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A resposta dos que foram calados
from O Regional PG
tudo calmamente, e conduz Strassera à razão sempre que preciso. Neste núcleo familiar, nada poderia atrapalhar a vida estável, até que o processo começa e os reacionários passam a ameaçar aquela família, e todas as demais na tentativa de acusar os mandantes da ditadura militar.
Leve e envolvente, as quase três horas de duração não acontecem à toa: há muito a ser contado. No longo ato inicial, a leveza se deve pela construção dos personagens, sobretudo com a chegada de Luis (Peter Lanzani), idealista e apaixonado advogado, mas advindo de uma das famílias tradicionais que apoiaram o regime. Aos poucos, os novos interessados chegam, em uma seleção hilária do ponto de vista estrutural, pois o resultado é uma equipe heterogênea, do jeito que tem tudo para dar errado, principalmente pela insistência entre Strassera e Luis seguirem inicialmente por caminhos distintos, criando um vácuo argumentativo nas apelações e construções diante do juizado que se forma. Em consequência, justamente por ser longa, a introdução é imperceptível, e caminha rapidamente ao início do processo em si, quando as testemunhas são chamadas e semanas se passam. É em tal período que a densidade se torna quase palpável durante a sessão, e não há razão para ser diferente. As atrocidades e as torturas são trazidas à tona por meio de sobreviventes e familiares, incluindo as Mães de Maio, o que se encaixa perfeitamente às possibilidades trazidas pelo roteiro de Santiago Mitre, Mariano Llinás e Martín Mauregui, que até este ponto mostra o esforço tremendo da equipe de Strassera, mas deixa evidente que é apenas isso, tendo em vista que o outro lado da história carrega a política violenta e conservadora consigo, como suas principais armas argumentativas. Além disso, com os recortes feitos entre o que foi filmado e pedaços do julgamento de 1985, o filme ganha profundidade, da qual o espectador tenta fugir para não se machucar demais.
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Aliás, Santiago Mitre também é o diretor do longa, e seu trabalho é mesmo notável: constrói a narrativa discretamente, dando espaço aos personagens e aos conceitos históricos, e faz isso oferecendo espaço para que a narrativa flua o tempo inteiro. Não há flashbacks ou recortes em excesso, e isso se traduz em uma montagem clássica, muito bem orquestrada por Andrés
Pepe Estrada, enquanto a trilha fica discretamente presente em todo o filme, à exceção do tribunal, é claro, como se o compositor Pedro Osuna quisesse compartilhar sua versão da história sem afetar o resto.
Portanto, a sensação de harmonia, combinada ao excelente trabalho de direção de arte, desenho de produção e figurino, sem medo de explorar Buenos Aires em uma recriação de época impecável, está em todo o filme. Só faltou mesmo citar a importância da fotografia de Javier Julia ao tecer um véu fino e constante em todo o longa, contrastando cores sempre frias com as terrosas, criando um aspecto de fotografia que ficou guardada por muito tempo na gaveta. De fato ficou, e agora Mitre expõe ao mundo um sistema jurídico minimamente funcional (quiçá lição para o Brasil, que não condenou ninguém em quase 60 anos), e para que o trabalho do diretor estivesse muito bem alinhado à realidade, bastava um elenco primoroso, algo que nem sempre acontece, mas que aqui conta com a entrega sempre formidável de Ricardo Darín, cuja construção de Strassera é mesmo mais um marco de sua carreira, já repleta deles. Do carisma de Peter Lanzani ao magnetismo de Laura Paredes, passando por cada peça-chave que ajudou a construir este pedaço importante da história argentina, todo o elenco está muito bem alinhado à proposta de “Argentina, 1985”, uma obra quase irretocável (um primeiro ato ligeiramente menor ajudaria), que merece a atenção do espectador de hoje e de amanhã, para sempre se lembrar da importância da democracia em um país, sobretudo se este já viveu sem ela.