Artigos Público - Francisco Miguel Valada

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Público • Segunda-feira 18 Janeiro 2010 • 29

Espaçopúblico

Nem a Einstein foi dado o impróprio privilégio de ver teorias não provadas serem directamente vertidas em texto legislativo

O Acordo Ortográfico, o “excludente” e o ornitorrinco

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ão diversos os argumentos a favor do Acordo Ortográfico de 1990 (AO 90), mas todos partilham uma característica comum: são rebatíveis, quer no plano retórico, quando de retórica se alimentam, quer no plano factual, quando de factos alheios à realidade se servem. No plano técnico, continuamos todos à espera, uns impávidos, alguns serenos e outros nem uma coisa nem outra, que se rebata o irrebatível e se proponha o princípio revolucionário, com bases de sustentação, aniquilador de toda a doutrina em matéria ortográfica e de todos os pareceres fundamentados, escalpelizadores deste AO 90. Escalpelizadores e reprovadores, sublinhe-se. Sentados, continuaremos todos à espera. Nem a Einstein foi dado o impróprio privilégio de ver teorias não provadas serem gratuitamente abraçadas e directamente vertidas em texto legislativo. Já agora, nem ao LNEC. Einstein, para provar que Newton estava errado, teve de aguardar por um eclipse solar. O LNEC, para ver conclusões suas transformadas em lei (refirome ao relatório sobre o novo aeroporto de Lisboa), teve de levar a cabo estudos. Quanto aos autores do AO 90, não precisam estes da teoria sancionada nem de estudos, servindo-se do eclipse científico. Felizmente, para todos nós, a Física vale-se exclusivamente de factos comprováveis e a quem avalia aeroportos e pontes não basta tecer uma avaliação subjectiva, devendo apresentar argumentação tecnicamente válida. A Linguística também tem factos comprováveis e comprovados para apresentar, mas já todos percebemos que há ciências mais iguais do que outras. Um argumento factual, que eu julgara definitivamente afastado da argumentação pró-AO 90, porque medularmente falso, adrede ligeiro e notoriamente avulso, é o da ortografia “excludente”. Já alhures tive oportunidade de rebater este argumento, perante o Sr. Embaixador Lauro Moreira. Devo repetir-me, aqui e agora, perante a incrível frase de José Mário Costa “Há toda a diferença entre uma língua, a nossa, com duas ortografias oficiais (repito: ortografias oficiais), antagónicas e excludentes entre si, e o inglês” (PÚBLICO, 12/01/2010). O princípio “excludente” carece de explicação e passo a explicá-lo. “Excludente”, na argumentação pró-AO 90, significa que uma criança brasileira reprovará numa

Francisco Miguel Valada

escola portuguesa se utilizar a norma ortográfica do Português do Brasil e que uma criança portuguesa reprovará numa escola brasileira se utilizar a norma ortográfica do Português europeu. Pretendem os defensores do AO 90 que este quadro se alterará com a aplicação do AO 90. Nada de mais falso. Se uma criança portuguesa escrevesse numa redacção a improvável frase: “Após o doutoramento do meu pai, comecei a sentir-me afectado”, não creio que, numa escola brasileira, se concentrassem tanto no c de “afectado”, mas antes se preocupassem com o “doutoramento” que deveria ser “doutorado”, com o “do meu pai” que se imporia ser “de meu pai” e com o “a sentir-me” no lugar de “me sentindo”, ou seja: “Após o doutorado de meu pai, comecei me sentindo afetado”. Poderíamos então, à ortografia “excludente”, acrescentar a morfossintaxe e o léxico “excludentes”. Mas não nos centremos na subjacente ideia de “unificação da língua portuguesa”, pois de ortografia aqui se trata. Vamos aos factos. Segundo José Mário Costa, a ortografia “excludente” não se aplica ao Inglês. Limito-me, como matéria de séria reflexão, a deixar duas notas sobre a redacção em Inglês, a nível académico: uma da Universidade de Oxford (Reino Unido) e outra da Universidade de Stanford (EUA), para que as coisas surjam como são e não como se pensa que poderiam ser. A primeira distingue um “não” em maiúsculas (“NOT”) relativamente ao putativo uso da grafia consuetudinária do Inglês dos EUA (“Use British English rather than American English, e.g.: towards; amid; while; NOT toward; amidst; whilst”) (1) e a segunda, em caso de dúvida, aconselha um dicionário americano e não um britânico (“Please use American spelling. If unsure, please consult Webster’s Tenth New Collegiate Dictionary and use the first entry of spelling”) (2). Posso voltar a este argumento, mas penso que ficámos esclarecidos. Acresce ainda não poder esta matéria ser “arrumada na prateleira da história” ( José Mário Costa, PÚBLICO, 12/01/2010), considerando a relevância dos argumentos por mim e por outros apresentados. Arrumam-se argumentos, após dissecados e determinada a sua improcedência. Quando não, a sua relevância mantém-se. Pelo contrário, faltam aos argumentos do AO 90 estudos que os sustentem, tornando-os numa espécie de orni-

NUNO FERREIRA SANTOS

“Bissectriz”, segundo o AO 90, passa a “bissetriz”, mantendo-se, contudo, “trissectriz”. Porquê? Perguntai aos autores, que assim decidem em Vocabulário

torrinco, um enigma na classificação, um desafio semiótico. As conclusões do AO 90 foram traçadas, quer numa bissectriz contrária à doutrina, quer numa trissectriz que ignora a realidade. A propósito, “bissectriz”, segundo o AO 90, passa a “bissetriz”, mantendo-se, contudo, “trissectriz”. Porquê? Perguntai aos autores do AO 90, que assim decidem em Vocabulário, ou olhai os lírios do campo e obtereis a mesma resposta. O AO 90 limita-se a ignorar toda a doutrina, pretendendo-se parecer, mas sem método visível para sequer o parecer. Ao contrário do ornitorrinco, que tem acção benigna no meio que o envolve, o AO 90 apenas se distingue por ser diferente. Autor de Demanda, Deriva, Desastre – os três dês do Acordo Ortográfico (Textiverso, 2009) 1) http://www.ox.ac.uk/branding_toolkit/writing_and_style_guide/ spelling.html 2) http://ual.stanford.edu/pdf/pwr_boothestyleguide.pdf

Presidência espanhola da União Europeia constitui uma oportunidade única para Portugal

O último tango em Madrid

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spanha vai protagonizar neste primeiro semestre de 2010 mais uma Presidência da União Europeia. Uma oportunidade única que o nosso país não pode deixar de aproveitar. Portugal e Espanha compõem uma Ibéria que, no quadro da União Europeia, protagoniza o difícil compromisso entre uma periferia geográfica que o pragmatismo da globalização tem acentuado e um simbolismo de “articulação estratégica” com determinadas zonas (em especial América Latina e África) onde, em grande medida, reside um “capital estratégico” de afirmação internacional de reserva. Num mundo cada vez mais plano, onde os índices de crescimento são liderados pelas potências emergentes (China, Índia, Brasil, entre outros) e a União Europeia se pauta por uma “estagnação doentia”, Madrid vai ser palco de um tango de esperança positiva no futuro. A afirmação de um “nacionalismo” global como imagem de marca de uma capacidade de eficácia e criatividade tem sido o elemento de distinção operacional de Espanha um pouco por todo o mundo. Ciente das suas “vantagens competitivas”, apesar dos tempos de profunda crise por que passa, o país vizinho tem con-

seguido de uma forma única assumir as fronteiras das suas capacidades endógenas, partilhadas pelos diferentes actores do tecido social (regiões autónomas, empresas, universidades, centros de saber) e marketizadas sob uma imagem comum de identidade corporativa que de modo algum põe em causa as virtualidades da especificidade de cada território ou protagonista social. Espanha é assim claramente um player vitorioso no aproveitamento da “competência da nação” no quadro global. Torna-se imperioso para Portugal saber ler os “sinais vitoriosos” que emanam do país ao lado. Não se trata de “convergência cultural” nem muito menos de “cumplicidade nacionalista”. As especificidades da marca portuguesa, nas suas múltiplas dimensões, são mais do que evidentes e têm a força de uma história cultural sustentada no tempo e no tecido social. O que importa é “agarrar” a atitude proactiva da afirmação positiva na concorrência global das nossas competências, tendo por base a inovação, qualidade e criatividade dos talentos, investimentos e competências. O “diálogo” entre Portugal e Espanha constrói-se no diaa-dia das relações económicas e sociais entre os diferentes

Francisco Jaime Quesado

actores do território. Iluda-se quem pense que o jogo do relacionamento estratégico entre os dois países se joga nas “cumplicidades por decreto” decididas em Lisboa e Madrid. A verdadeira identidade da “relação ibérica” joga-se entre o Norte de Portugal e a Galiza, entre o Alentejo e a Andaluzia, com projectos de cooperação como o Instituto Ibérico de Nanotologia em Braga ou a Plataforma Logística de Chaves que alimentam a ambição de um novo paradigma de desenvolvimento para as populações e os territórios de uma Ibéria que tem que se reinventar. Espanha protagoniza de forma sustentada a “ambição” da modernidade num quadro de renascimento global das suas competências um pouco pelo mundo fora. Trata-se claramente de um acto de “cumplicidade colectiva” da sociedade espanhola, cabendo ao Estado a função de monitorização estratégica e de garantia das condições de enquadramento das operações dos agentes no terreno. Este “acto de mudança para o futuro” que marca a Espanha de hoje e que vai ser a marca da Presidência da União Europeia tem que ser percebido por Portugal. Para que mais do que nunca Portugal seja verdadeiramente Portugal. Gestor do Programa Operacional Sociedade do Conhecimento


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