Iolanda - Histórias de uma Vida

HistĂłrias de uma Vida

AndrĂŠa M. Fanzeres Cordoniz

HistĂłrias de uma Vida

AndrĂŠa M. Fanzeres Cordoniz

Inverno de 1931. No dia 28 de agosto uma parteira em uma região erma do norte fluminense do Rio de Janeiro trazia ao mundo Iolanda Contage, terceira filha de José Contage e Omar Ludolf Contage. Depois de Iolanda viriam mais oito filhos. E é um pouco da história de vida da Iolanda que vamos conhecer.

M

ais de oito décadas depois vim a conhecer Iolanda que estava acompanhada da filha Miriam e da neta Nina.

Muito alinhada, unhas feitas, anel de formatura no dedo, andar vagaroso de quem não tem pressa em viver cada momento que a vida lhe proporciona. “A vida é boa”, diz Iolanda aqui e ali, em meio a relatos de passagens de uma vida rica de vivências que as traz consigo e, agora, as divide comigo nas tardes de segunda-feira de julho e agosto de dias frios, suavizadas pelo clima de aconchego que a Casa do Bosque nos proporciona. Ali nos sentamos em confortáveis cadeiras de vime brancas, diante de uma mesa redonda, em uma saleta ornamentada por flores secas cor de rubi, prateleiras e outros enfeites. O ambiente suscita paz.

Em uma chapeleira, posicionada ao lado da porta de entrada, Iolanda costumeiramente pendura sua bolsa e casaco. Uma larga porta de vidro na lateral nos permite ver um pátio e um muro coberto por plantas muito verdes, salpicado de delicadas flores lilases. Vez por outra Iolanda desvia o olhar para as plantas como que a buscar nelas mais histórias para comigo partilhar. Ali, reservadamente, conversamos por cerca de duas horas, uma vez por semana. São muitos os retalhos de uma vida permeada de histórias de todos os matizes, vivenciadas em mais de 86 anos de vida.

Naquela saleta costuramos esses retalhos.

5

Segue-se à conversa um saboroso lanche em que Iolanda, com ares de criança levada, devora bolos, biscoitos e geleias. Sua predileção por doces é notória e, temendo ser repreendida, pede que eu olhe para o lado porque ela vai “roubar” mais um biscoitinho. No nosso lanche não pode faltar uma xícara de leite morno com café que, para adoçar, Iolanda pinga uma quantidade excessiva de adoçante. Definitivamente Iolanda tem um fraco por doces. Novamente, com ares de quem faz travessura, confessa balas e guloseimas devoradas no dia ou noite anterior.

Desde o primeiro momento que a encontrei, pude constatar o quanto Iolanda aprecia a estética das pessoas e lugares. Atenta, observa cada detalhe e se encanta com o ambiente à sua volta, que não se cansa de elogiar. Nenhum elogio é desperdiçado e ela os distribui sem parcimônia com olhares carinhosos. Em cada encontro comenta mais um detalhe da Casa que possa ter escapado em visitas anteriores. A mim também observa roupas, adereços e rosto. E sempre tem um elogio para me brindar.

“Você é uma mulher muito bonita, Andréa!”. Agradeço envaidecida os elogios e os acolho com carinho, especialmente por virem de Iolanda. Vez por outra comenta não apreciar a própria imagem, refletida em espelhos muitas vezes evitados. “Dia desses”, disse Iolanda, “saindo do banho me olhei no espelho e me achei tão feia!”. Não é verdade! Iolanda é uma mulher muito bonita! Aparenta idade inferior a que tem. Mantem um frescor no olhar e na expressão do rosto. Nos lábios, batom. Vaidosa, se veste com elegância em roupas perfeitamente combinadas. Cabelo curto, cor de trigo, que ajeita com um gesto só seu, com as duas mãos. Um dia, me contou com um sorriso nos lábios, que vira e mexe Miriam sinaliza que penteie o cabelo. Reiteradas vezes expressa o imenso carinho e gratidão que tem pela filha que cuida de tudo para ela com muito zelo. Família é algo sagrado para Iolanda. E naquelas tardes em que fico escutando-a passar suas lembranças na peneira do tempo, cada vez mais me certifico desses laços tão fortes que ela tanto preza.

6

I

olanda nasceu em Tabua (nome originado da planta Thypha dominguensis) município de São Fidélis, microrregião de Campos dos Goitacazes. Longe do centro, de tão distante e simplório, a região em que moravam era chamada de Vai e Volta. “Ali ninguém morava. Iam e voltavam”, conta Iolanda sorrindo. A casa da família era uma das poucas da região. Nenhuma próxima. A paisagem era formada por morros verdejantes e muitas árvores. “Ao mesmo tempo que tenho saudades eu não gostaria de voltar.” Iolanda, aos poucos, em sua narrativa, se mostra propensa a viver o presente. A ter o passado como raízes de uma árvore que a faz florescer e bem viver, mas não como âncora que a impede de caminhar para frente. Assim, vive saudades e não nostalgias, que a prenderiam ao passado. Um dia me perguntou se era bom sentir saudades. Comentei que se as temos é fruto de bons momentos.

Não experimentamos saudades de momentos sofridos, doídos e difíceis.

Iolanda com seu sorriso macio assentiu procurando em suas lembranças fragmentos de vida que despertam outras doces saudades.

Uma das memórias mais remotas daquele tempo, hoje tão distante, é do seu pai José Contage, ao entardecer, sentado na varanda da humilde casa em que moravam, com seu violão, tocando músicas sacras e infantis, cercado por todos os filhos. José também cantava no coral da Igreja. Era tenor. Iolanda o descreve como um homem muito quieto e reservado. José e Omar, sua mãe, eram evangélicos, religião que Iolanda segue, sempre muito dedicada, com uma fé inabalável. Mais do que uma religião, a crença da família faz parte da história da região em que residiram. Seus familiares foram pioneiros na evangelização do local, passando por situações críticas e persecutórias, contadas mais adiante.

7

Omar lecionava em uma escola do lugarejo em que moravam.

Nesses dias de trabalho, uma senhora cuidava de Iolanda e seus irmãos quando da ausência da mãe. Quando, por algum motivo, a senhora não podia ficar com as crianças para que sua mãe pudesse trabalhar, lá iam todos, a cavalo, para a escola. Enquanto a mãe dava aula, ficavam sentados em um banco aguardando-a para regressarem para casa.

Os estudos foram sempre um ponto essencial na vida daquela família. Por conta disso vieram mudanças que, muitas vezes, se mostraram desafiadoras, mas que foram transpostas uma a uma.

Naqueles idos dos anos 30, especialmente na região em que moravam, as crianças vinham ao mundo pelas mãos de parteiras. Quando a nona filha do casal nasceu, Iolanda e Jane, sua irmã, correram para buscar a parteira que auxiliaria o nascimento de Raquel Contage. Iolanda queria que o nome da irmã recém-nascida fosse Raquel Elizabeth, mas sua sugestão não foi aceita, ficando somente Raquel. Iolanda não se fez de rogada e, vez por outra, chamava a irmã pelo nome por ela desejado.

S

ua mãe me foi descrita como uma mulher de fibra, trabalhadora, que se vestia muito bem e excelente dona de casa.

Os relatos que me foram narrados, saídos da memória, davam bem conta disso.

Duas passagens destacam o temperamento firme de Omar. Certa vez, quando a família já morava em Campos dos Goytacazes, ela ouviu um burburinho de pessoas na rua. Quando se aproximou viu que um homem batia em sua esposa e as pessoas à volta, a tudo assistiam sem interceder em favor da pobre mulher. Pois bem. Omar botou todo mundo para correr e o sujeito deixou sua esposa em paz.

De outra feita uma vizinha suspeitou ter um ladrão dentro de casa e pediu socorro para a mãe da Iolanda que não pensou duas vezes: 8

decidida partiu ao encalço do larápio. Logo em seguida, um tanto aflita, a vizinha disse que ele havia fugido. Mais tarde confessou que dissera aquilo com medo que Omar machucasse muito o meliante.

Omar Ludolf Contage

A veia musical herdada do pai, viria a levar Iolanda quando muito jovem, a cantar na Igreja como contralto, junto com a irmã mais velha Clélia, que também toca piano. Em uma de nossas tardes Iolanda cantarolou para mim a música “Jesus subiu aos montes”. Sua voz muito melodiosa é um bálsamo aos ouvidos. Uma voz que vem do coração. Encantada perguntei porque não continuou ou volta a cantar. Iolanda franze o nariz evidenciando uma expressão de negativa.

E

m nosso primeiro encontro pedi que Iolanda se apresentasse para mim. Queria saber sobre sua vida, saber quem é Iolanda, decifrada por Iolanda. Depois de um breve momento de silêncio, uma breve visita ao passado, escolheu como início de sua narrativa o dia em que conheceu aquele que viria a ser seu marido.

9

Lá estava ele, na mesma sala que ela, sem que Iolanda pudesse sonhar que ele seria um dos protagonistas da sua história de vida. Ela estava na repartição pública em que trabalhava, no município de Petrópolis, na companhia de uma colega que atendia um cliente. Aquele tinha tudo para ser um dia de trabalho como outro qualquer, mas não foi. As duas conversavam e Iolanda falava sobre dois pretendentes que a queriam como namorada. Comentava não saber por qual decidir. Para mim confidenciou não estar nada animada com os pretendentes. Um deles era muito bonito, mas não trabalhava e isso não a agradava. O outro não lhe dizia muita coisa, além de não trabalhar nem estudar. O cliente, do outro lado do balcão, chamava-se Siegbert e escutava a conversa das duas jovens. Certamente encantado com Iolanda, imediatamente pensou em se candidatar a terceiro pretendente. Pediu, então, à colega que lhe passasse o número do telefone de Iolanda. Talvez por intuição, sem que Iolanda percebesse, ela assim o fez. Dia seguinte Iolanda recebe um telefonema.

Do outro lado da linha Siegbert perguntava se ela já havia se decidido e, sem maiores rodeios, se candidatou a namorado. Sua iniciativa fez dos dois um casal que viria a partilhar muitos anos de uma vida em comum, gerando dois filhos muito amados: Miriam e André.

O primeiro encontro do casal ocorreu na Praça da Liberdade.

Bert, como viria a ser chamado por Iolanda, levou de presente um espelhinho que teve vida curta, pois ela, sem querer, se sentou em cima do dito cujo e, meio sem graça, viu que ele se partira. Mas vieram outros encontros e Bert, já no segundo, ofertou novo espelhinho.

10

Treze de agosto de 2018. Iolanda e eu passáramos mais uma tarde juntas. Recortes de vivências me eram contados. Lá fora um sol muito débil não amenizava o frio do inverno.

À

s 22 horas daquele mesmo dia, já em minha casa, me sento diante do computador para redigir um pouco mais sobre a história de Iolanda por mim recolhida em anotações difusas. Decido começar contando um pouco da história da mãe, Omar Ludolf Contage. Pesquiso seu nascimento e descubro uma coincidência. Omar nascera em um dia 13 de agosto, quinta-feira, do ano de 1908 em uma fazenda em Aperibé, município do Rio de janeiro, distante cerca de 180km do mesmo. Teria uma vida longa. Morreria aos 100 anos de idade deixando importante legado aos dez filhos que teria.

No ano de 1998, aos 90 anos, por ocasião de um encontro da família, Omar escreveu um sucinto relato de sua vida. Em um de nossos encontros, dentre diversas fotos e outras lembranças, Iolanda trouxera o relato da mãe, registrado com capricho em letra de computador.

Omar nascera em um casarão da Fazenda Velha, como era chamada. Seus pais Pamphilo Vieira Ludolf, viúvo, e Gabriela Amelia Pontes, solteira, casaram-se em 8 de outubro de 1892. Ele contava 34 anos de idade e ela 21.

O casal faria parte da história do lugarejo em que viveram. Foram uns dos pioneiros da implantação da religião Batista no Brasil e, em um país de maioria católica, foram vítimas de forte intolerância religiosa. Chegaram a ser perseguidos, achincalhados, insultados e, até mesmo 11

apedrejados quando seguiam para os cultos que eram realizados nas casas dos crentes. Não contavam com templos na época.

Gabriela Amelia Pontes e Pamphilo Vieira Ludolf

O relato desse período conturbado foi também descrito por Evando Freitas, professor e historiador, que publicou um pouco da história daquela região naqueles longínquos tempos. Segundo Freitas a, então Vila Tabua, teve “uma evangelização diferente”. Ele conta que, ao contrário de quase todas as comunidades de São Fidélis daquela época como Colônia, Cambiasca e Valão dos Milagres, a Vila de Tabua não teve inicialmente presença da Igreja Católica. Freitas destaca que a primeira evangelização foi feita por missionários batistas, em 9 de novembro de 1912, que chegaram de Italva, junto com missionários americanos. Na época era denominada Batista de Monção e contava com 46 membros.

“Na presença de vários pastores da região a Igreja de Tabua foi fundada. No início os membros da Igreja se reuniam debaixo de uma árvore num local chamado ‘Sossego’, que ficava perto da atual comunidade, onde reinavam as grandes plantações e a zona rural era cheia de moradores, chegando a ter mais de 500 membros.”, continua Freitas, que destaca ainda que aquela era a “quarta Igreja Batista mais antiga de São Fidélis” e que por ela teriam passado muitos religiosos e pastores, mas que teve destaque, na história da região, o Pastor Salvador Borges, “que pastoreou a comunidade por 55 anos e que, em sua homenagem, a Vila passou a ser chamada Vila Salvador Borges”. Salvador Borges vinha a ser cunhado de 12

Omar, casado com sua irmã Adozina Ludolf Borges.

Ainda segundo o historiador, a Igreja Católica só chegou à região por intermédio de um dos fazendeiros que, em 1928, doou um pedaço de terra para que fosse construída uma Igreja dedicada a São Sebastião, portanto somente dezesseis anos após a chegada dos Batistas.

Omar, em seu relato, menciona que tempos depois a família se mudaria de Aperibé para Monção que viria a se chamar Italva. Seu tio, Jovenato, havia comprado a Fazenda Conceição. Pamphilo, seu pai, ficou responsável por parte dessa fazenda que denominou Peroba. “Um lugar muito bonito”, registrou Omar.

As lembranças daquela época foram notoriamente felizes para a mãe de Iolanda. Embora não usufruíssem de confortos como água encanada, nem luz elétrica, foram anos de muita alegria e fartura de alimentos produzidos e plantados por eles.

Na fazenda Conceição o tio construiu um amplo templo e a família finalmente pôde se dedicar à sua crença sem sobressaltos e perseguições. Anexa ao templo foi construída uma escola onde Omar e os irmãos estudaram.

Igreja Batista com escola anexa • Tabua – São Fidélis

A casa de Pamphilo e Gabriela ficava em meio a um pasto limpo e vasto, cercado de laranjeiras, bananeiras, um canavial e um curral com mais de cem metros de extensão onde criavam porcos. Esse curral findava em um riacho.

13

Na época da colheita de milho o lugar se enchia de vida! Moradores da vizinhança se juntavam a Pamphilo e aos empregados da fazenda para descascar uma infinidade de espigas. Enchiam balaios e mais balaios. O trabalho adentrava a noite. Todos circundavam uma quantidade imensa de milho que era depositada em solo limpo. O trabalho era regado a muita prosa e cantoria. Ao final era servido um lanche reforçado: café com leite, broa, rosca, pipoca etc. Tudo que provinha do milho fazia parte da festa.

Durante todo o ano, em noites de lua gorda com sua luz prateada intensa, Omar e as outras crianças brincavam de pique, de roda e outras tantas brincadeiras. “Como tudo era bom!”, enfatiza Omar.

Os avós de Iolanda seguiam para a cidade para fazer compras apenas uma vez ao ano. Tudo que necessitavam e consumiam era produzido por eles. Até mesmo o sabão era feito por Gabriela. Para adoçar o café, rapadura. Para assar deliciosos bolos e preparar doces, a mãe de Omar refinava o açúcar. As vestes da família, roupas de cama e toalhas de banho também eram todas confeccionadas por ela.

Na hora do almoço a família fazia o culto doméstico. À noite Pamphilo reunia todos e ensinava hinos de louvor. Cada um lia um capítulo da Bíblia. Pamphilo gostava muito de música e tocava saxofone. Na Igreja regia o coro.

Tempos depois Omar foi morar com a irmã mais velha, já casada, e começou a lecionar. Seu pai, um homem muito amoroso e dedicado à família, ficou muito triste com a partida de Omar. Toda sexta-feira seguia a cavalo para a escola em que ela dava aulas. Levava consigo outro cavalo para que Omar regressasse com ele para passar o final de semana com os pais. Ansioso por rever a filha, Pamphilo invariavelmente chegava antes do término da aula. Assim fez até morrer de câncer.

14

E

m 1925 Omar começa a namorar José, que chamaria carinhosamente de Zezinho. Um ano depois, no dia 15 de junho, Omar e Zezinho se casavam. Teriam onze filhos. O décimo primeiro (João) veio a falecer com poucos meses de vida. Quando o casal se mudou para Cardoso Moreira (Distrito de Campos dos Goytacazes), Cleuse, Clélia, Iolanda, Josete e José Carlos já eram nascidos.

Preocupava-os o fato de que naquela região só contavam com escolas até o primário.

Nessa época a família frequentava a Igreja Batista de Cardoso Moreira, onde Clélia e Landa, como a família chama Iolanda, cantavam em dueto. Ainda muito jovem, Iolanda certa vez verbalizou para a mãe não querer ir à Igreja naquele dia. Omar não conversou: deu-lhe uma chinelada que deixou marca. Iolanda reformulou sua decisão e seguiu para a Igreja. Lá chegando algumas colegas vendo a marca da chinelada perguntaram se ela tinha sofrido um tombo. Iolanda disse que sim. Com um sorriso travesso no rosto me contou que, desde aquele dia, nunca mais disse para a mãe que não iria à Igreja.

Outra passagem quando muito jovem envolvendo sua vida religiosa ocorreu quando Iolanda estava com cerca de 11 anos de idade.

Todos os domingos na Igreja o pastor pedia, antes que ele começasse a pregar, que ela lesse um trecho da Bíblia para todos. Certa manhã ela tropeçou em uma palavra, acentuando-a na sílaba errada. Nunca mais o pastor pediu que Iolanda fizesse a leitura.

15

C

leuse, registrou Omar, se casou muito cedo com Carvalho (José Carlos de Carvalho). Omar e as meninas ansiavam por continuar os estudos e para isso teriam que se mudar para Campos dos Goytacazes, então, começaram a orar para que seus anseios se realizassem. A mãe de Iolanda conversou diversas vezes com o pastor Fidélis, pedindo que ele escrevesse uma carta de recomendação para que as meninas fossem estudar no colégio Batista de Campos e arrumassem um emprego por lá, para que pudessem se manter. “Não, irmã, é muito difícil, não tem jeito”, respondia o pastor. Mas Omar não perdeu a fé e pôs-se a orar, dizendo para si que conseguiria.

Certa noite conta que estava deitada quando teve a ideia de buscar ajuda com alguns parentes que moravam em Niterói. Pegou as duas crianças mais novas e seguiu para lá decidida. Chegando em Niterói foi muito bem recebida, mas mais uma vez recebeu uma negativa. Seus parentes temiam abrigar duas meninas ainda muito jovens. Julgavam ser uma responsabilidade muito grande. Mas Omar não desistiria.

Na volta para casa o trem em que viajava para Cardoso Moreira parou na estação de Campos e ela foi vista por Joel Reis que lhe falou que sua sobrinha Estelze estava ali perto. Omar saltou do trem e foi conversar com Estelze. Mencionou sua imensa vontade de que suas filhas prosseguissem os estudos. Depois de ouvir com atenção, a sobrinha disse algo que “criaria nova alma” em Omar. “Tia, manda Telinha (Clélia) aqui esta semana que eu vou ver se arranjo serviço para ela e Landinha no colégio”.

Omar não teve dúvidas de que Deus tinha escutado suas orações e voltou para casa confiante.

16

No dia seguinte Clélia seguiu para Campos ter com Estelze que a levou ao Pastor Barreto. Ele a recebeu muito bem e combinou que Clélia daria aulas para a turma do Jardim de Infância. Em troca Iolanda e Clélia estudariam na mesma escola. Omar respirou aliviada. Suas filhas continuariam os estudos.

Pouco depois, aos 12 anos de idade, Iolanda conseguiu trabalho no escritório de um coletor de impostos. Com o salário pagava sua pensão. Aos 16 anos trabalhava em uma repartição pública.

Aos 18 fez concurso, tendo sido efetivada. Iolanda ainda trabalharia muito ao longo dos anos seguintes até se aposentar. Como sua mãe, também lecionou. Continuou os estudos e no ano de 1962, já casada, com uma filha de 13 meses de idade, se formou em Letras Neolatinas na UCP (Universidade Católica de Petrópolis).

O

mar ficou imensamente feliz quando, com o auxílio de Estelze e do pastor Barreto, conseguiu que suas filhas se mudassem para Campos. Sentiria muitas saudades de suas meninas e ficou com o coração apertado, mas estava certa de que seria melhor para as duas. Teriam um futuro mais promissor.

E assim as meninas Iolanda e Clélia deixaram para trás a pacata vida em Cardoso Moreira e seguiram para Campos dos Goytacazes. Lá começaram a frequentar a 2ª Igreja Batista de Campos e pouco depois se tornaram bastante conhecidas por cantarem em dueto no coro. Após o culto da noite a Igreja tinha um programa de rádio em que elas cantavam lindamente. Lá de longe, em Cardoso Moreira, a mãe orgulhosa e saudosa não perdia um programa. Ao ouvir suas meninas chorava de saudades e emoção. “Elas nunca tinham saído de casa e agora longe, ouvindo suas vozes...”. Certa de que estava proporcionando o melhor para as filhas, agra17

Grandfather Hirsch

Grandmather Hirsch

(es�mado)

(es�mado)

1793—1853

1793—1853

Abraham Jacob Hirsch Isler

Liebe Isler

Jacob Isler

20 jan 1859—13 mar 1853

Josef Sternberg

1856—1916 (es�mado)

5 jun 1858—6 set 191

Adele Sternberg (Isler)

28 ago 1836—1951 (64 anos • Brasil)

Lina Brock

16 mai 1885—21 fev 1968 (Inglaterra)

Alfred Isler

13 jan 1888 (Alemanha)—10 jul 1967 (EUA)

Julius Isler

14 jun 1889 (Alemanha)—23 ago 1947

George Isler

28 set 1890—9 fev 1976

Leon Isler

10 mar 1892—16 jul 1971

Caecilie Blumenfeld

3 fev 1896—11 dez 1946

Siegfried Jakob Isler

7 jan 1903—15 mai 1929

18

Henia/Hanny Isle

18 nov

Eduardo Block

Siegbert Gleit

Bertha Isler

Marga Leib

15 ago 1917—16 n

13 jun 1910 (Alema

Ada Isler Louise Isler Bertha Isler Elsa Isler Angelina Maria Fanny Isler

Gustav Blumenfeld

er

Omar Ludolf Contage

Jose Contage

19

13 ago 1908—16 jan 2009

Cleuse

Brenno Gleitzmann

1874—11 nov 1932 (57 anos • Alemanha)

Clélia

tzmann

Iolanda Contage Gleitzmann

nov 1995 (78 anos)

28 ago 1931

Josete

anha)—17 abr 1987 (Petrópolis • Brasil)

Valois

José Carlos Miriam

Roberto

Eduardo

Andréa

Nina

Ricardo

Josemar João Carlos Regina Stela

Enteados

Marisa Bryskier

André

Hanna Bryskier Gleitzmann Benjamin (Beno) Bryskier Gleitzmann

Jane Telma Rachel João

19

decia sempre a Deus por ter ouvido suas orações. Assim seguiram por um ano.

N

o ano seguinte Omar se viu diante de novo desafio. Seus filhos Zete (Jozete) e José Carlos teriam que fazer admissão, mas Cardoso Moreira não dispunha de escola com essa graduação. “E agora?”, Omar se perguntou. Precisariam se mudar para Campos, que tinha mais recursos e, assim, seus filhos poderiam prosseguir os estudos.

Omar conversou com Zezinho, seu marido, e decidiram que iriam juntos a Campos. José tinha negócios por lá também. Deixa estar que ela já havia pedido às meninas que procurassem uma casinha para eles morarem.

Chegando em Campos, o casal se dirigiu para a casa escolhida, mas se depararam com mais um obstáculo. Já havia inquilinos morando.

Decepcionados, seguiram para a casa de Estelze, onde passaram a noite.

Dia seguinte veriam o que fazer.

Antes de dormir Omar fez suas orações pedindo por uma solução. “Senhor, Tu sabes onde está a casa que precisamos, mostre-nos, pois foi tão difícil chegar aqui.” No meio da madrugada Omar voltou a orar. Conversou com Deus em suas orações, quando veio um pensamento em tom de conselho: “Não vão embora antes de passar na casa do Pastor Fidélis”.

E assim fizeram.

Bem cedinho, nem bem o dia amanheceu, o casal rumou para a casa do pastor explicando o motivo de estarem ali. “Mudar pra quê?”, quis ele saber, ainda muito surpreso com a visita ao raiar do dia. Omar explicou que duas de suas filhas já estavam morando em Campos e que no ano seguinte precisariam trazer dois outros filhos, mas não tinham como sustenta-los. Surgiu, então, uma possibilidade que encheu o coração do casal de esperança. O pastor comentou que Antônio Reis, um conhecido deles, 20

era proprietário de uma casa na região e que os inquilinos, que frequentavam sua Igreja, comentaram que estavam de mudança. Imediatamente José e Omar seguiram confiantes para a casa de Antônio. Mas iriam se deparar com mais um obstáculo.

Antônio Reis os recebeu muito bem, porém, pesaroso, informou-os que a casinha já tinha sido alugada para um senhor chamado Valdir Rocha. Vendo a decepção do casal, comentou que Valdir trabalhava no comércio e almoçava às 11 horas em um determinado restaurante.

Quem sabe poderiam obter alguma informação com ele. O casal não titubeou. Seguiu para o restaurante. Valdir disse que morava na casinha por eles cobiçada, com uns colegas e fez uma proposta: eles poderiam ocupar parte da casa, dar pensão e, em troca ele arcaria com o aluguel. Omar ficou muito feliz!

A casa, embora acanhada, sem conforto e necessitada de reparos por estar bastante castigada pelo tempo, atendia ao propósito do casal. Mais uma vez Omar se viu agradecida por suas orações terem sido atendidas.

Durante um tempo, até que as coisas se ajeitassem, José permaneceu em Cardoso Moreira, seguindo para Campos a cada quinze dias, até que se mudou definitivamente. A família voltava a estar reunida.

Alguns anos depois fariam nova mudança.

Em seus registros Omar menciona que o tempo foi passando e as crianças foram crescendo. Clélia já era moça feita quando em uma Convenção religiosa conheceu Dálson. Se casaram e foram morar em Petrópolis, onde ele era Pastor da 2ª Igreja Batista. Clélia havia feito o curso Normal e Iolanda o científico. Em Campos, naquela época, não havia faculdade. Novo desafio se configurava para que os filhos avançassem nos estudos.

Iolanda e Jozete já tinham sido nomeadas para a Coletoria de 21

Campos. Conseguiram ser transferidas para Petrópolis e foram morar em casa de Clélia. Iolanda ingressou na faculdade. Seus dias eram bastante atarefados: de manhã faculdade, a tarde trabalhava na repartição e à noite dava aulas. Chegou a começar a estudar piano, mas o exíguo tempo disponível não permitiu que avançasse. Petrópolis acolheu Iolanda. Viu Iolanda chegar menina, se fazer mulher e se despedir senhora.

“Gosto muito de Petrópolis, mas não moraria lá sozinha mais.”, comentou comigo. Foi em Petrópolis que conheceu Siegbert. Namoraram por cerca de três anos e em um dia de verão se casaram. Iolanda morou em Petrópolis até cerca de cinco meses atrás, quando se mudou para o Rio de Janeiro e viemos a nos conhecer. De tão recente a mudança, por várias vezes começava a frase “Aqui em Petrópolis...”

J

ozete e João Carlos, depois de um tempo morando em Petrópolis, foram trabalhar em Niterói e se casaram com Joaquim e Ana Maria, respectivamente. Dálson arranjou trabalho para Josemar e Regina que ficaram morando com eles. Nessa época José Carlos já havia se casado em Campos com Eliane.

Josemar fez uma belíssima carreira acadêmica em Petrópolis, vindo a ser diretor de uma escola que hoje carrega seu nome: Escola Municipal Professor Josemar Contage. Hoje falecido, Iolanda guarda deli-

Omar com os dez filhos no dia do casamento de Josemar

22

ciosas lembranças do querido irmão. Costumavam passear juntos com frequência depois que ele se separou da esposa.

“Ficamos só com Jane e Raquel em casa (Campos)”, mencionou Omar em seus escritos.

Dois ou três anos depois o casal alugou um apartamento em Petrópolis para onde se mudaram. Passado um tempo o proprietário comunicou que sua filha ia se casar e, por isso, precisaria do apartamento para que ela fosse lá morar.

Omar e José entregaram o apartamento e foram morar em uma casa simples na rua Coronel Veiga, até construírem uma bonita casa na rua Professora Angélica Lopes de Castro, que recebia a família com todos seus integrantes.

“Algum tempo depois achamos conveniente mudarmos para um apartamento. Quinze dias após nossa mudança, Zezinho morreu”, escreveu Omar. Encerrando sua narrativa, escreveu: 23

“Hoje moro só nesse apartamento. Os filhos vêm sempre. Quando não podem, telefonam. Sou feliz e agradecia a Deus, porque sempre O conheci e Ele nunca me decepcionou. Sei que o maior legado que posso deixar para os filhos, netos, bisnetos, trinetos é o meu exemplo de fé, para que possam encarar a vida com otimismo e coragem. Esta é a maior herança.

Este é o meu maior desejo e esta foi e é a base de toda a minha vida.”

Omar Ludolf Contage

Com certeza Omar foi e é uma grande inspiração para Iolanda que segue professando a mesma fé que seus pais a conduziram. Morando atualmente no Leblon, Rio de Janeiro, próxima da Miriam, frequenta a Igreja do bairro e não deixa de fazer suas orações. Com as irmãs, uma vez por semana, se falam por telefone, escolhem membros da família que distribuem entre si para durante aquela semana fazerem orações pedindo por eles. Semana seguinte novos parentes são escolhidos para serem os principais alvos de suas orações.

A religião Batista tem um papel preponderante na vida de Iolanda e quis o destino que viesse se casar com Siegbert, da religião judaica.

Conviveram em harmonia com suas crenças. Iolanda enfatiza que o marido sempre respeitou sua religião e a acompanhava frequentemente nas suas idas à Igreja.

24

N

o verão de 1960, no dia 30 de janeiro, em Petrópolis, Iolanda Contage e Siegbert Gleitzmann se casaram em uma Igreja Batista que se encheu de parentes e amigos do casal. Iolanda, 29 anos, estava belíssima em seu vestido de noiva muito alvo com rendas delicadas. A parte superior do vestido de mangas curtas realçava seu corpo esguio, marcando sua cintura fina. A saia levemente rodada, descia em babados elegantes caídos em cascata até o chão. Nos cabelos um arranjo floral de onde saía o véu que lhe caía até pouco abaixo da cintura. Luvas brancas de rendas vestiam as mãos até os punhos e davam um toque de sofisticação. Nas mãos um buquê simples e elegante.

No rosto um sorriso delicado. Ali começaria uma nova fase em sua vida.

Iolanda constituiria nova família ao lado de Siegbert, o seu Bert. Homem alto e elegante. Iolanda por pouco não lhe chegava ao ombro.

A festa de casamento foi realizada nos jardins da mansão da família do noivo. Essa propriedade tem uma importante história na vida dos Gleitzmann.

A casa, de três andares, rodeada de muitas árvores frutíferas, plantas e flores, foi construída em um grande terreno que possui, ainda, uma casa para o jardineiro, outra para o caseiro e uma capela (o proprietário anterior era católico). A residência do jardineiro fica em um “altinho” no fundo do terreno. Logo a esquerda do portão de entrada fica localizada a casa do caseiro. À direita a capela. Iolanda conta que possui até hoje alguns móveis e objetos oriundos da mansão.

25

S

iegbert Israel Gleitzmann, nascido em 15 de agosto de 1917, na Alemanha, viu sua vida tomar um rumo absolutamente inesperado quando, para não ser vitimizado por Hitler em sua perseguição aos judeus, veio para o Brasil de navio. Sua irmã, Marga Leib, também viera, de avião, com seus três filhos.

Na Alemanha a família era proprietária de uma fábrica de perfumes. Seus pais chamavam-se Benno Gleitzmann e Adele Sternberg Gleitzmann. Gleitzmann, Iolanda me explica, significa “Homem que guia”.

Adele Sternberg Gleitzmann e Benno Gleitzmann

Alguns anos depois de estabelecidos no Brasil, a família recebeu uma indenização pelos prejuízos causados pelo regime nazista. Com esse dinheiro puderam comprar a propriedade em que o casamento se realizou e que, até hoje, pertence à família, embora nenhum parente resida nela.

Em Petrópolis Siegbert e Marga eram proprietários de uma fábrica de tecidos, a Lanifício Planeta que está desativada e o terreno abandonado.

26

E

m um de nossos encontros Iolanda me fala de um dia especialmente difícil em sua vida. Conta que Bert costumava dizer que “não passaria dos 78 anos de idade”.

No dia 15 de agosto de 1995 Siegbert completou 78 anos. O casal comprou alguns doces e à noite chegaram diversas pessoas para cumprimenta-lo. André e Marisa, sua esposa, iriam pernoitar na casa do aniversariante. À noite Siegbert foi ao canil, como de costume e, antes de se deitar ficou no quarto conversando com Iolanda e André. Mais tarde disse que iria tomar banho para, em seguida, dormir.

Passado um tempo maior do que o normal, Iolanda bateu à porta chamando pelo marido. Como ele não respondera, chamou o filho. André também não obteve resposta ao chamar o pai. Quando conseguiram abrir a porta do banheiro Siegbert estava caído. Sua previsão se concretizara e ele falecera em 16 de agosto de 1995, no primeiro dia de vida dos seus 78 anos de idade.

Passados alguns anos, Iolanda sabe, por experiência e por vivência, que diante de uma grande perda, a dor se torna pungente, intensa e inadvertidamente maior que o amor. Mas sabe também que com o tempo tecendo suas horas, uma a uma, quando somadas, nos traz de volta aquele amor que se torna, naturalmente, maior do que a dor. Pensando nisso me vem à memória Adélia Prado: “O que a memória ama fica eterno”.

Sua crença religiosa é uma força incontestável na vida de Iolanda. “Deus é muito bom para mim”, me diz reiteradas vezes, sempre com uma ponta de emoção na voz. Olha para mim, com seus olhos da cor do mel, e com suavidade e ares pensativos comenta que “a vida é boa”. Diz não querer morrer por ter medo de sentir saudades dos filhos. Acredita que ao partir vai para o céu e encontrará muita gente querida, mas que não saberá quem foi, em vida, seu pai, mãe, marido...

Sim, Iolanda vem construindo uma história de vida muito preciosa e linda. Uma trajetória permeada de vitórias muito bem alicerçadas em uma base familiar forte e acolhedora. Em família viveu momentos de muita humildade, mas sempre recebendo importantes lições de seus pais, pessoas que bem sabiam que o viver humilde não é desonra nem pre27

nuncio de infelicidade. Que obstáculos não são barreiras intransponíveis.

Que a fé e a coragem devem ser presenças constantes.

Hoje Iolanda fala com orgulho e muito amor de seus filhos, netos e demais parentes. André e Miriam nasceram em Petrópolis, cursaram Arquitetura e são profissionais dedicados e bem-sucedidos.

Siegbert, Miriam e Iolanda com André no colo com três dias de nascido. Tinham acabado de chegar do Hospital Santa Teresa — Petrópolis

Miriam casou-se com Valois com quem teve dois filhos: Eduardo e Nina. O casal se separou. Tempos depois Miriam conheceu Roberto com quem agora é casada. Andréa e Ricardo são seus enteados. Eduardo mora em São Paulo. Nina mora também no Leblon.

Iolanda e Siegbert com Eduardo

28

As quatro gerações: Omar, Iolanda, Miriam Gabriela e Eduardo

André, filho mais novo de Iolanda, é casado com Marisa Bryskier.

Os dois se conheceram na faculdade e tiveram dois filhos: Hanna e Benjamim (Benno).

H

oje, em seu apartamento, Iolanda preenche seus dias fazendo algumas tarefas de costura para os familiares, passeia com filhos, nora, genro e netos, os recebe em sua casa e uma vez por semana faz artesanato com um grupo da Igreja.

A leitura também é uma companheira constante. Costuma ler mais de um livro ao mesmo tempo. Leituras que são saboreadas à noite, em seu quarto silencioso que acolhe seu cansaço autorizado por mais um dia.

Seu cômodo preferido é o quarto “onde leio, penso, rezo, descanso...”. Não gosta de cozinhar e comenta que Siegbert fazia comidas alemãs deliciosas.

Com o marido teve uma vida muito próspera e feliz. Nunca discutiram. Viajaram bastante. Conheceram vinte e três países, dentre eles Uruguai, Paraguai, Egito, Argentina, Portugal, Espanha, Itália, França, Alemanha, Israel, Suíça, Holanda, Bélgica, Turquia, Inglaterra, EUA, Colômbia, Áustria e Chile.

Em Portugal, onde esteve por duas vezes, teve duas experiências nada hospitaleiras. Viajando com o marido, um dia entrou em uma loja e perguntou ao vendedor se ele tinha balas (Iolanda e seu fraco por doces).

29

O sujeito achou que ela estava falando de munição e foi extremamente grosseiro e agressivo com ela.

Iolanda se assustou e chorou muito. Mais adiante entraram em outra loja. O proprietário que os atendeu era alemão. Siegbert conversava com ele e Iolanda, ainda magoada, continuava a chorar. O senhor quis saber o motivo. O marido explicou e, condoído, o alemão a presenteou com um mimo, um porquinho. Iolanda apreciou muito o gesto de atenção e carinho.

Em outro passeio também em Portugal, Iolanda e o marido viajavam em um trem em companhia da irmã Jozete e o cunhado. As duas dormiam na cabine quando ouviram um barulho da porta batendo. Acordaram assustadas. Suas bolsas, com todo o dinheiro que levavam, tinham sido furtadas. Na estação seguinte reportaram o furto à polícia e foram ressarcidas.

Foram 35 anos de um casamento pautado por muito respeito, amor e dias felizes. Uma passagem que Iolanda contou com ares de menina teve como pivô o cachorro pastor alemão, chamado Bruce que vivia com eles na casa de Petrópolis. Bruce tinha livre acesso ao interior da casa e aquilo não agradava nem um pouco Iolanda. Por diversas vezes pedira ao marido que o mantivesse no quintal da casa. Siegbert fazia ouvidos de mercador e nada fazia a respeito. Um dia Iolanda teve uma ideia. Daria um susto no marido.

Ao se aproximar a hora de ele chegar do trabalho, Iolanda pegou uma maleta e colocou em cima da cama. Dentro pôs diversas peças de roupa. Quando Siegbert chegou e viu a mala perguntou, com curiosidade, o porquê daquilo. Iolanda, com ares sérios, disse que fizera a mala para sair de casa. Já que o cachorro não saía, sairia ela. O marido, então, sem nada dizer, foi até o quintal e, imediatamente, deu início a construção de um canil 30

para abrigar Bruce. Iolanda desfez a mala e a paz voltou a reinar. Bruce teve sua entrada na casa vetada desde então.

O tempo segue seu curso, rumo ao futuro, arrastando vivências que se somam e constituem o viver.

Uma noite estava dormindo. Chorava achando que iria morrer.

Sentiu, então, um toque suave em seu braço e uma voz que disse: “Chora não. Eu vou dar mais uns dias pra você”. Que sejam muitos dias, perfazendo muitos anos para que Iolanda continue irradiando sua força de viver.

Desfolhar, com Iolanda, histórias diversas, nas tardes de inverno me foi um privilégio imensurável. Histórias de uma vida permeada por passagens que foram suas vivências de todas as nuances. Com muito orgulho falava de cada um de seus irmãos, sobrinhos, cunhados e sobrinhos-netos. A trajetória acadêmica continuou sendo importante para a família que conta com médicos, advogados, arquitetos, fonoaudiólogos, dentistas, engenheiros, professores...

E ali, naquela saleta em que nos encontramos, vez por outra, buscando passagens em sua memória, Iolanda ri um riso curto para si mesma que, depois de assimilado, explicita o motivo para mim. Comigo reviveu momentos de tristezas miúdas, outros nem tanto. De alegrias profundas, de receios, de vitórias e conquistas. E assim juntamos retalhos desse tecido com que se faz o viver.

31

Às vésperas de encerrarmos essa narrativa pergunto à Iolanda o que ela destacaria como uma realização pessoal:

“Minha vida. Gosto da minha vida.

Gosto da família que Deus me deu.”

Andréa M. Fanzeres Cordoniz • Agosto 2018

32