Faroeste à brasileira

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Especial CUSTÓDIA. O cacique Carlito cumpre prisão domiciliar na aldeia Passo Piraju

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Faroeste à brasileira MS A resolução

POR RODRIGO MARTINS, DE DOURADOS om traje de guerra, um índio

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na (Ritla), por ostentar a elevadíssima média de 107,2 assassinatos para cada 100 mil habitantes, índice três vezes superior ao da capital, Campo Grande. A cidade fronteiriça está na rota do contrabando e do tráfico de drogas, um obscuro ponto do estado onde a vida de um homem pode custar menos de 150 reais, conforme revelam inquéritos policiais sobre a atuação de matadores de aluguel. Mas não são os traficantes e contrabandistas que preocupam os indígenas do acampamento, montado nos limites FOTO S : R O D R I G O M A RT I N S

desponta do emaranhado de barracas de lona preta erguido às margens da rodovia MS289, na área rural de Coronel Sapucaia, Mato Grosso do Sul. O sol abrasador do meio-dia fustiga o rosto do jovem guerreiro, ornamentado com expressivas pinceladas de tinta negra. O olhar atento às movimentações na entrada do acampamento e as mãos atarracadas ao INOCENTES? arco e flecha transpa- Os kaiowá da recem um ar belicoso, aldeia Taquapiry estranho à tradição pa- dizem-se vítimas cifista dos indígenas de um flagrante guarani-kaiowá, que forjado de roubo ocupam a área. Tão logo os visitantes são identificados, a tensão é dissipada. Dá espaço a uma calorosa recepção, com direito a dança de boasvindas animada por chocalhos e apitos.

do histórico impasse das terras guarani esbarra na fronteira do agronegócio. À Funai cabe o papel de mediar o conflito entre indígenas e produtores rurais

A desconfiança dos indígenas não é gra-

tuita. Deve-se à constante presença de pistoleiros nas imediações da aldeia. Localizado na divisa com o Paraguai, Coronel Sapucaia detém o título de município mais violento do Brasil. Está na liderança do Mapa da Violência, divulgado em janeiro deste ano pela Rede de Informação Tecnológica Latino-America-

CONFINAMENTO A aldeia de 1,7 mil hectares, em Coronel Sapucaia, ficou pequena para a população de 2,4 mil kaiowá, hoje sem terra para plantar CARTACAPITAL 1º DE OUTUBRO DE 2008

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Especial

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entre a aldeia Taquapiry e um vastíssimo milharal, que nos meses de chuva abriga o cultivo da soja. Desde janeiro de 2007, um grupo de aproximadamente 200 índios protagoniza uma trágica epopéia envolta em conflitos com fazendeiros da região. De lá pra cá, os sucessivos confrontos resultaram no saldo de dois índios assassinados, quatro baleados e três lideranças da aldeia presas. O grupo reivindica a posse de uma área de 2 mil hectares, onde hoje está erguida a Fazenda Madama, na divisa entre os municípios de Amambaí e Coronel Sapucaia. “Essa terra pertenceu aos nossos avós, que foram expulsos pelos brancos”, afirma o líder kaiowá Roberto Martins, de 38 anos.

A aldeia Taquapiry, argumenta Martins, tornou-se pequena demais para abrigar a crescente população indígena: tem apenas 1,7 mil hectares para 2,4 mil índios. “É pouca terra para plantar. A mandioca, o milho... Não dá para todo mundo”, diz. Aprimeira tentativa de ocupação da fazen-

da durou cinco dias. Dezenas de capangas, armados de pistolas e escopetas, retiraram os índios à força. No confronto, uma índia, a mais velha da tribo, Xurete Lopes, de 75 anos, foi morta. A Polícia Federal abriu um inquérito para investigar o caso, mas até agora não apresentou o autor do crime. Já a Polícia Civil não encontrou dificuldade para prender três líderes

indígenas, entre eles o cacique Francisco Fernandes, pelo roubo de um trator. Desde então, os índios passaram por dois julgamentos e jamais deixaram a carceragem do presídio de Amambaí. Foram condenados a dezessete anos de prisão por extorsão, roubo, seqüestro e cárcere privado. A sentença foi reformada pelo juiz da segunda instância, que baixou a pena a oito anos de cadeia. Todos os acusados garantem ter sido vítimas de um flagrante armado. “O capataz da fazenda emprestou o veículo para que pudéssemos buscar alimento na aldeia. Logo depois, veio a polícia. Prendeu todos nós, e até um branco, chamado Rubens Ajala, que só estava lá para dirigir o trator”, defende-se o cacique Fernandes. Na carceragem, o VÍTIMA. Apesar comportamento do lídas cicatrizes der kaiowá e dos ouexibidas por tros dois indígenas preAngélica, a sos com ele, Cassimipolícia ignora os autores dos tiros, ro Batista e Antônio velhos conhecidos Barrio, é considerado “exemplar” pelo diretor do presídio, Alexandre Ferreira de Souza. De acordo com ele, dos 207 internos, 50 são índios, um quarto do total. De uniforme laranja, eles estão habituados a andar de cabeça baixa e com as mãos para trás, como reza a disciplina local. Reclamam da falta de colchões e da ausên- CRIME COMUM. cia dos familiares. “Mi- O juiz Lima nega nha mulher não pôde que os conflitos entrar porque não ti- em Taquapiry nha certidão de casa- tenham a terra mento para apresentar. como causa Estou há um ano e nove meses sem visita”, queixa-se Barrio, de 43 anos, pai de nove filhos. O sonho de voltar à liberdade só é refreado por um temor: “Tenho medo de sair e ser assassinado por pistoleiros”. A prisão das lideranças não arrefeceu o anseio dos indígenas de tentar reaver a terra que acreditam lhes pertencer. Investiram numa nova ocupação, em julho de 2007, desta vez sob a liderança de Ortiz Lopes. Novamente, um grupo armado se incumbiu de expulsar os kaiowá da fazenda. Dias depois, Ortiz foi assassinado na porta de casa. Crime sem solução para a polícia.

O roteiro do faroeste nativo ganhou mais um capítulo em outubro do ano passado. Outra tentativa de ocupação, agora sob o comando de Elizeu Lopes. Desta vez, uma negociação previa a remoção pacífica das famílias indígenas. Mas o desfecho, uma vez mais, acabou em confronto. Quatro indígenas foram baleados. Na denúncia do Ministério Público Estadual, prevaleceu a versão dos fazendeiros. Elizeu é acusado de exigir 5 mil reais para retirar as famílias indígenas da área ocupada. Também é apontado como o autor dos disparos que feriram os próprios companheiros. Os alvos, pontua a Promotoria, seriam o presidente do Sindicato Rural de Amambaí, Cristiano Bortolotto, e o produtor Luciano Zamai, que saíram ilesos do confronto. Com base na denúncia da Promotoria, o juiz César de Souza Lima, da 1ª Vara de Amambaí, decretou a prisão preventiva do líder indígena, atualmente foragido. A versão dos indígenas parece ter sido ig-

norada. “Os índios não têm pistolas, só flechas e lanças. Quem atirou foram os fazendeiros, o grupo do Cristiano. Eles abriram fogo e me acertaram nas costas”, conta a jovem kaiowá Angélica Barrios, de 20 anos, ao mostrar o corpo crivado de balas. O presidente do sindicato contesta:

DESCASO A morte de duas lideranças indígenas, que reivindicaram a posse de uma fazenda como território dos kaiowá, continua sem solução 12

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pedissem para entrar MOBILIZAÇÃO. aqui, sem disparar Os fazendeiros tiros nem gritar, isso reuniram 5 mil não teria aconteci- manifestantes do”, defende-se o ca- em Dourados cique kaiowá Carlito de Oliveira, acusado de ser o mandante do crime. “Por perceber a relação indireta do conflito fundiário no desfecho dessa história, a ministra Laurita Vaz, do Superior Tribunal de Justiça, deslocou a competência do processo da Justiça estadual para a federal. É um avanço, porque agora a questão será discutida num foro apropriado”, comenta Rogério Batalha, advogado do Conselho Indigenista Missionário.

“Fomos atacados e tivemos de correr. Eu estava desarmado. Se o Luciano chegou ou não a atirar, não sei dizer. Tem de ver no inquérito”. Ao tomar conhecimento do conflito, o juiz federal Ricardo Rodrigues, de Ponta Porã (MS), pediu para assumir o caso, em dezembro passado. Entende tratar-se de um problema fundiário, e não de um crime comum. Relacionou o recente confronto com a prisão dos líderes indígenas e com o assassinato de Xurete e Ortiz. Mas o juiz Lima quer manter o processo na esfera estadual, e solicitou a resolução do impasse ao Superior Tribunal de Justiça. “Para mim, está claro que o roubo do trator não tem qualquer relação com a questão fundiária. Assim como não vejo o interesse da comunidade indígena nessa tentativa de extorsão feita pelo grupo de Elizeu”, diz o magistrado. Os conflitos envolvendo os índios da al-

deia Taquapiry não são casos isolados. Há várias comunidades acampadas na beira de estradas ou em fazendas a exigir o reconhecimento de seus territórios em Mato Grosso do Sul. Em Passo Piraju, no município de Dourados, dois policiais

morreram e um ficou ferido após se envolver em confronto com os índios. A área está sob litígio e os indígenas afirmam ter confundido os policiais, sem uniforme nem carro caracterizado, com pistoleiros. “Eu estava no rio e só soube depois que houve esse confronto. Se os policiais fossem mais prudentes e

Na raiz desse drama social, encontrase a delicada situação vivida por mais de 40 mil índios guarani, das etnias nhandeva e kaiowá, que residem no estado. Eles habitam cerca de 30 áreas isoladas, que perfazem, ao todo, cerca de 44 mil hectares. A maior parte dessa população vive em regiões superlotadas, demarcadas pelo antigo Serviço de Proteção ao Índio ainda nos anos 1920. Cerca de 21 mil indígenas, metade do total, estão concentrados em apenas três territórios:

FAVELA INDÍGENA Quase bairro periférico, a aldeia de Dourados tem densidade populacional sete vezes superior à média de todo o município CARTACAPITAL 1º DE OUTUBRO DE 2008

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Especial Dourados, Amambaí e Caarapó, que somam 9,4 mil hectares. Ao todo, são 3 mil famílias que dispõem tão-somente de 3 hectares para plantar o que for possível, razão pela qual cerca de 80% dos índios do estado dependem de cestas básicas do governo federal para sobreviver. A aldeia de Dourados, por exemplo, parece mais um bairro periférico da cidade de 187 mil habitantes, a segunda mais importante do estado, atrás de Campo Grande. Trata-se da aldeia com maior densidade demográfica do País: 12 mil indígenas para uma área de 3.554 hectares, ou 337,6 habitantes por quilômetro quadrado. O índice é mais de sete vezes maior que a média da cidade (44,5) e três vezes superior à da capital do estado (92,29).

FOME. A nhandeva Luísa Souza viu o sobrinho morrer de subnutrição na aldeia

camparam uma forte oposição à medida. Foi um erro estratégico”, diz Margarida de Fátima Nicoletti, administradora regional da Funai no sul do estado. A falta de diplomacia para propor a demarcação de terras indígenas acabou colocando a entidade em rota de colisão com os agricultores. Os 26 municípios-alvo dos estudos antropológicos são densamente ocupados por propriedades rurais. A região é responsável por 60,9% da produção de soja do estado, 70,1% da produção de milho safrinha (plantado nos intervalos do cultivo de soja) e possui mais de 3,8 milhões de cabeças de gado (22,2% do total), segundo a Agência de Desenvolvimento Agrário e Extensão Rural (Agraer), ligada ao governo estadual. Não por acaso, antes mesmo que os grupos de trabalho da Funai iniciassem as operações, em agosto, já havia dezenas de faixas, cartazes e outdoors contra a demarcação espalhados pelas principais cidades da região. “O prejuízo, na

verdade, já começou”, afirma Ademar Silva Júnior, presidente da Federação de Agricultura e Pecuária de Mato Grosso do Sul (Famasul). “O mercado de compra e venda de terras está parado. Se, antes, havia ao menos cinco negócios sendo fechados por dia na região, hoje não há nada. Ninguém se arrisca a colocar dinheiro numa propriedade que pode ser expropriada pelo governo a qualquer momento.” Um raciocínio que faz todo o sentido. O pecuarista Gino José Ferreira, presi-

dente licenciado do Sindicato Rural de Dourados e candidato a vereador pelo exPFL, é mais catastrófico na previsão: “Os índios estão sendo usados como massa de manobra pela Funai e por ONGs estrangeiras que, na verdade, querem acabar com a economia do estado”. Na avaliação dele, o problema dos índios não é falta de terras. “De que adianta dar terra, se eles não têm como produzir? Vai dar terra para eles produzirem o quê?

de 61 anos, explica que, das 285 famílias da etnia, 118 estão sem terra para plantar. E, aqui, ele se refere apenas aos nhandeva. Há mais de 3 mil famílias kaiowá na aldeia. “Eu mesmo não tenho espaço. Meu terreno vai daqui até ali”, gesticula, para mostrar a área de cerca de 250 metros quadrados. Ao bebericar na guampa de tererê (mate gelado) do marido, a nhandeva Luísa Souza, de 53 anos, comenta a morte de um sobrinho, vítima da subnutrição. “Antes de o governo oferecer a cesta básica, muita criança morreu”, diz, com o filho de 4 anos agarrado às suas pernas. “Eu continuo plantando mandioca, batata, milho. Mas isso não mata a fome de todo mundo, não.” Essa situação de penúria, comum a tantas outras aldeias, levou a Procuradoria da República em Dourados a impor, no fim do ano passado, um Termo de Ajustamento de Conduta com a Fundação Nacional do Índio (Funai), obrigando a entidade a resolver a situação fundiária dos índios guarani até 2010. A resposta da presidência da Funai veio em julho deste ano, com a publicação de sete portarias a determinar a criação de grupos técnicos de trabalho, chefiados por antropólogos, para identificar terras indígenas que podem, no futuro, ser objeto de demarcação. “O grande problema é que isso não foi discutido previamente com o governo do estado e com os produtores rurais, que en-

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O cacique nhandeva Catalino Aquino,

IMPACTO Os 26 municípios-alvo dos estudos antropológicos são responsáveis por 60% da produção de soja de Mato Grosso do Sul e 70% do cultivo de milho 14

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REPARANDO EQUÍVOCOS Responsável por um dos grupos de trabalho da Funai, o antropólogo Rubem de Almeida desfaz mitos sobre a demarcação oordenador de um dos grupos de trabalho constituídos pela Funai para rever a dimensão das terras indígenas em Mato Grosso do Sul, o antropólogo Rubem Thomaz de Almeida tem evitado falar com jornalistas há semanas. O recolhimento, justifica, deve-se à forte campanha movida por proprietários rurais contra o processo de demarcação, razão pela qual soli- CAMPANHA. citou à CartaCapital que Nos outdoors, não divulgasse seu re- o recado trato. “O clima é de inti- dos produtores midação. Os carros das e pecuaristas equipes responsáveis por esse levantamento chegaram a ser perseguidos nas estradas por picapes de fazendeiros”, conta. Dedicado ao estudo dos índios guarani há 35 anos, Almeida concordou em conceder esta entrevista para “desfazer alguns dos equívocos” que, acredita, deram o tom do debate até agora.

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CartaCapital: Os índios precisam de mais terras? Rubem Thomaz de Almeida: Do fim do século XIX para cá, os colonizadores ocuparam praticamente todo o território que antes pertencia aos guarani. Nesse processo de ocupação, os indígenas foram sendo restringidos a áreas muito pequenas. Hoje, temos 40 mil índios que vivem em cerca de 44 mil hectares. Eles estão praticamente sem terra. Na aldeia de Dourados, a situação é dramática: há apenas 3,5 mil hectares para 12 mil índios. Eles não têm condições de desenvolver a sua agricultura de subsistência. Dependem da cesta básica dada pelo governo. CC: Os conflitos entre indígenas, dentro das aldeias, têm relação com a questão fundiária? RTA: Sim, graças à convivência forçada entre famílias que jamais se aproximariam de forma espontânea.Alguns contornam o problema por meio do casamento ou de alianças políticas. Mas há muitas brigas, que, por vezes, resultam em homicídios. No passado, quando uma família brigava com outra, geralmente uma delas se mudava para outra região, onde também tinha vínculos familiares. Havia espaços disponíveis. Hoje, não. CC: Qual é a área necessária? RTA: Os grupos de trabalho foram criados

para fazer esse levantamento, para que se conheça, com alguma precisão, a real demanda dos índios. Hoje, há muita especulação. A imprensa chegou a anunciar que a área seria de 12 milhões de hectares. Isso é um disparate, representa um terço do estado, a área total de 26 municípios, incluindo os centros urbanos. Admitir isso seria tão

CC: Os índios podem viver em outra região? RTA: Nós, brancos, temos a concepção de que a terra é um título de propriedade. Para os guarani, é o contrário. As terras não pertencem aos índios. Estes é que pertencem a uma terra. Por isso, eles se recusam a aceitar terras que não são suas, que não foram ocupadas pelos seus antepassados. No fim

absurdo quanto propor a demarcação de terras indígenas em Copacabana, no Rio, ou no Vale do Anhangabaú, em São Paulo.

dos anos 70, a Funai tentou assentar um grupo de guaranis na aldeia Bodoquena, dos índios kadiwéu,um pouco mais ao norte do estado. Ela tem 575 mil hectares para uma população muito pequena, entre 1,5 mil e 2 mil índios. Não deu certo. Os guarani insistiram para voltar. Como a Funai não mobilizou transporte para trazê-los de volta, eles iniciaram uma marcha a pé de mais de 700 quilômetros.

CC: É possível estimar a área a ser demarcada? RTA: É preciso aguardar os estudos. Certa vez, a um jornal local, deixei claro que não faz sentido falar em 12 milhões de hectares se a área sob investigação ocupa, no máximo, 3 milhões de hectares. O número foi divulgado como a área da demarcação. Nada disso. Dentro desse território, ainda serão feitos os levantamentos antropológicos para saber quais as terras pretendidas e se elas são tradicionalmente ocupadas por índios.

É impossível repetir Raposa Serra do Sol por aqui entre os guarani

CC: O que será avaliado nos estudos? RTA: A composição das famílias, as relações de parentesco, a história deles em relação à terra, a ocorrência de determinados indicadores que comprovem a presença deles por ali, como casas abandonadas, resquícios de objetos, cemitérios indígenas etc.

CC: A demarcação será em área contínua? RTA: Em Roraima, a Raposa Serra do Sol tem 1,7 milhão de hectares para 18 mil índios em área contínua. Mas pensar numa situação similar em Mato Grosso do Sul é irreal. O estado tem colonização consolidada e economia estabelecida. O plano operacional prevê a presença dos proprietários rurais na região. Estuda-se, sim, a possibilidade de se criar conexões entre as aldeias por meio de corredores ecológicos, o que permitiria a circulação dos guarani.Sem prejuízos, já que os corredores passariam pela área de reserva legal das fazendas.

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TUTELA. “Adoraria adotar uma família indígena” ▲

A melhor solução é abrir as portas das aldeias para que nós, brancos, possamos ajudá-los. Eu gostaria até de poder adotar uma família indígena”. A idéia de tutelar os índios dessa forma desperta profunda irritação no antropólogo Rubem Thomaz de Almeida, coordenador de um dos grupos de trabalho da Funai envolvidos na identificação de terras guaranis no estado (entrevista à pág. 15). “A sociedade precisa entender que os índios não querem se transformar em brancos, se quisessem já teriam feito. Eles não precisam abrir grandes lavouras, produzir, virar capitalista. Eles têm a sua cultura de subsistência e isso precisa ser respeitado. Índio não é vagabundo, só trabalha de forma diferente.”

Mas o temor de que a demarcação possa trazer prejuízos econômicos para a região conquistou boa parte da população local. No dia 6 de setembro, às vésperas do feriado da independência, o Sindicato Rural de Dourados conseguiu reunir 5 mil manifestantes contrários à demarcação. À medida que os manifestantes passavam, os comerciantes baixavam as portas das lojas em solidariedade. Um deles foi Sérgio Miranda, proprietário de uma revenda de defensivos agrícolas. “Nessa região, não temos problema com grilagem de terrenos ou terras devolu-

tas. Muitos títulos de propriedade remontam ao fim do século XIX ou à primeira metade do século passado”, diz, em defesa dos clientes. Mais equilibrada, a jornaleira Zilda Maria Leal busca uma solução conciliatória: “Tem de ser justo para os dois lados, os índios também têm direito às terras”. Já o bispo de Dourados, dom Redovino Rizzardo, chegou a engrossar as fileiras dos encontros promovidos por produtores rurais. “Não se pode corrigir uma injustiça com outra. Demarcar sem indenizar os proprietários é punir quem adquiriu a terra legalmente”. Boa parte do temor da população reside na área que a demarcação poderia abranger. Pelas rodovias de acesso às cidades de Dourados e Amambai, é possível ver o enorme outdoor patrocinado pela Famasul contra a demarcação, com um terço do território estadual seccionado como a provável área de demarcação. É o terreno total dos 26 municípios que são alvo dos estudos antropológicos: 12 milhões de hectares. O número foi divulgado pela imprensa local como o território oficial da demarcação. “Não tem fundamento, isso incluiria centros urbanos. Somente os estudos vão revelar a área passível de demarcação, mas a toda hora tiram um número esdrúxulo da cabeça. Eram 12 milhões de hectares, agora são 3 milhões”, esbraveja Márcio Meira, presidente da Funai. Na tentativa de apaziguar os ânimos com os proprietários rurais, Meira selou um acordo com o governador André Puccinelli (PMDB). “Aceitamos o compromisso de publicar uma instrução normativa para explicar a forma de atuação dos grupos de trabalho, além de abrir a possibilidade de o governo estadual contribuir nesses estudos e fomentar um diálogo sobre as indenizações. Por lei, a União só deve ressarcir as benfeitorias, mas podemos encontrar um caminho jurídico para indenizá-los também pelas terras, via governo do estado.” Os grupos de estudo seguem fazendo os levantamentos antropológicos nas aldeias, antes de iniciar as visitas em fazendas e concluir os relatórios. “Até lá, se o clima não melhorar, será necessário mobilizar escolta armada para as equipes,

que já são alvos de perseguição por picapes de fazendeiros”, conta Margarida Nicoletti. Ela própria se inscreveu no programa de proteção da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República. “Já recebi muitas ameaças. Muitos fazendeiros não têm pudores de intimidar quem quer que seja.” Quem sentiu parte dessa tensão foi Ja-

mes Anaya, relator especial da Organização das Nações Unidas para os Direitos e Liberdade dos Povos Indígenas. Em visita a Dourados, onde foi verificar denúncias de assassinatos e suicídios, no fim de agosto, Anaya viu-se forçado a modificar a agenda para receber os produtores rurais numa audiência. Isso porque 500 fazendeiros cercaram o auditório onde ele se reunia com lideranças indígenas e ameaçaram invadir a sala. A Polícia Federal teve de pedir reforços para garantir a segurança do diplomata. A despeito dos exageros, é legítima a preocupação dos produtores rurais com o processo de demarcação das terras indígenas e as conseqüentes desapropriações. Mas, talvez, a busca de uma solução definitiva para esses problemas fundiários possa trazer ao Mato Grosso do Sul a tão sonhada estabilidade jurídica que os proprietários reivindicam há ao menos três décadas. ■

JUSTIÇA. “Não é correto punir os produtores”

INTIMIDAÇÃO Funcionários da Funai e antropólogos dos grupos de trabalho sentem-se ameaçados com as picapes de fazendeiros que os perseguem 16

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