rio, São Paulo e a cidade mineira que o viu enriquecer. | 19 |

Figura imponente e ereta, sempre bem aprumado, sua pose encantava pela elegância, como pela delicadeza das atitudes. Seus olhos vivos semelhavam-se a dois carvões incandescentes dentro de um rosto de leve toque oriental.

Não demorou a enfastiar-se da vida ociosa e ei-lo de volta à cidade que amava. Afastou-se do nosso convívio para novamente estabelecer-se em Uberaba, montando grande drogaria, com filiais em Uberlândia e Araguari.

Por esse tempo seus filhos tornaram-se adultos, procurando dois deles centros mais populosos onde desenvolveram suas atividades, ou seja, no Rio e em São Paulo. Não foram felizes em seus empreendimentos. Ainda imaturos, entregaram-se a empreitadas acima de suas forças.

Pai amantíssimo, Alexandre Campos tentou ampará-los, inutilmente. Então, a parábola ascendente de sua fortuna ocorreu em sentido inverso, obrigando-o a desfazer-se paulatinamente do rico patrimônio. Primeiro a Companhia Telefônica, a seguir as casas particulares e depois as drogarias. Uma série interminável de contratempos abateu-se sobre esse varão e amigo. Não bastava o lento empobrecimento e eis que uma neta adolescente, de grande estimação, sucumbiu tragicamente, fulminada ao tocar em um fio elétrico desprendido, em sua propriedade! Depois foi o súbito aparecimento de grave eczema a envolver todo o corpo, forçando-o a transferir-se para o Rio de Janeiro, à cata de lenitivo para seus padecimentos.

Seus familiares me traziam notícias dos sofrimentos que o atingiam, a ponto de permanecer prolongados pe| 20 |

ríodos coberto apenas por fino lençol, por não suportar a mais leve vestimenta sobre a pele!

O que era mais de admirar, jamais articulava qualquer queixume a tão trágica adversidade!

Ao completar bodas de ouro, enviou-me do Rio amável convite. Por circunstâncias estranhas a minha vontade, não pude comparecer. Recebi posteriormente, através de um de seus filhos, a cartolina comemorativa da festividade, que mandara imprimir, na qual fez vazar todo o seu conformismo cristão, diante do infortúnio que enfrentara.

Não me lembro dos dizeres do versículo extraído da Bíblia para a comemoração, a fim de dignificar aquela fase ingrata de sua vida, mas dizia mais ou menos isto: “Amado Pai, nós vos damos graças por todos os momentos felizes que desfrutamos, como também pelas provações que houvestes por bem proporcionar-nos”.

Finou-se pouco depois. Era já então um corpo combalido, envelhecido, apenas uma sombra, uma vergôntea do que fora um rijo carvalho dominador. Deixou-nos, entretanto, admirável exemplo de humildade e de paciência evangélica.

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Dentistas

Coloquei o papel na máquina de escrever para falar sobre dentistas e médicos, mas o assunto pareceu banal e titubiei.

Escrevo ou fecho a máquina?

Já que comecei, vamos lá!

Não é de admirar minha indecisão, quando acabo de sair do dentista, após duas horas de paciente tortura. Não que os dentistas sejam maus, fazem até verdadeiros milagres, como esse de nos darem uma aparência bem melhor do que aquela que recebemos do Criador.

Brinco com eles, dizendo que a maravilhosa arte dos dentistas e protéticos, como a dos médicos operadores, é a mais ingrata de todas, já que levamos para o túmulo os magníficos trabalhos que produzem, e seus nomes jamais serão lembrados pela posteridade.

Contou-me um médico que, depois dos motoristas de táxi, são os de sua profissão e os dentistas os que pagam | 22 |

maior tributo para as mortes prematuras. Se nós sentimos o impacto das brocas em nossa boca, os dentistas não deixam de receber a sensação provocada pela trepidação dos motores, trabalhando sempre de pé, com os sentidos em elevada tensão, diante do serviço que têm a sua frente.

Portanto, quando me sento em sua cadeira, penso no reverso da medalha e me conformo.

Um meu parente, que se formou em odontologia, abandonou em seguida a profissão, dizendo-me: — Nunca me foi possível supor que ela fosse tão ingrata!

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O casebre

Meu amigo Thomaz Pimentel, bom lusitano, quando emigrou de sua pátria para o Brasil, trouxe a experiência acumulada, ao lado de seu irmão, na fabricação de remédios no Laboratório Sanitas, de Lisboa.

Aqui chegando, fundou com José Pires o que é hoje o grande laboratório Laborterápica-Bristol. Separaram-se logo depois e foi trabalhar sozinho, criando o Laboratório Sanitas do Brasil.

Prosperou e mais tarde comprou grande terreno à Avenida Lins de Vasconcelos, nos altos da Vila Mariana, ali construindo o novo laboratório, portentoso e imponente edifício, que era o seu orgulho. O terreno dava fundos para a Rua Marta.

Desejando mostrá-lo a alguns amigos, aproveitou a sua data natalícia para realizar uma festividade, convidando | 24 |

para isso seus empregados, reunindo os vendedores de outros Estados, e os amigos mais íntimos.

Fui distinguido com um telefonema, insistindo para comparecer e o fiz com prazer.

Depois de percorrermos todas as seções do belo laboratório, admirando suas modernas instalações e maquinarias, dirigimo-nos ao pátio interno, dos fundos, onde nos foi oferecido um churrasco.

Ali conversando, sob o alpendre improvisado, foi-me dado constatar a existência de um tosco casebre encravado dentro dos terrenos de sua propriedade, justamente na saída para a Rua Marta. Era uma dessas casinhas primitivas, muito mal tratada, em completa dissonância com a imponência de seu laboratório.

Explicou-me Pimentel a dor de cabeça que esse enclave lhe vinha causando. Pertencia a um seu compatrício, coincidentemente da mesma Província portuguesa. Desde o princípio encontrou da parte dele a maior resistência a qualquer entendimento, alegando que tinha adquirido aquele pedaço de chão ao chegar ao Brasil, ali nascendo alguns filhos e netos, e ali tencionava morrer.

— Eu o compreendo — disse meu anfitrião — porque ele é transmontano, como eu, gente de cabeça dura e difícil de dobrar. Mas o fato é que esse pequeno terreno é de importância vital para mim, por não permitir manobrar meus caminhões aqui nos fundos e nem dar aos mesmos uma saída para a Rua Marta. Fiz tudo o que era possível, sem chegar a um resultado. Essa casinha não vale mais de | 25 |

cinquenta contos de reis. Ofereci pagar-lhe à vista e recusou. Ofereci cem contos e recusou. Pedi que abrisse um preço, mas não quis saber de conversa.

Passado um ano voltei a visitar o laboratório e notei não mais se achar ali o casebre.

Perguntei a Pimentel se havia conseguido demover o homem e contou-me nova história. Tinha refletido bastante sobre o assunto e acabou encontrando uma saída: comprou um terreno que estava à venda nas proximidades, ali construindo bela casa, encortinando-a, mandando passar cascolac nos soalhos. Convidou o patrício e mais a esposa para conhecê-la.

O rude casal de campônios, analfabetos, lá foi ter e perguntou o velho transmontano a Pimentel: — É para sua filha, senhor doutor Thomaz? Vossa Senhoria tem muito bom gosto, é uma linda casita!

— Não! Não é para minha filha, é para o senhor e dona Mariana, se quiserem trocar pela sua casa.

O patrício cofiou o bigode e sorriu para Pimentel.

— Vossa Senhoria está a mangar comigo, sabendo que por nada deste mundo vou sair de lá, a menos que... meus filhos consintam. Mas, se quiser me dar por fora cem contos de reis, sou capaz de topar esse negócio.

Thomaz Pimentel quase caiu das nuvens, teve vontade de xingar o patrício, mas se conteve. Seu desejo era amaldiçoá-lo, naquela hora.

Entretanto, aquele pedaço de chão era importante e uma tarde mandou chamá-lo, mais a mulher, resolveu pagar o absurdo que ele pedia. | 26 |

Foram ao Cartório e passaram a escritura. O patrício tinha compreendido o valor que seu casebre tinha passado a representar para o vizinho e tratou de tirar o melhor partido da situação.

Entre a construção da nova casa que lhe foi transferida, mais o terreno e a luva de cem contos de reis, Pimentel calculou ter pago cinco vezes o valor do imundo casebre!

Felizmente tinha conseguido se libertar do esperto conterrâneo e possuía agora um imenso corredor, onde podia manobrar e fazer deslizar os seus caminhões.

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Jogadores

Uma das manifestações mais curiosas no comportamento dos indivíduos em relação a certos vícios é aquela que condiciona sua mente e sua vontade a uma servidão diante da miragem do jogo.

Ao longo da minha vida tenho notado pessoas de grande inteligência e capacidade deixando-se empolgar pela paixão do pano verde.

São comuns as viagens que elas fazem nos fins de semana aos cassinos de nossas estâncias balneárias, ou mesmo ao Uruguai e Argentina, a fim de satisfazerem a volúpia de espalhar fichas, de alto valor, nas mesas de apostas.

Punta del Este e Mar del Plata ficam aos sábados e domingos apinhadas de multidão de forasteiros, que ali vão deixar enormes somas. É empolgante ver os salões cheios de gente a se comprimir, em derredor das mesas de roleta ou bacará — são cente| 28 |

nas — e interessante observar as fisionomias ansiosas, presas à bolinha saltitante, até cair numa das cavidades numeradas.

Ou então nas cartas de baralho que a banca vai fazendo virar, com fina espátula de madeira, com que as manipula.

Anatole France tentou descrever em um de seus livros as impressões colhidas sobre o vício que empolga os amantes do jogo. Via de regra, não é a concupiscência que os move, senão a necessidade de satisfazer a um imperativo de suas inclinações.

Tive oportunidade de penetrar em muitos desses salões de jogatina, encontrando ali grandes expoentes de nossa indústria e de nosso comércio, aferrados aos azares da sorte, não raro empregando vultuosas somas.

Conheci inúmeros indivíduos que sacrificaram uma vida inteira, perdendo no jogo o dinheiro que devia alimentar os seus filhinhos e a sua casa. Uma senhora contou-me que nunca conseguiu demover o marido de levantar do leito altas horas da madrugada, para dirigir-se ao clube!

Um meu parente e grande amigo me confessava a impossibilidade de afastar-se do mal. De nada valeram os muitos trambolhões que levou em toda a existência. Assim que amigos e parentes o ajudavam a reconstituir os meios de trabalho, atirava-os fora no dia seguinte!

A conclusão é de que nada adiantam conselhos, ou lágrimas dos familiares, porque passaram jogando a vida toda e não abandonarão o vício até a hora de morrer. Jogam porque trazem no sangue o vírus do mal, dele não conseguem se livrar. | 29 |

Motoristas de praça

Minha mulher tinha um extremado apego ao lar e aos filhos. Na primeira vez em que a convidei para um passeio à Argentina, apresentou mil e uma escusas, alegando isto e mais aquilo para eximir-se. Consegui afinal convencê-la e lá fomos, levando Nair Santos em nossa companhia.

Foi uma viagem memorável!

Não sei como os Laboratórios Labofarma vieram a saber da nossa ida, enviando instruções a sua congênere de Buenos Aires a fim de nos acolherem. Um seu preposto nos aguardava no porto platino, reservando-nos acomodações no suntuoso City Hotel e colocando um automóvel a nossa inteira disposição.

Don Júlio e sua distinta esposa, dona Carmen, foram de nímia gentileza para conosco, mostrando-nos os pontos mais pitorescos da cidade, como a pequena e a grande Buenos Aires, o passeio de El Tigre, o porto de frutas do rio | 30 |

Negro e a Avenida Costaneira. Levaram-nos depois a La Plata, que então se chamava cidade Eva Perón, em homenagem à esposa do ditador. E também à Basílica de Lujan, que Maria desejava conhecer. O laboratório ofereceu-nos, ainda, em seu vasto salão de festas, acolhedora recepção, com a presença de seus diretores, auxiliares mais gradua­ dos e médicos colaboradores, reunidos em bela mesa de finos doces, de que jamais olvidaremos.

Maria gostou imensamente desse passeio, aproveitando para adquirir nos magazines argentinos toda a sorte de confecções de inverno, para presentear filhos e netos, principalmente agasalhos de lã, em que são eles incomparáveis.

Voltamos inúmeras vezes à capital portenha, aproveitando para rápidas excursões a outras cidades. Como Mar del Plata e Bariloche.

Minha mulher amava essas viagens, por nos proporcionarem instantes de tranquilo relaxamento a bordo de confortáveis transatlânticos, sobretudo apreciava a afabilidade dos argentinos, com seu alto padrão de ­cortesia.

Rodávamos constantemente de táxi por todos os recantos da cidade. Os motoristas eram sempre amáveis e delicados, bem aprumados e gentis.

Apreciávamos igualmente a indumentária do povo, todos bem vestidos. Os homens, exceção dos trabalhadores de determinados serviços, em que se apresentavam de uniforme, invariavelmente usavam gravata.

Neste particular, quero abrir um parêntese para contar um fato que presenciamos no Grande Hotel Reyes, de Bariloche. | 31 |

Um distinto casal, residente no Rio de Janeiro, estava em viagem de núpcias. O jovem apareceu no salão de jantar com a camisa aberta, foi polidamente advertido pelo maître, que pediu para colocar a gravata, de conformidade com o regulamento do hotel. Não fez ele a menor objeção, atendendo ao pedido do gerente.

Mas, como estava contando, minha mulher notou essa particularidade dos motoristas platinos, em evidente contraste com seus colegas da capital paulistana, com poucas exceções mal educados e, em muitas ocasiões, com a barba por fazer e mal vestidos.

Por exemplo, jamais aconteceu vermos um condutor de táxi argentino fumar em serviço, o que não acontece em São Paulo. Aqui, certa vez fiz parar um deles para descermos, eu e minha mulher, porque, mal entramos no veículo, o taxista acendeu um cigarro e se pôs a fumar, enquanto o vento atirava a fumaça e as cinzas em nossos rostos.

Hoje isto é bastante comum. Diariamente tomo uma dessas conduções rumo ao centro, em companhia de minha nora Yvonne, que é médica. Mal entramos no táxi, o bendito homem se lembra de acender um cigarro! Dirige fumando, o que não deveria ser permitido, pois é descaso para com os usuários, que lhe proporcionam o ganha-pão de todos os dias!

Parece que somente se lembram de fumar quando têm clientes no carro!

Isto tornou-se tão corriqueiro que cheguei à conclusão de que o mais aconselhável é nos revestirmos de santa pa­ ciência e não tomarmos conhecimento dessas mazelas. | 32 |

Pelé

A seleção brasileira de futebol vem de levantar na capital mexicana o tricampeonato do popular esporte, competindo com as principais nações do globo, prélio este assistido por mais de setecentos milhões de pessoas em todo o orbe, segundo os cálculos dos especialistas.

Tudo isso foi possível graças às conquistas da eletrônica, que possibilitaram o lançamento do satélite ­Telestar, que nos permitiu acompanhar pela televisão, dentro de nosso lar, todos os jogos, como se estivéssemos presentes nos estádios esportivos.

Concomitantemente com a realização das partidas, ocorreram no mundo dois outros acontecimentos de suma importância. Na minha opinião, muito mais relevantes do que os jogos de futebol. Um deles, o trágico terremoto do Peru, que roubou a vida de mais de cinquenta mil pessoas.

O segundo, o lançamento do último satélite soviético, con| 33 |

duzindo dois astronautas a rodearem no espaço durante mais de duas semanas, arrebatando os anteriores recordes de permanência no ar!

Pois bem, até os astronautas do Soyuz, o satélite de que falo, acompanharam de suas naves o desenrolar das pelejas de futebol aqui na Terra, pois competiam também seus compatriotas! Tão apaixonante se tornou esse esporte bretão!

Os dois eventos mencionados foram totalmente suplantados pela competição ocorrida no México!

Voltando ao futebol, sobreleva notar a esplêndida atuação do nosso popular Pelé, o único que se sagrou tricampeão da Copa. Este jogador principiou a se projetar no campeonato realizado na Suécia, em 1958, continuando pelos tempos afora, nos campeonatos mundiais, sempre em magníficas condições, até culminar com a maravilhosa atuação desta final, no México.

Isso tudo, malgrado a opinião do técnico João Saldanha, que desejava retirá-lo do quadro da Seleção, por suposta miopia. É conhecido o efêmero fastígio dos jogadores de futebol, face às constantes exibições a que são forçados. É realmente de pasmar possa Pelé manter-se em tão perfeitas condições físicas, por tão dilatados anos.

A respeito deste jogador presenciei na Argentina dois fatos interessantes.

Achava-me certa tarde dentro de um movimentado café, ouvindo a irradiação de uma partida de futebol que se realizava no Rio, entre os selecionados argentino e bra| 34 |

sileiro, em que este marcara mais gols, quando um recém-vindo perguntou: — Quem joga?

A resposta.

— Os argentinos contra Pelé...

De outra feita, acompanhei Hélio e Iva ao Prata. Estávamos hospedados no Hotel Provincial, de Mar del Plata, quando se aproximou de nós um cidadão prestativo, pareceu-me ser um relações públicas da administração hoteleira.

Propôs-se a nos mostrar os recantos pitorescos da cidade.

Na companhia da amável esposa, conduziu-nos aqui e ali, ofereceu-nos opíparo almoço em uma das reputadas cantinas locais e a seguir levou-nos a conhecer as instalações do porto.

Chamava-se Don Coco, esse personagem. Procurava agradar-nos, explicando o que nos mostrava. Em certo momento avançamos mar adentro, pela mureta de pedra da arrebentação, até atingirmos um posto de vigia, onde conversavam o guarda e dois companheiros. Era um marujo atarracado e idoso, de fisionomia simpática, que se ergueu a nossa aproximação.

Don Coco fez as apresentações: éramos amigos brasileiros em vilegiatura e desculpava-se por termos caminhado até ali.

O marujo curvou-se, primeiramente diante de Iva, como mandam as normas do cavalheirismo, exclamando: – Encantado, señora, mucho Pelé...

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Curandeiros

É interessante notar a existência de certos indivíduos dotados de extraordinários dons de aglutinar massas amorfas em torno de sua pessoa!

Na política ou na religião é comum surgir, de quando em quando, indivíduos salvadores, dizendo-se tocados pela graça divina, carismáticos ou providenciais.

Não vou ocupar-me de política ou religião, para falar somente de alguns deles que encontrei ao longo da minha vida, o mais das vezes ignorantes ou analfabetos, dispondo de elevada conceituação entre a classe inculta e até entre pessoas esclarecidas, de bom nível cultural.

Começo por citar o fenômeno Zé Arigó, o mago que pontifica na cidade mineira de Congonhas do Campo.

Inculcou-se como médium que recebeu o espírito de determinado cirurgião que faleceu na Alemanha. Nos jornais: “Realiza operações miraculosas, removendo glauco| 36 |

mas a ponta de faca, dessas facas que os matutos usam no mato, tudo isso com auspiciosos resultados”.

Sua fama propagou-se rapidamente, quiçá auxiliada por uma interessada cadeia econômica. Congonhas não passava de uma cidade pacata, tornando-se a breve tempo cidade de inusitado movimento. De cidade turística — por abrigar ali as famosas estátuas do Aleijadinho — virou uma cidade movimentada pela enorme afluência de forasteiros, à procura de Zé Arigó.

Consta que estudiosos americanos estiveram em Congonhas para examinar sua curiosa personalidade. Dizem também que ele se acha associado a todos os empreendimentos locais, como hotéis, casas de comércio e empresas de transportes coletivos.

Por conhecimento pessoal sei que as receitas de Zé ­Arigó custam uma fortuna e que alguns Laboratórios Farmacêuticos de segunda categoria vivem quase exclusivamente de sua colaboração.

Amigos meus, aqui de São Paulo, se abalaram até aquela cidade em busca de lenitivos aos seus padecimentos.

Alguns outros curandeiros conheci pessoalmente, nos anos vinte, quando fui viajante. Sem falar no curandeiro João Camargo de Campo Largo de Sorocaba, visitado por muita gente ilustre, quero referir-me a apenas dois deles: o Capitão-Major e Emílio Machado de Azevedo.

O primeiro aplicava-se na cidade de Mogi Mirim, na Mogiana, era conhecido por aquela alcunha, cuja origem vou explicar. | 37 |

A fim de galardoar amigos e pessoas gradas que lhe prestavam serviços eleitorais, o governo de antigamente criou a célebre Guarda Nacional, composta de cidadãos prestantes. Não havia soldados na tal Guarda, apenas oficiais, então era uma orgia de patentes de todas as graduações, desde tenentes até generais.

Não me lembro agora o nome do curandeiro de que falo, mas recebera a patente de capitão. Mais tarde, achando que essa patente já não mais correspondia ao seu merecimento, apelou para os políticos, que lhe deram a de major.

Tornou-se notável, recebendo muitos clientes. O povo da terra já se acostumara a tratá-lo de Capitão, o que ele corrigia imediatamente.

— Major, faça o favor.

Foi assim que os habitantes da cidade, na sua verve, passaram a chamá-lo de Capitão-Major, como ficou conhecido.

Era um curandeiro interessante e astuto. Enfeixou num caderno duzentas fórmulas magistrais para diferentes moléstias, sucessivamente numeradas. Uma cópia desse caderno era oferecida à farmácia a ele associada e formulava assim: “Minha receita número tal...”

Outro curandeiro célebre na Mogiana era o Emílio, na cidade de São Sebastião do Paraíso. Filho de modesto barbeiro italiano, de nome Tognatti, na vizinha cidade de Santo Tomás de Aquino, o rapaz demonstrou desde cedo excepcionais aptidões para a luta e, compreendendo que ninguém é profeta em sua terra, migrou para São Paulo. | 38 |

Foi trabalhar na vizinha cidade de Santo Amaro — independente naquela época —, com um curandeiro que ali morava, aprendendo as artimanhas e malícias do velho, chamado Machado de Azevedo. Morrendo este, abalou-se para São Sebastião do Paraíso, adotando o nome de Emílio Machado de Azevedo, dizendo ter recebido o seu espírito e recomendação para que continuasse a curar os doentes.

Instalou-se fora da cidade, usando indumentária igual a dos cowboys das fitas americanas de cinema: calças cáqui e camisas da mesma cor, botas, chapéus de imensas abas.

Era até bastante guapo e simpático, o rapaz.

Sua fama se espalhou rapidamente, recebendo clientes de toda parte, desde Mato Grosso e Goiás, não tendo mãos a medir. Dezenas de pessoas acampavam nas imediações de sua casa à espera de serem atendidas. Suas receitas eram quase ilegíveis. Não raro constando de medicamentos conflitantes! Tive oportunidade de constatar o aparecimento de enorme quantidade delas por todas as cidades da Mogiana, até em Campinas.

Pequenos laboratórios de São Paulo e do Rio de Janeiro passaram a procurá-lo pagando boas somas para recomendar seus produtos, muitos de duvidosa eficácia. Inclusive associou-se a uma farmácia da cidade, pertencente a um boticário que tinha falido em Casa Branca e conseguiu reabilitar-se em pouco tempo.

A freguesia de Emílio multiplicou-se a tal ponto, chegando a afetar os médicos da cidade, entre eles um velho e abalizado médico, o Dr. Brigagão. Dirigiram-se eles ao | 39 |

governo do Estado a fim de que fosse coibida a atuação do carimbamba, um quase analfabeto. Nada conseguiram.

Emílio dispunha então de grande prestígio eleitoral, mobilizando mais de duzentos eleitores fanáticos, que se prontificaram a defendê-lo.

Um dia Emílio, no apogeu da fama, lembrou-se de visitar o velho pai barbeiro, na cidade de Santo Tomás de Aquino. Fazia anos que não o via e foi encontrá-lo num sábado, com a casa cheia de clientes, enquanto atendia um deles.

— Pai, vim fazer uma visita...

O velho italiano andava terrivelmente ressentido com o filho, por viver tanto tempo tão próximo, sem o procurar, e agora rico e famoso, enquanto o velho continuava dando duro na vida.

Ele então respondeu, enquanto escanhoava a cara do freguês: — Pai?! Eu tinha um filho chamado Emílio Tognatti, e não Machado de Azevedo ...

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Força de vontade

Aí pelo ano de 1926, tivemos oportunidade de contar entre nossos funcionários um latagão recém-chegado de Portugal. Moço, de vinte e poucos anos, saudável, olhar vivo e inteligente, tez rosada, era, contudo, analfabeto.

Fazia o serviço braçal, sua função era conduzir às costas enormes cestos de mercadorias, contendo vidros de remédios que vendíamos às drogarias e farmácias do centro da cidade.

Francisco, como se chamava, compreendeu que não poderia progredir se não soubesse ler e entrou para uma escola noturna. Despediu-se pouco depois para trabalhar como entregador de pão.

Os anos se passaram e não mais ouvi falar dele.

Uns vinte anos depois precisei comparecer à casa de antigo empregado da firma que tinha morrido. Como a morada era pequena, os visitantes sobraram para o meio | 41 |

da rua e eu ali me achava entre os demais, quando vi aproximar-se um belo automóvel Chrysler, dele descendo o Francisco.

Estava completamente mudado e não o reconheci. Foi um de meus colegas que me falou: — Não lembra do Francisco?

Cumprimentou-me ele efusivamente.

Contaram-me que Francisco, como entregador de pão economizou e comprou um bar, depois pequena panificadora, depois uma maior, na Vila Formosa. E, ainda, casas de renda.

O quanto vale o esforço e o trabalho bem orientados!

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Valentões

Uma das boas experiências da minha vida foi quando exerci atividade como viajante comercial.

Percorri durante seis anos todo o interior do Estado de São Paulo e zonas limítrofes de Minas, convivendo com seus habitantes, deixando excelentes amigos entre eles.

Foi-me dado observar a maneira singela de viver das populações interioranas, com seus costumes simples.

As cidades mais afastadas de Minas ofereceram-me contrastes interessantes. Algumas, como Pouso Alegre, Alfenas, Ouro Fino ou Muzambinho, dotadas de bons colégios, em nada diferiam de suas congêneres paulistas. Em outras, mais distantes, como Borda da Mata, Cassia ou mesmo a grande cidade de Passos, a vida transcorria um pouco ao sabor das conveniências políticas dos sobas mandantes, propiciando o aparecimento de indivíduos truculentos por eles amparados. | 43 |

Conheci na cidade de Pratápolis um desses indivíduos.

Era um mulato metido a valentão, odiado por suas atitudes violentas. Quando cismava com um infeliz qualquer, não tinha dúvidas e ia logo às do cabo. Contava algumas mortes em seu ativo, era bastante temido.

Um dia apareceu no lugarejo um rapazinho, vindo não se sabia de onde, de maneiras delicadas e aspecto humilde, chamado Zezinho. Passava parte do dia na Farmácia do Décio, sempre pronto a servir em pequenos serviços.

Décio encantou-se com ele e o recolheu para lhe ensinar os rudimentos dos negócios do laboratório e do balcão.

Bastante quieto, apreciava ouvir as palestras que se formavam à porta do estabelecimento, nas rodinhas dos amigos do farmacêutico.

Não se sabe se por maldade ou por que quer que fosse, foram contar ao valentão que Zezinho tinha feito comentários desabonadores a seu respeito e o ferrabrás prometeu: — Vou desancar esse fedelho, na primeira vez em que encontrar com ele, para não meter a língua no que não é da sua conta!

Zezinho ficou transido de medo e imensamente preocupado, pensando em deixar a cidade. Aconselharam-no a falar com o valentão a fim de desfazer a intriga.

Um dia aconteceu o que temia. Achava-se na venda do Geraldo quando surgiu o capuava. Mal o viu, mandou encher um copo de pinga e passou-o a suas mãos.

— Beba...

— Não bebo pinga. | 44 |

— Tem de virar o copo inteiro, para não andar falando dos outros.

Avançou para Zezinho, no intuito evidente de castigá-lo, sucedendo então coisa inesperada: o rapazinho sacou rapidamente uma garrucha, desfechando um tiro na cara do valentão, matando-o.

Passei alguns anos sem voltar a Pratápolis. Quando ali novamente estive encontrei outro ferrabrás, mais temido e pior do que o antigo.

Era o Zezinho, o humilde rapazinho da Farmácia...

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Viajantes comerciais

A vida dos viajantes comerciais é algo que merece ser contado, tais as suas características. Eles pululam por todos os recantos do país. Levando sua contribuição para o desenvolvimento dos negócios aos mais recônditos rincões das selvas.

Existem viajantes de todos os tipos e de todos os níveis — vendedores dos chamados secos e molhados — desde os mais humildes até os mais letrados, contudo unidos pela melhor camaradagem.

Nos dias de hoje, dada a alta competição, em que modernas estradas asfaltadas permitem rápida locomoção, são considerados mais felizes os que possuem automóvel. Outros viajam de trem, ou mesmo de ônibus ou de jardineiras.

Ao tempo em que comecei, 1922, não contávamos ainda com as cômodas vias de penetração hoje existentes.

Eram raros os que viajavam motorizados, dispostos a enfrentar as terríveis nuvens de pó dos caminhos. | 46 |

Nos lugares mais distantes, especialmente nos Estados vizinhos a São Paulo, sobressaíam os viajantes de tropas, vendedores das grandes casas atacadistas de tecidos do Rio e de São Paulo. Geralmente rapazes esbeltos, acompanhados de seus capatazes, que caprichavam em apresentar tropas formadas por mulas uniformes na cor e no tamanho, bem ajaezadas.

Entravam nas cidades com grande garbo, chapéus de largas abas, ponchos e botas reluzentes, sempre aguardados com curiosidade e carinho pelos moradores. Descarregavam suas malas nos hotéis e convocavam a clientela para comparecer, quando então podiam exibir o produto de seu comércio.

Embora houvesse desníveis, os viajantes formavam uma comunidade unida e amiga.

Hotéis melhores, situados habitualmente em cidades consideradas pontos-chaves das regiões, abrigavam aos domingos maior quantidade deles. Aproveitavam para um merecido descanso ou para expedir a correspondência aos patrões. Alguns acabavam casando com moças das cidades percorridas. Muitos aproveitavam os dias de folga para jogar em volta de mesinhas adrede preparadas.

Num desses domingos soubemos da chegada de um dos colegas, de nome Moura, que tinha ido à Capital em visita ao pai moribundo. Era um rapaz belo, exuberante e sentimental, filho de portugueses, bastante estimado entre nós. | 47 |

Dirigimo-nos — alguns de seus colegas — a uma sala particular do hotel, onde se achava, a fim de transmitir-lhe nossos pesares e ouvimos dele a seguinte história.

Meu pai era um desses rudes imigrantes de vida patriarcal, que considerava a obediência como um dever inalienável da família. Suas ordens tinham de ser obedecidas rigorosamente e cumpridas sem a mais leve restrição, quer fossem ou não de agrado dos seus.

Um dia determinou que cumprisse uma ordem qualquer, que Moura achou descabida e repudiou. O velho insistiu, dizendo que o filho não sabia nada e tinha de obedecer, quisesse ou não. Vendo que o rapaz não se dobrava, foi tomado de violento furor, expulsando-o do lar.

Em sua casa teriam de viver dentro de sua bitola e não tolerava a menor desobediência e nem que sua autoridade pudesse ser diminuída. Não queria mais vê-lo e que saísse de sua presença. Não houve como acalmá-lo e Moura procurou uma pensão, com grande desgosto da mãe e irmãos.

Reconhecia um grande quinhão de culpa de sua parte em não tentar novamente uma aproximação. Mas “tal pai, tal filho”, como diz o brocado.

Passou a viver fora da Capital, enviando espaçadamente notícias aos seus, até o dia em que o chamaram para ver o pai doente.

O que nos contou a seguir, entre lágrimas, era comovente. Do fundo do leito de morte o velho estendeu-lhe a mão trêmula, puxando-o para junto de seu rosto, beijando-o repetidamente, dizendo que estava a morrer e não | 48 |

queria se despedir da vida sem pedir-lhe perdão pelo acontecido, acrescentando: — És um filho de boa raça e te abençoo.

E choraram os dois, lamentando o tempo perdido.

Também nós tínhamos os olhos molhados de lágrimas, ao ouvir a sua narração.

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Cruzes

Quando o comboio deixou a Estação de Aguaí, ao passar defronte do cemitério local, uma senhora enxundiosa, de aparência modesta, pôs-se a exclamar em altos lamentos, volvendo-se para os passageiros próximos: — Ai, meu Deus! Acabo de enterrar meu filhinho de dois anos nesse cemitério! O coitadinho andava muito doente, levei para Poços de Caldas e não adiantou nada!

Vinha de volta e tive que desembarcar aqui e agora vou embora sem ele! Ai, como é pesada a minha cruz!

Tanto falou que uma jovem, a seu lado, achou de a consolar.

— Precisa se conformar, a vida é assim...

— Ah! A senhora diz isso porque não é mãe!

— Não é só a senhora que sofre. Todos nós temos uma cruz a carregar.

— Mas não é tão pesada como a minha. | 50 |

— Pois então saiba que perdi há seis meses um irmão de vinte e dois anos, afogado, no Rio de Janeiro, onde estudava. Nossa mãe está entrevada na cama, muito doente e ninguém tem coragem de contar a ela. Então, somos forçadas a forjar cartas dele e ler para ela, para crer que ainda vive. Ainda agora estão me chamando porque está passando mal e não sei se vou vê-la com vida!

Aquela mulher certamente não conhecia a parábola do cristão que foi a Jesus reclamar sobre a cruz que carregava, por achá-la por demais pesada. O Mestre respondeu: — Entre aí nessa sala, meu filho, há milhares de cruzes e escolha uma mais leve.

Daí a momentos o penitente voltou.

— Pai, perdoai-me. Vou levar a minha própria, porque as que estão lá são muito mais pesadas.

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2 RECORDAÇÕES FAMILIARES

Duas mulheres

A quantidade de mulheres sublimes em nossa família é deveras admirável! Elas são várias, contudo desejo destacar apenas duas, como símbolos que muito enalteceram suas gerações, pelas excelsas qualidades que as exornavam, morrendo ambas quase centenárias.

Não vou aqui incluir minha esposa que, por sua íntima ligação com a minha vida, tem merecido referências à parte.

Quero mencionar primeiramente Tia Candinha, célula mater de uma família numerosa e bem formada, mercê dos sãos ensinamentos que dela emanaram. Pobre, carregada de filhos, sua vida foi uma constante luta pela subsistência, a fim de encaminhá-los nas sendas deste mundo atribulado.

Conheci-a bem de perto. O que mais me encantava nessa bondosa criatura era a humildade, respaldada por grande firmeza de caráter; ao mesmo tempo a invencível sobranceria e fé com que enfrentava as dificuldades que apareciam em seu caminho. | 55 |

Jamais a ouvi deblaterar contra os obstáculos que encontrava, achando sempre um tempinho, no meio de suas atribulações, para acudir alguém, em qualquer parte. Era conhecida a sua presença, onde a dor surgisse num lar, levando o bálsamo da sua fé e da sua bondade.

A outra mulher, obviamente, é minha mãe.

Alma simples e pura, despida de maldade, boníssima ao extremo, a ponto de repartir também com os de fora, as parcas migalhas que ganhava em extenuante trabalho.

Inúmeras vezes lembro-me vê-la debruçada, a cair de sono e cansaço, sobre a máquina de costura, que era o seu ganha-pão, a fim de que não faltasse no lar a côdea de pão que devia alimentar os seus filhinhos.

Não a vi chorar, a não ser quando perdeu entes queridos, alguns deles roubados prematuramente e de forma trágica.

Era bastante conhecida sua proverbial defesa de quem quer que fosse! “Advogada dos ausentes”, como a chamávamos, não deixava de atuar como patrono, sempre que se fizesse mister, mesmo em se tratando de estranhos.

Seus olhos azuis refletiam a bondade no mais alto grau e sua pequenina boca parecia perfumada ao beijar-nos.

Considero essas duas mulheres, duas santas. Sempre quando desejarmos obter uma graça, a elas devemos volver o nosso pensamento, porque sei que não deixarão de nos ouvir e nos atender.

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Bem casados

Na véspera do nosso enlace, minha futura esposa preveniu-me que o Monsenhor Pedro dos Santos desejava confessar-me, para poder oficiar nosso casamento. Sabendo que eu estava disponível, combinou com ele o meu comparecimento naquele dia, na Igreja de São Benedito, em Amparo, às duas horas da tarde.

O Monsenhor era um antigo vigário da paróquia, já bem entrado em anos. Fui procurá-lo no templo à hora marcada e encontrei-o passeando no interior da nave.

Recebeu-me afavelmente.

Cumprimentei-o e fui logo dizendo da minha dificul­ dade em ajoelhar-me no confessionário para cochichar coisas banais. Certamente tinha meus pecados veniais, porque ninguém é perfeito, mas preferia conversar a­ bertamente.

Viu o meu embaraço em explicar-lhe essas coisas e levou-me à sacristia. | 57 |

— Pois vamos conversar aqui, disse. — É a mesma coisa, o que vale é a intenção.

Pôs-me inteiramente à vontade e lhe abri os escrínios do meu coração, contando minha vida de lutas e o desejo de constituir um lar e uma família digna, para isso escolhendo uma moça pobre, como bem conhecia.

Declarou-se satisfeito, pedindo-me para criar os filhos dentro dos preceitos cristãos. Disse-lhe que minha esposa assim deveria proceder, não ignorando sua fé religiosa.

Fez o nosso casamento, proferindo feliz oração.

Passados cinco anos aconteceu a Revolução Constitucionalista e nossas alianças foram para ela ofertadas, na campanha do “Ouro para São Paulo”.

Terminada a Revolução, mandei fazer novas alianças.

Um dia, estando em Amparo a passeio, minha esposa entendeu de mandar benzê-las, dizendo: — Monsenhor Pedro está velhinho, mas queria que ele mesmo as benzesse.

Fomos procurá-lo na Igreja Matriz, querendo explicar o caso, ele se dispôs a nos atender. Pensou um momento e nos respondeu: — Vamos fazer a coisa direito e bem feita. Venham comigo a minha casa.

Morava ao lado da Igreja, lá fomos, levando em nossa companhia nossos dois filhinhos, Hélio, de quatro anos, e Esther, de dois.

Havia em sua casa uma saleta, com pequeno altar e uma grade circundante de madeira, mais dois genuflexó| 58 |

rios. Paramentou-se com a estola, tomou do breviário e do crucifixo, mandou que nos ajoelhássemos.

Pronunciou as palavras sacramentais, abençoando-nos e abençoando as alianças.

Ao nos despedirmos comentei com minha esposa: — É a primeira vez que tomo conhecimento de uma cerimônia assim. O que dirão nossos filhinhos, se algum dia se lembrarem disso?

— Monsenhor já está muito velhinho e nossos filhos não vão se lembrar...

— Mas que estamos bem casados, não há dúvida!

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Invocação

Dizem que o tempo é um poderoso bálsamo a amenizar as feridas da alma e, em muitos casos — como creio afirmar o aforismo popular — ele é um grande mestre.

Entretanto, no que me concerne, não me ofereceu ele ainda aquele lenitivo tão necessário à paz do meu coração.

A ampulheta do tempo não para e, quanto mais os meses passam, mais e mais se avoluma no meu coração a saudade deixada por aquela que partiu. Ela, que foi em vida toda a razão da minha luta e da minha felicidade.

Quase quarenta anos de uma convivência perfeita, de uma comunhão unipessoal inalterável, de uma consonância sem jaça!

Minha esposa era bela, sempre bela, saudável, carinhosa!

Carinhosa para comigo, para com os filhos, amorosa até o infinito para com todos esses pequeninos seres, rebentos da árvore fecunda e boa. Jamais abrigou em seu | 60 |

âmago qualquer sentimento malsão! Tinha sempre uma palavra de conforto para aqueles que lhe confiavam as mágoas. Compreendia pelo olhar as vicissitudes da minha luta e era um grande alimento a encorajar-me.

Jamais desejou além daquilo que as minhas forças podiam dar e como recebia jubilosa a modéstia das minhas oferendas!

Como era boa a minha companheira!

Generosa, inclusive concebendo e gerando essa constelação maravilhosa de filhos e netos, que agora procuram tapar no meu coração as frestas ainda abertas por sua ausência.

Eu agradeço a ela e agradeço à Divina Providência por toda essa felicidade, que se prolonga no convívio com esta prole luminosa que me cerca!

Ai, minha inesquecível companheira, como eu sinto saudade de você!

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Clodomiro Amazonas

Estivemos, Maria e eu, em visita à exposição de Clodomiro Amazonas, pela segunda vez.

Minha mulher encantava-se por um de seus quadros, representando espessa floresta à margem de um caminho, deixando mostrar regular curso d’água e um céu translúcido por cima das copas das árvores. Inúmeras borboletas, dos mais variados matizes, completavam a paisagem maravilhosa.

Clodomiro notou-nos e se aproximou para atender-nos. Maria mencionou a beleza do céu azul e ele respondeu que a sua apreciação era perfeitamente válida, especialmente para aqueles que conheciam o céu de São José dos Campos ou de Campos do Jordão, onde costumava buscar os motivos inspiradores de suas telas.

Era um quadro grande e de alto preço — se não me engano cinquenta contos de reis — e que não estava dentro | 62 |

de nossas possibilidades, para grande desconsolo de minha cara esposa.

Clodomiro ofereceu-nos certas facilidades, dado o empenho em que nos achávamos, o que não resolveu.

Disse, então: — Dona Maria, a senhora terá um quadro meu de menor preço, eu lhe prometo, porque estou vendo que gosta da minha pintura. Já percebi o que mais lhe agrada e vou pintar para a senhora, só que terá de esperar dois anos. Vai ter de aguardar com paciência.

Os dois anos se passaram, depois mais um, Maria ponderou que possivelmente ele tivesse esquecido.

Mas não esqueceu!

Quando não mais pensávamos no caso, telefonou em um belo dia, para dizer-nos que o quadro estava pronto, pedindo o obséquio de o procurarmos em seu apartamento da Avenida Ipiranga.

Fomos acolhidos gentilmente, ali nos demoramos mais de uma hora, em amável palestra. Sua esposa serviu-nos chá, contando que Clodomiro era bastante exigente, quando trabalhava. Demorava a escolher um local adequado, para só então montar o cavalete. Este local devia ser ermo.

Punha-se a riscar a tela, ao som de uma vitrola, ouvindo em surdina músicas clássicas, que apreciava intensamente.

Enquanto ali estávamos apareceu um magnata, meu conhecido, na companhia de uma filha que queria comprar um seu quadro. O homem pechinchou, pechinchou e acabou por o adquirir. | 63 |

Ao se retirarem, o pintor desabafou para nós, com um sorriso de tristeza nos lábios e grande resignação.

— É isso mesmo! Infelizmente pouco valemos, enquanto vivos! Somente depois de mortos nossas obras adquirem grandes preços. Então, para a nossa vida e necessidades presentes, de que vale isso?

Terminamos levando dois de seus quadros. Clodomiro morreu pouco tempo depois e tivemos a oportunidade de visitar uma exposição póstuma dos refugos de sua obra, na Avenida Angélica.

Clodomiro tinha razão. Quadros inferiores àquele que tínhamos comprado a dois contos de reis eram agora vendidos a vinte!

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Perspectivas

Órfã aos dezesseis anos, de ânimo corajoso e independente, a mulher — com quem vim a casar — conseguiu do Juiz de Amparo sua emancipação prematura e a tutela dos dois irmãos menores, de quem passou a cuidar, para tanto obtendo a escola municipal que era regida por sua mãe.

Foi quando a conheci. Considerei ser ela a pessoa ideal para ser minha companheira, dado o seu espírito valoroso: e nos casamos.

O que foi nossa vida em comum todos sabem. Pontilhada de lutas, mas tranquila quanto aos objetivos, porque visávamos os mesmos fins.

Nos raros momentos em que especulávamos sobre a nossa morte, dizia ela que iria viver em um convento ou sodalício, caso eu me fosse primeiro. Em sua concepção autônoma, julgava difícil a convivência como dependente de alguém, mesmo que esse alguém pudesse ser seu filho. | 65 |

Eu, por meu lado, argumentava não ter problemas caso ela partisse antes: iria morar em hotel ou num apartamento pequeno, como viviam conhecidos, em casos idênticos.

Aconteceu o que não esperava, ela deixou-me, indo primeiro. Quando me dei conta, achava-me residindo na casa do filho mais velho e não em hotel ou apartamento.

Por quê?

Sucedeu simplesmente que fui envolvido pelo calor filial de todos e estou no meio deles tão à vontade como se estivesse em minha própria casa. O tempo vai passando, os anos vão se somando, cheguei a esquecer as perspectivas iniciais.

Em minha acuidade sensorial, como num radar, busco perceber o instante em que minha presença possa constituir-se em embaraço ou qualquer preocupação aos familiares. Francamente não encontrei até este momento qualquer resquício de contrariedade e me sinto comovido e plenamente recompensado ante tantas demonstrações de carinho e de afeto de todos.

Amo extremadamente meus filhos e seus cônjuges e agradeço a Deus serem eles felizes. São solícitos para comigo, sem exceção, não desejaria destacar ninguém. Com referência às mulheres, então, costumo dizer que não sei qual delas mais estimo, se minha querida filha, se minhas excelentes noras!

Entretanto, seja-me permitido fazer justiça àquela que me atura todos os dias e todas as horas, com extrema benevolência e paciência: Iva! Que vela noite e dia por meu | 66 |

conforto, tanto como — estou certo — as demais também o fariam, com a melhor boa vontade.

Foi Iva quem teceu o pulôver que me cobre o peito neste instante. Como igualmente teceu filigranas de amor que envolvem o meu velho coração!

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Enfeitar a vida

Indro Montanelli, conhecido jornalista milanês, escreveu um livro sobre os gregos da antiguidade, descrevendo com a leveza que lhe é peculiar a vida dos geniais pensadores daqueles quatro a cinco séculos antes de Cristo.

Segundo sua descrição, Sófocles, o genial autor de Antígona e Édipo Rei, que amava a vida à maneira de seus compatriotas, agarrando as oportunidades de prazer que ela lhe oferecia, no fundo era pessimista em suas poesias.

Como Sólon, julgava que a maior felicidade do homem era não ter nascido ou morrer no berço.

Não penso assim. Apesar de todos os percalços, ela nos oferece momentos interessantes e vale a pena de ser vivida.

Acredito que muitos indivíduos encaram apenas o seu lado negativo, parecendo sempre contrafeitos, embora possuam todas as condições para serem felizes. A insatis| 68 |

fação é da natureza humana, o que leva o homem a lutar pela perfeição.

Admiro os poetas, porque sentem vibração diante das mais simples manifestações da vida, exaltando o belo e o sentimento. Nada existe que não apresente o seu lado maravilhoso, o importante é descobri-lo. Tudo vai de sabermos nos comportar diante dos acontecimentos.

Minha inesquecível esposa tinha o costume de encantar as horas da existência formando ambientes agradáveis e repousantes. Jamais deixou nossa sala sem um vaso de flores frescas e perfumadas, jamais descurou de seu aprumo, sempre asseada e bem posta.

Por exemplo, era seu hábito, nas tardes amenas, ao pôr do sol, trazer uma mesinha para o terraço, estendendo sobre ela alva toalha e servindo o chá na mais fina porcelana, ainda que estivéssemos a sós. Dizia ser uma maneira de “enfeitar a vida”, e com que requinte o fazia!

Sempre bela, sabia enfeitá-la!

Já não bastava ser ela uma “vida enfeitada”?

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Encontros fortuitos

A vida nos grandes centros decorre tumultuada, não nos deixando tempo para sentir o que se passa em nosso derredor.

No bairro onde moramos era comum transcorrer grande temporada sem avistarmos nossos vizinhos, dadas as horas diferentes em que nos dirigíamos ao trabalho.

Na Rua José Clemente, em meu lado direito morava Ignácio Goldmann, casado com Dona Dorothy. Quando ele ia para sua loja, a esposa cuidava dos arranjos do lar, na companhia da velha mãe. À esquerda ficava o Dr. Tinoco e a seguir o casal Dr. Renato Veras e a esposa Dona Ruth.

Nossas relações foram sempre cordiais, contudo nos víamos muito raramente. Por este motivo foi para nós grande surpresa o que aconteceu em nossa última ­viagem a Buenos Aires. Ao atravessar a Calle Florida, numa tarde de grande movimento, Maria deu de encontro com | 70 |

Dona Dorothy! Foi preciso sair de São Paulo para bem longe, para a vermos.

Exclamações de alegria e troca de amabilidades, com promessas de novos encontros.

Mais estranho aconteceu a nosso filho Heitor, em sua primeira viagem aos Estados Unidos. Achava-se ele na Quinta Avenida de Nova Iorque, quando deu subitamente com o casal Veras, nossos vizinhos da capital paulista.

Encontraram-se ao acaso, tão longe, em uma das ruas mais movimentadas do mundo!

Era realmente de pasmar!

Foram juntos comemorar o acontecimento, em uma mesa de jantar.

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Feira da bondade

Quando se fundou a APAE, Associação destinada a amparar os menores excepcionais, de que Hélio e Iva ­participaram, inadvertidamente um redator do “Estado” escreveu um comentário nas Notas e Informações, profligando “o mau vezo de certos pais, desejosos de chamarem a atenção do público para seus rebentos, considerados geniais”. Naturalmente, jejuno no assunto, o cronista desconhecia a real finalidade da Instituição.

Hélio dirigiu bela carta ao matutino, expondo os fundamentos da obra iniciada, com similares em todo o mundo. A Redação do tradicional periódico fez honesta autocrítica, penitenciando-se do erro cometido e oferecendo a colaboração leal do jornal.

Este comentário vem a propósito da visita hoje feita à 4ª Feira da Bondade, num dos pavilhões do Ibirapuera, em prol da mencionada Instituição. O que vi me deixou emo| 72 |

cionado! Uma multidão incalculável, mais de trinta mil pessoas se comprimiam nas imensas áreas daquele edifício, no afã de prestigiar a obra comandada por essa incansável dama, Jô Clemente, adquirindo as valiosas prendas ofertadas.

A instituição fundada em São Paulo faz intercâmbio com suas congêneres estrangeiras. Pequenos trabalhos manuais e desenhos são enviados a outros países, num elevado espírito de confraternização. Como incentivo filantrópico, alguns recebem prêmios incentivadores.

Meu neto José Manoel, excepcional, acaba de receber carta de Londres, com um cheque de duas libras inglesas.

Um seu desenho foi lá adquirido por alguém, que prestou colaboração à obra. Fácil é compreender como isso comoveu nossos corações!

Bem hajam todos aqueles que compreendem o outro lado da vida, não somente constituída de matéria!

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Mãos preciosas

Privado da companheira de quatro décadas, minha vida se reparte no convívio dos filhos e de cerca de vinte netos, que formam a constelação de meus descendentes, haurindo em seu seio um pouco da seiva que alimenta o velho tronco que me sustém. Eles me enchem de amor e carinho, que tão bem falam a nossa alma.

Vez por outra, enquanto esperamos o almoço, ­Yvonne senta-se ao piano e executa baladas de Schubert ou de Chopin, o que faz com rara emoção e sentimento.

Sempre fui bastante sensível à música e essas baladas me falam ao coração. Ao tempo de minha esposa, costumava ouvir na vitrola, músicas clássicas, ao cair da tarde, deliciando-me com meus discos.

Não me acanho de confessar sentir-me comovido ao ouvi-la tocar. Há momentos em que nos sentimos com maior acuidade e sensibilidade para a música. | 74 |

Mãos de Yvonne, que conseguem arrebatar quentes melodias das frias teclas de marfim, as mesmas mãos que preparam acepipes apetitosos, as mesmas mãos que empunham com maestria o bisturi que assegura a saúde a suas inúmeras clientes!

Mãos de Yvonne... mãos preciosas...

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3 AS CIDADES E A NATUREZA

Nossa cidade Estou residindo no décimo oitavo andar do mais alto edifício da Avenida Paulista, que, por sua vez, se situa na parte mais elevada da cidade.

No terraço de meu apartamento, descortina-se uma visão panorâmica do grande conglomerado humano, verdadeiramente fantasmagórico, com a iluminação feérica multicolorida em constante mutação, como um caleidoscópio!

Uma onda de euforia e entusiasmo nos invade, como se fôramos artífices de tamanha grandeza, orgulhosos por vivermos na grande megalópole.

No vigésimo sexto andar existe formoso jardim suspenso de cerca de quinhentos metros quadrados, donde podemos vislumbrar os imensos arranha-céus, com as miríades de janelas iluminadas e o casario a esparramar-se por todos os quadrantes!

Então, cerro os olhos e evoco a cidadezinha acanhada do começo do século, com suas ruas tortuosas cavalgando | 79 |

a colina de Piratininga, onde os jesuítas iniciaram a povoação, em que sobressaía o “Triângulo” formado pela junção das ruas Direita, São Bento e Quinze de Novembro. Por ali transitavam os seus moradores, os homens com fraques e chapéus coco, as mulheres de cinturas espartilhadas e vestidas até os pés. Não é possível esquecer velhos juízes de sobrecasaca e o advogado Spencer Vampré, eternamente portando lustrosa cartola, de “chaminé”.

Quando eu vim ao mundo, meus pais moravam no Largo do Arouche, nos confins da cidade. Para além do Baixo Arouche, apenas recentes vielas e o mato!

Quanta transformação!

Costumo dizer aos filhos: “Vejam a cidade que entrego a vocês! Cresci com ela e envelheci, mas nossa cidade continua sua caminhada pelos tempos afora, ostentando sua enorme força de expansão e pujança, sem se deter um só instante”.

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A Granja Julieta

Dona Julieta de Almeida, assim como sua filha Dona Violeta, damas de alta distinção, eram clientes habituais de nossa seção de perfumarias.

Um dia nossa conversa derivou para o assunto de aves e ela me perguntou se já conhecia o seu zoológico. Respondi que o conhecia por ouvir os maiores elogios, mas que nunca o havia visitado.

— Vá lá e leve os seus filhinhos. Eles irão gostar. No dia em que resolver, procura o meu marido para retirar um cartão de ingresso.

A Granja Julieta, belíssimo parque, para os lados de Santo Amaro, ocupava imensa área e possuía uma coleção enorme de animais e aves, de variadas espécies, diziam que até superior à do Jardim Zoológico do Rio de Janeiro.

Uma tarde dirigi-me à casa comercial do seu marido, à procura do cartão para a visita. | 81 |

Manoel de Almeida possuía grande casa de suprimentos para construções, à Rua Boa Vista, trabalhando em conexão com os renomados construtores Severo & Villares. Era um homem atarracado, de aspecto leonino e rude, pouco dado a conversa, fisionomia fechada e mesmo de aparência agressiva.

No momento em que entrei em seu escritório, precedeu-me um oficial do Exército, de distintas maneiras. Explicou desejar autorização para visitar o seu Zoo. Almeida encarou-o, com aquela sua maneira introspectiva, respondeu secamente.

— Estão canceladas as visitas.

O oficial despediu-se entre desapontado e surpreso, retirando-se.

Manoel de Almeida atendeu-me em seguida.

— Que deseja?

Respondi-lhe que ia solicitar igual favor, mas que estava compreendendo ser inútil o que queria. Lamentava bastante privar-me — e aos meus — desse passeio, mas me conformava.

Disse-me então que era levado a essa proibição porque um malvado qualquer entregou um cigarro aceso a um seu macaquinho, que se queimou com ele. Tinha muito amor aos bichos, que colecionava com enorme sacrifício, mandando buscá-los em todos os recantos do mundo e chorava de ver o sofrimento dos animaizinhos. Já estava mesmo pensando em fechar o zoo e assim o fizera. | 82 |

— Muito bem, senhor Almeida. Agradeço da mesma forma. Se aqui vim foi porque Dona Julieta me ofereceu.

Ele mudou inesperadamente.

— Foi Julieta quem mandou? O Parque é dela e o senhor vai fazer a visita.

Voltou-se para um funcionário: — Prepare uma autorização aqui para o amigo...

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O “Minhocão”

A Prefeitura acaba de entregar aos paulistanos mais uma de suas majestosas vias elevadas — a que o povo apelidou de Minhocão — permitindo comunicação rápida entre os bairros de Perdizes e Lapa, e o Centro comercial, com ir­ radiação para a Zona Leste, através da enorme quantidade de novos viadutos e caminhos elevados.

Passando pela Praça Roosevelt, parei para contemplar o lindo leque de novas vias asfaltadas que ali chegam, depois de atravessar por cima a Avenida São João e a Vila Buarque, até esta praça. Uma de suas asas dá para a Rua Consolação, outro caminho se enfia por baixo da praça construída por Faria Lima e, um outro, também subterrâneo, se destina a receber o fluxo de tráfego que ali vem desembocar e depois se redistribui.

Meu pensamento deu então uma volta ao passado, quando eu era ainda mocinho, nos idos do dealbar do | 84 |

s­ éculo. Parecia irreal tudo aquilo que meus olhos estavam enxergando, como se fosse um sonho ou uma fantasia de contos infantis, tal a estonteante transformação por que passara aquele sítio!

Recordo-me bem daquele recanto, ao lado da Igreja da Consolação. Onde hoje existem as Ruas Nestor Pestana – antiga Florisbela — Martins Fontes e adjacências, havia um campo de futebol, com arquibancadas a céu aberto, a que chamavam Velódromo. Era ali que se feriam as pugnas do campeonato local. Os clubes tinham então nomes diferentes, chamavam-se Americano, Paulistano, Atlético, Ipiranga, São Bento...

Os grandes jogadores da época eram Rubens Salles, Chico Neto, Bororó, Hopkins, McLean, Valêncio e outros. Bem depois vieram Friedenreich, Leônidas etc.

A assistência era o que havia de mais seleta, composta de rapazes e moças das melhores famílias, em sua indumentária domingueira, a incitar com aplausos entusiásticos os seus ídolos.

O Velódromo desapareceu em holocausto ao crescimento da cidade provinciana que, de menos de quatrocentos mil habitantes, se converteu na megalópole de hoje.

Tornou-se a terceira ou quarta aglomeração do mundo.

Suas ruas estreitas, com prédios de três pavimentos, cedeu seu primado à imensa floresta de grandes arranha-céus de cimento que aí está.

Sou um apaixonado deste extraordinário progresso, entretanto não deixo de relembrar com saudade aquele pe| 85 |

ríodo da minha adolescência, em que todos nos conhecíamos e a vida era tão simples.

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O cosmos

Em companhia de pessoas amigas fui uma noite dessas assistir a uma exibição do Planetário do Ibirapuera, em boa hora doado à população paulistana.

Não é preciso pôr em relevo o que foi nosso contato com o mundo das estrelas, bem apresentado por técnico capacitado. Grande parte dos moradores da Capital por ali passou.

Muitos terão se deliciado com o belo espetáculo e com as explanações, o que já se tornou rotina. Contudo, segundo creio, nem todos se aperceberam da profundidade do assunto.

Realmente, se considerarmos a transcendência da matéria, nossa inteligência se debate nas trevas, impotente e incapaz de penetrar os mistérios da dimensão do cosmos!

Voltando à casa não contive a curiosidade de consultar os tratados astronômicos e mais obscurecido me senti! | 87 |

Contam eles que as galáxias, essas faixas luminosas no céu, formadas por milhões de estrelas, algumas delas de extrema grandeza, são ainda parte de um conjunto incalculável! E pensarmos que o sol, astro-rei de nosso sistema planetário, conta mais de cinco bilhões de anos, pelos cálculos especulativos, e que também ele poderá ser parte de outros sistemas maiores!

Tudo isso sem mencionar os conjuntos globulares de estrelas variáveis, que contam de cinquenta a cem milhões de estrelas. E considerando que de muitas delas — já extintas — a luz somente agora está chegando até nós!

De tamanha quantidade de estrelas, seis mil são visíveis durante o ano, através dos melhores telescópios.

Alguns bilhões delas situam-se a distâncias extremamente grandes da Terra. Para se medir essa distância, lembremos que a luz percorre trezentos mil quilômetros por segundo!

Dizem os astrônomos que a estrela Epsilon-Aurigas, a maior conhecida, tem três mil vezes o diâmetro do sol! Poderão existir ainda maiores. É de nos deixar obnubilados e sem fôlego!

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Primavera Depois de uma véspera ebúrnea e úmida, o dia amanheceu hoje transparente e luminoso, despontando o sol radioso como uma clarinada festiva, marcando o início da primavera.

Chegando ao terraço do meu apartamento, olho para baixo e um espetáculo esplendoroso se oferece a minha vista, em toda a sua plenitude!

Ao longo da Avenida Paulista, os ipês que a ornamentam em toda a sua extensão amanheceram inteiramente cobertos por estonteante floração, em maravilhosa eclosão de pequeninas flores amarelas, desabrochadas durante a noite!

Como é bela a natureza quando temos sentidos para contemplar a gama de suas constantes mutações, transformando os ramos crestados de ontem na fantasmagoria de flores a encantar nossa vista!

Amanhã elas começarão a despregar-se para alcatifar o solo que pisamos, como uma alfombra prodigiosa e os

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ramos das árvores votarão a se cobrir de folhas verdes, a espera de uma nova primavera, para eclodir.

Aproveitemos estes momentos felizes em que os ipês floridos inundam a nossa rua com a sua cor festiva, esqueçamos que nossa alma não tem retornos de primavera e deixemos que eles alegrem nossos olhos e nossos corações.

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Guarujá

Acaba de ser entregue ao público a nova rodovia asfaltada, colocando o Guarujá em comunicação direta com a Capital. Pela nova estrada podemos atingir a famosa praia em uma hora, se tanto, evitando a demorada travessia das balsas.

Não vou me ocupar aqui da maravilha da nossa engenharia, conseguindo estender uma bela autopista por sobre o extenso mangue que vai de Cubatão até a Ilha de Santo Amaro. Foi necessário abrir enormes e profundas perfurações tubulares na lama, colocando terra compacta­ da para dar apoio às pilastras de sustentação. Trabalho ingente que levou anos e que honra a criatividade de nossos engenheiros.

Não vou falar da inovação técnica ali praticada e, sim, nas controvérsias levantadas acerca dos reflexos da rodovia na vida da aristocrática estância. | 91 |

Muitos plutocratas frequentadores do Guarujá temem a invasão da ilha pelos ônibus turísticos, despejando milhares de novos visitantes de fins de semana, democratizando as lindas praias e roubando-lhes o sossego e a tranquilidade que estão habituados a desfrutar. A dificuldade e a demora na travessia conferia-lhes um quase privilégio, afastando dali a afluência popular.

Outros pensam de modo diferente, achando que a nova estrada virá proporcionar à ilha uma expansão inusitada, como sucedeu em Santos e São Vicente.

Feitos estes comentários, quero lembrar o meu primeiro passeio ao Guarujá. Se bem recordo, foi no ano 1914, encantando-me com seus maravilhosos recantos.

Por esse tempo não havia estradas, a única via era o caminho de ferro, com seus planos inclinados. Descia-se na estação final e tínhamos de procurar o ancoradouro chamado Valongo, tomando ali um barco que nos transportava a Itapema, no outro lado do canal. Em Itapema tomávamos um trenzinho — que mais parecia um brinquedo de criança — conduzindo-nos ao Guarujá.

A impressão que tive foi soberba. Passamos o dia vagando pelas praias, depois sentando, à tarde, no terraço do antigo Hotel De La Plage, ao velho estilo gaulês.

Permaneci extasiado e hipnotizado a olhar a arrebentação das ondas nos rochedos que emergiam, ao largo da enseada.

Era uma tarde magnífica, não posso esquecer. O sol, refletindo nas nuvens esparsas, ia transmitindo ao mar to| 92 |

nalidades fantásticas, um câmbio sucessivo de cores, qual caleidoscópio!

Difícil foi nos arrancarmos dali — eu e o amigo que me acompanhou — não fora o receio de perder a última condução.

Naquela época, então, Guarujá não passava de suas formosas praias e do hotel que hoje já não mais existe, além de raríssimas casas.

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Campos do Jordão

Em função das atividades para a casa em que trabalhava, tive oportunidade de percorrer durante seis anos consecuti­ vos, até 1927, todo o interior do nosso Estado, mais as cidades lindeiras de Minas Gerais.

Cidade por cidade, em todas elas deixei excelentes amigos, dos quais sempre me lembrarei.

Conheci os rincões mais aprazíveis e tudo o que eles tinham de melhor. Apenas limitada região deixei de palmi­ lhar, por se achar fora do meu setor de trabalho e, após meu casamento, por uma incompreensível repulsa de minha mulher.

Vim a conhecer esta região mais tarde, em companhia de minha filha Esther, e me dou por bem recompensado em não morrer antes de conhecê-la.

Este lugar de que falo, é para mim uma espécie de Éden ou Shangri-Lá da novela, onde o homem pode viver mil | 94 |

anos dentro do curto espaço do seu tempo! Parece que Deus, ao fazer o mundo, segundo o Gênese, reservou as melhores tintas de sua paleta e caprichou ao rematar os Campos do Jordão, na Serra da Mantiqueira, a quase dois mil metros de altitude!

Não me canso de percorrer suas estradas e de subir os morros, para dali descortinar a imensidão interminável de montanhas, assim como os seus vales paradisíacos, onde vicejam frondosas araucárias e outras árvores campestres.

Ando por todos os cantos, aspirando voluptuosamente o ar de sua atmosfera diáfana e rarefeita, esse ar que devolveu a saúde a milhares de criaturas enfermas.

São muitas as casas de saúde mantidas pela caridade dos mais felizes, assim como a quantidade de belíssimas mansões, ao lado de casas mais modestas, a pontilharem os recantos mais pitorescos da montanha.

Alguém contou que, num cotejo havido por ocasião de um congresso médico europeu, Campos do Jordão a todos sobrepujou, reunindo a totalidade dos índices climáticos necessários à saúde.

Um meu amigo alemão bastante viajado, contou-me certa vez ter feito uma excursão turística aos altos da Serra da Mantiqueira, na companhia da esposa. O que ali lhe foi dado ver deslumbrou-o, nada tinha visto até então de comparável, no continente europeu! Não tinha acanhamento em confessar que experimentou irreprimível desejo de orar, para agradecer a Deus por lhe proporcionar a contemplação de tais maravilhas! | 95 |

Com seus recantos pitorescos, Campos do Jordão não nos deixa tempo para o ócio. Caminho ali por suas veredas, sem sentir o mais leve cansaço, tendo a impressão que renovo dez anos.

Bem haja Campos do Jordão, com todas as suas belezas e os seus encantos!

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4 DIVAGAÇÕES

Paraplégicas

O quartel da Força Pública associou-se neste ano às comemorações da Semana da Criança, promovendo diversas solenidades para alegrar a petizada de nossa cidade. Especialmente daquela menos favorecida, que ali acorreu em grande quantidade, acompanhada de seus mestres ou assistentes.

Seu pequeno teatro lotou-se de conjuntos infantis, com representações próprias de sua idade.

Estive ontem lá, levando meu neto excepcional, atendendo a convite da APAE. Ali se achavam os alunos do Centro de Treinamento Itaim, fidalgamente atendidos pelos militares, com farta distribuição de guloseimas e refrigerantes, bem como revistas infantis e objetos escolares.

Um conjunto musical abrilhantava a festa, dando mais vida à reunião.

Tive a oportunidade de presenciar a alegria de meia centena de crianças paraplégicas, do Asilo Lar São Fran| 99 |

cisco. Vítimas da paralisia, tinham entre seis e dez anos, estavam esquecidas momentaneamente de sua infelicidade, distraídas pela solicitude dos soldados da nossa milícia.

Terminada a reunião, retiraram-se elas na mais perfeita ordem, em fila dupla, acompanhadas de seus assistentes.

Passaram por mim, amparadas em suas muletas de alumínio, caminhando com as perninhas enfiadas nos aparelhos ortopédicos.

Exatamente neste ano terminei a feitura de um romance de costumes campineiros, onde encaixei três meninas paraplégicas, uma delas morrendo após ser operada.

Naquele instante lembrei-me das minhas paralíticas, sentindo o drama dessas pequeninas vidas, amarradas na adversidade das suas muletas.

Não pude conter a emoção, encostando-me à parede do quartel, vendo-as passar. Verti lágrimas por aqueles pequeninos seres, vítimas do insidioso mal que as atinge, e penso que chorei também pelas três meninas, personagens fictícias do meu romance.

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Bolhas de sabão

Já dizia o Marquês de Maricá que muitos sobem depressa por serem excessivamente leves como bolhas de sabão.

São entes desprovidos de base moral e se apegam a todas as oportunidades para galgarem posição, quer seja por subserviência, filáucia ou ainda pela perfídia, de que tratou o florentino Maquiavel.

Estes indivíduos, como as bolhas de sabão, têm vida vegetativa bastante efêmera, condicionada ao fraco combustível que os eleva.

Outros existem que sobem devagar, impulsionados pela força interior que os anima, força essa imanente, que os leva a lutar com denodo e perseverança na consecução dos seus propósitos, visando sempre um ideal. É destes indivíduos que a humanidade mais necessita para o seu aprimoramento, são eles que podem construir obras duradouras. | 101 |

É na luta sem tréguas que podemos edificar algo persistente.

Somente com bastante esforço e sofrimento conseguimos solidificar nossas conquistas. O próprio sofrimento robustece nossas energias e purifica o nosso caráter.

Bem haja, pois, aqueles que não se acomodam e que não procuram elevar-se como bolhas de sabão.

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Uma jabuticabeira

Um dos maiores entraves, quando desejamos resolver um assunto em qualquer repartição pública é, sem dúvida, essa tremenda máquina chamada burocracia! Os casos mais simples se convertem em problemas complicados, arrastando-se às vezes anos, sem interrupção.

Conheço apenas duas maneiras de contorná-la: a força política, que remove montanhas, e a instituição cabocla do “jeitinho”.

Sei de um amigo que se habilitou certa vez à casa própria, percorrendo repartições oficiais, preenchendo imensa papelada e ficou anos sem obter solução. Outro, por sinal um contraparente, por sua ligação com o governador levantou em vinte e quatro horas respeitável quantia para comprar à vista o palacete que deixou para a família!

Conheço agora uma exceção à regra. Somente alguém dotada de extraordinária fibra e de grande pertinácia po| 103 |

deria realizar o que vou narrar. Trata-se de minha nora Iva, esse prodígio de tenacidade!

Passava ela uma manhã pela Rua Luiz Coelho, quando sua atenção foi despertada por um velho solar em demolição, que desaparecia aos golpes de picareta, para dar lugar a moderno edifício de apartamentos. No quintal dessa mansão lobrigou inúmeras árvores frutíferas, entre elas, portentosa jabuticabeira de quase dez metros de altura, magnífica em sua imponência.

Iva não se conteve, indagando de um dos trabalhadores: – Moço, o que vão fazer dessas árvores?

— Uai, dona! Vamo cortá ela daí...

— Querem vender para mim?

— Pode levá, dona, não precisa pagá...

— Como? O senhor pode dispor delas? Olhe que eu venho buscar!

— Tô dizendo, a senhora pode levar elas ... até é favor, porque vamos arrancar elas daí.

Iva correu ao Parque do Trianon, onde vira homens trabalhando e combinou com um dos jardineiros para retirá-la e a conduzir ao seu sítio de Cotia, que acabara de comprar.

Esquematizou imediatamente uma ação, o que foi fácil para ela. Simplesmente isto: arrancar aquele monstro de árvore do chão, sem ferir as raízes, estas envolvidas pelo torrão que a circundava. Conseguir um caminhão, um guincho para colocá-la no veículo, uma licença para atravessar a divisa do Município, preparar previamente a cova | 104 |

no sítio e plantá-la. Despojar a jabuticabeira dos galhos dispensáveis e molhar as raízes permanentemente...

Tais coisas desanimariam qualquer um, menos Iva. Tudo foi providenciado. A jabuticabeira foi retirada do seu leito, envolvida então por sacos de aniagem, o caminhão apareceu e... quem disse de a içarem?

Conseguir o guincho foi mais difícil. Meu filho Nelson, então vereador à Câmara Municipal da Capital, prontificou-se a recomendá-la ao Secretário do Prefeito Faria Lima, a fim de o conseguir.

Começou então a via-sacra de Iva: primeiro foi encaminhada a um departamento, depois a outros e finalmente um deles prometeu mandar o guincho.

Enquanto isso, água na terra, nas raízes da árvore, irrigada diariamente para que não se estiolasse.

Um belo dia o guincho apareceu mas — Oh, decepção!

— era demais pequeno e não conseguiu levantar a jabuticabeira.

Iva, mortificada, voltou a percorrer as mesmas repartições em busca de um outro maior, que disseram existir, porém estava em conserto e o tempo corria! A árvore jazia estendida fora de seu leito!

Transcorria o segundo mês, quando o guincho maior ficou pronto. Conhecendo agora os percalços da burocracia, Iva muniu-se de uma nova autorização da Prefeitura.

Por onde passava agora, era acolhida com comentários jocosos, não raro sendo interpelada: — Então, dona Iva, já veio trazer as jabuticabas que nos prometeu? | 105 |

— As primeiras serão de vocês...

O responsável pela máquina alegou tratar-se de uma nova situação, que requeria nova ordem para movimentá-la. Iva já estava prevenida, abriu a bolsa e apresentou-a.

Não havia como furtar-se e o guincho acabou aparecendo e, não sei como ela conseguiu, ele próprio conduziu a árvore ao sítio Marjoanel, em Cotia, a trinta e seis quilômetros de distância, não obstante os regulamentos impedirem que os veículos municipais pudessem sair do Município.

Somente Iva seria capaz de semelhante êxito!

A jabuticabeira lá está altaneira no sítio! Foi com a mais reverente unção que Iva se aproximou do seu lenho macio, afagando-o enternecida, osculando-a e bendizendo o esforço despendido.

Oxalá se cubra ela de flores e sazonados frutos na próxima estação, para alegria de todos nós.

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Periquitos O apartamento onde moro, no Edifício Saint Honoré, na Avenida Paulista, possui um amplo terraço de quinze metros em toda a sua extensão da frente. Dali se descortina esplêndida visão da cidade, com seus milhares de arranha-céus, mais o casario periférico a perder de vista, até os contrafortes da Serra da Cantareira.

Esse terraço é contornado por formosa mureta, onde brancos arabescos de cimento se casam com o travertino de tom amarelado das paredes.

Ao tempo em que frequentava as missas domingueiras da Capela do Hospital Matarazzo, na companhia de minha saudosa esposa, muitas ocasiões ficávamos admirando a imponência do Saint Honoré, com as muretas enfeitadas de tais arabescos, semelhantes aos caprichosos beijus sírios, de massa prensada.

Somente deixei de interessar-me por um dos apartamentos à venda, ao conhecer o litígio entre a construtora e | 107 |

seus condôminos, como de resto sucedia aos demais lançamentos imobiliários da Monções que, por justiça seja dito, dotou a cidade de belos conjuntos arquitetônicos.

Por coincidência, vim mais tarde a habitar esse edifício, em companhia de meu filho, e é com prazer que costumo dirigir-me ao terraço, nos momentos de folga, para entreter-me com a leitura, ou mesmo para entregar-me a elocubrações sobre os problemas da existência.

Num desses indefinidos devaneios, minha curiosidade se deteve ocasionalmente na contemplação da gaiola com periquitinhos australianos de meu neto, pendurada à parede. Quieto como me encontrava, foi-me dado apreciar interessante idílio do casal de avezinhas e acompanhar o desdobramento de suas carícias.

Para dizer a verdade, não acho belo esse pássaro ádvena, quando nossas matas estão povoadas dos mais ricos e formosos espécimes. Seu bico tem a curvatura dos bicos da coruja, quase tocando a plumagem, oferecendo um aspecto um tanto desgracioso. Contudo, são de grande mansidão e vivem aos pares, em eterno contubérnio, aparentemente felizes.

Este periquito de que falo tem o peito branco, com estrias cinzentas nas asas e na cauda, enquanto a fêmea é inteiramente amarela. Passam o dia juntinhos, em afagos recíprocos, o seu canto é discreto e suave.

Estive longo tempo a observá-los e me foi dado presenciar o que me pareceu ser um pequeno romance amoroso entre eles. | 108 |

Como de costume, suas cabecinhas se roçavam constantemente, seus bicos recurvos se acariciavam, como se estivessem beijando.

Não sei o que a fêmea teria feito, provocando a certa altura viva reação do companheiro, que lhe aplicou subitamente forte bicada na cabecinha.

Não entendo a linguajem dos pássaros, entretanto notei que ela se amuou, jogando-se para a outra extremidade do poleiro, ali se conservando ressentida.

Ao que me foi dado parecer, possivelmente teria se desenvolvido assim a situação e a linguagem de ambos.

O periquito, a olhar para ela: — Deixe de visagem, meu bem; venha para cá, não adianta fazer onda.

Ela: — Não vou não. Você me magoou.

— Ora, que bobagem! Não fiz nada de propósito, foi sem querer, peço desculpa.

A fêmea ficou ainda algum tempo indecisa, lançando de vez em quando um olhar desconfiado para ele. Parecia não se conformar e ouviu-o pipiar novamente.

— Venha, meu bem...

— Só se promete não bicar mais.

Ao que ele respondeu.

— Prometo!

Ao mesmo tempo espanejava as asinhas, avançando alguns passos até o meio do poleiro, a olhar para ela.

A companheira não mais resistiu, sacudiu as asas igualmente e caminhou em sua direção. | 109 |

Ei-los novamente unidos, recomeçando as carícias, esfregando os bicos recurvos, um na cara do outro, na maior efusão de felicidade, em busca do amor, a eterna mola da vida.

O que se passou depois não sei contar. Entraram ambos pelo orifício que conduz à casinha de madeira anexa à gaiola. Eu os perdi de vista.

O meu olhar voltou a divagar nos devaneios e na contemplação do casario ao longe, até encontrar o perfil da Serra da Cantareira, esmaecida pela distância.

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A vida

Nascemos, vivemos rolando aos trambolhões por este mundo sem fim e chegamos finalmente ao instante fatal da desintegração da matéria que forma o nosso corpo.

Afinal, o que é a vida?

Diversos dogmas religiosos procuram apresentá-la como uma obra prodigiosa do Criador de todas as coisas, insuflando uma alma na matéria. Li que grandes pensadores da Grécia, como Pitágoras, Aristóteles e Platão classificam estágios da evolução, perfilhando o Vitalismo, segundo o qual os fenômenos vitais são dirigidos por uma força distinta da alma pensante, a que denominamos um “noûs”.

A curiosidade humana não cessa de investigar as causas do aparecimento da vida, procurando através de milhares de pensadores conhecer a sua origem, quer animal, quer vegetal.

Pacientes pesquisas e estudos foram feitos desde o Animismo, que teve origem na observação da morte, até che| 111 |

gar à teoria da Filosofia Molecular, ou seja, a Doutrina Físico-Química.

Em relação à origem da vida — criacionismo ou geração espontânea — o que mais aguça a inteligência é a íntima relação entre a alma e a matéria.

A filosofia da Igreja condena a explicação da origem do homem pela evolução da matéria, dizendo que a alma é criada por Deus, individualmente para cada pessoa.

Imortal e não perecível, apenas abandonando o corpo pela morte deste.

Maeterlinck publicou interessante livro sobre a morte, estudando-a à luz das mais variadas concepções, ou seja, sob os principais ângulos em que ela se apresenta, e que são, segundo suas conclusões: o aniquilamento total, o dogma religioso da imortalidade da alma, a teoria espiritualista da reencarnação e, por fim, a sua integração no Grande Espírito Universal. Esta última, parece-me, a interpretação asiática do Nirvana.

O inteligente e ativo padre canadense Charbonneau, aplicado em nosso meio social na preservação da boa harmonia entre os casais jovens, baseado na moderna concepção da vida, cada vez mais tumultuada pela explosiva evolução da humanidade, abordou recentemente, de forma sintética, o assunto. Contou-me minha filha ter ele iniciado uma de suas magistrais palestras, ventilando o problema da vida, com estas simples palavras: “Vivemos todos emparedados entre duas realidades intangíveis, o nosso nascimento e a nossa morte”. Provavelmente terá desen| 112 |

volvido alguma tese ideológica em seguida, entretanto essas simples palavras bastam para explicar a perplexidade com que luta o homem para compreender a sua origem e os mistérios da Criação.

A verdade é que a nossa mente nada consegue desvendar além dessas duas paredes mencionadas na palestra do padre Charbonneau, e que continuaremos prisioneiros eternos dentro das suas acanhadas dimensões.

Conclusões científicas têm-nos demonstrado através dos tempos a possibilidade da vida latente, em que um vegetal pode ter morte aparente, o que ocorre igualmente com certos invertebrados e algas marinhas. Sementes previamente tratadas poderão reproduzir-se depois de longa hibernação.

Ainda, não há muito, li que cientistas afirmaram ser possível submeter o corpo humano a um processo de resfriamento, congelando-o em baixa temperatuta, e conservá-lo por tempo indeterminado, fazendo-o reviver após longo decurso de anos!

O que sabemos é que a vida se inicia pela fecundação, ou fusão, desses dois elementos — masculino e feminino — quer na espécie humana e animal, como no reino vegetal. É admirável, por exemplo, a reprodução de determinadas plantas aquáticas, em que o elemento masculino se conserva nas profundezas do lago, enquanto a fêmea vem à tona para aí viver e abrir a sua corola. Na época adequada, a planta fecundadora emprega um esforço inaudito para subir aos poucos e emergir, rompendo as próprias fibras | 113 |

que a alimentam, sobe ainda mais em violenta arrancada, até atingir a corola na superfície, para exaurir-se depois do conúbio nupcial.

No reino animal existem exemplos análogos, como o zangão que morre após fecundar a abelha-rainha, ao fim de exaustiva corrida pelo espaço, no afã de alcançá-la.

Depois de tudo isso, não chegamos à conclusão alguma, como também o belga Maeterlinck não conseguiu resposta às quatro hipóteses sobre a morte, deixando aos leitores a dedução que melhor lhe parecesse.

Donde, a ilação de cada um de nós nos apegarmos ao dogma mais consentâneo às nossas inspirações espirituais, como um refúgio e refrigério a nossa incapacidade de penetrar nos mistérios da origem da vida.

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A era eletrônica

Foi ainda no livro de Montanelli que encontrei esta frase que ele pôs na boca de Platão: “Agradeço a Deus ter nascido grego e não bárbaro, homem e não mulher, livre e não escravo. Mas lhe agradeço, sobretudo, ter nascido no século de Sócrates”.

Isto foi ao tempo de Alexandre, O Conquistador, muitos séculos antes da Era Cristã, quando a civilização de Atenas se impôs ao mundo obscurantista, pela força de seus grandes pensadores e de suas leis democráticas.

Parafraseando o grande filósofo, prefiro agradecer ao Altíssimo ter vindo ao mundo nos albores do século vinte — o século da tecnologia e da eletrônica, que proporcionaram ao gênero humano a era espacial.

Efetivamente, não falando na máquina a vapor de ­Fulton e nas maravilhosas experiências de Edison, tudo o mais é de recente descoberta. Custa a crer que o mundo | 115 |

tenha rolado bilhões de anos para nos proporcionar o conforto da vida moderna!

Somente agora nos é dado desfrutar as facilidades e as vantagens da luz elétrica, telefone, rádio, televisão, cinema, automóvel, aviação, fotografia, plásticos, vitaminas, antibióticos, computadores, quanta coisa mais!

Não estamos vendo, nos dias que correm, transplantes de órgãos vitais quando, não muito distante no tempo, ninguém se aventurava a abrir um corpo humano?

Conhecendo os imensos recursos que a ciência nos oferece, não mais podemos conceber a vida de nossos antepassados. Não mais poderíamos aceitar a volta ao mundo de há cem anos, quando nossos avós percorriam grandes distâncias montados em animais, ou então singravam os mares em barcos movidos pela brisa, alumiando suas casas com lampiões a óleo!

A civilização marchou de forma estonteante nestes últimos tempos. O Homem adquiriu uma dimensão ciclópica, procurando agora projetar-se no Cosmos.

Não é alucinante ver um projétil ser disparado em direção à Lua, a centenas de milhares de quilômetros, atingir após dois ou mais dias determinado ponto, previamente escolhido, no corpo celeste visado?

Conhecendo os movimentos de rotação e translação da Terra e a movimentação de seu satélite, a seu derredor, somente aparelhos ultra-aperfeiçoados poderiam determinar e corrigir possíveis desvios na trajetória da cápsula expeli| 116 |

da, até fazê-la pousar no ponto escolhido, quer seja o Mar da Serenidade ou o Mar das Tormentas!

O que mais é de pasmar foi a recente experiência da Apolo XII, em que dois astronautas desceram e caminharam na Lua, enquanto o módulo rodava ao redor de nosso satélite. Mais espantoso ainda foi a transmissão televisionada, que nos permitiu vê-los descer e caminhar em sua crosta, colhendo materiais para exames terrestres!

Então, chegamos à conclusão de nos encontrarmos ainda no limiar de descobertas mais avançadas e mais estonteantes, que possam tornar obsoletas as mais recentes invenções, possibilitando aos que nascerem daqui a dois mil anos, ou menos, julgarem este século bastante atrasado!

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...

Penso às vezes na grande dificuldade que devem experimentar certos colunistas de jornais para encontrar assunto para suas crônicas.

Têm eles seu lugarzinho reservado nos periódicos, onde costumam transmitir diariamente ao público ledor, suas impressões sobre o cotidiano. Quer estejam ou não dispostos a escrever, não podem eximir-se dessa obrigação, sob pena de interromper um ritmo estabelecido.

Dessa forma, terão de espremer o cérebro, até descobrir o que compor.

Entretanto, não parece ser essa a preocupação maior dos que escrevem porque, bem ou mal, conseguem apanhar o assunto numa simples travessia da cidade, observando o que se passa em derredor.

Os problemas humanos, nesta fase agitada da evolução da sociedade, apresentam facetas complexas, permitindo-nos extrair delas novas descobertas e novos ensinamen| 118 |

tos. O mais difícil, então, é expô-las em bom estilo, mesmo quando o nosso sentido se encontra obnubilado.

Chego então ao ponto que muitos consideram crucial: o de encontrar um título adequado às suas crônicas.

Luiz Martins, cronista do “Estado”, abordou este problema não há muito tempo e, se não me engano, foi David Nasser quem se referiu a ele. Contou que não tinha dificuldade em redigir e, bem acredito, que sua mente turbilhonante bem pudesse extravasar a qualquer instante suas incandescentes mensagens políticas ou sociais. Escrevia suas crônicas com bastante desembaraço, depois perdia um tempo enorme para encontrar para elas um título apropriado.

Ao fim de algum tempo, encontrou uma solução genial: acabado de escrever um artigo, jogava-o ao foca mais próximo, recomendando-lhe que pusesse em cima um título qualquer, porque o importante era o contexto da matéria.

Também eu encontro o mesmo tropeço. Ao terminar um pequeno romance no ano passado, precisei batizá-lo e perdi vários dias pensando no nome que devia dar-lhe.

Pensei em diversos e nenhum deles me agradava. Tanto podia ser “A Toalha Veneziana”, como “Conflito de Gerações”, “Isabel” ou “Velhas Castas”. Acabei tirando a sorte e saiu este último, “Velhas Castas” foi o nome dado.

Noto que é comum e acontece com a maioria dos escritores. Li um romance francês chamado “Os Sinos de Bicêtre”, contando as impressões de um doente em tratamento | 119 |

de espasmo cerebral e não encontrei no livro qualquer coisa que se parecesse com sinos ou badaladas.

Lembro-me disso a todo o instante, sempre que tenho de achar uma designação para os meus rascunhos. Ainda agora estou tentando batizar esta ligeira crônica e não sei que nome dar-lhe. Permitam-me, pois, colocar lá em cima estes três pontinhos que aqui estão: “... “.

E pontos finais!

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Palavrões

Anda grande celeuma nos jornais acerca do uso de palavrões nos programas teatrais e nos romances modernos.

Muitos escritores passaram a abusar dos palavrões em seus livros e invadem nossos lares, descrevendo cenas de condenável amoralismo. É moderno — justificam alguns — e não deve causar estranheza o abuso de expressões verbais nos palcos, acompanhadas muitas vezes de gestos pouco edificantes, para agradar aquela parte mais vulgar da clientela. Elas sempre existiram no teatro falado, se bem que de forma mais ou menos velada.

Ultimamente essa tendência vem assumindo um aspecto mais deslavado, forçando a censura a intervir para atenuá-la. Haja vista a pressão da classe teatral contra a censura que condenou recentemente certas peças, cujas reclamações se avolumaram nos salões do Ministério da | 121 |

Educação e Cultura, levando o ministro a permiti-las, com leves modificações.

Não sou, a rigor, moralista ou sequer puritano. Contudo, é com tristeza e repúdio que vejo pessoas respeitáveis se deliciarem com piadas de mau gosto, proferidas por determinados artistas. Não é menos lastimável a propensão de muita gente de cultura e de bom nível mental a apreciar os livros de leituras licenciosas, de baixo calão!

Não tolero, igualmente, o uso de gíria ou jargão. Se as palavras servem para espelhar a alma de quem as pronuncia, por que não as usarmos corretamente, vestindo com elas a pureza das nossas ideias?

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Cores Vamos falar de cores?

Uma das coisas que mais encantam a vida é podermos observar a mais extensa variedade de colorido a nosso derredor, quer seja na rua, vendo a diversidade de tons nos vestidos das mulheres que passam, nesta primavera luminosa, quer seja nas matas e nos jardins, com igualmente uma gama de cores das plantas e das flores, das folhas e das borboletas. É um deleite e uma graça sentirmos a beleza dos variegados matizes e é com tristeza que penso naqueles privados da vista. Não somente nos cegos, senão também nos que veem sem enxergar.

Gosto do amarelo, gosto do azul, do lilás, do verde, gosto de todas as outras cores. Mesmo do preto, porque, como diz o ditado, que seria do belo se não existisse o feio?

Como seria horrível o mundo, se tivesse uma só cor! É na variedade de nuanças que reside o encanto. Na sua | 123 |

alquimia, Deus nos concedeu essa maravilha que são as diferentes tonalidades que enchem a nossa vista e a nossa alma. Não deixa de ser um dom precioso podermos notar as suas variações.

Muitos acharão estranho ouvir-me falar de cores, conhecendo minha dificuldade em identificá-las corretamente. Sabem que sou daltônico e que os daltônicos são incapazes de discernir os diversos tons do vermelho, do verde e do marrom. Somente vim a descobrir essa anomalia ao fazer exame médico para obter minha carta de motorista.

Deram-me quinze lápis de cor para riscar um papel e mencioná-las. Errei uma terça parte. Repeti mais vezes o exercício, errando sempre. Obviamente, a carta foi-me negada.

Nesse exame, o verde mais clarinho, semelhante ao colorido das folhinhas vegetais tenras, parecia-me amarelo.

Não era amarelo? Para mim, isso não tinha a menor importância. O essencial é que o fato não me levava a apreciá-las menos, já que se tratava de uma questão convencional. Por esse motivo, não as via perder a beleza diante dos meus olhos.

Reconheço minha deficiência na classificação dos tons de colorido. Nas minhas funções de comprador, ao escolher os motivos para o papel de Natal, valho-me das minhas prestimosas funcionárias a me orientarem com seu bom gosto.

Malgrado o daltonismo que me impede caracterizar determinadas cores, não deixo de sentir grande deslum| 124 |

bramento ao contemplar o pôr do sol nas belas tardes de verão, vendo-o deslizar, majestoso, na alfombra de nuvens radiosas a se engalanarem para sua gloriosa descida, enquanto seus raios luminosos matizam os flocos dispersos ao alto, no Ocidente, oferecendo-nos os mais variados cambiantes, desde o rosa-pálido, o lilás, o cinza, o amarelo, até o rubro intenso!

No centro dessa esplêndida e estupenda moldura de luzes, engalanado e soberbo, o astro-rei vai se deitando mansamente no seu maravilhoso leito de nuvens irizadas, de cores fascinantes.

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Mobral Vendo e ouvindo na televisão a palavra de nosso Presidente Médici, ao criar o Ato que criou o Mobral, Movimento Brasileiro de Alfabetização, não posso deixar de tecer algumas considerações sobre certas incongruências que se verificam neste País.

O Mobral tem por objetivo diminuir a incidência do analfabetismo entre nós. Intensa campanha vai ser promovida nesse sentido e forças poderosas serão movimentadas para ensinar nossos caiçaras a ler.

Por índole e por observações passadas, sou incrédulo quanto ao resultado dessa campanha. Em minha mocidade acompanhei o movimento então desencadeado na imprensa e na juventude das Escolas Superiores, em prol da alfabetização dos adultos. Chiquinha Rodrigues, professora de minhas relações, atirou-se de corpo e alma nessa campanha, fundando e dirigindo a Liga Paulista de Combate ao Analfabetismo, a que deu o melhor de sua vida. | 126 |

Embora tenha conseguido alguns resultados, a seara não compensou o número de crianças em idade escolar que deixou de frequentar os estudos. Com a morte de Chiquinha Rodrigues o movimento feneceu e a Liga caiu no esquecimento e o problema veio se agravando ainda mais.

Há coisas que não posso compreender. De quando em quando surge a luta pelo ensino aos adultos, quando eles já se encontram empedernidos e praticamente impermeáveis à leitura, por motivos óbvios.

Minha nora Iva, que é professora, porfiou dias seguidos no afã de alfabetizar uma sua empregada, sem o menor proveito. Dizia a doméstica: — Qual! Já estou com a cabeça dura e não entra mais nada!

O absurdo maior é que, enquanto se procura ensinar adultos, cresce o número de crianças em idade escolar que não encontra vagas nas escolas! Além daquelas crianças, cujos pais ignorantes, não tratam de as fazer aprender!

O certo seria forçar os poderes públicos a cuidarem melhor desse assunto, criando leis adequadas de cominações aos Estados claudicantes quanto ao ensino.

Santo Deus! Se não permitirmos mais que a infância continue crescendo iletrada, dentro de poucos anos não será mais preciso alfabetizar adultos.

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Maria Helena Fui ontem a Campinas para me despedir de Maria Helena, filha de minha prima Candoca, que se foi deste mundo para o Além.

Parenta de particular estima e veneração, eu a considerava como sobrinha. Dotada de primorosa educação e sentimento, era o encanto de toda a família. Maria Helena possuía especial inclinação para a música. Emérita pianista, dedicava-se ao ensino da bela arte de Schubert e Chopin.

Acometida ultimamente de insidiosa e pertinaz moléstia, pressentindo um possível e próximo desenlace, parece ter recebido com grande resignação a perspectiva da limitação da sua vida. Preparou-se para o evento.

Foi assim que entrou para um consórcio funerário, segundo me contaram, escolhendo e dirigindo as medidas cabíveis para que tudo estivesse facilitado, no final.

Exímia concertista, dedicou os meses restantes a executar e gravar as partituras de sua predileção, deixando | 128 |

para a posteridade uma lembrança de sua presença neste mundo.

Assim viverá ela, eternamente, na nossa saudade.

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Comparações Penso que foi Confúcio quem disse que os fatos apresentam habitualmente três versões diferentes: uma favorável, outra contrária e ainda uma terceira, provavelmente a verdadeira.

Baseados neste axioma, os juízes costumam sopesar os prós e os contras, antes de conceder o veredito final nas questões a eles subordinadas porque nem sempre a primeira versão é a realística.

Na vida prática somos constantemente levados a constatar os fundamentos da afirmação de Confúcio, ao considerarmos os equívocos ou mesmo as distorções de certos argumentos. Nunca devemos julgar uma questão controvertida sem primeiro examinar a parte oponente.

Assim são, também, as versões que ouvimos sobre determinados acontecimentos.

Minha dileta filha contou-nos o seguinte fato, ocorrido com uma sua conhecida. | 130 |

Ao penetrar na igreja para a cerimônia nupcial, uma de suas conhecidas empreendeu a marcha para o altar, de fronte baixa, a passos um tanto apressados, ao contrário do que manda o bom comportamento em casos tais.

Os comentários, entre algumas amigas, foram: — Você viu como ela entrou na igreja? Tinha a cabeça baixa, uma cara de meter medo!

— É verdade! Parecia uma vaca brava investindo para o altar!

Agora o comentário de sua mãe, católica fervorosa e praticante, a uma amiga: — Você notou como minha filha se comportou? Dirigiu-se para o altar de cabeça baixa, humilde e consciente do ato que estava praticando. Ungida por um sentimento de profunda austeridade. O seu véu parecia flutuar no ar, numa visão celestial de beleza e encantamento.

Depois de consumado o ato religioso, veio a explicação da noiva a suas irmãs.

— Vocês nem queiram calcular o suplício que foi para mim a caminhada até o altar! Ao entrar na igreja, senti que o meu véu estava mal preso e prestes a escapar. Pensando no ridículo, se isso acontecesse, fui forçada a baixar a cabeça para ele não cair e a caminhar depressa para me livrar do perigo!

E aí está, um exemplo de como as coisas são diversamente interpretadas.

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Loliti Aconteceu numa tarde chuvosa e fria de julho, depois de um dia de exaustivo labor. Não tinha ainda anoitecido, meu filho Heitor passou por sua casa em reforma, no Jardim Paulista, quando o telefone tocou.

Era da Construtora Guarantã onde seu irmão Hélio ocupava um dos elevados postos de direção. Queriam prevenir alguém a ele chegado — sabendo-o ausente — de terem recebido aviso de um funcionário de seu sítio, dizendo que um de seus animais estava em perigo de vida, necessitando de urgente socorro.

Perplexo, Heitor desligou o aparelho. Que fazer?

Sabia que o irmão dedicava carinho e extremos cuidados aos seus cavalos, para isso tendo comprado aquele sítio, em Cotia, ali instalando o seu “Haras Marjoanel”, para a criação de animais puro sangue.

O telefonema era a respeito de uma égua pertencente a Aluízio, muito nosso amigo. Loliti levantara alguns prê| 132 |

mios animadores no prado de corridas paulistano, entrou depois em declínio. Mudando-se para o Rio de Janeiro, Aluízio pediu ao Hélio que dela cuidasse, em regime societário, achando-se ela agora próxima de dar cria.

Preocupado pela inesperada notícia, pois precisamente nesse dia Hélio havia viajado com a família para Campos do Jordão, no gozo de férias, Heitor deu um balanço à situação.

Não faltava mais nada! Logo naquela tarde úmida e borrascosa, de intenso frio, estando todos ausentes!

Heitor não tinha o mínimo conhecimento sobre cavalos de corrida. Jantou às pressas e procurou seu cunhado Nelson Braga. Era este um aficionado das corridas de cavalos e prontificou-se a procurar um prático em veterinária, seu conhecido, que morava em dependências do próprio Jockey Clube.

Heitor, acompanhado desse prático em enfermagem veterinária, seguiu para o sítio de Cotia, ali chegando por volta da meia noite. Ajudados pelos empregados da propriedade, foram até o local onde jazia deitada Loliti, demonstrando evidentes sinais de sofrimento, com todo o peso da enorme barriga sobre uma das patas.

Foi um trabalho exaustivo para colocá-la de pé e conduzi-la à cocheira do estábulo.

Aliviada das dores que a acometiam, Loliti olhava agora agradecida para Heitor, derramando lágrimas sentidas.

O que se seguiu faz lembrar um conto de Balzac — “Um amor no deserto” — que descreve os amores de | 133 |

uma leoa por um caçador perdido, que se abrigou numa toca para passar a noite. Ali apareceu o animal com um ­ferimento, obstruindo a saída. Passado o susto inicial, resolveu tratar o ferimento e quem diz que depois a leoa o deixava partir? A cada vez em que espreitava uma ocasião propícia para escapar, lá estava ela a perturbar-lhe os movimentos, com demonstrações de ternura. Foi, afinal, salvo pela chegada de companheiros.

Loliti expressava seu reconhecimento ao Heitor, lambendo-o demoradamente, desde a cintura até a cabeça, lambuzando-lhe a cara carinhosamente com a língua, a baba a escorrer.

Heitor pilheriou jocosamente: — Bonito! Arranjei nova paixão! O amor de Loliti!

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Lassie Quando Hélio morava na Rua Vahia de Abreu, seus filhinhos viviam pedindo um cãozinho para alegrá-los.

Uma cadela tinha dado cria nas vizinhanças. Restando somente fêmeas, uma cadelinha foi apanhada.

Deram-lhe o nome de Lassie, influenciados por uma novela de televisão.

Hélio mudou-se depois para a Rua São Luiz, em Santo Amaro. O tempo foi passando, as crianças crescendo e, com elas, cresceu também Lassie, tornando-se uma respeitável senhora cadela, linda e amorosa. Mestiça, de mãe comum e um belo cão policial, deste recebeu os principais atributos característicos de sua raça.

Olhar vivo e inteligente, Lassie tornou-se o encanto da casa, que sabia defender com grande responsabilidade.

Numa das férias de verão em que a família se deslocou para o Guarujá, Hélio incumbiu-se de olhar por ela, providenciando água e comida, antes de sair para o escritório. | 135 |

Uma manhã Lassie adoeceu e Hélio resolveu levá-la para nossa casa, no Jardim Paulista. Enfiou-a no automóvel e vinha vindo pela Estrada de Santo Amaro quando a certa altura ela sentiu-se mal, vomitando abundantemente, enchendo o banco de trás de detritos e vômitos. Vendo a imundície e o cheiro fétido a exalar, num impulso repentino de impaciência — o que não é de seu temperamento — Hélio abriu a porta e enxotou-a, largando Lassie no meio da estrada, em um ponto de raras construções. Pisou no acelerador e viu pelo espelho retrovisor a cadela a correr desesperadamente atrás do carro, desistindo por fim de acompanhá-lo, dada a impossibilidade de o alcançar.

Hélio passou a seguir em um posto de lavagem, mandando limpar o veículo.

Dirigiu-se ao escritório para entregar-se aos afazeres cotidianos. No período da tarde desabou sobre a cidade tremendo temporal e Hélio passou a sentir terrível sensação de remorso, ao pensar na cadela abandonada no caminho.

Que estaria acontecendo?

Deixou o serviço e ei-lo palmilhando a estrada em sentido inverso, até o ponto em que a tinha deixado.

Lassie, tendo dificuldade de acompanhar o automóvel, retornara exatamente ao sítio onde havia descido e ali ficou deitada à espera, o dia todo, na esperança de que viessem buscá-la. Estava encharcada e imunda. Algumas pessoas a rodeavam, condoídas, tentando inutilmente arrancá-la dali.

Mal pressentiu a chegada do dono, chamando-a e abrindo a porta do carro, correu lépida para ele e atirou-se de um salto para dentro da parte traseira. | 136 |

Pelo caminho de volta era bem de ver a alegria de Lassie!

De pé, colocando as patas sobre o banco dianteiro, lambia as orelhas e o cabelo de Hélio, em enternecida demonstração de agradecimento.

Foi comovido que ele chegou a nossa casa, dizendo: — Mamãe, sei que você não gosta de animais domésticos por não dispor aqui de espaço suficiente, mas vai ter paciência e tomar conta dela durante alguns dias, até o pessoal regressar.

Lavou-a cuidadosamente com o esguicho, entregando-a limpinha.

Mais tarde, ao se mudarem para um apartamento na Avenida Paulista, foi necessário desfazer-se de Lassie, com enorme pena de todos. Entregou-a ao gerente do depósito de materiais de construção de sua firma, pagando uma pensão e recomendando para que cuidasse dela com carinho.

Então, já estava velha e alquebrada.

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Juventina

Alice fechou as venezianas do quarto, correu as cortinas e estirou-se no leito, colocando leve compressa molhada sobre a fronte, a fim de minorar a dor de cabeça, como se ela estivesse comprimida por duras tenazes.

Seu marido telefonara momentos antes, avisando-a para não o esperar, por ter de almoçar na cidade.

Estavam se tornando comuns essas ausências, alegando a necessidade de convidar clientes para comerem juntos, dada sua condição de corretor, precisando promover relações públicas, que eram a base de seus negócios.

Deitada, pensou com desalento nessas constantes ausências do marido, considerando-se talvez culpada por esse procedimento. Casada havia seis anos, a natureza a privara da felicidade de ter filhos que o pudessem prender ao lar. Sua vida se resumia a breves sortidas noturnas em sua companhia, ou a passeios em casas de parentes. | 138 |

O telefone tocou a sua cabeceira, esticou o braço para atender.

— Alô...

— É Alice? Como vai? Aqui é a Emília Santos.

— Vou bem, prazer em ouvi-la. E a senhora... passeando?

— Escute: trouxe uma garotinha para você.

Conhecera dona Emília na residência de uma sua tia.

Morava no Interior, na cidade de Rio Claro, simpatizara com ela e confidenciou-lhe sua preocupação acerca da falta de filhos e o vazio de sua vida. Dona Emília aconselhou-a a adotar uma criança, porque uma casa sem ela era um lar sem sol e sem alegria. Julgou sensata a ideia, poderia aceitá-la, se aparecesse uma menina nas condições desejadas.

Diante da realidade, porém, sentiu-se alarmada.

— Quê?!

— Trouxe uma menina.

— Mas não posso decidir, assim de repente, sem primeiro consultar meu marido!

— Pode sim, Alice. Esta garotinha caiu do céu, não é fácil encontrar outra. É uma menina boazinha, que acaba de perder a mãe, não tem quem cuide dela. Tem quatro anos, tem também um irmãozinho de dois, este fica comigo até achar quem possa tomar conta.

— Francamente, estou indecisa, Orlando pode não concordar... preciso falar com ele. Darei a resposta até a tarde.

— Não posso esperar, Alice, vou embarcar dentro de duas horas, não deixe de vir imediatamente. Você não tem | 139 |

o que pensar, pegue a menina e se não der certo levo ela de volta, qualquer outro dia.

Desligou o fone e Alice saltou da cama, terrivelmente excitada. Abriu a janela e nem mais lembrou da dor de cabeça, já havia passado. Vestiu-se como um autômato e correu para a casa da tia, ao encontro de dona Emília.

Esta apresentou-lhe a pequerrucha, dizendo: — Esta é a nova mãezinha, meu bem, que vai levar você.

Era magrinha e humilde. Pela cor pálida e pelas vestes simples, não era difícil perceber a penúria do trato. ­Possuía, contudo, um olhar meigo e simpático, demonstrando certa timidez.

Alice levou-a à cidade, comprou roupinhas melhores para ela, mandou aparar seus cabelos e conduziu-a à casa.

Somente então telefonou ao marido, contando o acontecido.

A reação de Orlando não foi das melhores. Disse que a esposa tinha perdido o juízo, era uma loucura criar filhos alheios, que isso traria complicações jurídicas e depois de criados não saberiam reconhecer.

Não houve argumentos que o convencessem, teriam de devolvê-la. Ele simplesmente não se conformava e fechou a questão: teriam de recambiar a menina na primeira oportunidade.

Foi quase em prantos que à noite, quando o marido chegou para o jantar, Alice tentou explicar que não havia nenhum compromisso, se não se acostumassem com ela.

Ele não se convencia e se descartou de qualquer responsabilidade. | 140 |

Os dias foram passando e Orlando não tomou conhecimento da presença da menina. Não lhe dirigia a palavra, nem um afago, implicou até com seu nome: Juventina.

Alice considerou que o marido estivesse ressentido por ter tomado a menina a seus cuidados sem o consultar e esperou que o tempo viesse acalmar a tensão.

Na sua sensibilidade infantil, Tina percebeu a animosidade de Orlando e disse à mãe: — Papai não gosta da Tina?

— Gosta sim, benzinho.

— Ele não fala comigo...

— Papai é assim mesmo... mas ele gosta de você...

Um novo problema surgiu em seguida: a garotinha clamava quase a todo instante pelo irmãozinho, perguntando em que dia iria chegar. Ao comprar para ela um brinquedinho, pediu para levar também um caminhãozinho para guardar para o Armandinho, o Dinho, como ela chamava.

Daí por diante, ao comprar qualquer coisa para ela, Alice tinha de adquirir algo para o irmão.

A insistência com que perguntava pelo Dinho, levou Alice a consultar o Padre José, de sua igreja. O pároco relembrou o conselho do Evangelho: “não devemos separar aquilo que Deus juntou”.

Preocupada com a situação, falou ao marido. Sua resistência foi imediata: — Eu bem que preveni, eu já estava prevendo e você não me deu razão! Agora, aguente! | 141 |

O marido continuava arredio, sem tomar conhecimento da garotinha, cada vez menos presente no lar e Alice chegou à melancólica conclusão de que ela estava a interpor-se como uma cunha em sua harmonia conjugal.

As coisas caminharam assim, até uma noite fria de inverno, quando Orlando voltou para casa, alta madrugada. Ao passar defronte o quarto da Tina, lançou o olhar para dentro e notou que as cobertas tinham rolado para o chão, devido provavelmente a um movimento brusco da menina, deixando-a a tiritar. Pela primeira vez teve um gesto de boa vontade para com ela e abaixou-se, para apanhar o cobertor, que procurou aconchegar-lhe até o rostinho.

Nesse instante, Tina entreabriu os olhinhos, sonolenta, esticando o bracinho magro, envolvendo com ele o pescoço de Orlando.

— Papai...

Caiu novamente em profundo sono, o bracinho o envolvendo. Ele sentou-se no tapete junto à cama, com pena de despertá-la. Sentia na pele o calor de seu bracinho.

Atentou para o rosto da garotinha, onde começavam a transparecer, em sua tez rosada, os primeiros sinais do bom tratamento recebido. Observou também o arfar ritmado de sua respiração. Sentiu-se enternecido diante da visão angelical da criança dormindo e ali permaneceu longo tempo.

Os seus olhos caíram distraidamente sobre o cesto que a esposa colocara a um canto, perto da caminha, onde | 142 |

Tina ia depositando os presentes que pedia para comprar para o irmãozinho. Entre os badulaques de toda espécie, sobressaía o pequenino caminhão.

Por fim, afastou com o maior cuidado o bracinho da menina, para não despertá-la, e se retirou.

No dia seguinte, ao vê-lo entrar, Tina atirou-se em seus braços, alvoroçada.

— Papai...

Dias depois, Alice a ele contou ter dona Emília telefonado para saber da garotinha e o que tinham resolvido.

Estava disposta a levá-la de volta, porque o irmãozinho clamava por ela a todo instante.

Foi com o coração oprimido que falou a Orlando: — Que vamos fazer, meu marido? Quem vai agora decidir é você. Não posso consentir que a presença dessa menina venha a afetar a nossa felicidade e complicar a nossa vida, apesar de... de... eu já estar bastante acostumada a ela...

— Também não podemos atrapalhar a vida dessas crianças. O melhor é deixar que elas se juntem novamente.

— Vamos então devolvê-la? — perguntou agoniada.

— Não. Vamos pegar também o menino, respondeu o marido, com um sorriso zombeteiro.

Foi aos soluços que Alice se atirou nos braços de Orlando, beijando-o.

— Graças a Deus! Eu agradeço, meu querido...

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Ninfa

Aníbal Leal nasceu em uma cidadezinha de nome Canindé, próxima de Fortaleza, e chegou a São Paulo aos vinte anos, pelas mãos de um seu tio que aqui vivia. Quando o tio recebeu o sobrinho, já espigado e desenvolto, achou que o rapaz vegetava no burgo cearense e que melhores perspectivas podiam abrir-se para ele na capital paulistana.

Entrou para uma casa importadora de casemiras, pela mão de seu tio, e ali tratou de fazer carreira. De hábitos morigerados e econômico, foi amealhando pequenas economias que eram aumentadas constantemente por empréstimos feitos aos colegas menos avisados, que prometiam devolvê-los, acrescidos, ao receberem os ordenados no fim do mês.

Contava vinte e seis anos quando o levaram a uma reunião na casa de Dona Arminda, uma viúva que vivia de receber pensionistas. Tinha ela uma filha e dois rapazes, | 144 |

todos empregados no comércio, além de meia dúzia de moços e moças, que ali moravam.

Contando com tais elementos, era natural que nessa pensão se promovessem animados serões familiares. Dançava-se, serviam doces e café, havia folguedos e, não raro, recitativos.

Aníbal tinha um porte algo imponente, austero. Alto, maxilar saliente, denotando firme determinação, o queixo levemente fendido por pequena incisura, que lhe dava certa graça. Era, contudo, dotado de mediana cultura, não raro enxertando termos inadequados em seu falar, com sotaque acentuadamente nordestino.

Aníbal gostou da reunião e voltou mais vezes. Voltou e acabou um dia por se mudar para a pensão de Dona Arminda, onde alugou um quarto só para ele.

Farejando o bom partido que representava, algumas jovens passaram a envolvê-lo. Aníbal mostrou-se arredio e desconfiado, esquivando-se de qualquer compromisso.

Uma manhã em que tomavam café a sós, Aníbal casualmente falou a Dona Arminda sobre uma dessas jovens, ela aproveitou para o interpelar: — Reparei que ela anda arrastando a asa para o seu lado ... desculpe lhe perguntar: por que não casa?

A resposta foi pronta e enfática: — Eu, casar, Dona Arminda?

— Sim senhor, por que não? Não vai dizer que pretende ficar solteiro toda a vida!

— Pois vou dizer uma coisa para a senhora, Dona Arminda. Sou um rapaz lá do interior do meu Ceará, criado | 145 |

nos costumes da terra e não vou casar com moça de cidade grande, não!

— Mas por quê, Aníbal?

— A senhora não vê que as moças daqui gostam de luxo, vestidos decotados, meias de seda, sapatos de verniz?

Isto não é para mim não, Dona Arminda. No dia que resolver casar, vou procurar mulher da minha terra, terra de gente simples, de gente sem luxo.

Lembrou-se então da namorada que tinha deixado em Canindé, prometendo que voltaria um dia, quando estivesse em condições de casar. Sua atenção foi ativada pela presença do tio, de regresso de nova viagem a sua cidade, trazendo notícias da família. Perguntou por Maria José e o tio respondeu que ainda estava solteira.

Na luta pela sobrevivência, havia relegado sua promessa a segundo plano. Dizendo-lhe o tio que a moça era de qualidade, escreveu a sua mãe, pedindo notícias dela. Em resposta veio uma carta trazendo o retrato de Maria José, com boas referências da jovem. Conservava ainda os mesmos traços de antigamente e uma amorosa correspondência epistolar estabeleceu-se logo entre ambos.

Aníbal resolveu desposá-la e marcou data para apa­ recer no Canindé. Aconteceu, porém, que um dos sócios da casa viajou para a Europa e ele foi enviado para a zona da Estrada de Ferro Paulista, em substituição a um viajante-vendedor, que tinha se demitido. Não podendo cumprir o prometido, resolveu enviar procuração para o enlace, combinando esperá-la no Rio de Janeiro, ponto terminal | 146 |

dos vapores ita, já que não havia outro meio de condução, pois, naquele tempo não havia ainda os modernos aviões de passageiros.

Essa medida tinha ainda duas vantagens: não o obrigava a afastar-se do serviço e evitava os enormes gastos com as bodas.

Por esta altura casou-se a filha de Dona Arminda, um dos filhos melhorou de situação e ela resolveu não aceitar mais pensionistas, conservando apenas Aníbal — que tomou um quarto e uma saleta só para ele — e mais um casal, um guarda-livros de nome Eugênio e sua mulher Dona Finoca.

No dia aprazado Aníbal tocou-se para o Rio, aguardando no Cais Pharoux a atracação do ita em que vinha a esposa. Ao recebê-la tomou-lhe ambas as mãos, examinando-a com ar brejeiro e meio sem graça, procurando esconder o íntimo desaponto que sentia.

Maria José, que esperava uma acolhida exuberante, experimentou igualmente uma impressão desalentadora, contudo não o deixou perceber.

Aconteceu simplesmente o seguinte: trabalhando num meio evoluído, Aníbal passou a usar roupas finas, acompanhando a boa vida dos paulistanos, enquanto Maria José ostentava a simplicidade dos hábitos de sua longínqua terra. Vestido bastante simples, um pouco fora de moda, ela própria sentiu-se acanhada diante do porte majestoso do rapaz.

Perguntou-lhe: | 147 |

— Então, o que acha da sua matutinha do Canindé?

— Ora, meu bem, você está aquilo que eu gosto...

Maria José sentiu que as suas palavras não expressavam a verdade, contudo, moça sensível e inteligente, calou-se. Nas cartas que ele escrevia, dizia apreciar uma esposa modesta e simples, sem arroubos de ostentação e, no fim, daria tudo certo.

Depois de dois dias no Rio vieram para São Paulo. Pretextando a necessidade de retomar o serviço, partiu para o interior, deixando-a na pensão de Dona Arminda, voltando somente depois de duas semanas. Demorou-se quatro dias na cidade e partiu novamente.

Outras duas semanas ausente. A esposa procurou aceitar pacientemente suas explicações, achando que as obrigações estavam em primeiro lugar.

Um belo dia não se conteve e fez-lhe compreender a sua solidão e abandono, ao que ele retrucou: — Eu entendo, meu bem. Mas o que quer que eu faça?

Os patrões ordenam e tenho de cumprir.

— No fim acabo mofando aqui, sozinha.

— Sim, não é agradável estar sozinha... talvez eu pudesse deixar de viajar... por agora temos que nos conformar.

— Até quando, meu Deus?

Aníbal encarou-a com severidade, deixando-a momentaneamente apreensiva. Mas ele desarmou-se, ao pronunciar: — Você se aborrece, porque quer. Há muitas maneiras de encher o tempo.

— Que maneiras? | 148 |

— Ora, que pergunta! As mulheres têm sempre o que fazer...

— Metida o dia inteiro aqui no quarto, sem ter ninguém com quem conversar?

Mais parecia um gemido, que uma queixa.

Aníbal passava a escova sobre os cabelos, defronte do espelho, e deixou escapulir: — Já que se aborrece aqui na pensão, por que não tenta encontrar um emprego?

Maria José aproximou-se por trás dele, tomando-lhe o braço timidamente.

— Emprego?

— Sim, uma colocação decente em qualquer estabelecimento, por que não? Pois não vê que aqui todo mundo se mexe? A filha de Dona Arminda trabalha, Dona Finoca é professora, não há desonra em trabalhar.

Enquanto falava observava, através do espelho, a face lívida da esposa.

Ela respondeu, timidamente.

— Você acha que eu posso?

— Por que não, meu bem? Você tem jeito, tem capacidade e qualquer trabalho de escritório não é difícil.

Maria José sentiu as pernas enfraquecerem e sentou-se amargurada à borda da cama.

Aníbal procurou desfazer a má impressão causada e levou-a nessa noite ao cinema.

Na manhã seguinte embarcou para as suas viagens de rotina. | 149 |

*** Dona Finoca bateu de leve na porta de Maria José e deu volta ao trinco, como costumava. Tinha imensa pena da jovem, praticamente abandonada pelo marido e longe da família. Foi encontrá-la debruçada na mesinha da pentea­ deira, com a caneta de escrever entre os dedos e o olhar perdido, como em busca de inspiração.

Apreciava conversar com ela, quando não tinha o que fazer.

— Escrevendo algum romance, para matar o tempo?

— Por que pensou nisso?

— Não sei bem... mas acho você um tanto intelectual, estou enganada?

— É engraçado! Sabe que gosto de escrever, de vez em quando? Por que acha que sou intelectual?

— Pela sua prosa, você entende de tudo.

— É fácil explicar. Nasci e cresci numa cidade pequena, onde a única distração era ler, ler e ler, quando não mexericava. Li tudo quanto me caiu às mãos. Mas não é romance não, o que estou escrevendo. É uma carta a minha mãe, e foi bom você aparecer, para lhe pedir um conselho.

E sua voz se alterou ligeiramente.

— Estou a seu dispor, algum problema?

— Sim, um problema muito importante. Vou confessar francamente e quero ouvir a palavra de alguém experiente, porque se trata da minha felicidade...

Finoca arrastou a cadeira para junto dela, curiosa. | 150 |

— Se puder ajudar...

Maria José suspirou.

— Você está a par da minha vida, a vida de uma mulher casada e sempre longe do marido, casada com p ­ rocuração, sem a preparação psicológica de um noivado... enfim, até agora não encontrei o caminho do coração dele, não sei se me entende... queria contar a minha mãe o que se passa e não sei se devo, poderá desgostar a pobre velhinha. Tenho a impressão de que há alguma coisa errada neste meu casamento...

Finoca olhou para ela e respondeu, num impulso.

— Há, sim!

— Aconselhe-me, por favor.

— Penso que a solução depende de você, mas não será fácil. Peço que não se magoe se eu disser o que sinto. Você terá de fazer um esforço para conquistar o seu marido.

— Tenho feito o que posso, aceito submissa a sua autoridade, acato a sua opinião, mas agora chegou a um ponto que me deixa desorientada. Imagine que me sugeriu de aceitar uma colocação para encher o meu tempo!

Finoca encarou a amiga, sem responder. Sua mente entrou num processo de rápido raciocínio. Maria José insistiu.

— Que acha dessa ideia?

Finoca respondeu: — Quanto a emprego, não vejo dificuldade, se estiver realmente interessada. Meu marido dispõe de boas relações e não será difícil encontrar um emprego. Mas não é o mais importante. Ouça aqui, minha filha — tomou-lhe a | 151 |

mão ente as suas — para conquistar o seu marido terá de passar por uma reforma, procurar um instituto de beleza, comprar vestidos novos e se arrumar.

— Com esta cara?

Finoca aproximou-se mais e desatou os cabelos presos à nuca, soltando algumas mechas sobre a fronte da jovem e pondo-se a examinar-lhe o rosto.

— Terá de aparar esse cabelo e fazer um penteado moderno, arquear as sobrancelhas, elas mais parecem uma escova. E polir as unhas, fazer maquilagem. Saiba que não é feia, tem feições normais e uns olhos cor de esmeralda que não são de jogar fora!

— Será que isto vai dar certo? Aníbal dizia em suas cartas que detesta moças empetecadas.

— Você precisa jogar e arriscar. Do jeito que está é que não pode continuar.

Maria José respondeu apreensiva.

— Tenho medo, Finoca. E se ele não gostar?

— E que é que tem a perder?

— Tenho medo de estragar tudo, porque... porque... a verdade é que estou perdidamente apaixonada por meu marido. Nem posso pensar em um desastre... ele diz sempre que não gosta de moças que se pintam...

— Conversa, sua bobinha. Um bacanão daquele, que vive apreciado pelas mulheres... mas faça como achar melhor.

Maria José não conseguiu dormir, depois disso, excitada pelos conselhos da amiga. Talvez ela estivesse com a razão e estava disposta a tudo para atrair Aníbal. | 152 |

Finoca falou com o marido e este informou que seria possível arranjar uma colocação para Maria José, num banco onde sabia haver vaga.

A jovem deixou-se conduzir ao cabelereiro e depois à modista. Isso não foi difícil de fazer, pois dispunha de pequeno dote dado por seu pai, ao casar. Ao se sentir transfigurada, ela própria não acreditava na integral transformação operada e não se cansava de ficar longo tempo defronte ao espelho, vendo sua imagem. Com a mudança, seu espírito ganhou uma nova dimensão e partiu encorajada para assumir o emprego.

Quando seu marido regressou numa tarde, estranhou não encontrá-la, interrogando Dona Arminda pela esposa.

— Ela ainda não voltou do banco.

— Que banco?

— Não sabia que ela está trabalhando? Deve chegar dentro de meia hora.

Ao vê-la entrar, Aníbal quase caiu das nuvens. A caipirinha de Canindé se transformara numa bela mulher, como crisálida. O impacto deixou-o surpreso e ao mesmo tempo, furioso.

— Que é isso? Você perdeu o juízo? Que história é esta de estar trabalhando fora?

— Foi você quem sugeriu, respondeu mansamente.

— Não se pode falar e vai tomando tudo ao pé da letra? E essa cara enlameada? Aposto que foi Dona Finoca quem te enfiou na cabeça!

— Não foi ela, não. | 153 |

Aníbal explodiu: — Va já lavar essa cara! E tirar esse vestido!

Maria José não se moveu e ele saiu nessa mesma noite, para o interior.

Desta vez não demorou mais de dois dias e retornou, dirigindo-se diretamente ao banco onde ela trabalhava. Misturado entre os clientes, pôde observá-la em seu ­mister. Comparou-a às demais colegas e exultou interiormente. Ela era a mais bela, entre todas.

Saíram de braços dados. Parecia agora mais conformado e Maria José sentiu-se vitoriosa.

Ao chegarem à pensão, ela procurou desculpar-se: — Espero que não fique ressentido comigo, Aníbal. Eu pensei em fazer isso para você prestar um pouco de atenção na sua mulherzinha e não deixar ela abandonada aqui na pensão.

— Mesmo sabendo que não gosto de caras cheias de graxa? Você não passa de uma peste de mulher.

— Não seja por isto, meu bem. Você gosta mais da outra de antes? Da caipirinha do Canindé?

Dirigiu-se ao quarto e lavou o rosto, mudou o penteado e o vestido, retornando à sala.

— Meu querido, peço que me perdoe se não gostou. Fiz aquilo pensando em te agradar, mas se prefere, volto a ser a caipirinha do Canindé.

Aníbal estava terrivelmente desapontado, sem saber o que dizer. Olhou demoradamente a esposa, coçando a cabeça. Ela aproximou-se dele, enlaçando-o pela cintura. | 154 |

Correspondeu ao gesto, afagando suas costas e a aconchegando ao peito.

— Pestinha de mulher! Se você não fosse inteligente, te dava uma surra! Pois não é que fiquei gostando da outra, de há pouco? Pode usar vestido moderno e passar uma graxa na cara, mas com uma condição: largar o emprego!

– Por quê, meu bem?

— Não gostei de ver você conversando com aqueles homens que aparecem no banco.

Ela sorriu, encantada.

— Eu já estava mesmo pensando que não podia continuar lá. Tive ontem um desmaio e muito enjoo...

— Desmaio? Por que ficou enjoada?

Ela chegou os lábios a seu ouvido, de maneira muito feminina, segredou-lhe alguma coisa. Aníbal não se conteve.

Suspendeu-a nos braços, no auge da satisfação, beijando-a: — Mesmo? Então já está na hora de procurarmos uma casinha com dois quartos...

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Noite de natal

Oração proferida por meu filho Nelson na última Noite de Natal, na casa de Dr. Georg e D. Agathe, seus sogros Noite de 24 de dezembro de 1970.

Dentro de poucas horas estará se completando mais um ano decorrido desde o nascimento de Jesus Cristo.

Há 1970 anos Ele nasceu. Então será o dia de Natal!

E os homens se alegraram. Por isso será Festa de Natal! *** Amanhã é o dia da grande festa, que os cristãos comemoram em todo o mundo, estejam onde estiverem.

Muitos presentes serão dados e recebidos. Fartas mesas irão reunir as famílias em ceias de Natal. | 156 |

Brindes com champanha e vinho — alguns ou muitos brindes – todos reciprocamente se desejando saúde e felicidade! *** E depois o dia 25 passará, deixando um gostinho bom de alegria e uma pontinha de saudade, que só é consolada porque se sabe haver mais no ano que vem.

Boa festa. Boa mesa. Bons presentes.

Quanta coisa boa! Pena que já passou... *** — E o que ficou...

— O que ficou?

— Sim, o que ficou do espírito do Natal...

— O espírito do Natal?

— Isso mesmo, o que ficou em nós, do espírito do Natal? Já vi que não me entenderam, por isso acho que vou me explicar melhor. *** O espírito do Natal anda meio esquecido nestes tempos em que vivemos. Isto é, não sei se algum dia foi diferente, mas posso garantir que hoje ninguém anda se preocupando muito com ele. E no entanto, se não estivermos com | 157 |

o espírito bem preparado para comemorarmos o Natal, o que restará deste dia?

Os donos das lojas estarão contentes conosco, porque os ajudamos a vender suas mercadorias. As casas que vendem alimentos também. Igualmente os negociantes de bebidas.

E Ele, estará contente conosco?

Ele? Ele, Deus e Cristo! Que se tornam uma só pessoa quando se unem pela Santificação do Espírito: o Pai, o Filho e o Espírito Santo — o mistério da Santíssima Trindade! *** Como saber se Ele está contente conosco?

Pode parecer difícil responder a esta pergunta, no entanto é fácil. É quando nossos pais estão contentes conosco; quando nossos irmãos estão contentes conosco; quando nossos filhos estão contentes conosco; quando nossos amigos estão contentes conosco; mas, principalmente, quando nós mesmos estamos contentes conosco, porque nossa consciência nos diz que estamos no caminho certo.

Aí, então, Ele também vai se alegrar de nós. *** Às vezes estamos descontentes pelo que fomos, mas prometemos a nós mesmos que vamos ser diferentes, e já | 158 |

então nos alegramos. Isto quer dizer, vejam bem, que não deve se alegrar apenas aquele que já é bom e faz tudo bem, mas deve igualmente se alegrar aquele que já resolveu que daqui para diante tentará ser bom e procurará fazer tudo melhor do que fez até então. *** Eu pergunto a vocês, crianças, há com que nos alegrarmos e sermos gratos a Deus?

Creio que sim!

Vocês tiveram a felicidade de contar com quatro avós como não poderiam existir outros melhores: vovó Agathe e vovô Georg, vovó Maria e vovô Proença. Que pena que todas as crianças do mundo não puderam ser seus netos!

Vejam a força do espírito.

Vovó Maria já se foi há cinco anos e, no entanto, ela está também aqui presente, em nossos corações, e nos abençoa, a todos nós. Como é bom saber que mesmo quando outros de nós não puderem mais se reunir conosco, ainda assim nosso espírito os trará de volta, para onde estivermos.

Vocês tiveram a felicidade imensa, a de gozarem de uma saúde excepcional. E mais uma, a de não terem sofrido nenhuma privação material.

Porém, ainda mais felizes do que vocês somos nós, seus pais. Sabem por quê? Porque nós temos vocês!

Acho que não há nenhum momento melhor do que este para dizer quanto somos agradecidos a vocês pelos exce| 159 |

lentes alunos que são; pelo sentimento de responsabilidade que possuem; pela solidariedade entre irmãos que demonstram entre si e, principalmente, pelo amor de filhos que nos testemunham todos os dias. *** Deus escolheu a Família como a unidade para a realização de seu infinito amor. Aqui é onde se demonstra e se renova a cada instante o amor entre os esposos, entre pais e filhos, entre irmãos.

E Deus escolheu o Natal como a Festa da Família.

Por isso pedi a vocês que se detivessem um instante para pensar no espírito do Natal.

Venham juntos agora — Sônia, Thaís, Ruy, Tina e Luís — vamos juntos comemorar o Natal.

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5 O OUTONO DA VIDA

Depois dos setenta

Em entrevista concedida a um matutino desta Capital, o Professor Alípio Corrêa Neto informa estar se dedicando à elaboração de um romance, cuja ação se passa no hospital das Clínicas, abordando o assunto palpitante do dia, o transplante cardíaco.

Não tenho o prazer de conhecer o ilustre cirurgião, sei contudo tratar-se de primorosa inteligência a serviço dos seus semelhantes. Foi também político, presidente do Partido Trabalhista Renovador, por ele pleiteando sua candidatura a uma vaga no Senado Federal.

Não foi eleito. Aposentou-se da cátedra e afastou-se da política, procura agora entreter-se com algo para espairecer os momentos de ócio, escrevendo um romance.

Outros, em idênticas condições, se dedicam à jardinagem, ou frequentam clubes para encontros com conhecidos. Do professor Montenegro, ouvi que se dedica | 163 |

a divertir-se com os netos, em jogo de paciência ou de canastra.

Não louvo a opção feita pelo Professor Alípio porque, ao ultrapassarmos a meta dos setenta anos, via de regra a senectude nos rouba boa parte daquela vitalidade e viveza da fase madura. São as toxinas a tomarem conta de nossas artérias e a obliterar-nos a inteligência.

Não creio podermos produzir coisa apreciável na velhice.

Portanto, caro amigo, não seria aconselhável recolhermos o cinzel com que desejamos esculpir as imagens e fantasias dos nossos sonhos, enquanto é tempo, para evitar que nossos descendentes venham a comentar mais tarde?: — “Coitado deste bom velhinho, nosso avô! A cabeça dele não funcionava direito, quando entendeu escrever isso!”

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Envelhecer

Os anos vão passando e envelhecemos sem nos darmos conta.

Ultimamente, então, se impõe a constatação dessa evidência, diante dos pequeninos fatos do cotidiano, por exemplo ao transpormos uma porta e alguém se curvar num gesto delicado, dizendo: “O senhor é o mais velho...”

Não consigo ainda me convencer dessa dura realidade, talvez por sentir a firmeza das pernas e o rápido raciocínio.

Não há muito, um jovem levantou-se para dar-me o seu assento no ônibus. Julguei que fosse descer, mas continuou a viagem de pé, ao meu lado. Disse-lhe que, embora agradecido, não achava natural tão nímia cortesia, ­vendo-o prosseguir tão desconfortavelmente, no meio daquele aperto. Respondeu-me que não fazia mais do que seu dever, cedendo seu lugar aos “mais velhos”.

Considerei que esse delicado “mais velho” queria dizer “ancião”, e como isso me desalentou! | 165 |

Hoje o fato se reproduziu, ao regressar para casa, à hora habitual. O coletivo estava cheio, nem sei como podia caber dentro tanta gente! Fui me enfiando devagar, até conseguir um lugar apertado, diante de duas mocinhas galantes e lindas. Vi quando uma delas levantou os olhos para mim, fitando-me, confabulou com a companheira e ergueu-se, oferecendo seu lugar, que recusei, delicadamente.

— Por quê? O senhor já vai descer?

— Não já, minha filha, vou até o final.

— Então, por que não senta?

— Porque, se eu tomar o seu assento, vou me sentir constrangido, pensando que estou ficando velho e luto por não aceitar essa ideia. Mas agradeço de coração e peço a Deus que a ajude.

Só então, diante de minha firme recusa, voltou a sentar-se. Pus-me a filosofar acerca da aproximação ou — quem sabe? — da já realidade da velhice!

O episódio fez-me lembrar do nosso velho sábio Batista de Andrade, que foi durante alguns anos meu vizinho.

Era um ancião de respeitável aparência, austero e simpático, de longas e imaculadas barbas brancas.

A recordação foi ao tempo da Segunda Grande Guerra, em que faltou gasolina, obrigando os raros possuidores de automóvel a instalarem neles gasogênio, para poderem se movimentar. Nós, os da classe média, éramos forçados a andar dependurados nos estribos dos pesados bondes, agarrados aos balaústres. Raras vezes conseguíamos lugar nos bancos. | 166 |

Um dia em que voltava sentado, vi dependurado no estribo o velho sábio, acenei-lhe para vir sentar no meu lugar, que a ele eu cedia. Reagiu de maneira viva. Não podia admitir que lhe cedesse o meu assento.

E, dependurado no estribo, terminou sua viagem.

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Moriturus Órfão aos cinco anos de idade, pobre e residindo em modestos lugarejos, praticamente não tive infância, se é que infância foi viver no meio de meninos tão pobres como eu.

Quando minha mãe transferiu a família da roça para a cidade — para Sorocaba — eu contava quinze anos. Deixei a casa em seguida, encetando a árdua luta pela subsistência, vindo finalmente morar na Capital.

Trabalhei a vida inteira e ainda trabalho, quase ao atingir a meta dos oitenta anos. Assim sendo, não houve tempo para a minha mente se preocupar com o problema espiritual da sobrevivência da alma e com as perspectivas da minha morte.

Penso que dois fatores primordiais contribuem para isso: o fatalismo com que encaro os sofrimentos e, provavelmente, a boa disposição física do meu organismo. | 168 |

Empregando o melhor de meu tempo na labuta diária, tratando de dormir à noite pera ganhar novas energias, é natural que ela me tenha passado um pouco despercebida.

Devo dizer quer nunca tive medo do dia fatal, dessa hora em que teremos de nos despedir deste mundo. Se alguma preocupação me assalta, é essa de me tornar um dia um fardo para os meus familiares. Por melhor que seja a nossa disposição, lá vem o dia em que nossas artérias se obliteram e passamos a nos constituir em fonte de embaraço e de cuidados que, estou certo, não me faltarão. Além de que, ninguém está livre de um trauma físico que pode nos atirar impotentes no fundo do leito.

Já passei ao lado da morte por duas vezes, sem que isso pudesse me atemorizar.

Na primeira vez eu contava vinte e quatro anos.

Foi numa manhã fria de junho, ao deixar o escritório para o almoço na minha pensão, à Rua Dom José de Barros. Por esse tempo — isso foi em 1918 — a nossa Capital não passava de uma cidade pequena, de talvez uns quatrocentos mil habitantes. Descia a Rua Miguel Couto e entrei na Rua Libero Badaró, então uma rua muito estreita, foi antes de ser alargada e bonita como hoje se apresenta.

Eu tinha o mau vezo de transpô-la distraidamente, com o jornal aberto a minha frente, a ler as notícias do dia.

Não admira esse hábito, porque nessa época eram muito raros os automóveis, que poucos possuíam. A maior parte das famílias usava carruagens puxadas por belos cavalos empenachados. Os transportes eram feitos por tílburis ou pelos “carros de praça”. | 169 |

Muito bem, como ia dizendo, transpunha a Rua Líbero Badaró lendo o jornal, quando pressenti um automóvel deslizando rua abaixo, sem tempo de escapar-me. Dei um pulo instintivo para o alto mas fui colhido pelo veículo e arrastado por uns dez ou vinte metros, debaixo das engrenagens!

Diversos fatores concorreram para me salvar e hoje penso nesse milagre: o asfaltamento recente da via pública; o grande e grosso sobretudo que me protegeu enroscando-se nas ferragens; a sorte de não ter batido a cabeça; a altura dos primitivos automóveis, que permitiam a entrada de um homem pela frente e por baixo!

Somente a Providência poderia ter reunido tantas condições a mim favoráveis!

O que mais me impressionou nessa experiência imprevista, foi a enorme acuidade com que nossos sentidos trabalham no curto espaço de segundos. Foi espantosa a incomensurável capacidade do pensamento naquele transe!

Nesses poucos instantes passaram-me pela mente a tristeza de deixar a vida ainda moço, na flor da idade, quando a vida começava a se tornar tão interessante para mim.

Sobretudo calculei o desespero de minha pobre mãe ao tomar conhecimento de minha morte.

O fato é que consegui safar-me por meus próprios meios, se bem que auxiliado por populares que acorriam de todos os lados, saindo pela parte lateral do veículo, sem o mais leve ferimento!

Chegando à pensão para o almoço, relatei o acontecido a meus companheiros e custaram a acreditar. | 170 |

A segunda vez em que cruzei com a morte foi em Campinas. Aconteceu às vésperas de meu casamento.

Maria, minha noiva, achava-se hospedada na casa do prefeito Pires Neto. Eu tinha jantado em sua companhia, despedindo-me quase à meia noite. Transitava pelo Largo do Rosário, passei na frente da Nova Farmácia Italiana, vi résteas de luz escoando por baixo da porta de aço, suspendi-a o suficiente para deixar-me entrar e fui encontrar o seu proprietário Queiroz Guimarães Neto dando as últimas demãos ao movimento do dia.

Ia retirar-me e ele se opôs, dizendo: — Se quiser trabalhar comigo, tem de ser agora. Quando terminar, iremos experimentar um bom licor que estou preparando lá dentro.

Sua casa tinha, durante todo o transcorrer do dia, um movimento intenso, tornando-se difícil atender aos viajantes propagandistas, durante o seu expediente. Fiquei, recebendo a relação dos medicamentos que necessitava de nossa Drogaria, fez-me pagamento do vencido e terminamos quase a uma hora da madrugada.

Enquanto trabalhava, à noite, um seu funcionário lhe fazia companhia e cuidava da preparação de pomadas e de tinturas magistrais. Nessa noite aproveitava o tempo ocioso para filtrar licores, que Netinho apreciava fazer.

Convidou-me a passar ao laboratório, onde dois enormes funis deixavam escoar o precioso líquido em vasilhas convenientemente preparadas. Encheu dois copos graduados, um para ele e outro para mim. | 171 |

Emborquei de um trago grande quantidade e senti a garganta queimar, como se tivesse ingerido um líquido incandescente. Joguei o restante na pia próxima, exclamando: — Vá para o inferno com esse seu licor!

No preciso instante seu funcionário emergia dos fundos do laboratório. Percebeu a cena e gritou: — Seu Netinho, o senhor acaba de dar tintura de beladona!

Aconteceu que, enquanto estávamos trabalhando na loja, ele tinha terminado de filtrar os licores, substituindo-os pelas tinturas.

Netinho abriu o formulário e lemos juntos. Para a quantidade ingerida os efeitos eram: ingurgitamento das amígdalas, dilatação das pupilas e consequente morte!

Ficou apavorado e preparou-me rapidamente um vomitório de ipecacuanha, horrível de tomar e que não deu o menor resultado. Deu-me salmoura de água morna e nada.

Enfiava desesperadamente os compridos dedos em minha goela para provocar o vômito e nada, porque a beladona era exatamente um poderoso adstringente!

Nesse meio tempo principiei a sentir os efeitos da droga: o pescoço inchando demasiado, os olhos a quererem saltar das órbitas, desmesuradamente dilatados, uma secura terrível dentro da garganta.

Tive a perfeita noção de que meus minutos estavam contados, mas tal pensamento não me abateu o mínimo que fosse. Tinha o espírito lúcido e procurei pilheriar com meu anfitrião, vendo o imenso desespero com que gritava | 172 |

ao empregado, que corresse imediatamente a procura de um médico.

— Você não tem culpa, meu caro, fique certo que me sinto absolutamente conformado, diante de tudo o que está acontecendo. Todos temos o nosso destino, se este for o meu, paciência. Vou apenas pedir um grande favor, se o pior acontecer: informar a minha noiva que isto não foi suicídio e sim um acidente. Faça o mais discretamente possível, para não criar problemas para você e sua farmácia. Faça mais o favor de entregar todo este material de viagem, os pedidos e o dinheiro em meu poder ao meu estabelecimento. E mandar também contar a minha mãe, em Piracicaba, o acontecido.

Eu discorria com a mais absoluta calma, esvaziando os bolsos do dinheiro, pedidos de fregueses e cheques, enquanto Netinho rogava pragas, diante da minha serenidade.

O médico chegou daí a momentos e aplicou-me uma injeção de morfina, antídoto da beladona.

Aí pelas três horas da madrugada a tensão foi diminuindo lentamente, a temperatura e as pulsações melhorando e voltando ao normal, os efeitos da beladona regredindo aos poucos.

Netinho queria dormir comigo no hotel, o que recusei peremptoriamente, sabendo que sua esposa estava em vésperas de dar à luz. Diante de sua insistência, apenas aceitei a presença de seu funcionário, mandando preparar mais uma cama para ele, no meu quarto do hotel.

Não sei como a notícia foi parar nos ouvidos de Maria, ela apareceu no hotel na manhã seguinte, para visitar-me, | 173 |

na companhia de Lídia, filha de Pires Neto e muito sua amiga. Então, eu já estava completamente restabelecido.

Depois dessas duas provações, como já fiz sentir, parece que a morte nunca representou sério problema, para mim.

Hoje, quando me sinto plenamente realizado, com quatro filhos esplendidamente bem situados e bem casados, com dezessete netos e mais dois netos de adoção, posso dizer honesta e tranquilamente: estou em paz com minha consciência, com a família, com a sociedade e com Deus.

Espero serenamente o dia final, com a calma de quem não desperdiçou a vida que lhe foi dada.

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Divagações Coloquei o papel na máquina de escrever para gravar alguma coisa que me ocorreu. Mas precisei afastar-me, de repente. Ao voltar, não mais me lembrava do assunto.

Fiquei então a cismar diante da minha Lettera portátil e outra ordem de ideias assaltou-me, sobre as razões que me levam a confiar ao teclado emoções pessoais.

Sim, pensei, por que escrevo? Por que sou levado a verter ao papel coisas que só a mim dizem respeito, eu, que levei uma vida inteira infenso a escrever?

Será a idade provecta, no dizer dos letristas? Será o desejo de continuar vivendo, depois de morto?

Sei lá!

No mundo de hoje, em que a humanidade não tem mais tempo para nada, a ninguém pode interessar a vida e as emoções de quem passou por aqui.

Algum dia, quando acaso encontrarem estes alinhavos, muitos olharão displicentemente para eles, quiçá | 175 |

considerando o destino a dar-lhes. Possivelmente possam, por um respeito póstumo, atirá-lo a um canto para ulterior deliberação.

Chego então a concluir que sou eu o único interessado nestas digressões, como um derivativo, uma motivação, para uma vida que vai se esvaziando lentamente.

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pão ou pães, é questão de opiniães...

JOÃO GUIMARÃES ROSA Este livro foi composto em Sabon MT e Poiret One, na primavera de 2021.

Impresso em papel pólen soft 80 g/m2.

São Paulo.

Tiragem: 50 exemplares.