A PANTERA DO PORÃO

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A Pantera do PorĂŁo

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Aos não-conformistas, questionadores, livre-pensadores, enfim, a todos aqueles que amam andar – e dançar - com suas próprias pernas, e com os pés descalços.

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‘E que meus ouvidos na calada da noite não escutem nada. Silêncio total, nada de ruído, nada! Ouvidos silenciados, transformados assim no seguro confessionário de meus demônios...’ O Autor.

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ÍNDICE

05 ..........................................................................................................PREFÁCIO Cap. 01 – 09...........................................................................................................O RUGIDO Cap. 02 – 20 ..................................................................UMA PANTERA NA ESCURIDÃO Cap. 03 – 30 ......................................................................................SAINDO PARA A LUZ Cap. 04 – 41 .........................................................................................................A CAÇADA Cap. 05 – 47 ................................................................................................O APENDIZADO Cap. 06 – 54..............................................................................................................PÍLULAS Cap. 07 - 61..................................................................SEDUÇÃO, RASTROS E ABISMOS Cap. 08 – 70 ...................................................................O SOM E O CHEIRO DA MORTE Cap. 09 – 80 ................................... .............................................................GATA E RATOS Cap. 10 - 90 .....................................................................................SENHORITA DAEMON Cap. 11 - 100 .................................................................O DIA QUE CORRÊA DERRETEU

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PREFÁCIO

Amanda sempre foi uma mulher insegura. Influenciada pelas implacáveis opiniões alheias e vivendo intimidada pelo olho do outro, tenta compensar seus fracassos amorosos através de algum sucesso profissional. Ao mudar-se para a nova casa, talvez exageradamente grande para suas necessidades, faz uma descoberta surpreendente ao encarar alguns de seus medos e finalmente entrar no porão da residência. Tinha medo de porões. Mas ao descer ao obscuro local, faz uma descoberta bizarra e que mudaria totalmente os rumos de sua bem organizada, porém infeliz vida. Ao penetrar nos recônditos mais escuros e assustadores de onde mora e ao meso tempo em seu próprio ser, vislumbra uma nova perspectiva, um novo mundo, que lhe fascina; no entanto, para seguir por esse caminho terá de pagar um preço. Uma estranha alegria vai aos poucos tomando corpo, e algo sinistro age no íntimo de Amanda numa misteriosa mistura de êxtase e sensação de segurança nunca sentida até então. O preço a pagar não importa, desde que possa prosseguir sua trilha rumo ao desconhecido, que aos poucos, passa a compreender e desejar ardentemente. Enfim, uma nova vida em que o tempo de humilhações e inseguranças do passado não tem lugar. Agora, uma mulher resolvida e sedutora assume as rédeas, e o mundo passa a ser um playground para seus novos desejos e caprichos. Sangrentos caprichos... A mais louca aventura sempre se dá dentro de nós mesmos, e os labirintos que nos esperam são feitos de negros abismos. A jornada é assustadora, mas gratificante. O autoconhecimento se dá em meio a um rebuliço promovido pelas mais estranhas figuras e os mais tenebrosos sentimentos; uma festa diabólica e disforme em que só os muito determinados conseguem encarar. A protagonista encarou. Daí em diante tudo passa por tomadas de decisões, uma vez que a moral que seve para todos já não 6


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serve para o aventureiro das trevas. É preciso agora moralizar, tomar decisões, fazer as coisas por conta própria, assumir-se, ser o que é. O famigerado olho do outro já não tem poder, já não diz nada, passa a ser platéia, nada mais. As ameaçadoras forças externas se tornam risíveis, patéticas, débeis. O turbilhão que floresce ruidoso nas entranhas do aventureiro, traz das profundezas pantanosas o poder da mudança, uma poderosa mudança; caberá sempre a cada um decidir o que fazer com ela. Amanda decidiu. Se para o bem ou para o mal é outra história, até porque esses conceitos tão repisados caem por terra, já não podem nada, são estéreis diante da nova moralidade do viajante sinistro. Ao descobrir a besta que dormia na escuridão e tomar a decisão de alimentá-la, ou seja, não deixá-la morrer de inanição, Amanda toma um rumo que é só seu e assume os riscos que por ventura decorram daí. É um primeiro passo, um novo caminho, e exige coragem, as grandes decisões exigem coragem. Haverá as recompensas e os gozos, assim como os devidos cuidados. A decisão de ir para o lado marginal e proibido da vida é um divisor de águas, não terá volta, é o caminho brutal que leva ao inferno, que a essa altura é uma espécie de paraíso das delícias para quem se transformou em fogo! A sedução da cobra só é aprendida por quem tem coragem de freqüentar seu ninho. Amanda teve. E a primeira lição é simples: se você não quer ser picado pela serpente, transforme-se em uma. Dito isto, quero ressaltar que este é um livro violento e não recomendável para espíritos mais delicados, sempre faço questão de alertar para isso. Um amigo me perguntou certa vez por que eu pego tão pesado. Respondi que é o jeito de eu produzir minha arte. Seria como pedir, guardadas as proporções, para Tarantino escrever o roteiro e dirigir um musical romântico. Cada um na sua. Se sexo e violência estão presentes em minha obra é porque são absolutamente necessários para a compreensão do contexto que quero expor. Felizmente tenho recebido mais elogios do que críticas. Sendo assim, e tendo avisado o caro leitor(a) do que virá pela frente, só resta desejar uma boa leitura e reflexão sobre o exposto nesta obra. Como disse antes, a viagem às trevas exige coragem, e se tudo for bem observado e percebido durante a tenebrosa trajetória nas sombras, com certeza então terá valido a pena. Aqui não é proibido pegar uvas ao passar pelo parreiral. Pelo contrário. E se resultar em bom vinho, melhor ainda. Dionísio agradece. Boa aventura!

Roberto Axe Porto Alegre, 10 de março de 2019.

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A fera se deliciava. Aquela carne fresca, todo aquele sangue. A escuridão segura daquele porão... e o cheiro cúmplice da morte. Apenas a pequena vela em um canto do recinto emprestava seu fogo dançante à cena macabra. A mulher, sentada nua no chão, em um canto, imersa naquela sombra tão confortável e mansa, observava a pantera em seu regozijo. Uma observadora serena em sua excitação calma, embalada por uma lascívia etérea e crescente. Observava atenta seu animal destrinchar com volúpia e cuidado aquele corpo morto de homem que agora mais parecia o de uma boneca de pano na submissão àquela força ferina. Casualmente a cabeça da presa, que pendia inerte apenas ligada por tendões e músculos teimosos, mantinha os olhos abertos em direção à mulher, como que pedindo uma explicação para o porquê daquela morte tão prematura e violenta de que agora era vítima. A pantera lambia ossos expostos num cuidado zeloso pelo alimento; de tanto em tanto, parava e olhava diretamente nos olhos da dona, numa cumplicidade só possível nas sombras. – Come, meu amor, come... – disse a moça, levando calmamente a mão à sua boceta totalmente molhada; sentiu no esperma do morto, que caia lento da vagina inchada, a reminiscência viva do coitado. O que dele ainda era vivo estava nela. Uma sensação de poder e gozo lhe assaltou de supetão, ela conhecia muito bem aquele sentimento delicioso que agora se apossava de sua pele. Seu rosto foi tomado por um calor de quarenta graus, e ela começou a emitir gemidos; seu corpo começou a tremer e a esquentar numa sensação febril e incontrolável. Puro prazer. Manuseava o clitóris com sofreguidão e a pantera em consonância emitia pequenos grunhidos oriundos do deleite daquela carne morta e suculenta. A luz do tímido fogo da vela clareava com seu amarelo indeciso, o chão enegrecido em torno do banquete da besta. Era um sangue denso e aquele cheiro, ali, naquele ambiente tão pequeno, a qualquer um causaria fortes náuseas, mas não a ela. Ela não. Ela não era mais qualquer um. E uma risada explodiu ruidosa; seu 8


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corpo tremeu inteiro assolado por um prazer incontido e puramente carnal... um prazer de fera! Retirou a mão de sua boceta, que se transformara em uma suculenta flor desabrochada pelo calor do instinto, e botou na boca. Lambeu seus dedos com todo aquele líquido pastoso, produto de sua excitação desenfreada misturado ao sêmen do morto, e não agüentando mais, deu início a um gozo alucinado, e enquanto lambuzava com os dedos sua boca e seios, a outra mão trabalhava, frenética, em seu clitóris, este parecia que iria explodir um prazer selvagem a qualquer momento, levando através de um rastilho de fogo, o apoteótico orgasmo ao fundo de seu útero. A pantera pressentiu o êxtase da mulher e na cumplicidade daquela escuridão, rugiu com força, mais de uma vez, fazendo com que seu hálito quente de sangue chegasse àquele corpo vivo que se contorcia, febril, em seu canto; então os gritos e os rugidos se misturaram num amalgama de êxtase cego.

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Cap 01

O RUGIDO

Sempre a mesma coisa... Sempre a mesma coisa... Aquelas lágrimas no travesseiro. Na penumbra de seu quarto, a cabeça não parava: não, mais uma vez não, quando vou aprender? Pensava ela, perdida em seus piores devaneios. Bastava encostar a cabeça e sentir o cheiro de seu travesseiro sempre tão limpo para virar presa fácil de pensamentos que pareciam aguardá-la ali, onde deitava a cabeça cansada todas as noites. Mesmo sem travesseiro já tentara dormir, mas com péssimos resultados; mais de uma vez jogou-o longe. Porém, no fundo sabia que era bobagem, jogar a culpa na grande e confortável almofada onde podia chorar, realmente não era a solução. Coisa de criança. Mas, enfim, não seria ela ainda um bebezinho à procura de colo? 10


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Não seria esta a causa desta fragilidade que não lhe abandonava? Mesmo nos momentos em que prometera a si mesma que seria forte? Já passara dos trinta, estava até de casa nova, conquista que não era pouca e tudo com sua grana! Pensou na casa. Tão grande... ela ali, sozinha naquele imenso quarto. Tinha como certo que não chegaria aos trinta sem estar com alguém, dividir tudo. Adorava dividir. Realmente nunca em sua vida havia cogitado da solidão, mesmo não sendo nenhuma princesa. Não seria este o problema? Talvez não se gostasse o suficiente. Sempre lera e comentara com amigos e amigas que o grande segredo da sedução era a pessoa se gostar, mas depois desses papos ficava até com vergonha, pois todos comentavam alegremente o assunto e iam para seus destinos, sempre acompanhados; ela não. Recolhia sua humilhação com a sutileza de uma princesa. Sua dignidade, sim, dignidade, o dia que perdesse, perderia tudo. Ora, se não era nenhuma princesa em beleza, pelo menos nas atitudes procurava ser; pelo menos. Não foram poucas as vezes em que se contorceu por dentro mas não deixou transparecer seu íntimo despedaçado, achou que devia isso a si mesma, esta nobreza, esta conduta, este esmero na personalidade; se sucumbisse, desabaria tudo. Bem, não foram poucas as vezes que desabou, porém o fizera na intimidade do travesseiro... sempre o travesseiro... sempre o travesseiro... Enxugou as lágrimas e virou de lado, mas não conseguiu parar de pensar. Mas então, afinal, para que servia aquela imensa casa que acabara de comprar? Queria impressionar a quem? Aos amigos? Olhem vocês todos, sou a sem graça da turma, mas tenho uma bela casa, minha, só minha! Comprei com meu dinheiro, continuo a água sem sal de sempre? Continuo? Continuo? Seus idiotas! Fracassados! Em seguida uma sensação de vergonha se apossou dela, agredia seus amigos de graça. De graça? Uma ova! O que será que diziam quando ela partia? Coitada, sempre tão sozinha! Morro de pena! E algum engraçadinho possivelmente faria a observação fatal: ta precisando de uma pica! E em seguida seguiriam todos aos pares se bolinando em frente à lareira. Em dois segundos ela já estaria esquecida. Talvez uma amiga ou outra lhe acudisse e ponderasse que a coitada só não tivera sorte, por se tratar de uma grande alma, etc. etc... Ai, que merda! – pensou – minha cabeça não para! Passou suavemente a mão nos seios, - tenho seios bonitos, sim, olham para os meus seios, já notei – começou então a fazer um inventário de seus pontos fortes. Seios, simpatia, companheirismo... hmmm, pouco, muito pouco. Sim, se escarafunchasse achava mais, tinha certeza, mas precisava dormir, já era tarde... - bem, quem sabe tenho uma bundinha bonita também... – ops! Levantou-se de supetão e acendeu a luz do quarto, abriu a porta do armário em que estava o espelho e baixou a calça do pijama, ato contínuo virou-se e mirou sua bunda branca e levemente flácida, em seguida olhou-se nos próprios olhos e viu as lágrimas que ainda escorriam pelo rosto, não 11


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resistiu e caiu em uma gargalhada inesperada. Situação bizarra... cara de choro e bunda de fora... só ela mesmo... ta aí, quem sabe era divertida? Sim, algum motivo devia existir para a convidarem sempre para sair, mesmo que todos estejam acompanhados, mas... e se for dó? Tapou a bunda, desligou a luz e pulou na cama, as lágrimas seguiram seu curso. Em posição fetal, puxou a coberta e sentiu-se uma menininha desprotegida... não haveria de aparecer um príncipe? Sim, um príncipe, quem sabe... Nem que fosse desencantado! Foda-se! Sentiu realmente que precisava de alguém. Não agüentava mais, sua solidão já beirava a humilhação, seria tão incompetente assim? Ou seria o ser mais desprezível da face da Terra? Entrava calmamente em um desespero solitário, que acomete a pessoa que sabe que as coisas não dependem dela, mas sim de fatores externos, fatores aos quais ela não tem ascensão. Uma vida à deriva, sentia-se assim. Sem poder, fraca, débil, humilhada. – A partir de amanhã não passo mais batom! Para quê? Uma pessoa inexpressiva como eu, quando se pinta, fica patética! – Pensou que talvez agora estivesse condenada à vastidão daquela casa; - Por que fiz isso? Não poderia comprar um apartamento de um quarto? Tinha que ficar com este mausoléu? Esta casa só piora minha depressão... é muito grande, dois pisos, estilo neo-clássico disseram eles, aqui ó! Só por ter aqueles pilares lá embaixo, com os capitéis jônicos! São só dois pilares! A balaustrada da sacada, hmmm... vá lá... a abóboda que cobre a sacada... hmmm... tá... neo-clássico... tudo bem. Mas, quatro quartos na parte de cima da casa! O que eu quero com quatro quartos? E o que dizer da sala com dois ambientes? Bem, só a cozinha já daria um apartamento. Hmmm, e a sala de jantar que me fez gastar uma fortuna para arrumar aquela mesa de oito lugares, e para quê? Serei alguma insana? – seguiu pensando – bem... e o porão! - aí existia um problema, desde que pusera os pés na casa nunca fora ao porão – morro de medo do escuro – a porta de acesso ao porão ficava no final do corredor, trancafiada; as chaves ficavam na gaveta da cozinha, mas por ela poderia até atirar fora, pois no porão não iria jamais, morria de medo do porão. Sozinha naquela casa, tão imensa e tão fria, a solidão daquele quarto, a falta de ruídos familiares, mesmo um latido vindo do pátio nos fundos, tudo faltava, sendo assim, qualquer coisa tinha o poder de lhe assustar. Mas, sobretudo, o porão. Não, não, lá nunca iria, nem sabia porque ainda existiam casas com porões. Que tralhas estranhas deveriam repousar inertes naquela escuridão infinita? Deveria haver muitos ratos, baratas, morcegos, e quem sabe até um cadáver em adiantado estado de decomposição. – Ui! – puxou bem as cobertas para si. Quando a madrugada chegava e a encontrava insone, como agora, lhe proporcionava pensamentos arrepiantes, quase sentia um sopro frio na orelha, botava a cabeça para baixo das cobertas, mas ali, naquela escuridão total, lembravase do porão. Bem, vá lá... pelo menos não ficava remoendo pequenos ódios, 12


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complexos, desesperanças. Sim, mas meus peitos... sim, sei que agradam... mas, então por que estou só? Que espécie de merda serei eu? Constatou que havia parado as lágrimas – bem, já está passando – um frio então lhe correu pela espinha, deu-se conta que se havia algo relevante para ela naquela casa, era o porão. Só o porão tinha o poder de desviar seus devaneios, esses devaneios mortíferos capazes de macular com sangue a alma de qualquer pessoa. Pois é... não foram poucas as vezes em que foi acometida por pensamentos perigosos, auto destrutivos; afinal, o que custava cortar os pulsos imersa na imensa banheira de louça branca, naquele banheiro que de tão grande talvez ecoasse o próprio roçar da gilete em sua pele de seda? Sim, definitivamente estava cansada – se uma mulher não puder ser uma mulher, então não é nada! Afinal, o que sou eu? – sentia-se um trapo. Vaidade zero. Sua mente cansada começou enfim a ceder, e uma multidão de sombras começou a sair de baixo das pedras com que ela tão bem sabia tapar os buracos do inconsciente. Era sempre assim antes de adormecer, havia um desfile de imagens desconectas, rostos bizarros, sons terrosos, rangidos, gritos, músicas, epifanias, zumbidos, e toda uma gama de coisas ruidosas. Sempre assim. Já mergulhava no nada quando um latido ao longe lhe trouxe à tona de chofre, fazendo com que abrisse os olhos. É incrível como sons longínquos cortam o silêncio, provocando tremor e pavor num átimo de segundo quando se está muito sensível. Aquilo não estava previsto, pois estava quase lá! – porra! Amanhã é outro dia, preciso dormir – mas então veio a imagem de Henrique à sua cabeça – aquele filho da puta! – um aproveitador, sim, um aproveitador. Bem, ela sabia disso desde o começo da sombria relação, mas mais uma vez o medo da solidão a impediu de dar um pontapé na bunda do moço. Não era burra, pelo menos esperava que não. Não, não... não podia ser... chegar onde chegou aos trinta anos... não, burra não. Ingênua? Talvez. Mas uma ingenuidade engendrada, até meio forçada, queria ver até onde iria o cinismo de cada relação ‘séria’, com que lhe brindavam os namorados, que não foram muitos. Henrique não fugiu à regra. - Imbecil! - Como se ela não soubesse de que se tratava de um idiota – um mauricinho de merda! – com seus agrados, seus carinhos pouco sanguíneos, seus toques anêmicos, carícias automáticas, quase um autômato. Mas ela se deixava levar, enquanto isso tinha alguém; sempre mantinha o desejo secreto de que haveria de virar o jogo, fazer o filho da puta lamber os seus pés. Mostrar enfim a todos, que não era a tola que aparentava ser; que era experta, seu ar ingênuo era só fachada, quem sabe até um truque. Mas tudo isso ficava só na fantasia. Quando se dava por conta o amigo já havia lhe dado um pé na bunda! Com Henrique não foi diferente. Bastava ela começar a falar sobre coisas mais sérias para o cara vir com brincadeirinhas sem graça, afinal, concluiu, estava no seu papel de macho comedor, daqueles que saem da casa da namorada para ir correndo beber com os amigos só 13


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para contar que enfim conseguiu comer a bunda da garota! – bem, se depender de mim, vão ficar sem assunto. Não sou de sair dando minha bunda por aí. Eles têm que se esforçar mais, conquistar, e não, pedir, como sempre acontece. Não dou... ah, não dou. É só o que falta! Ficar de quatro sendo enrabada por um idiota que já está com a cabeça no bar, nos amigos e na novidade, louco pra se vangloriar nas minhas costas, literalmente. Aí sim, nesse momento, no bar, sou finalmente ‘valorizada’: Porra irmão, tem que ver que bunda! Que rabo gostoso! Tô com tesão até agora! – pensou então de quando conheceria finalmente alguém a quem pudesse se entregar sem reservas, inteira, total, coisa que nunca fizera. Henrique foi seu último namorado, se é que podia chamar assim, mas, sempre insegura, via que o tal namorado não ajudava em nada, ao contrário, quando apresentou à sua turma de amigos, não poupava olhares às bonitinhas. - Golpe sujo! Se ele soubesse o quanto isso magoa! É um verdadeiro veneno para uma pessoa insegura. – mas o que lhe enojou mesmo, foi que o desgraçado dava a entender que estava com ela por diversão, nada mais, dava a entender que se quisesse, conseguia algo melhor. – então vá se foder! – um sujeito assim não lhe causava sofrimento, o que lhe machucava era o fato de ter de se envolver com gente assim, homens de leitura fácil, quase como se fossem fabricados em série; quando os conhecia, bastava conversar cinco minutos e a anatomia existencial do cara era traçada sem engano. Mesmo suas amigas se envolviam com gente desse tipo, mas não ousava botar o bedelho, sob pena de ser considerada uma recalcada, que não conseguia ninguém e envenenava os relacionamentos alheios. Mas isso não mudava muitos finais de historias, e era em seu ombro que vinham parar as lágrimas. Não era afinal a amigona? Pau pra toda obra? Foi assim desde o tempo do colégio. Teve de engolir suas amigas contando os encontros furtivos justamente com os rapazes que lhe interessavam. Doía, mas ela agüentava, com vergonha de si mesma, tímida, e arrasada por dentro. Foi nesse tempo que começou a construir uma vida interior muito intensa, fantasiava coisas, imaginava, demorava em seu banho de banheira, deitada com aquela água morna até o pescoço, e foram tantos... Ricardo... Eduardo... Paulo... Roberto... foi nessa época que começou a descobrir os recantos mais sutis de seu corpo. A água morna e a mão que, submersa, involuntária, guiada pelo instinto e pela paixão, lhe causava as delícias daquelas tardes. Depois vinha a vergonha, coisa de menina; mas logo, logo, estaria excitada, enchendo a banheira para mais um banho demorado, permeado por sonhos e sensações que se faziam desvelar na suavidade daquela água tépida. Ricardo... Eduardo... Paulo... Roberto... ah, foram tantos. Imaginava-se entrando na igreja, linda; à frente, os convidados e parentes, todos a olharem com admiração para aquela noiva tão bonita e suave envolta naquele branco esvoaçante com seu sorriso de flor de laranjeira; muitos foram os rostos que visualizou à frente da 14


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bonomia do padre... Ricardo... Eduardo... Paulo... Roberto... Surpreendeu-se sorrindo. Sentia-se agora uma menininha, tão só naquele quarto, naquela casa, e... aquele porão... tão próximo. Tão só... tão só... aos poucos então adormeceu. Desabou serena para a escuridão do sono e em pouco tempo estava imersa no vazio. Não percebeu, entregue que estava a um sono pesado, quando um rugido rasgou o silêncio do casarão. Um rugido ferino, lascivo e faminto, de fera presa.

Mais uma noite. Desta vez entrava num bar. O ambiente viciado pela fumaça ruidosa dos cigarros fê-la tossir. Parecia-lhe que a mesa dos amigos estava a quilômetros de distância. Era sempre assim; até parecia que faziam de propósito, sentar tão longe da porta de entrada, para quê? Fazê-la desfilar sua insegurança através daqueles homens e mulheres, que pareciam notar sua presença sem realmente notar. Parecialhe que disfarçavam comentários tais como: - olhem, ela chegou, será que arruma alguém hoje? – a que alguma maldosa responderia: - acho difícil com esse vestido. – Merda de insegurança. Parecia que uma multidão de olhos a perseguiam em sua trajetória até a longínqua mesa, mas não olhos cobiçosos ou invejosos, e sim, olhares desdenhosos e quem sabe até de alguma piedade – não adianta mesmo, por mais arrumada que esteja, a mulherzinha é desinteressante – chegou finalmente com o que sobrou de sua auto-estima à mesa dos amigos. A mesa redonda no canto do imenso bar era iluminada por uma luz discreta, oriunda de uma luminária que pendia do teto chegando quase ao centro. Estavam sentados ali dois casais, todos com um pouco mais de trinta anos. Ângelo e Linda: ele, engenheiro civil, sempre bem vestido e com uma carreira que nunca deslanchava, mas sempre fazendo planos para o futuro casamento com sua amada. O cabelo cortado rente à cabeça quase calva lhe emprestava um ar de garoto bem comportado e mimadão; Ângelo tinha o rosto redondo e comum, ‘para combinar com sua conversa’ às vezes brincava Linda, a própria namorada, que preferia elogiar seus dotes físicos, de homem com músculos bem trabalhados e fortes. Ela, uma ex-modelo que foi obrigada a abandonar a carreira pelos estudos – coisa da minha mãe! Nunca vou perdoá-la! – e formara-se em nutrição, sua segunda paixão. Linda fazia jus ao nome, tinha olhos azuis que contrastavam com a pele sempre bronzeada. Tudo era delicado em seu rosto, e o cabelo castanho-claro tinha pequenas mechas loiras que ela jurava serem naturais. Alta, já não ostentava a silhueta de modelo, mas mantinha belas curvas. O outro casal era formado por Telmo e Maísa. Telmo era advogado e começava a acumular algum dinheiro através de uma bem sucedida carreira; sempre de paletó, mesmo que por baixo apenas ostentasse uma velha camiseta – para manter o hábito – mantinha 15


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hábitos discretos. O gel no cabelo preto e bem curto dava um ar mais descontraído ao rosto magro e de feições neutras. Maísa até não era uma mulher bonita, mas o sorriso cativante e insistente mais suas gargalhadas roucas, impregnadas de uma felicidade contagiante, lhe transformavam em uma fêmea interessante e desejada. Também tinha formas generosas, embora um pouco mais salientes, como seus seios, estes pareciam que a qualquer momento saltariam alegres e livres pelo decote. Seu nariz um pouco avantajado e adunco não importunava a harmonia do rosto redondo e branco. - Amanda, meu amor! – exclamou Ângelo, levantando-se para os beijos de praxe. Todos fizeram o mesmo e em seguida sentaram-se. - Uau! Que vestido, hein? – admirou-se Maíra - Queria eu ter um corpinho desses para poder usar algo parecido. Mas se vestisse esse vestido, apertadinho assim, morreria sufocada pelas minhas tetas. - Lá vem ela com esse negócio das tetas! – brincou Telmo – Fique tranqüila, se não morri ainda sufocado por elas você não morre mais. – virou-se para os demais – Sempre digo pra Maíra, se não fosse esses peitos não estaríamos juntos, amo essas tetas! Sempre pergunto à Maíra se elas também me amam, mas ela não me diz nada! A dona das tetas não diz nada! Sim, meu amor tem um patrimônio de ‘res-peito’, capaz se segurar este namorado por mais alguns anos, sim, porque... vocês já viram a mãe da Maíra? - todos riram e Maíra sorriu seu sorriso sereno e respondeu: - Querido, vou me lembrar deste papo quando você vier lambuzar meu queixo com seu gel. Aguarde, malandro... - Oh, não fique brabinha, meu amor – prosseguiu Telmo – ainda temos muito tempo, quantos anos tem sua mãe? – todos riram mais uma vez, mas a garota não entrava na provocação zombeteira de Telmo. - Se você não parar prometo que vou espirrar, e você sabe, depois que elas saltam para fora não consigo ajeitar novamente. Vou ter que ficar com os peitões de fora aqui no bar. Uhh! A idéia não é ruim! Tá me dando tesão! - Hei, parem com isso! – interrompeu Ângelo – Quem está ficando com tesão sou eu! Depois a coitadinha da Linda paga o pato, vocês não compreendem? Além do mais, temos uma surpresinha para Amanda. – Amanda que a tudo assistia rindo, surpreendeu-se. - Surpresinha? Para mim? Eh, que estória é essa? - Bem, querida, isso foi coisa do Ângelo – disse Linda botando a mão na perna de Amanda – é um tal de Eduardo, colega dele. Ângelo falou em você, o cara ficou a fim, e vem aqui para o bar, quer conhecê-la. Não vai amarelar agora, hein!

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- Putz! Esse negócio de encontro no escuro nunca dá certo – disse Amanda sem jeito – o Ângelo é foda mesmo, poderia ao menos me avisar, não é? Viria com o espírito preparado... - Bobagem, querida – interrompeu Linda – esse negócio de espírito preparado é coisa de missa, não de encontros... pare com isso! Desde quando você vem ao bar sem imaginar que pode encontrar alguém interessante? Olhe só esse seu vestido preto, apertado, decotado; quem se veste assim está pro crime, minha nêga! Não vem com essa... e... bem, quem sabe o cara vale a pena? Você já está há algum tempo batendo palminhas, é não, amor? Então relaxa, o cara parece ser interessante e feio não é, vai que ta aí, hein? – brincou a amiga. Amanda sentiu um desconforto frio. Não era a primeira vez que isso acontecia, mas era sempre desconfortável, era uma espécie de atestado de incompetência que lhe era carinhosamente outorgado pelos amigos, de maneira inconsciente é verdade, mas era um atestado desabonador. Parecia mesmo que se não rolasse uma colher de chá, ela não teria competência para encontrar alguém. Ademais, justamente hoje, que queria apenas conversar com seus próximos, jogar conversa fora, contar da solidão fria daquela casa, que lhe desnorteava, lhe angustiava. Botara aquele vestido mais provocador porque queria se sentir atraente, mas para si mesma, queria provar que não havia se rendido às evidências da realidade, essa realidade puta, que arranhava com suas unhas sujas de torpeza cotidiana a sua subjetividade tão ingênua e esperançosa. Não agüentava mais a insônia, e quem sabe na conversa sem compromisso com os amigos não recolhesse alguma migalha com que pudesse se distrair durante seu período insone. Qualquer coisa poderia servir, um pequeno elogio, um gesto carinhoso, um olhar sincero, enfim, qualquer coisa que pudesse recolher e levar para debaixo do cobertor. Não era novidade para ela ficar sobrevoando a conversa feito uma águia, à captura de nuances que poderiam ser de seu interesse – por que não faz como Amanda? – esta frase era uma de suas preferidas. Mas agora se dava conta de que tudo isso era pouco, muito pouco para apaziguar suas lágrimas noturnas e solitárias. Vão lhe apresentar um amigo. Ora essa! Mais um enigma vem aí pela frente. Nisto, seu Martini chegou. Deu um gole e ao colocar a pequena taça à mesa, reparou na marca de batom, adorava isso. Nem parecia que era dela aquela delicada e sensual marca vermelha. Através daquela marca no copo imaginava mil coisas, principalmente, imaginava-se uma bela mulher com olhos seguros e fatais que miravam, felinos e impassíveis, os milhares de olhinhos amedrontados, ingênuos e cobiçosos, daqueles homens que lhe rodeavam naquele bar cheio. Mas logo caía em si. Não havia olhares em sua direção, só a ruidosa indiferença permeada pelos sons despreocupados que se fazem acompanhar pelas gargalhadas escancaradas de sempre. Enfim, tudo em seu lugar. 17


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- Aí vem ele! – saudou Ângelo. Em seguida levantou-se para abraçar Eduardo. O rapaz foi festejado e em seguida apresentado a todos; Amanda foi apresentada por último. Não sabia onde botar os olhos e não conseguia firmar um sorriso – merda de insegurança! se ao menos tivesse dado tempo de beber três Martinis! - Mas, enfim, tinha de seguir em frente. Eduardo cumprimentou-a simpático e ela notou no olhar do recém-chegado, uma mal disfarçada conferência em seu corpo, e quem sabe, em sua roupa. Normal. Logo foi providenciada uma cadeira para o rapaz, este sentou ao lado de Amanda e Ângelo puxou assunto de trabalho. Eduardo aguardou o momento exato para abordar a mulher ao seu lado; esperou, paciente, que o assunto se dissolvesse entre os dois casais para virar-se para Amanda. Esta imaginava o primeiro passo do moço – e você, Amanda, o que faz, trabalha no quê? – sim, ela tinha certeza de que o homem ao seu lado não sairia disto, não lhe parecia alguém muito original. Não errou. Bastou receber as primeiras atenções de Eduardo para que percebesse ser este, o homem que imaginava que fosse. Bem, já que era para ser assim, que seja! Realmente não era feio, tinha um corpo atlético e um rosto e um papo que não cheirava e nem fedia. Os olhos castanhos também não eram seguros, e deslizavam para qualquer lugar quando Amanda criava coragem para fitá-los mais de perto. Bem, já estava acostumada, e estava sentindo-se realmente tão só, que resolveu levar o novo amigo para sua cama, tão logo o assunto morno entre os dois começasse a esquentar.

As roupas estavam amontoadas e misturadas ao lado da cama, tal qual os corpos em cima dela. Dedos, línguas, lábios, o roçar das peles, gemidos; realmente não havia espaço para palavras. Amanda estava tesuda fazia tempo. Mas era difícil trepar com aquela terceira personagem junto aos dois: sua insegurança. Queria soltar-se, mas sentia-se meio presa, e Eduardo não ajudava. Foi, guloso, direto ao pote, embora Amanda tenha usado de alguns truques para que o rapaz não enfiasse logo de saída o pau em sua boceta para em seguida, terminar seu uísque, dar uma desculpa – tenho que acordar cedo amanhã – e partir. Teria então que usar seu dedo e a imaginação para poder dormir depois. Eduardo de repente pediu para que ficasse de quatro para ele. OK. Desde que não gozasse logo. Mas foi em vão, logo o convidado para sua cama estava puxando sua bunda branca com tanta sofreguidão, que naquele vai e vem desenfreado, gozou. Um gozo tímido e contido – que filho da puta! Pelo menos podia ser mais gentil e gozar com vontade! – quando Amanda encostou novamente a barriga no lençol, o rapaz já estava colocando sua camisa. 18


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- Mas... já? Visita de médico? – disse a amante, tentando disfarçar com um sorriso amarelo sua decepção, ela estava só começando quando o parceiro acabou. - Tenho que acordar cedo amanhã. Me dê seu telefone. Puxa que casa bonita você tem, hein? Vamos combinar alguma coisa com aqueles malucos. Te ligo. Puxa, onde botei meus sapatos? – Amanda teve vontade de jogar seu abajur na cara de Eduardo. Por que ela já sabia do desenrolar daquela história? Por que mesmo assim, topou? Estava com tesão, é certo; mas nem gozar conseguiu. Que arrependimento! Que nojo... que nojo... ficaria excitada em cima de sua imensa cama, totalmente só, olhando para o teto, enquanto o filho da puta já estaria longe. Sabia que dificilmente ligaria, era igual a todos! Mesma conversa, mesmas atitudes, mesmo desenlace... tudo bem. Encontrou forças e levantou-se para acompanhá-lo até a porta. Botou seu hobe; agora não conseguia olhar para o danado, estava envergonhada, puta com ela mesma. – que cara idiota! – veio dar a cuspidinha dele e se vai, assim, na maior, vai ver até tem namorada ou coisa parecida. Pensando bem, a idiota aqui sou eu! – desceu as escadas com Eduardo logo atrás, colocando ainda a camisa para dentro das calças. - Olhe – disse o moço virando delicadamente Amanda para ele tão logo pararam em frente à porta – me dê seu telefone, eu te ligo, gostei muito de hoje. – ela então lembrou daquele imbecil do Henrique, - saíram da mesma fôrma – pensou. - Faz assim, querido... se quiser me ligar, o Ângelo tem meu telefone. - Claro,claro! – disse um apressado Eduardo. Deu um rápido beijo na boca de Amanda que em seguida lhe abriu a porta, franqueando a rua ao convidado que partiu sem demora. Bateu a porta. - Que mulher idiota! – gritou, quebrando o silencio da imensa casa – que mulher idiota que eu sou! Ai... ai... senhora Amanda, vamos à masturbação! Pensando melhor... nem isso eu quero, broxei. – num ato automático levou as mãos crispadas às faces e numa perigosa pantomima, encostou as unhas em suas bochechas brancas, iria lacerá-las se não pensasse melhor em um átimo de segundo. Caminhou lentamente até a cozinha, abriu a geladeira e serviu-se de leite. Com uma crescente vontade de chorar, subiu ao seu quarto com o copo de leite, colocou-o na mesa de cabeceira e atirou-se na cama; não agüentou e desabou em um choro copioso, entrecortado de tanto em tanto pela palavra ‘idiota’. E assim foi, até as lágrimas secarem. Virou-se e mirou o teto. – cá estou novamente, só! Infeliz, usada, lambuzada, humilhada e... com tesão, caralho! Mil vezes caralho! Esse idiota bateu o Record! Sim, foi o mais rápido! Poderia contar no relógio! Não ficou meia hora aqui! Deu sua cuspidinha e se foi! Desta vez nem pude fantasiar nada! – Amanda tinha o hábito de fantasiar; isto desde o tempo daquela banheira, daquela água quente... gostava de imaginar, sentir o cheiro do homem em sua cama. Quando era 19


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abraçada, fechava os olhos e imaginava... imaginava... imaginava que aquele era seu príncipe, que aquele homem ali a amava, amava muito, não podia viver sem ela e nem ela sem ele, naquela hora não importava o rosto – benditos olhos fechados! – importava a sensação. Uma sensação de segurança, de afinidade, de final feliz, felizes para sempre e com belos filhos... enfim, de toda aquela baboseira burguesa que ela amava tanto. – tudo que quero é tão simples... por que não consigo? Tenho que me contentar com migalhas na imaginação. Migalhas de abraços, de beijos, de mãos, de paus, de carinhos... – de repente uma sensação estranha lhe subiu pela espinha. - Mas, - raciocinou – se tenho consciência de tudo isso, a força deveria estar comigo e não com esses idiotas que boto na minha cama... mas, como pode? Estou dando um poder a eles que na realidade eles não têm! Jamais teriam, se eu tão gentilmente não lhes entregasse o cetro e lhes dissesse: sim, sou a escrava! Sou a coitadinha, sofredora, eu... na realidade permito que assim seja... mas... mas... então? Que boba... ninguém é poderoso a não ser que lhes outorguemos o poder! – neste momento um rugido rompeu o silêncio do casarão e seus pensamentos se dissolveram de supetão. Seu sangue gelou. – o que foi isso? - paralisada pelo medo preferiu ficar quieta, mas em seguida sua carne congelou, outro rugido se fez ouvir, e muito perto, perto demais, como se a fera estivesse no andar de baixo. Seu grito foi asfixiado pelo pavor. Havia apagado as luzes do térreo, estava em seu quarto somente com a luz do abajur, uma luz serena que lhe incitava a olhar para a porta, o que fez inconscientemente através de olhos esbugalhados à procura de alguma explicação. Como assim, um rugido? De onde viria? De repente ficou mortificada pelo pavor... o porão... o porão!

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A PANTERA DO PORÃO

Cap 02

UMA PANTERA NA ESCURIDÃO

Amanda tinha as costas coladas à parede do corredor. À sua frente aquela porta, trancada às sete chaves. Estava entre irritada e amedrontada, pois não dormira desde que aqueles rugidos se fizeram ouvir. Teve de passar a noite estática, vítima da paralisia provocada pelo medo, imóvel em sua cama, como se a simples mudança de posição pudesse atrair a besta faminta que parecia estar tão perto. Teria sido uma alucinação? Mas foi tão real! Imaginou que poderia ser o imbecil do Eduardo tentando assustá-la, sabe-se lá porquê, através de alguma janela mal fechada. Mas não. Aquele rugido era poderoso demais, não era humano. Fez gelar seu sangue de uma forma que nunca sentira antes. Foi real! Lembrou-se do porão, o porão e seu mistério infinito... só pode ser o porão. Tudo naquela imensa e inútil casa ela conhecia, mas não o porão. Agora parada à frente daquela sinistra porta, protegida pela claridade do sol matutino e acolhedor, tomava coragem para conferir o mistério que lhe mortificou durante a passagem da negra noite, esta eterna irmã misteriosa do confiável e esclarecedor Astro Rei. Tinha a chave do porão em sua mão que tremia, enquanto pensava se aquilo era realmente a melhor coisa a fazer – meu Deus! O que haverá por detrás desta porta? – olhou para um lado e outro do corredor e o que 21


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podia ver lhe causava uma sensação de conforto, eram alguns móveis que recebiam a luz serena do Sol; tudo bem organizado, limpo, claro, - gosto das coisas que posso ver – mas, agora tinha de encarar um pesadelo... o porão. Respirou fundo. Não gostava do escuro, tinha medo do que não via, de perder a segurança tranqüila do que podia enxergar, definir, - bendita luz do Sol! – e agora essa! Ter de mergulhar na sombra, na sombra de sua casa, - merda! Por que tem que haver porões! – pensou que tudo seria mais fácil se as casas não tivessem aquele apêndice negro em suas entranhas. Tomou coragem. Calmamente enfiou a chave e a velha fechadura grunhiu contrariada, teve de fazer alguma força para terminar a operação; seu coração parecia saltar-lhe do peito. Quando empurrou com calma a porta, esta rangeu como uma velha ranzinza que recebesse, surpresa, dedos indiscretos em suas partes íntimas. Tentou acender a luz no disjuntor logo ao lado da porta já dentro no abafado local, mas este não iluminou nada. Teve de ir à cozinha apanhar uma pequena lanterna; parou então, e esperou por alguns instantes que as batidas em seu peito se acalmassem, mas percebendo ser inútil a espera, retornou ao misterioso recinto. Entrou com calma e o singelo facho de luz encontrou logo à sua frente uma longa escadaria; Amanda começou a descer degrau por degrau como se tateasse com os pés algo totalmente desconhecido. Discretos rangidos pareciam anunciar aos seres misteriosos, habitantes daquela escuridão infinita, que alguém, uma intrusa, aproximava-se sorrateira; que se escondessem no nada então. Amanda chegou a pensar em desistir da expedição macabra, subir aquela escadaria correndo e se mudar daquela casa, mas uma leve sensação de alegria começou a contagiar seus instintos, algo estranho, como se aquilo que fazia agora já tivesse de ter sido feito há muito tempo. Um odor estranho lhe entrou pelas narinas delicadas, um cheiro nauseabundo, - cheiro de porão – pensou. Sentiu um leve revolver no estômago, mas uma coisa era certa, iria até o fim. Um delicioso sentimento de vitória começou a lhe percorrer o íntimo; estava no porão! Estava no porão, finalmente! Estava vencendo seus medos, sentia orgulho de si mesma e um sorriso manso apossou-se de sua fisionomia, agora há pouco tão apavorada. Começou a lançar a singela luz pelas paredes sujas, logo focou prateleiras de parede, com latas de qualquer coisa abertas, tinha até medo de imaginar o que poderia haver naqueles recipientes enferrujados, também localizou alguns objetos como caixas, enxadas, pás e muitas... muitas teias de aranhas. Agora caminhava pelo porão e percebeu que ele não era tão pequeno assim, ao contrário, era até bem grandinho. – Amanda finalmente no porão, quem diria... – pensou, com algum júbilo. Mas no silêncio puro e infinito que fazia ali, percebeu algo. Ficou quieta. Era um ruído manso, quase imperceptível – parece uma respiração – concluiu, começando a ficar aflita e medrosa. Num ato instintivo, virouse lançando a luz em um canto e o que viu fê-la largar a lanterna que caiu no chão, 22


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mas não se espatifou, ao invés disso, ficou iluminando um animal negro e esquálido, pele no osso, que mantinha seu olhar forte em Amanda a despeito da visível debilidade física. Jazia quieto, deitado, só a cabeça erguida, no canto do porão. A mulher sentiu um misto de pavor e dó. Adorava animais, e aquele pobre bicho parecia estar famélico há muito tempo; calculou mesmo, que nem para uma possível investida não reuniria as forças necessárias – pobre animal – penalizou-se Amanda. Há quanto tempo deveria estar ali, quieto, faminto, observador do nada naquela escuridão sem fim? A luz morta da pequena lanterna machucava os olhos do bicho, mas a fera resistia e não tirava o olhar de Amanda e esta, como que acometida por um encantamento, também não conseguia desviar seus olhos daquele brilho belo e seguro. – oh, meu querido, pobre animalzinho! há quanto tempo você está aí? Solitário, imóvel, esquecido? – o sentimento de susto e surpresa cedeu rapidamente ao seu coração, que se desmanchou pelo pobre bicho numa espécie de solidariedade e cumplicidade à primeira vista. Pegou a lanterna no chão e aproximou-se da fera negra. O bicho estava debilitado – sabe-se lá a última vez que comeu, caramba! Até parece que nunca se alimentou! – mais uma vez traída pela extrema sensibilidade, começou a chorar. Reparou que ao lado do animal havia uma pequena poça oriunda de um vazamento, talvez aí estivesse a explicação para o fato daquela pantera estar ainda viva. Sim, era uma pantera, linda, porém débil. Amanda aproximou-se com cuidado. O felino não tirava seus belos e poderosos olhos dos da mulher, que sentia uma espécie de feitiço lhe entrar, etéreo, pelas veias que pulsavam. – uma pantera negra... – surpreendeu-se – linda... sim, muito linda... – fez então algo que não imaginava ter forças para fazer: enxugando as lágrimas com as costas das mãos, agachou-se diante da pantera, e seduzida pelo olhar da fera negra, acariciou sua cabeça. E assim ficou por alguns instantes, até receber em troca, em sua mão, a língua áspera e seca da bela e esquálida ferina; esta o fazia sem tirar os olhos dos de Amanda, que parecia estar agora sob uma espécie de encantamento. Sentou-se à frente do belo animal e depois de alguns momentos do que parecia uma meditação em que ambos os olhares não se desgrudavam, aproximou seu rosto àquela cabeça negra e beijou-lhe entre os olhos; uma sensação de fascínio e amor lhe assaltou o espírito e um frêmito de poder e felicidade fez brotar nos lábios um sorriso belo, sincero e... demoníaco. Amanda, a pantera e aquele porão escuro. A mulher chegou à uma conclusão: nunca sentira-se tão segura em sua vida – quem diria, estou segura... no porão!

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Amanda logo recolheu em sua imensa geladeira toda a carne que tinha, descongelou pedaços, ajuntou algumas sobras, fez o que pôde. Encheu também um grande pote com água fresca e sem demora levou ao seu animal faminto. Mais uma vez emocionou-se, ao ver o pobre bicho devorar com furor aquele alimento. Mal conseguia pôr-se de pé; foi nos movimentos desajeitados da pantera que percebeu tratar-se de uma fêmea. Amanda sorriu. – Minha pantera... ah, minha linda pantera... logo estará bela e forte, lhe juro! – disse, com uma inexplicável felicidade irradiando de seus olhos. Juntou a pequena lanterna do chão e calmamente subiu as escadas do porão; tão logo saiu do misterioso local, chaveou a porta. Lá dentro sua pantera comia tranqüila. Olhou para o relógio e correu para o banho, estava excitada, nunca em sua vida poderia imaginar algo tão bizarro e fascinante: uma pantera em seu porão! Aliás, nem poderia imaginar entrar no porão, quanto mais, seguindo os rugidos de um perigoso ferino. Enquanto tomava seu banho, pensava na situação inusitada; afinal, há quanto tempo a pantera estava no porão? Obviamente já ocupara a casa com o pobre animal definhando naquele vão escuro, ou, quem sabe, a coitada enfiou-se lá e não conseguiu mais sair – dane-se! não quero nem saber! Ela é minha! Minha pantera negra! – parada sob a água morna da ducha, levou as mãos ao rosto, um pensamento então lhe perturbou: mas um animal deste come muita carne... como farei para alimentá-la? Se me virem entrando com quilos e mais quilos de carne vão desconfiar! Além do mais a pantera gosta de caçar... gosta de carne fresca... claro, claro, só assim pode dar vazão aos seus instintos de fera. Lembrou-se de súbito daquele olhar fascinante e misterioso da besta, um calor então lhe percorreu o corpo e ela estremeceu sob a água morna. Num ato instintivo levou a mão à sua boceta e começou a acariciá-la. Um tesão misterioso foi apossando-se lentamente de seu corpo nu e livre debaixo daquele jorro contínuo e cristalino. Parecia mesmo, que pelo ralo, esvaía-se algo de si, e quanto mais a água passava pelo seu corpo, mais excitada ficava; entregou-se àquela sensação deliciosa e mansa, não sabia direito o que estava acontecendo, mas gostava. Seus sentidos logo se incendiaram, e no frenesi louco daquela sensação, entre insights daqueles olhos lindos e seguros, gozou alucinadamente, friccionando seu clitóris com sofreguidão enquanto com a outra mão apertava o bico do seio, que parecia querer saltar do corpo entre seus dedos.

No trabalho, não tirou um minuto sequer seu pensamento do porão. Um incrível enigma caiu em seu colo: o que aquele animal fazia em sua casa? Sempre estivera lá? Se não, como foi parar no porão? Mas... era linda... sim, sua pantera! Agora 24


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pouco importava as indagações periféricas, o que realmente assumia importância era a salvação e manutenção do bicho. Ela faria tudo ao seu alcance para salvar e fortalecer a misteriosa e bela pantera negra; e aqueles olhos... não saíam de sua mente... aqueles olhos... sim, ficara fascinada, fascinada por uma magia inexplicável, como se através da beleza misteriosa daquele olhar o animal lhe tivesse inoculado algo no espírito; algo estranho, forte, terrível até. Mesmo os funcionários de sua empresa estranhamente assumiam estaturas diferentes – menores talvez? – era estranho, sentia também que os próprios móveis pareciam menores, menos opressores, tinha a sensação bizarra de que os objetos acomodavam-se finalmente aos seus verdadeiros tamanhos, e que sob seu olhar recolhiam-se humildes às suas verdadeiras significâncias, nada mais. Significavam coisas, coisas estáticas, de belos desenhos, mas apenas coisas. Amanda estava entre uma espécie de fascínio e descoberta; tateava tudo com os olhos e sentia-lhes forma, textura, cores, significados. Mesmo a claridade que insidia em sua sala, entrando serena pela janela aberta, parecia diferente. Estaria tudo adquirindo uma nova coloração? Sentia que seu olhar era cúmplice das cores, dos tamanhos, das dimensões, das valorações; afinal, o que seria daquele ambiente quando ela não estivesse olhando? Estaria lá, mas morto para ela. Não seriam seus olhos a dar significado às coisas, às pessoas, à sua própria vida? À sua vida? O olhar da pantera... o olhar da pantera... Como podia ser tão fascinante e belo, estando todo esse tempo no escuro? Sem nada para ver? Como podia? Que força é essa? Porque não eram débeis aqueles olhos? Mortificados que foram pela ausência de cor, de luz? Mas... não seria então porque justamente não estavam distraídos por aparências? Tendo o animal que enxergar de dentro para fora e não ao contrário? Então... não estaria aí o segredo da força daquele olhar? Da beleza, do fascínio? Um olhar singular, de animal, de fera! De fera que imerge da escuridão mais pura, sem influência de luzes refletidas. Amanda nunca vira nada parecido em sua vida, e agora, atingida irreversivelmente pela força daqueles olhos, sentia que algo germinava em seu íntimo; alguma coisa misteriosa, forte, capaz de proporcionar mudanças profundas. Afinal, queria mudanças substanciais em sua existência? Ou estava com medo de mergulhar nestes sentimentos tão insipientes, mas tão amedrontadores? Seu coração batia mais forte. – tem uma pantera no porão! – Amanda foi ao lavabo de sua sala e parou em frente ao espelho, fitou-se nos olhos e reparou que nunca os vira tão pretos, pareciam mesmo dois profundos abismos negros. Conferiu, através de seus abismos de negritude infinita, o restante de seu rosto redondo e branco. O que há bem pouco tempo parecia algo sem graça, incrivelmente já não se apresentava assim; o rosto era o mesmo, mas o olhar não. – como quero que os outros me vejam e gostem, se eu nunca soube me ver? ... Será que eu nunca tive olhos? – Amanda estava fascinada. Parecia que lentamente 25


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acordava de uma espécie de sono ao contrário. A verdadeira Amanda dormia quando acordada. Não era de estranhar então, que tudo e todos assumissem estaturas gigantescas, ameaçadoras; todos eram melhores que ela, porque ela não era ela, era a ideia que os outros faziam dela. – sempre fui uma fraca! Me deixei delinear pelos olhos alheios! – esta conclusão lhe assaltou o pensamento de supetão e causou tal surpresa à própria pensadora, que ela afastou-se do espelho e levou as mãos ao rosto – o que está acontecendo comigo? – parecia que algo lhe rasgava a alma, algo que vinha de dentro, forte, agudo, como as unhas afiadas da pata de uma felina negra! Amanda foi à janela, deixou-se sentir o ar; olhou para sua mesa de trabalho, tudo bem ajeitadinho, tudo em seu devido lugar; uma profissional exemplar! Até bem pouco tempo parecia que só isto lhe bastaria, mas não, agora sentia que submetia sua vida a um molde, seria ela tão pequena para caber em moldes? Carregar uma reputação? – Oh, esta é a senhora Amanda, profissional exemplar, infeliz em sua vida pessoal, mas exemplar! Mas convenhamos, senhores, não sejamos hipócritas, o que pode nos interessar seus infortúnios interiores? quando bota sua cabeça no travesseiro? Não é de aparência, dinheiro e reputação que estamos falando? – Amanda viu-se em uma grande engrenagem. Especializara-se em fazer parte desta engrenagem, mas a engrenagem ficava do lado de fora de seu quarto, e era ali, na solidão do travesseiro que os agentes dos abismos profundos vinham lhe cobrar a conta. Percebeu que vivia de sol a sol, mas e a noite? irmã negra, serena e misteriosa do Astro Rei? Agora, pela primeira vez em sua vida, percebia que sempre pagou caro por esse desprezo, um desprezo involuntário é verdade, mas um desprezo. Involuntário porque, agora percebia, sempre fora levada a crer que a noite era algo demoníaco a ser evitado, querem Amanda ao Sol, onde podem vê-la, o escuro é perigoso, no escuro se é invisível, e todos têm medo do que não se torna delineável. Amanda era delineável: profissional bem sucedida, tímida, insegura, desinteressante, solitária compulsória no tocante a casos amorosos. Fora coroada com esta máscara solar, e acreditou piamente nesta história. Todos amam as mentes mansas, aquelas que tal qual cachorrinhos carentes e obedientes se submetem aos afagos alheios. Uma lágrima fugiu pela face da moça, seu olhar havia se perdido através da janela aberta. Não seriam seus melhores amigos aqueles entes demoníacos, que ela tão caprichosamente evitava que subissem à tona? Por que nunca olhara para dentro? Que medo era este que tinha? Não tivera medo de porões durante sua breve vida? E que ironia! Não foi no porão de sua casa que encontrou seu belo animal? Ao lembrar-se da pantera enxugou a lágrima com as costas da mão e sorriu, sim, sua linda pantera... aos poucos foi deixando um imenso sorriso apossar-se de seu rosto, uma acuidade de águia incorporou em seu olhar e aos poucos seu semblante mudou; 26


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agora ostentava, parada em frente à janela, uma beleza misteriosa, feliz, livre... e fatal.

- Não, querida, hoje à noite não, vamos deixar para outro dia. – disse Amanda ao telefone; fazia agora uma coisa da qual não gostava, cortava sua amiga Linda. Não queria ir para nenhum bar. Tinha coisa mais importante a fazer: alimentar seu animal. Comprara muita carne e o telefonema da amiga justamente pegou-a quando cortava imensos pedaços de carne crua e sangrenta; só agora percebia que atendera ao telefone com a mão ensangüentada e isto lhe perturbou um pouco, chegou por instantes a não prestar atenção no que Linda dizia... - Oie! Você está aí? Alô... alô... – insistiu a amiga. - Ah... desculpe... claro... sim, estou aqui, é que você me pegou fazendo algumas arrumações aqui no mausoléu. – Amanda sentia alguns impulsos de soltar a língua e confessar à Linda sobre seu estranho e surpreendente achado, mas... melhor não, isto teria de ser um segredo, um segredo só dela e de seu animal, ademais, não sabia que conseqüências poderiam surgir a partir daí. Certamente os amigos, espantados, tentariam convencê-la a chamar o zoológico ou qualquer coisa assim. Era certo que não ficaria com sua pantera, isso ela sabia... – Tirei esta noite para isso. Mas, divirtam-se, amanhã falamos. - Olhe, o Eduardo parece que vai, hein? hein? - Quem, o cuspidinha? Idiota! Nem quero saber... outra hora te conto. Olha, Linda, preciso desligar mesmo – olhou novamente para o sangue em sua mão – tenho que terminar algo aqui com urgência. - Porra! Você está estranha, hein? Tudo bem, falamos amanhã. Quero que me explique esse negócio de cuspidinha, hehe... tchau! - Tchau, amor! – desligou o telefone e por alguns instantes não tirou os olhos das marcas de sangue que ficaram no aparelho. Sentiu uma sensação estranha. Foi à cozinha, umedeceu um pano e retornou para remover as manchas; fê-lo com cuidado, como se tivesse eliminando evidências de um crime. De volta à cozinha, retomou seus afazeres, e ao terminar de cortar a carne em postas, ajuntou-as em uma imensa bacia de plástico. Sem demora, levou tudo ao porão. Abriu a porta e desceu as escadas com muito cuidado, carregava a pesada carga e também a lanterna com sua fraca luz. A pantera rugiu no escuro, o cheiro do sangue chegara à suas sensíveis narinas. O fraco foco de luz logo encontrou os olhos do animal, que importunado, desviou o olhar. – Desculpe, querida, lhe incomodar na sua escuridão mansa, mas é hora de comer, meu amor. - Ato contínuo, colocou a bacia à frente do bicho. A fera 27


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avançou na carne crua, ensangüentada, e em seguida já emitia seus grunhidos de êxtase pelo alimento suculento. Amanda, fascinada, não tirava os olhos da besta faminta e esta, num gesto calmo e surpreendente, parou de comer e levantou seu olhar de fera, lentamente, até encontrar os olhos de sua dona, que sentiu um calor misterioso se apossar de seu corpo. Um estranho feitiço. Logo a besta seguiu seu banquete tranqüilamente e Amanda resolveu com uma pá que se encontrava por ali e também um balde velho, limpar os excrementos de seu animal de estimação. Amanhã pela manhã, lavaria tudo. Após algum tempo, terminava sua limpeza quando a pantera, ao acabar de comer, veio vagarosa e mansa esfregar seu dorso negro em suas pernas. Agachou-se então e abraçou o bicho num gesto instintivo de amor e fascínio. O animal recebeu os afagos com paciência e deleite, desvencilhando-se em seguida para, com seu andar calmo, ir descansar com o bucho cheio em um canto sombrio do porão. Amanda, que havia deixado a lanterna em uma prateleira enquanto realizava a limpeza sob a sua parca luz, apanhou-a e focou a felina. O bicho negro, deitado, lambia serenamente uma pata e a passava de tanto em tanto ao redor da cabeça como que para espalhar o bálsamo oriundo de sua saliva purificadora. Parou e fitou a mulher, como que querendo sua atenção para o que ia fazer a seguir; ato contínuo, sem tirar os olhos de Amanda, ergueu uma pata e deixou brotar lentamente suas afiadas e ameaçadoras unhas, e em seguida, mantendo seu olhar hipnótico na dona, começou a mordiscar a ponta de suas potentes garras. A garota agora estava sob o encanto mágico da beleza daqueles gestos. Eram gestos calmos e harmoniosos, que traziam intrínsecos a potência de uma força avassaladora. Era uma coreografia mansa, serena, mas sempre mortal; permeada por uma calma enigmática, de profunda beleza. Amanda via naquilo uma espécie de dança, uma dança lenta e negra... a estética das sombras. Naquele momento nada podia ser mais belo... Seus olhos brilharam, dando vida ao reflexo daquela luz fraca, e quem sabe intrusa, da pequena lanterna, e então um sorriso puro feito da mais profunda alegria se abriu em seu rosto. A cabeça da fera se contorceu lentamente e um inesperado e forte rugido saltou da garganta, fazendo presas amareladas e mortais ficarem à mostra por um instante. Amanda acordou-se do torpor e reparou que o animal havia se levantado e caminhava, calmo, rente a parede indo de um lado para o outro; às vezes parava e olhava para a luz da lanterna. A moça achou então que já era hora de deixá-la em paz, conferiu a água no pote, juntou a lanterna, o velho balde com os dejetos, e saiu tranqüila do porão. Logo encerrou suas tarefas, limpou a cozinha, tomou seu banho com calma, e meteu-se na cama. Naquela noite não teve insônia e nem se lembrou do travesseiro, ao contrário, dormiu como há muito tempo não fazia, afinal, havia uma pantera no porão. 28


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Mais uma manhã no escritório. Despachava alguns assuntos insignificantes com funcionários, dava alguns telefonemas, empurrava o dia com a barriga, sua cabeça estava entre confusa e extasiada. Sentia que desde que encontrara seu animal, algo de si ficava pelo caminho, algo velho, rançoso, morto até. Parecia uma serpente que lentamente deixava sua pele velha para trás, dando vazão a algo viçoso e puro que aflorava do íntimo. Uma flor exuberante que nascia na escuridão, trazendo novos aromas e cores; talvez cores desconhecidas em pétalas risonhas. Sabe-se lá afinal no que pode dar o que tem raízes na sombra. A sensação era boa, nunca se sentira assim em sua vida; com freqüência pegava-se sorrindo sem motivo algum, bem, pelo menos não aparente – vá lá saber das coisas que vêm de dentro! – mesmo a lembrança de seus amigos lhe parecia um pouco distante, a própria lembrança de si mesma até então, lhe parecia confusa. Era acometida também, com uma freqüência crescente, por calores que lhe subiam pelo corpo numa sensação deliciosa, ficava tesuda, queria homem... sim, não podia mentir para si mesma, tinha vontade de pegar quem tivesse mais próximo e atracar, num pulo, a sua presa. Seria cio? Uma cadela no cio? Foda-se! Queria com cada vez mais força. Sabia que isto havia iniciado quando encontrou a pantera, algo que inebriou seu DNA, sentia como se alguma coisa descongelasse dentro dela. Mesmo à frente do espelho não parecia ver a velha Amanda de antes da pantera; algo havia mudado em seu olhar, não encontrava mais as amarras invisíveis do medo, que tantas vezes roubou-lhe o brilho. Pensando melhor, talvez estas vendas lhe impedissem de ver... quem sabe agora começava a enxergar? Algo desapareceu de seus olhos negros, algo que lhes impediam a acuidade, algo que lhe nublava a visão. Sentia uma febre estranha por dentro do corpo, um calor cheio de desejos, vontades, ambições; recuperar o tempo perdido? Finalmente começava a enxergar com seus próprios olhos e isto lhe dava uma sensação infinita de poder, sentia que finalmente sua existência desabrochava através da flor da individualidade. Encontrava-se agora do lado de fora dos imensos muros da prisão que até então imaginava estar presa. A prisão só existiu porque ela, simplória e tola, se deixou aprisionar. - agora basta! Tem uma pantera no porão, ela é linda... que gestos... que majestade... que segurança... que olhar! – Amanda encontrava-se só em sua sala e começou então a imitar seu animal, crispou sua mão esquerda e afiadas unhas imaginárias foram surgindo mansas. Foi ao banheiro de sua sala imitando a malevolência do andar da pantera e ao chegar à frente do espelho, mirou-se nos olhos e a força do animal surgiu através do negrume daqueles olhos... lindos, pretos, desafiadores, luxuriantes, felinos... 29


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Cap - 3

SAINDO PARA A LUZ

Não foi tarefa fácil, mas Amanda conseguiu inventar desculpas esfarrapadas para manter-se longe dos amigos por aqueles dias. Eduardo havia lhe ligado duas ou três vezes -‘o idiota!’- mas ela não lhe deu a mínima, com educação, claro. Seu fascínio pela situação estava falando mais alto, mesmo gritando; naqueles dias não havia então espaço para mais nada. Ia ao trabalho e agia quase de forma autômata; dava ordens, fazia conferências e mantinha a cabeça no porão. Quando de volta à sua casa só queria saber da pantera. O animal já havia recuperado boa parte da saúde e ela então deixava a porta do local aberta enquanto estava em casa, mas o bicho não saía durante o dia. Já à noite era tudo diferente, o instinto caçador aflorava e ela perambulava pelos cômodos de seu lar, um lar estranho, iluminado por luzes artificiais e fracas. A pantera andava lenta e cuidadosa, reconhecendo cheiros, cores, nuances, coisas imóveis, quietas, objetos estagnados, mortos. Nada se mexia, era tudo parado, e o olhar seguro e enigmático do bicho em tudo pousava à procura de algo, quem sabe uma pequena presa, qualquer coisa que corresse, que fugisse de supetão, escapando de baixo de um sofá ou armário... Qualquer coisa. O animal conferia todas as entranhas da casa, beco por beco, porta por porta, cheiro por cheiro, escuro por escuro, claro por claro, roupa por roupa... Tudo continha o aroma de sua dona. Quando terminava sua expedição a pantera encarava Amanda, pousando-lhe seus olhos negros e mortais, e sem demora então retornava ao porão. Quando das incursões da ferina pelas áreas iluminados da casa, Amanda a seguia quieta só observando, e seu fascínio só fazia aumentar. Seu bicho tinha o andar lento e calmo, com uma elegância e sutileza que impressionava a mulher; a segurança dos gestos e do olhar lhe causava uma espécie de excitação existencial, algo que achava difícil de definir, mas fácil de sentir. Amanda sentia e sentia, e mais e mais. O perigo contido na beleza daqueles olhos era difícil de avaliar e isso lhe provocava calafrios, etéreos calafrios, deliciosos calafrios. O animal portava 31


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instintos mortais que lampejavam nos imensos olhos seguros, e que por não saber nada da moral dos humanos, continuavam lá quando os pousava em Amanda. A força da pantera não carecia de reconhecimento alheio, ela era poderosa e ninguém precisava lhe dizer isso; e também nem precisava saber disso, não mudaria nada, ela apenas era e pronto. O poder que emanava da besta vinha revestido de uma autonomia graciosa, oriunda de uma felicidade que só pode estar contida nos que sabem que são, e em sabendo que são não precisam de mais nada. O bicho roçava-se na dona quando tinha vontade, recebia carinho quando tinha vontade, perambulava quando tinha vontade, rugia quando tinha vontade... e recuperava-se a olhos vistos. Sua musculatura imponente já se fazia notar abaixo do pelo negro azulado. Aos poucos também ficava mais ágil e Amanda levou um tremendo susto quando em um de seus passeios a pantera saltou para cima de uma antiga cristaleira, móvel de família, que mantinha em sua sala e que quase foi ao chão com o impacto. Uma vez em cima do móvel, ‘passeou’ seu olhar poderoso e calmo em tudo que sua vista alcançava, como um reconhecimento de terreno e lá ficou por muito tempo. Os hábitos de seu bicho de estimação aos poucos se desvelavam e a mulher, sempre curiosa, apanhava por onde andasse qualquer coisa deixada pela trilha. Um jogo delicioso de aprendizado, fascínio e amor. Amanda mesmo já não agia tão afoita, pois de tanto reparar na pantera negra, sentia-se agora inebriada pela magia daquela presença solene e serena. Reparou que a força não está na agitação, mas na calma... mesmo por dentro sentia que tudo acalmava, como se lentamente seu caos interior encontrasse abrigo nas profundezas de um imenso abismo, um silencioso abismo. Os gestos da pantera eram permeados por uma sensualidade desconcertante, algo que impressionava Amanda; era uma coreografia oriunda da autonomia dos mais puros instintos; autônomos, poderosos, primitivos e naturais instintos. Um ballet silencioso que não precisava de aplausos, aliás, não precisava de nada, pois a ferina era música também. O que é, ‘é’, seja lá o queira dizer ‘ser’. A pantera intimidava porque ninguém nunca lhe convenceu de que era feio intimidar, a pantera fascinava por que ninguém nunca lhe convenceu que era feio fascinar, a pantera era perigosa porque nunca ninguém lhe convenceu que era feio caçar... e nem nunca poderiam convencer. O que havia de selvagem e indômito naquele ser sanguinário e sensual é o que a transformava no que ela era. A dona do animal sentiu-se diminuída no começo da convivência, mas em seguida, feliz, percebeu que tinha tudo a aprender com o lindo e carismático ser. Uma troca justa, Amanda proveria alimento para a pantera e ela lhe ensinaria as artes da sedução; a mulher estava radiante, parecia mesmo que havia nascido de novo.

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Seis meses depois...

Um investigador mantinha a mão no queixo e os olhos em um mural na parede da delegacia de policia. Após alguns minutos retirou três fotos. Foi até sua mesa, sentou-se e continuou a matutar sem desviar o olhar das três fotografias; dava pequenas batidas com a mão na mesa como se batucasse alguma música. Pegou uma papelada e leu. Depois de algum tempo o policial levantou-se e foi até a sala do delegado; distraído, esqueceu-se de bater e abriu a porta. O superior, que se encontrava sentado à sua mesa, levou um susto e largou algo que tinha nas mãos. -

Porra Cássio, não se bate mais na porta?

-

Desculpe delegado, não sabia que estava nas suas ‘sessões de terapia’, he he...

- Você sabe muito bem que adoro ler revistinhas de sacanagem em meio ao expediente, é uma maneira, singela é verdade, de cometer um delicioso e inocente delito. Cara, acho que estou ficando cada vez mais tarado! Hoje à noite, se não der nenhuma merda aqui na delegacia, vou pra putaria da Neuza. – o delegado Valter Corrêa, ou apenas delegado Corrêa, transpirava muito quando se excitava. Seu rosto magro, emoldurado por cabelos grisalhos um pouco longos, costumava apresentar um filete ou outro de suor quando falava em sexo. Seus subordinados não raras vezes puxavam o assunto só para ver Corrêa transpirar. Cássio não achava muita graça naquilo e até atribuía a algum problema glandular a reação epidérmica do superior. Corrêa agora limpava o rosto com um lenço e levantando-se indagou ao detetive: - Qual o problema, porra, pra você abrir minha porta sem bater? - Bem... – atirou as três fotos sobre a mesa – esses caras aí estão desaparecidos -

E...?

- Olhe só, estou meio desconfiado... esses caras saíram de casa para se divertir, foram a bares, boates e depois nunca mais foram vistos. Sumiram no nada! Pum! Evaporaram! - E...? 33


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- Sei não, delgado. O senhor não acha muita coincidência? Olhe bem essas fotos, são sujeitos bem apessoados, de boa família, bons profissionais em suas áreas, estive pesquisando... nada de pistas, nada de corpos, nada, nada... - Você deveria saber, mais que ninguém, que pessoas desaparecem aos milhares todos os dias, sem um corpo não temos nada. Além do mais, esse assunto de desaparecidos está com o Evaldo. - Sim, eu sei. Mas aí é que está, eu gostaria de ficar com esses casos, delegado, sou um perdigueiro melhor que ele, e não acho que esses desaparecimentos sejam mera coincidência. Além do mais, o Evaldo detesta esse tipo de investigação e, me permita que o diga, Evaldo carece de certa sofisticação no trato de assuntos mais, digamos, intrincados. - Por que você não diz logo que acha seu colega um burro? - Porque sou educado. – disse Cássio com ar de zombaria. - Não, porque é um pretensioso! Você se acha mais inteligente que todo mundo! Quer desafios cada vez maiores e então precisa criá-los, pois não existem. Se estou entendendo bem, porque também sou meio burro, você está sugerindo um assassino em série. Ora, Cássio, meu filho, volte para sua mesa e deixe Evaldo fazer o feijão com arroz dele, não traga mais problemas para esta delegacia, já temos o bastante. Três caras desapareceram, sim, e daí? Quem sabe não estão bem longe, divertindo-se e rindo da nossa cara...da nossa, da família deles, da puta que o pariu! - Mas delegado... - Pronto, era isso. Agora vá e me deixe terminar de ver essas bocetas e bundas maravilhosas... logo à noite eu vou lá pra Neuza. Não me arrume problemas. – e um filete se suor começou a descer, lento, pela têmpora de Corrêa. Cássio obedeceu. Mas não tardaria a ter novamente com o superior. Três horas depois da conversa, o delegado chamou o investigador de volta à sua sala; estava sentado à sua mesa e tinha um papel na mão. - Sente-se – ordenou. Cássio estava curioso – muito bem, senhor Sherlock, temos um quarto desaparecido com as mesmas características. Vou lhe botar no caso, mas 34


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não por sua suposta genialidade, e sim porque você demonstrou mais interesse. E quer saber? Pra mim esses caras são gays; vida dupla, entende? Aparecem em bares héteros só pra despistar e depois saem de fininho para procurar travestis ou qualquer coisa assim. Pode apostar que tem bicha na jogada! Uma bicha rancorosa e vingativa. Sou macaco velho nesse negócio... digo... de investigar! estou falando desse negócio de investigar, seu mente suja! Corto um dedo se não for isso: uma bicha vingativa. Bem, o problema agora é seu. Vai, perdigueiro, vai! Traz a bicha assassina pra mim! Digo... traz pra cadeia, seu mente suja! Pra cadeia! - Não vai se decepcionar, lhe garanto, delegado. - E lembre-se: isso não pode sair daqui da delegacia, ninguém desconfia de um serial killer devorador de corpos solto por aí, que continue assim. - “devorador de corpos”, gostei... hehe... – brincou Cássio. - Bem, pensar o quê? O filho da puta, no mínimo, deve atrair a caça para sua toca, a destrincha e acomoda os pedaços em um freezer, não me admiraria se fosse um canibal; portanto, cuidado meu filho; não gostaria de vê-lo temperado com pimenta do reino. Essas pessoas são muito espertas, tem tudo bem planejado, cuidado. Este pobre coitado aqui – olhou para o papel em sua mão – disse a um familiar que na noite do desaparecimento iria ao Sexton Bar, talvez seja o melhor lugar para começar sua investigação – entregou o papel a Cássio - mantenha-me informado e lembre-se da pimenta do reino! Não dê mole! – Corrêa abriu uma gaveta e em seguida puxou uma revista de sacanagem – começou a transpirar – Agora vai, que meus planos continuam de pé, vou pra Neuza mais tarde; que lá quero saber eu de desaparecidos! Bem... boa sorte, e tomara que sejam só coincidências, nada mais. - Vamos ver, delegado, vamos ver...

Quando saiu da delegacia o manto negro da noite já havia deitado seus mistérios por todos os becos e vielas da cidade. Cássio apertou a gola de seu sobretudo enquanto um vento frio brincava ruidoso em seus cabelos castanhos e finos. Achava que 35


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depois de examinar bem as fotos das supostas vítimas, poderia ele mesmo, encaixarse no perfil físico que atraía o assassino. Tinha trinta e alguma coisa, era bem apessoado, porte atlético e a pretensão de ser alguém dotado de alguma inteligência. Realmente não sabia o porquê de interessar-se tanto pelo caso, mas alguma coisa ali o fascinava feito um abismo, que sempre convida a quem o contempla a saltar para a morte fria de suas entranhas. Também achava que nada era tão simples como deduzira Corrêa: uma bicha raivosa!Não, não, muito clichê... – Aí tem – pensava com seus botões – Aí tem coisa grande – e uma excitação se apoderava de seus sentidos. Estava em suas mãos a captura de um, suposto até então, serial killer. Mas para ele não era um ‘suposto’ assassino em série, não, tinha certeza de que pelas negras sombras da noite da cidade, um ente misterioso, sanguinário, e mesmo muito sofisticado, seduzia suas vítimas indefesas para sua teia, feito uma aranha faminta. O Sexton Bar – hmmm...- bar de caça, onde homens e mulheres abrem fogo através da eterna mímica da sedução; onde as palavras são um mero imbróglio pelo qual corpos famintos por sexo têm de passar; mera formalidade que a civilidade impunha, nada mais. Nas mesas pequenas e redondas do claustrofóbico Sexton, mãos e olhos procuram-se através da fumaça que permeia o ambiente viciado e lúbrico, lugar ideal para quem possui tesão exacerbado e procura seus pares. O problema é que em um ambiente propositadamente sombrio assim dificilmente se guarda feições de outros rostos, só as do que interessa; no caso em questão será o último que a vítima verá. Não existem rostos a guardar, existem corpos desejosos que não reparam em nada que não outros corpos desejosos, sempre imersos na mansidão cega e violenta do desejo vivo... casais provisórios que não ligam a mínima porque já embriagados de tesão, álcool e drogas, apenas visam o fim. – uma agulha num palheiro, não é como dizem? Ora, por que não? – e também não era tão ingênuo assim nessas coisas. Não foi uma nem duas vezes que foi ao Sexton à procura de companhia. Lembrou-se de que nessas ocasiões ficara muito excitado por conta das insinuações escancaradas que lhe chegavam aos olhos através de pernas à mostra, olhares desejosos e bundas pulsantes que requebravam à sua frente, fazendo ferver seu apetite. O próprio ar pesado do local vinha impregnado de deliciosa lascívia, era impossível ficar indiferente no Sexton Bar. Havia levado para casa mulheres de lá, trocou telefones por mera formalidade, e nunca mais as viu. Era o lugar ideal para encontros fortuitos, sexo sem compromisso, e foi justamente isso que procurou quando lá esteve. Era um começo. O assassino caçava, e sabia muito bem onde fazêlo. Os outros bares onde os desaparecidos estiveram pela última vez não fugiam ao mesmo perfil do Sexton, portanto uma linha tênue de raciocínio começava a se formar em sua mente. Tratava-se de um predador habilidoso, um caçador metódico, 36


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possivelmente munido de boa dose de sensualidade e... decidido! Depois de escolhida a presa, suas horas estavam contadas! Era fatal!

Cássio foi à luta. Munido das fotos dos desaparecidos, procurou famílias, amigos, fustigou alguns constrangimentos [dois eram casados], apertou aqui e ali, mas pouca coisa lhe sobrou nas mãos. A única certeza que julgara ter colhido era a de que se tratava de sujeitos absolutamente corriqueiros, normais, verdadeiros estereótipos burgueses sem nada mais nem menos. Um perfil vago. Precisava muito mais, foi a bares e boates, encarou pessoas, matutou, bebeu uísque, ensaiou alguns flertes e quando saída do Sexton mostrou as fotos ao porteiro. - Hei! Este aqui eu vi algumas vezes – disse o homem com uma das fotos na mão – mas é difícil puxar pela memória. Isto aqui é um entra e sai do caralho! É complicado guardar rostos, mas... mas... – o porteiro olhou para cima enquanto revolvia a memória atrás de qualquer migalha de lembrança. Finalmente, ainda um pouco reticente, continuou: - É complicado, mas se não me engano esse cara saiu com uma mulher, não me lembro de seu rosto... - Uma mulher? - É... é... passou batido, entende? É muita gente! Para lhe dizer a verdade ela pode estar aí dentro que eu não saberia dizer quem é, infelizmente é tudo de que me lembro. -

Uma mulher... – Cássio perdeu seu olhar no nada enquanto divagava - por que será que nunca julgamos ser possível que seja uma mulher? Sim, uma mulher, por que não?

- Bem, lembro dele – prosseguiu o porteiro – porque me deu algumas gorjetas, não fosse isso e não recordaria de nada, pois esse sujeito não é freqüentador assíduo da boate. -

Uma mulher... – Cássio permanecia meio aéreo. 37


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-

Tudo bem com o senhor? Claro! Claro! Agradeço muito. – Cássio deu um tapinha nas costas do porteiro e afastou-se. Agora sua mente criara asas, e já voava longe...

A festa seguia animada na casa de Amanda; vinhos caros e até champanhe ela abriu para brindar o encontro com os amigos de sempre. Em sua imensa sala as risadas e vozes entrecortavam-se ruidosas. Noite fria. Assuntos repisados. Risos pelos motivos de sempre. Alguém que se engasga. Mais risos. Lá pelas tantas a anfitriã foi à cozinha; procurava qualquer coisa na gaveta quando Ângelo entrou com um sorriso maldoso no rosto e uma pergunta intrigante: - Certo. Qual o segredo? Amanda virou-se para o amigo com um riso que o fez tremer levemente, motivado por alguma coisa estranha. - Segredo? Segredo de quê? De proporcionar aos meus amigos as melhores bebidas? Ora, eu ralo muito, querido. De que me valeria trabalhar tanto se não pudesse me divertir? - Amanda... Amanda querida... não se faça de louca comigo, não vai funcionar. Tenho certeza de que você entendeu o que eu quis dizer. Esse riso confiante, esse brilho no olho, esse jeito... esse jeito... sei lá... algo mudou, não sei o quê. Sei é quando você chega perto meus pêlos eriçam, fico meio zonzo, meio perdido, parece que estou lhe vendo pela primeira vez, e gosto, gosto muito do que vejo. Não sei, parece um feitiço, um gostoso feitiço... - Um feitiço? – Amanda aproximou-se e olhou dentro dos olhos do rapaz, que parecia uma presa a ser devorada por um predador. Sorriu e acariciou o rosto de Ângelo, este tremeu levemente – Oh, meu enfeitiçadinho... – virou-se de costas para o homem, muito junto, e girou seu rosto até quase encostar sua boca na do amigo – Tem razão, é um feitiço – sussurrou – mas um feitiço traiçoeiro, muito traiçoeiro... cuidado querido, sua namorada está na sala. – sentiu, então, mãos trêmulas de desejo 38


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lhe chegando às ancas bem delineadas por seu vestido preto. Pulou fora. E riu, quando viu a ereção indisfarçável na calça justa de Ângelo. - Amanda... – a voz do rapaz surgiu fraca, quase engasgada. Amanda soltou uma gargalhada, recheada por algum deboche, mas isso só excitou mais o moço, que avançou descontrolado, tomado por um tesão visceral e cru. Agarrou a mulher de frente sem parar de sussurrar – Amanda... Amanda... – uma de suas mãos foi parar na bunda da moça, que gritou: - Linda! – Ângelo desgarrou-se apressado e tentou se recompor, mas a arma do crime estava lá e permanecia dura dentro de suas calças jeans. Sentou-se rápido em uma das cadeiras da cozinha. A anfitriã ria em tom de zombaria. Quando Linda chegou encontrou seu namorado branco e sem jeito, feito uma criança que tivesse feito alguma merda. - O que houve querida? – perguntou surpresa. -

Nada sério, espero. Acho que Ângelo bebeu demais, agora mesmo quase caiu. Hi hi... talvez você deva levá-lo embora.

- Levante, querido, mostre a ela que você é bom de copo. Faz um quatro pra nós. Vamos levante! – o rapaz, visivelmente sem jeito, balbuciou qualquer coisa e permaneceu sentado, pois se Linda visse seu pau duro nas calças seria uma catástrofe. - Levante Ângelo. – Linda ordenou calma, séria e desconfiada. - Está certo, me rendo, bebi demais! – disse o homem imitando voz de bêbado, pois não via outra saída. – nisso chegaram Telmo e Maíra ao teatro da cozinha. Telmo emendou: - Bêbado nada! Duvido que esse mangolão aí se embebedasse assim, tão facilmente, olhem pra ele, está branco! Na certa é queda de pressão... - Já chega! – explodiu Ângelo, ficando em pé de supetão, pois a “evidência” já havia murchado – Vamos embora querida, realmente não me sinto muito bem. - Não? – admirou-se Linda – puxa, que mistério!

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- Acho mesmo, que hoje é a noite dos mistérios... – brincou Amanda, que mantinha um sorriso radiante e impertinente no rosto iluminado - Quem diria hein, Ângelo? Quem diria, logo você... – o rapaz empalideceu novamente – logo você, tão forte para bebidas! - Bem, querem saber? – disse Maíra – acho que a noite terminou. Devemos ir todos, o clima está estranho... é a primeira vez que vejo Ângelo passar mal, seja lá por que motivo for. – Linda, que fitava o namorado com olhos sérios e curiosos, então se retirou apressada da cozinha, apanhou sua bolsa na sala e saiu da casa deixando a porta aberta, como uma espécie de aviso de que a festa realmente terminara e que todos deveriam partir. Ângelo foi atrás. Maíra e Telmo despediramse sem jeito de Amanda, que permanecia tranqüila e sorridente. Já na porta, Maíra voltou-se para a amiga: - Mas afinal, o que houve naquela cozinha para tudo terminar assim, tão de repente? - Sinceramente... não sei. Mistérios, minha querida amiga, mistérios... – a resposta intrigou mais ainda Maíra que em seguida partiu com Telmo. Amanda acompanhou da janela o casal entrar no carro e partir. Em seguida, excitada, pegou sua bolsa e dirigiu-se à garagem. Entrou em seu automóvel e partiu também rumo à noite escura, sua calcinha estava molhada...

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CAP - 4

A CAÇADA

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Olhos negros. Dois abismos famintos na noite fria da cidade. Olhos que a tudo observam, que a tudo desejam. Olhos aos quais as luzes da metrópole emprestam falsos lampejos, lampejos coloridos que piscam insistentes projetando suas atrações mais variadas, tolas, bobas tentações... bobas linguagens... olhos aos quais são atirados convites na forma de imagens luminosas, letreiros ingênuos, convites inócuos. Olhos que caçam. Dentro do automóvel que se mexe lento, esses olhos percorrem as ruas e examinam tudo lá fora, medem, avaliam... agora esse olhar perigoso é de um mistério infinito. Olhos de puro instinto, olhos predadores, portadores do brilho insondável da morte. O pensamento embriagado, embebido em vinho-sangue. A calcinha molhada, uma mão no volante e outra que brinca entre as pernas, o dedo tênue, o sorriso manso, um gemido gracioso que escapa fugidio feito um pássaro. Tudo lento, espontâneo, etéreo. – Ali! – pronto. Alguma coisa chamou a atenção da caçadora. Estaciona o carro em lugar ermo, escuro, sombrio. Não tem medo. Caminha um bom bocado. Ao entrar na boate, sente o bafo quente e ruidoso; uma mistura de fumaça, desejo, álcool, sexo. A casa está cheia. Vai até o balcão; logo um homem lhe dá lugar – Pode sentar aqui. – diz solícito. A mulher sorri – Que gentil. – os olhos da recém-chegada invadem, feito faca afiada o olhar do moço. O feitiço está posto. Ela gostou do homem. – Posso lhe pagar uma bebida? – pergunta o cavalheiro. Claro que pode, a fêmea assume um ar ingênuo, começa agora a se fazer lentamente de vítima de caçador; começa a construir lentamente o pedestal para o macho, começa a construir o cenário... – Alguém já lhe disse que você é uma mulher muito sensual? – A moça engole a gargalhada, faz surgir um sorriso que brota manso e malicioso em seus lábios. O escolhido está enfeitiçado, não consegue tirar seus olhos dos olhos da mulher. A bebida chega. A dela é um Martini; ela dá um gole e ao botar a pequena taça no balcão observa a marca de batom e sorri. Batom vermelho, cor de sangue. Vira lentamente no banco e cruza vagarosamente as pernas dando aos olhos do o homem a visão, por debaixo do vestido negro, de suas coxas de marfim; as aperta, uma contra a outra para que pareçam mais grossas. Outros homens no balcão já notaram a mulher de preto. Olhares cobiçosos. Mas em vão, a vítima já está escolhida. Propõe um brinde, o rapaz aceita. Pega sua pequena taça com a mão que há pouco, no carro, acariciava sua bocetinha; faz então seus dedinhos delicados chegarem com a taça o mais perto possível do nariz da vítima. Tim Tim!

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Neste exato momento, na delegacia, Cássio acendia um cigarro e olhava pela janela. Não conseguia retirar seu pensamento de uma idéia fixa: estaria a tal mulher caçando? Agora, neste exato momento? Seria mesmo uma mulher? O que fazia com os homens, que desapareciam sem deixar vestígios? Onde estariam os corpos, se existissem? Sorriu e meneou a cabeça. Lembrou-se que quando comunicou ao delegado Corrêa de que acreditava tratar-se de uma mulher, o superior puxou seu lenço e atacou, afoito, o suor que lhe brotara de imediato – Esse tarado! – na certa é masoquista também. O certo é que o delegado passara a levar mais a sério suas investigações. Transpirando ou não, começava a conceder-lhe crédito, e isso era tudo de que precisava para dar continuidade a esse intrigante caso. Noite alta lá fora. O policial saiu da janela, apagou o cigarro em um cinzeiro na mesa, pegou seu sobretudo e saiu calmamente da delegacia.

A mulher morde delicadamente o pescoço do rapaz, depois afasta seu rosto e sorri, ela tem batom no dente, isso excita mais o parceiro. A boate está lotada. A gata sensual deixa o eleito dar as fichas; ele já falou dele, disse o que faz, o que fez, disse que é bom nisso e naquilo. Ele oferece outro Martini, ela aceita. Enquanto bebem ele diz uma porção de coisas, ela não diz nada. Ele a convida para irem para outro lugar, ela topa, com a condição de que deixe seu carro onde raios estiver, e vá com ela, depois ela o traz de volta, pois quer levá-lo à sua casa e tem de ser discreta. Trato feito. Saem. Sem demora um homem de sobretudo senta no banco em que ela estava. Olha para os copos de Martini, as marcas de batom. O homem de sobretudo sorri enquanto afasta lentamente os copos. Pede uísque ao barman e em seguida olha em volta...”ela muito bem poderia estar aqui” pensa Cássio.

A vantagem da casa grande: entrar com o carro na garagem e daí para o interior do imóvel. Nada a oferecer para vizinhos bisbilhoteiros. Além do que, Amanda havia colocado vidros escuros em seu automóvel, o transformara em um alçapão negro e seguro. Do carro para a garganta de sua residência era só um pulo, um pulo para a lascívia faminta que impregnava aquelas paredes tão bem decoradas com belos quadros. - Intrigante este quadro. – disse o homem apontando para uma tela cheia de pinceladas furiosas e coloridas. 43


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- Ah, sim, esse quadro. Fui eu que pintei. De uns tempos para cá tenho precisado me expressar e sempre gostei de arte abstrata. - E o que é tudo isso? - Vou lhe mostrar agora o que é tudo isso. – ato contínuo enroscou-se no homem e começou a beijá-lo, no que foi correspondida de imediato. Em seguida parou e deu um leve empurrão no rapaz – Champanhe? – ofereceu. – Nossa que chique! Claro! – respondeu sorridente. – Então faça as honras – disse a dona da casa apontando para a cozinha, - Está gelada em um balde em cima da mesa. - O homem foi à cozinha, acendeu a luz e surpreendeu-se, na mesa havia uma bandeja de prata, a garrafa em um balde com mais água que gelo e duas delicadas taças. - Puxa, tenho que admitir, você pensa em tudo, hein? – comentou. Em seguida a mulher surge sob a soleira da porta só de sutiã e calcinha. - Leve o champanhe para meu quarto, é só me seguir, e não esqueça de ficar olhando para minha bunda até chegarmos lá. – o rapaz ia dizer alguma coisa, mas apenas levou sua mão ao meio das pernas num ato involuntário de puro tesão. A mulher saiu e ele foi atrás feito um cãozinho obediente.

Depois de beber duas doses de uísque, Cássio saiu da boate. Apertou a gola se seu casacão, havia esfriado bastante. Dirigiu-se ao seu carro, entrou, ligou e saiu. Ganhou as ruas dirigindo com vagar, a tudo observava; reparava nas pessoas que àquela hora transitavam soturnas pelas ruas vazias. Madrugada. Teria um desavisado, esta noite, caído nas garras da predadora noturna? Quem seria ela? Que truques usaria para atrair a presa? Treparia com o coitado antes de fazê-lo desaparecer misteriosamente do Planeta? Que fim dava aos corpos? Os enterraria no quintal de sua casa? Um pensamento fez o policial sorrir: pelo menos que essa última foda seja maravilhosa para a vítima. Achava difícil que a caçadora solitária não trepasse, ávida, antes de matar. Mas, enfim, tudo eram suposições. Ele apenas supunha... supunha... Supôs que neste exato momento alguém estaria no desfrute de um gozo intenso, preso à teia da aranha... uma teia feita de línguas, dedos, saliva, vagina empapada, pau virado em aço, sussurros, gritos... tudo isso sob o olhar lascivo, negro, atento, e inexorável da morte... 44


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O homem gemia. Em cima dele, Amanda oferecia sua boceta molhada praticamente sentada no rosto daquela vítima indefesa, ali, entregue ao tesão. Inclinou-se e abocanhou, gulosa, o pau do parceiro, enquanto rebolava sua xoxota em uma língua ávida e fascinada. O baseado, fumado até a metade, ainda expelia sua fumaça lenta, no cinzeiro da mezinha de cabeceira. - Me faz gozar, seu filho da puta! – esbravejou a predadora. Inverteu a posição de modo que sua boceta engolisse o pau do homem enquanto sua língua passeava em frenesi pelo rosto da vítima, que entregue, nem percebia que as pupilas da mulher já haviam fugido das órbitas. A felina agora mordia. Pescoço, boca, nariz... o clímax se aproximava. O homem gemia alucinado. Amanda abandonou o rosto do rapaz e ereta, sentada em seu pênis, botava mais energia em seu vai e vem. Garras grudaram ferozes no peito do parceiro e aos poucos eram arrastadas deixando listras vermelhas, mas o coitado nem percebia, tão tesudo estava, tão entregue estava ao êxtase. A mulher recolhe uma das mãos e lambe a ponta dos dedos. Sangue. Só aí o amante repara, em meio a escura penumbra, o peito lacerado, percebe também os olhos revirados da mulher, o sangue na boca da atacante... as pupilas negras voltam de repente e miram o homem, miram com a acuidade sombria da morte, a mulher move-se lentamente, para cima e para baixo e sua vítima goza... um gozo gritado, gemido, alucinado. Êxtase! Morte! Êxtase! Morte! Êxtase!

Cássio, agora já em sua casa, estava estranhamente agitado. Lembrou-se daquela carteira de cigarros na gaveta. Aquela que havia abandonado há alguns dias na esperança de largar o vício – Foda-se! Já fumei um na delegacia, quero enganar a quem? – sentia um desassossego estranho. Achava que seria uma noite daquelas. Perdia o sono com facilidade quando sua mente tinha algo para mastigar. Ele tinha a sensação, quase uma certeza, de que alguém morreria aquela noite. A imagem da mulher-aranha vinha à sua imaginação amiúde, ficava então estranhamente excitado. Alguma coisa que brotava de dentro, dos confins de seus porões mais obscuros. Serviu-se de um pouco de uísque e liquidou com três grandes goles, em seguida sentou-se em a poltrona e ficou por bom tempo a mirar o nada; lá pelas tantas tirou o pau para fora e entregou-se a uma lenta e lasciva masturbação. 45


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A fera se deliciava. Aquela carne fresca, todo aquele sangue. A escuridão segura daquele porão... e o cheiro cúmplice da morte. Apenas a pequena vela em um canto do recinto emprestava seu fogo dançante à cena macabra. A mulher, sentada nua no chão, em um canto, imersa naquela sombra tão confortável e mansa, observava a pantera em seu regozijo. Uma observadora serena em sua excitação calma, embalada por uma lascívia etérea e crescente. Observava atenta seu animal destrinchar com volúpia e cuidado aquele corpo morto de homem que agora mais parecia o de uma boneca de pano, na submissão àquela força ferina. Casualmente a cabeça da presa, que pendia inerte apenas ligada por tendões e músculos teimosos, mantinha os olhos abertos e opacos em direção à mulher, como que pedindo uma explicação para o por quê daquela morte tão prematura e violenta de que agora era vítima. A pantera lambia ossos expostos num cuidado zeloso pelo alimento; de tanto em tanto, parava e olhava diretamente nos olhos da dona, numa cumplicidade só possível nas sombras. – Come, meu amor, come... – disse a moça, levando calmamente a mão à sua boceta totalmente molhada; sentiu no esperma do morto, que caia lento da vagina inchada, a reminiscência viva do coitado. O que dele ainda era vivo estava nela. Uma sensação de poder e gozo lhe assaltou de supetão, ela conhecia muito bem aquele sentimento delicioso que agora se apossava de sua pele. Seu rosto foi tomado por um calor de quarenta graus, e ela começou a emitir gemidos; seu corpo começou a tremer e a esquentar numa sensação febril e incontrolável. Puro prazer. Manuseava o clitóris com sofreguidão e a pantera em consonância emitia pequenos grunhidos oriundos do deleite daquela carne morta e suculenta. A luz do tímido fogo da vela clareava com seu amarelo indeciso, o chão enegrecido em torno da cena do banquete da besta. Era um sangue denso e aquele cheiro, ali, naquele ambiente tão pequeno, a qualquer um causaria fortes náuseas, mas não à ela. Ela não. Ela não era mais qualquer um. E uma risada explodiu ruidosa; seu corpo tremeu inteiro assolado por um prazer incontido e puramente carnal... um prazer de fera! Retirou a mão de sua boceta, que se transformara em uma flor desabrochada pelo calor do instinto, e botou na boca. Lambeu seus dedos com todo aquele líquido pastoso, produto de sua excitação desenfreada misturado ao sêmen do morto, e não agüentando mais, deu início a um gozo alucinado, e enquanto lambuzava com os dedos sua boca e seios, a outra mão trabalhava, frenética, em seu clitóris, este parecia que iria explodir um prazer selvagem a qualquer momento, levando através de um rastilho de fogo, o apoteótico orgasmo ao fundo de seu útero. A pantera pressentiu o êxtase da mulher e na camaradagem daquela escuridão, rugiu com força, mais de uma vez, fazendo com que seu hálito quente de sangue chegasse àquele corpo vivo que se contorcia, febril, 46


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em seu canto; então os gritos e os rugidos se misturaram num amalgama de êxtase cego.

Em sua casa, Cássio gozava também... um gozo alucinado.

A PANTERA DO PORÃO

CAP - 5

O APRENDIZADO

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Quando em casa, na tranqüilidade da solidão, Amanda dedicava-se ao aprendizado da sedução. Observava a fera, absorvida por algo etéreo, inefável, feito um manto se seda invisível que esvoaçava para dentro de seu espírito embalado pela brisa serena do mistério. Fascínio. Algo lhe aquecia a alma quando reparava na pantera, algo para o qual não encontrava explicação, aliás, nem queria encontrar essa tal ‘explicação’ – 47


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A explicação mumifica as coisas... – concluíra. Queria apenas sentir, aprendia muito com isso. O poderoso animal tornara-se uma espécie de mestre nas artes da sedução; seduzira Amanda, que agora seduzia homens. Como poderia ser isso possível? A ferina, sem usar o eterno e complicado artifício das palavras, se apossara de sua existência. Que loucura era essa? Como era possível aquela presença poderosa, calma e calada ser portadora de tantas magias? Seria agora uma presa ingênua de algum sortilégio sinistro e sedutor para o qual gastaria toda uma vida atrás de explicações, estas mesmas, que mumificam as coisas? Mas por quê? Se se deixar envolver por tal feitiço lhe proporcionava uma espécie de orgasmo nas entranhas? Ah... o corpo se contorce na cama, a voz sussurra, o pensamento transforma-se em vinho, vinho tinto sorvido por veias que vão inebriando a carne! Olhos revirados à procura de abismos profundos... lágrima de felicidade que pinga feito um cristal no mar balsâmico do inominável... a alegria de ser corpo! A alegria de ser corpo! A alegria de ser corpo! Corpo que brota... brota vida! Corpo semente! Corpo com unhas que agarram, com dentes que mordem, com nariz que cheira, com língua que lambe, corpo de sangue, de vinho, corpo que quer corpo! Ah, essa alegria de exalar vida... nunca sentira isso antes... salve a pantera! Salve a pantera! Salve! Salve os mistérios de seus feitiços! Bruxa negra! ‘Oh, meu animal, aprenderei contigo tudo que julgares digno dessa tua humilde pupila; tudo que a ti não servir e julgares não fazer falta em ti. Estarei aqui, seguindo teu hálito, catando tuas migalhas, louvando tua presença. Ensina-me, ensina-me, ensina-me tuas artes, deixe que eu penetre nesse infinito mistério negro que carregas, me empresta teus abismos, me acalma com teu silêncio, me desperta com teu rugido, me transforma, me transforma, me transforma!’

O OLHAR Nada pode ser mais poderoso. O olhar da pantera contém o mistério da força, e exprime todo o fascínio que o poder exerce sobre os humanos. Amanda sucumbiu de imediato a esse poder. A ferina, por ser irracional, ou seja, não estar sob o controle da moral e seus derivados, não tem a existência enfraquecida por esses fatores. O animal não conhece aquilo que tem como função quebrar o espírito dos humanos a fim de transformá-los em pedintes existenciais. Ela não. Soberana, conhece sua força. Seu poder está em não usar essa força, ela apenas mostra através dos olhos que a possui. O fascínio emanado do olhar da pantera funciona quase como a Espada de Circe, transformando homens em porcos... Quem se dizia senhor torna-se vassalo, 48


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quem caminhava agora rasteja, quem se dizia valente agora treme, pois o brilho negro da morte habita o poder desse olhar. Olhos que contêm enigmas infinitos... não se pode medir os perigos neles contidos, não se pode calcular nada, pois eles não se prestam a cálculos; eles não se prestam a serem decifrados, medidos, e muito menos a serem encarcerados em filosofias ou dogmas. Eles apenas fitam. Penetram fundo, e deixam claro quem manda. Olhos de faca! Olhos cujas pupilas dilatam sua imensidão de perigos tão logo localizam a presa. Olhos que enfeitiçam quem os mira, olhos que desvelam a hierarquia, que botam tudo e todos em seus devidos lugares. Um olhar que brota de dentro, cru, permeado pela força mansa que inebria, atrai, seduz, traz a beleza de todos os mistérios para a luz. O olhar mortal portador da vida! O humano jamais poderá conter esse feitiço nos olhos, pois o ser humano é fraco, a pantera é forte. Podem caçá-la pela savana, podem, aos bandos, dispararem seus projéteis embebidos no veneno débil da fraqueza, podem criar armadilhas para capturá-la e tentar transformá-la em humano, colocando-a em um zoológico. Mesmo detrás das grades, mal-tratada, sofrida, esquálida, alquebrada, ela demonstra seu poder através do olhar, esse olhar indomável. Os humanos se divertirão ao ver a fera presa em sua jaula, sem oferecer perigo, destituída de sua ferocidade; atirar-lheão coisas, escarnecerão da rainha dominada, humilhada, mas o olhar da pantera não irá mudar. Ela continuará sendo forte, soberana, sedutora, perigosa. Já os humanos,,, continuarão sendo os humanos... com seus olhares mortos, mortificando tudo que vêem e tocam, mas bem lá no fundo, baixando a cabeça perante o poderio da deusa.

OS GESTOS Força, poder. Move-se com vagar, move-se com graça e malevolência. Gestos calmos, compassados, tranqüilos. Não se move para agradar ninguém, não tem consciência disso, aliás, a falta de consciência do olho alheio é o que a torna fascinante. Ela é a pantera, e isso é tudo. Animal independente, seria inútil tentar dominá-la, pois não se presta a tal, não tem consciência deste tipo de coisa. O que ela ‘é’ brota de dentro, de sua natureza, da própria Natureza... natureza selvagem, não se deixa reduzir ao simplório olho alheio, olho que a tudo quer reduzir para poder entender, para poder mensurar, para medir o perigo que representa, para enfim poder prescrever os remédios de sempre, com o intento de reduzir qualquer poderoso mistério a algo débil, algo que se pode ‘manusear’. A felina não se presta a isso. A fera pode disparar, atingir grande velocidade, pode usar sua grande agilidade para saltar sobre a presa de forma rápida e fatal. São muitos seus poderes. Quem a 49


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vê silenciosa e quieta não pode avaliar o perigo que representa quando faminta. Dificilmente tem pressa, anda com graça e pode ficar ‘invisível’ quando quer caçar. Tudo que é poderoso não se move abruptamente, isso é sabido. Mesmo o simples gesto de lamber sua poderosa pata é feito com vagar e graça, banha-se com a língua, asseada que é. A pantera se falasse, falaria pouco e convenceria muito; não precisaria da malha intrincada da linguagem, para quê? Se sua presença misteriosa dispensa todos os adjetivos que se precisa tanto para julgar, medir e rotular. A ela nada disso importa, ela não dá a mínima...

A ASTÚCIA A pantera é muito conhecida por sua astúcia, lança mão de inteligentes truques para capturar sua presa. O principal deles é se fazer de morta. Isso mesmo... a pantera é capaz desse ardil, faz-se de morta para atrair pequenas presas que de outra maneira não ousariam aproximar-se do perigo iminente. Pura astúcia. Pequenos animais desavisados aproximam-se para conferir, e mais, uma vez convencidos de que a predadora está ‘fora de combate’ chegam a tripudiar sobre o ‘cadáver’, uma manifestação ruidosa dos fracos perante a força agora inofensiva. Pura ilusão. A fera já escolheu a vítima e de um salto ataca a presa que, surpreendida, percebe tarde o ardil. Animal inteligente, prefere lugares altos onde pode observar seu raio de ação. Tudo que se mover em seu campo de visão e for de seu interesse, já estará correndo perigo. Torna-se invisível, mimetiza-se na paisagem, aproxima-se sorrateira para dar seu bote fatal. Seu olhar poderoso, uma vez pousado sobre a presa, anuncia a morte. O fim será rápido e praticamente sem dor, ela irá direto à jugular, bom para a vítima que a essa altura apenas deseja que tudo seja bem rápido; estabelece-se aí uma cumplicidade entre predador e presa, uma doce, anestesiante e mortal cumplicidade.

A FORÇA Mesmo dormindo a pantera intimida, tamanha é sua força, seu poder. Ela não precisa das palavras para anunciar sua poderosa força, basta sua presença. As palavras são muito úteis para quem não tem o que a misteriosa ferina tem. Quem ‘é’ não precisa de tratados filosóficos para saber disso, pois ela emana a si própria, ela vem de dentro, ela brota incessantemente vida! A vida é medida e mediada com a 50


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intenção de diminuí-la a um tamanho que possa ser aceitável para o bom andamento de todas as coisas, todos os negócios, todas as doutrinas. A vida é algo de um poder imensurável, mesmo assim, criaram réguas para enfraquecê-la, qualificá-la, rotulá-la por sua utilidade ao todo. Besteira! Pedir para a pantera ser ‘boa’ é ridículo, para dizer o mínimo. O fascinante animal, para ser considerado ‘bom’, tem de estar em uma jaula, ferido de morte, com seu espírito quebrado, magro, debilitado; transformado em algo que se alimente apenas pela mão que lhe traz comida, ou seja, dependente e patético. Sim, vamos ao zoológico ver o bicho transformado em ‘bom’. Na savana o mesmo animal é ‘mau’ pois é um ‘predador’, é ‘implacável’, é ‘inadequado’, é ‘selvagem’. No circo da Civilização só interessa o que é domesticado. Não se domestica a força, bem pelo contrário, a força é que domestica tudo à sua volta para que sirvam aos seus propósitos, por isso mesmo é ‘força’! Estranho... Amanda nunca pensara nessas coisas até a chegada da pantera, pois agora pensava. Ao observar seu bicho, ficava absorvida por essa magia muda, esse encantamento emanado dos gestos, do olhar, do hálito mortal, da presença poderosa da besta.

A SENSUALIDADE A autonomia perigosa como fonte de sensualidade. Sim, a autonomia, o bastar-se em si, o gesto que não é pensado, não é calculado, não está preso ao olho alheio. A fera não está preocupada com olhos pequenos que precisam compreender para assimilar; ela emana a si própria e o que vem de seu ‘dentro’ é desconcertante. Traduz-se em sua calma, em sua tranqüilidade, gestos puros, espontâneos, gestos que explicitam o mistério da vida, da Natureza... o que é realmente ‘vivo’ atrai feito imã, pois nada é mais fascinante que a vida! ou talvez... somente a morte... sim a morte lhe poderá ombrear... vida e morte, em um só ser, eis a confusão libidinosa... Eros e Tanatos na eterna dança dionisíaca! O olhar vivo, mais que vivo, vem permeado pelo negrume da morte! Mistura satânica! Libido de fogo! Agora tudo rápido! Agora tudo dança! O que é Natureza é evocado, o que é corpo é conclamado, o que é sangue ferve! O sangue agora é vinho... tudo etéreo, tudo etéreo... a fera selvagem não se deixa ler por debaixo do pelo negro, ela é de impossível leitura, mas ela... ela lê com rapidez, lê a situação, a presa, a delícia, o gozo que se aproxima. O que não se pode decifrar causa fascínio... os olhos da pantera não se pode decifrar, a pantera não se deixa decifrar... ante tal beleza e mistério, só cabe a rendição... O corpo... O corpo livre! O corpo que roça, que salta, que deseja, que 51


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devora, que espera a hora certa... o corpo que não se pode vestir, não se pode medir e calcular; mil folhas de parreira e esse corpo continuará deliciosamente nu. Corpo perigoso. Corpo que mata! Corpo maleável, corpo que se espreguiça, corpo gracioso e livre! Corpo selvagem, corpo natureza, corpo natural, corpo das selvas, corpo que não tem medo do escuro. Sensualidade, gesto calmo, seguro... ante tal beleza e mistério, só cabe a rendição... Fome! ‘Fome faminta!’ Insaciável, libidinosa, desejante, garras que surgem afiadas e mortais, garras que querem, que agarram, que prendem e não soltam; só cabe agora implorar pela morte redentora, morte balsâmica, etérea... será rápido, será fatal. Hálito de abismo, força certeira, olhos que faíscam vida e morte, olhos dionisíacos, olhos demoníacos; nada mais a fazer... ante tal beleza e mistério, só cabe a rendição...

MAL TRAÇADAS À PANTERA – (escritas por Amanda em uma madrugada fria)

Tua presença misteriosa... Garra que reluz Afiada e calma Não me fere de morte Nem estanca o sangue De que é feita minha alma Teu olhar matreiro Tua fome infinita Fome que em teu silêncio grita À tua ânsia o meu serviço Essa tua vontade esganada Mais carne, carne molhada Dos corpos suados e tesões saciados Que a mim convém o que vai por dentro

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E de dentro deles vem pra dentro de mim E que tem algo vivo que mal permanece assim Tão efêmero me foi O corpo que dedico a ti O teu hálito então me inebria Fico feliz com a tua alegria Morro junto no tesão do gozo Imóvel, sou vítima do que me movia Não... Não tem mais volta Por ti mato E por ti morreria...

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APANTERA DO PORÃO

Cap - 6

PÍLULAS

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As unhas afiadas rasgam o ‘olho do outro’; este já não exerce sua fria ditadura sobre o comportamento comprometido com o tamanho adequado ao seu mórbido apetite. Não mais. A predadora só se adapta se julgar ser uma estratégia necessária aos seus caprichos, à sua fome, à sua volúpia felina. Aquele homem agora à sua frente. Aquele homem... Deixava que falasse, que aos poucos preenchesse seu próprio contorno. Ela já havia visualizado e traçado os limites de sua ‘aura existencial’... 54


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Não havia nenhuma novidade no que saia da boca da vítima, palavras previsíveis embaladas pela voz pastosa de vinho. A máscara da gentileza aos poucos se esvaía através da aproximação desinibida de mãos ávidas e olhos envenenados que, tal qual uma mosca que voa insistentemente em volta da teia da aranha, davam ao pretenso caçador os ares de um ingênuo lobo. O sorriso provocante da ‘presa’, o olhar negro a penetrar as entranhas do incauto a inculcar-lhe as mais loucas promessas, a lhe aguçar o espírito, a lhe nublar a razão. Mais uma taça, como não? A fumaça do bar a permear o momento... tudo agora é desejo, agora, até as palavras atrapalham, já não servem para nada, são apenas miasmas a confundirem-se com a fumaça. Não há mais tempo a perder. Está frio lá fora. O casal anda abraçadinho pela rua, os passos dele estão um pouco desorientados, ela ri. Ambos entram no carro da mulher. Ambos saem do carro da mulher. “Sua garagem é grande” comenta o rapaz, ela não diz nada, em suas pupilas negras a morte brilha em um lapso no escuro. Em breve se iniciará a dança do terror, mas o ‘lobo ingênuo’ não sabe.

A pantera destrincha o corpo morto com sofreguidão. No tórax despedaçado o focinho penetra, escarafuncha na sangueira e volta trazendo o coração entre as presas e o estraçalha. Amanda inteiramente nua e também ensangüentada esfrega sua boceta escorada em uma parede do porão, os olhos estão fora das órbitas; geme descontroladamente... em sua frente, no chão, o banquete macabro é saboreado à luz de velas. Lá pelas tantas a fera abocanha o braço do morto e o arrasta para longe da claridade, como se quisesse se entregar à estranhas volúpias distante do olhar da dona. Amanda se deixa escorregar com as costas na parede, uma mão entre as pernas e a outra a espalhar a gosma vermelha em seus seios e rosto, está fora de si, urra e geme, as pupilas negras não retornaram aos olhos; tem espasmos, treme, e finalmente cai inteiramente no chão vermelho como se estivesse tendo um ataque epilético. As velas ali a emprestarem suas luzes indecisas à cena, uma cena de êxtase, um êxtase demoníaco em que as palavras e o pensamento cessam e dão lugar à morte do que não é sangue, instinto, e corpo!

Dois dias depois...

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- O nome é Everton dos Anjos. 34 anos, engenheiro, separado, tem dois filhos. Saiu, como sempre, para tomar umas e outras e... sumiu! – disse Evaldo, um mulato magro, de rosto fino e meio ‘chupado’. Gostava de trabalhar sempre usando paletó – às vezes de gosto duvidoso – e gravata. - É uma mulher, com certeza. – ponderou Cássio, bebendo café escorado na parede ao lado de uma janela da delegacia – Ela pega homens que estão solitários na noite. Só pode agir assim. Pois não deixa pistas, não deixa testemunhas. Fica invisível. Ah, mas eu acho essa mulher... sabe, Evaldo, vamos enviar a foto do desaparecido aos jornais, não dá mais para fingir que não há um ou uma ‘serial killer’ por aí! - Não era o combinado. – comentou o colega. - Vou falar com o delegado. Se não fizermos isso a coisa vai ficar muito feia, esse negócio não está com cara de parar. E pior, não aparece corpo nenhum! - Por isso é que não podemos falar em ‘serial killer’. - E não falaremos, apenas divulgaremos o desaparecimento do tal Everton. Alguém haverá de ter alguma pista, sei lá... algum garçom, barman, qualquer um. - Parece que estou vendo, aqueles merdas nos ligando com pistas falsas... - Ossos do ofício, meu caro Evaldo, fazer o quê? Neste momento delegado Corrêa entrou no ambiente. - E então, delegado, que tal divulgar a foto do último desaparecido? – perguntou Cássio. - Sei lá... – disse o superior coçando o queixo meio pensativo – só não quero gerar pânico. Ontem dormi com uma putinha lá da Neuza, e sabe o quê? Não consegui ficar de costas para ela na cama. Esse veado do Cássio me deixou cabreiro, sabe Evaldo? vai que tem mesmo uma maluca matando homens por aí... caramba, meu, só faltava essa! - Uma ‘femme fatale’... – brincou Cássio. - É, uma fêmea do caralho dessas! – algum suor surgiu na testa de Corrêa – divulgue a foto. - Ela finalmente saberá que a estamos procurando. – comentou Evaldo, enquanto sentava-se à sua mesa. - Ela já sabe. – afirmou Cássio. - Como assim, Cássio? - Ora, simples... quem mata sem deixar vestígios desse jeito é alguém muito astuto, muito inteligente. É óbvio que já sabe que os perdigueiros estão farejando na rua.

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- Se é que os matou. – disse Corrêa acendendo um cigarro e debruçando-se no parapeito da janela – Vai que transformou esses caras em escravos sexuais... vai saber... - Isso, com certeza, não fez. – afirmou Cássio de maneira incisiva. - Ops! – exclamou o delegado voltando-se para o subordinado - Como você pode estar tão certo? Pra mim você está é chutando! - Não, delegado, não é chute, mas um palpite... um palpite com corpinho de convicção! Seja lá quem for que esteja fazendo isso, caça só. O sucesso da empreitada está na discrição; não acredito que os manteria vivos e muito menos os colecionaria. Seria arriscado demais. - Certo. Chega de conversa, publique a foto. É só alguém desaparecido. - Estou curioso. – comentou Evaldo em seu canto.

Ao sair da residência pela manhã, Amanda não atalhava mais pela garagem, acesso lógico, rápido e seguro a seu carro. Não. Agora ia para frente do imóvel e ficava ali, parada por alguns minutos. Passou a gostar disso. Narizinho empinado, olhos fechados, sentia os mais variados odores produzidos pelas manhãs nervosas da rua – ou do bairro, ou da cidade, quem sabe... cheiros variados lhe chegavam e eram decifrados através de uma nova e delicada astúcia, apesar de seu cabelo negro e molhado estar tão perto e teimar em invadi-la com seu aroma de banho. Eram ares fáceis de traduzir porque corriqueiros, mas parecia que agora vinham acompanhados de algo mais, algo que antes se escondia por detrás daquela rotina comezinha. Traziam consigo suas essências mais secretas, ostentavam forçosamente suas origens antes indecifráveis. Pareciam flores coloridas nascidas dos mais obscuros pântanos e que já não podiam esconder seus berços lamacentos através de suas aparências tão usuais. O lixo de Seu Antero, colocado ali, do outro lado da rua, ela percebia através de suas narinas atentas, trazia o cheiro da morte. Dona Inês, ah... Dona Inês coitada, esposa de Seu Antero, há muito escondida dentro de casa para que sua aparência decadente não suscitasse comentários piedosos – ou seriam maldosos? - dos vizinhos bisbilhoteiros, agora restava desmascarada... doente em estado terminal. Seu Antero parecia exalar o cheiro de uma felicidade disfarçada, comedida, mas latente, só percebida por quem pode descortinar o tênue odor da sutileza. Arlete, da casa mais adiante, espia através da cortina e até mesmo a abre com seus dedos um pouco trêmulos, gerando uma pequena fresta, aventurando-se a uma paisagem mais abrangente da rua. O esmalte que recobre suas unhas arruinadas é caro, sim é de marca. Amanda tenta lembrar da griffe, mas desiste. A vizinha fixa 57


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seu olhar na mulher de vestido negro do outro lado da rua, que feito uma estátua, permanece imóvel e de olhos fechados. Arlete mora com a irmã, o cunhado e os sobrinhos; nunca se casou, sempre teve medo. Medo de tudo, agora percebia Amanda. A decrepitude precoce que o esmalte fino tentava atenuar, em vão, era percebida pelas narinas acuradas não sem uma dose de piedade. Os pneus do carro de Augusto, que saia sempre rápido de casa, também se deixavam sentir. Augusto o metido a comedor. Quanto mais acompanhado por belas mulheres, mais só... pelo cheiro da borracha misturada no asfalto, ela percebia que o problema do vizinho garanhão é que ele morava nas mulheres e não nele mesmo. Vivia em função de aparências, de agradar, de ser o bom em alguma coisa para poder mostrar, abanar, chacoalhar em frente à presa feito o guizo de uma cascavel. Era alguém destinado à infelicidade, mas nunca percebera a armadilha que montara para si próprio, pobre Augusto... era até um cara bonito, mas vazio, um sujeito lapidado para ser explorado por aproveitadoras, nada mais. Ops! Chega de sentir pena! Abriu os olhos e ficou feliz, pois mesmo com eles fechados podia enxergar, e muito bem! Ah, os cheiros... Ufa! Hora de ir para o trabalho. Andou rumo a garagem de forma graciosa, um leve sorriso nos lábios pintados de vermelho... vermelho, vermelho... sim, o porão. Na volta daria um jeito, limparia a sangueira, chão, paredes; a pantera satisfeita a dormir em seu canto, protegida pela escuridão. Era bom remover aquele sangue todo, mas sabia que suas marcas continuariam lá imersas no negrume, as manchas seguiriam irremovíveis e indeléveis, os sinais de um crime que ela amava, que a fazia feliz, que lhe proporcionava aquele andar gracioso – agora sabia – aquele sorriso maroto, aquele olhar irresistivelmente sedutor, tudo vinha de lá... das trevas...

As pílulas da manhã. Aqueles remédios sem o qual nem conseguiria ir para o trabalho. Aquela depressão horrorosa; por que a vida teimava em acordá-lo todas as manhãs? Cássio estava um pouco irritado. O ramerrão, o ramerrão de sempre, perpétuo. A roda que não parava. Agora, pelo menos, uma novidade... uma novidade a dançar em sua mente cansada, algo a acenar qualquer coisa, como algo vestido com o véu de um sorriso falso a enganá-lo mais uma vez. Sempre era enganado, nada durava até o final do dia quando seja lá o que for era devorado por sua tristeza. Daí mais pílulas. Era um cara triste, só fingia não ser. Ninguém na delegacia nunca suspeitara de nada; que bom. Pois tinha pouca vida fora dela. Tinha pouca vida dentro dele, e fora dele, ou seja lá para onde olhasse. Ensaiava um sorriso em frente ao espelho antes de sair de casa; não foram poucas as vezes em que precisou esculpi-los em pedra. Ah, essa coisa horrorosa que saía pra rua com ele feito um 58


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vampiro a lhe sugar o sangue-vida, e que o obrigava a tomar o café na padaria para que as conversas idiotas de seus freqüentadores lhe lembrassem que vivia num planeta imbecil. E que deveria seguir adiante, porque tudo e todos lhe diziam isso... Quem sabe agora, com algo novo e inesperado, não surgissem novas perspectivas, talvez mentirosas, vá lá..., quem sabe algo para se apaixonar, para se dedicar, algo novo em sua vida. Uma ‘serial killer’ a matar homens pela cidade... quem sabe estava aí algo extraordinário, ora, que tal essa? Onde estaria a predadora agora pela manhã? Quem sabe repousando exausta, entre grandes almofadas de cetim preto, o coração a acalmar-se lentamente da aventura na qual era viciada e que a levaria logo mais a esgueirar-se novamente pela escuridão entre as incômodas e inimigas luzes da rua. Ou não. Bem poderia ser uma moça corriqueira, com seu trabalho e seus afazeres comuns a encobrir-se convenientemente sob a serena repetição morna dos dias. Nada melhor para que as bem cuidadas unhas, à noite, transformem-se, seguras, em afiadas garras assassinas. Cássio caminhou até uma mesinha de canto e apanhou as fichas sobre as vítimas; examinou-as uma por uma com cuidado. Tratava-se de profissionais bem sucedidos, com bom nível intelectual, o que deixava claro que a assassina – ou seria uma colecionadora de seres humanos vivos? - não era nenhuma estúpida, por certo sabia escolher a presa. E pior. Poderia estar agora em qualquer lugar, pois era invisível, imperceptível, se imiscuía entre a multidão lá fora, possivelmente transformava-se feito um camaleão para poder transitar tranquilamente sob sua pele de ovelha. O policial foi até a janela e olhou para a rua, seu olhar em seguida perdeu-se no nada; estranhas asas agora levavam seu pensamento insistentemente para mundos sinistros, obscuros, onde reinava absoluto um enigmático sorriso de mulher...

No trabalho, Amanda sentia-se mais suave. Tudo que emanava dela era mais tênue, percebeu que nem precisava dar mais ordens, pelo menos não da forma usual, bastava um olhar acompanhado de um ensaio de sorriso e... pimba! Só faltavam jogarem-se aos seus pés. Os funcionários percebiam e comentavam sobre o olhar cobiçoso da patroa, que até então nunca se fizera perceber, ou mesmo, quem sabe, este surgira recentemente como uma novidade inesperada. Uma autoridade estranha e perturbadora vinha também naquele olhar, já havia quem dissesse que sentia um calafrio no corpo quando atingido por aquele par de olhos negros. Sim, todos notaram uma transformação na chefa, mas era difícil traduzir o que sentiam. A promessa de algum tipo de aventura que aqueles olhos deixavam transparecer ‘mexia’ com os homens da firma, e perturbava as mulheres. A vivacidade no rosto, 59


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que até então era de uma neutralidade absolutamente comum, não vinha acompanhada de explicações. A mulher transitava pela empresa sem fazer barulho, tinha preferência por roupas pretas, usava saias mais curtas, a pintura no rosto era discreta, mas perturbadoramente insinuante. Sua presença mansa sempre era notada. Seu sorriso fazia as libidos entrarem em ebulição, sua voz adquirira um tom discretamente melodioso e confiante, sem ser melosa. Quando se recolhia à sua sala já não a deixava aberta, como antes, agora fechava a porta. Por quê? Que estranhas conjurações não eram permitidas aos olhos dos leigos e ingênuos funcionários? Eles coçavam a cabeça, comentavam coisas, morriam de curiosidade. Que demônios seriam evocados naquela intimidade silenciosa para sinistras orgias? Que poderes satânicos, afinal, surgiriam do abissal silêncio? Ah, que estranha bruxaria... de quais caldeirões, quais malditas ervas se misturaram em demoníaca ebulição para que aquela mulher mudasse assim? Que mandinga era essa? Todos tinham perguntas e ela um segredo. Todos a notavam, todos a desejavam, porém era bom não aproximar-se sem o sinal de acasalamento, estava claro que sobraria um coração dilacerado, e com certeza não era o dela.

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CAP - 7

SEDUÇÃO, RASTROS E ABISMOS

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Cássio passava os dias com um excitante fantasma a habitar sua cabeça, e esse tal fantasma fazia o mesmo, porém sua mente oferecia o palco para outra personagem: a pantera negra. Amanda adquirira uma espécie de vício, capaz de misturar sonho e realidade, embriaguez e... mais embriaguez! Viciara-se na fascinação de observar seu animal. Ficava por horas se precisasse a mirar a calma e a força que emanava daquele silêncio poderoso. A pantera não apenas olhava para ela, penetrava-a com a força de seus olhos negros e fascinantes; de onde, caramba! de onde, de que ocultos labirintos surgia aquele poder? Se a felina pudesse falar e revelasse seus mistérios, tudo ruiria, pois as palavras soariam como invólucros vulgares numa tentativa débil de vestir abismos desconhecidos com a roupagem corriqueira do entendimento. O que fascina é o que não pode ser explicado. A fera ostentava indiferente, através da malevolência de sua presença calma, o poder sobre a vida e a morte. ‘Ai’ daqueles que cabiam na extensão de seu olhar, aproximar-se dela era brincar com o destino. Sua indiferença traiçoeira era um feitiço sereno servido graciosamente a incautos 61


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forasteiros. A pantera tinha fome, não raiva. Nada pessoal. Era de sua natureza agir com esperteza, com agilidade mortal, sua vantagem era não precisar justificar nada; ora, como se aquilo que nasce dos instintos tivesse de ser explicado! Amanda sorriu. O silêncio sepulcral a anunciar que por detrás dos imensos olhos agora fechados repousa a ausência de palavras e conceitos, que só serviriam para debilitar sua força, para macular seus instintos, para apontar-lhe o dedo inquisidor da culpa, mas daí seria a vitória dos incautos forasteiros, aqueles, sobre sua fome. O rugido! Basta seu rugido feroz de besta para que tudo e todos desapareçam levando junto suas palavras, conceitos, sentidos e dogmas; e que corram e tropecem e caiam, e que só aí, a partir daí erijam suas solenes edificações, bem longe. Os que constroem grades não se dão conta, com raras exceções, que ao terminar qualquer nefasta obra em que essas indecentes barras sejam utilizadas, eles próprios restam seus prisioneiros. Os que constroem jaulas o fazem do lado de dentro. É o medo da natureza indomável e livre, mas que subjaz, em alguma medida, neles mesmos. A jaula não os protege absolutamente de nada. A besta perigosa e faminta ronda lá fora, mas sua maldição já está lá dentro. Amanda sorriu.

- E então, é uma mulher mesmo? – perguntou Evaldo, aproximando-se da mesa de Cássio na delegacia. Este estava sentado sem tirar os olhos das fichas das vítimas. - Ãh... – surpreende-se Cássio, tirando os olhos dos papéis e oferecendo-os arregalados ao colega. - Uma mulher fatal? - Ainda não tenho certeza... - Os corpos... não há corpos. Estranho. Tem certeza de que esses caras não fugiram? Sei lá... - Não. Sei bem como é esse negócio, essa vontade de fugir, pode ter certeza. Esses sujeitos aí estão mortos... ou coisa pior. - E o que poderia ser pior? Caramba, Cássio! - Eles podem estar vivos, sim, - levantou-se e caminhou até a janela, seguido por Evaldo – podem estar prisioneiros em algum lugar infecto, sendo vítimas das mais horríveis torturas. Possivelmente, se for realmente uma mulher, ela pode estar praticando uma vingança ou qualquer coisa assim, sei lá, tento imaginar o que psicologicamente pode levar alguém a agir assim. Uma coisa é certa, ela é sedutora. Sabe... tenho andado por aí à noite. Freqüento algumas boates, tento virar alvo. Mas é estanho, quando alguma mulher me olha sinto como se uma faca me entrasse nas entranhas, é uma sensação louca, como se a própria morte me estivesse seduzindo. 62


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Seria ela? Penso. Então sorrio e tento me deixar levar, como se fosse preciso oferecer meu corpo em sacrifício. E é aí que uma coisa estranha acontece... - O quê? - Tenho então a certeza quase absoluta de que não é ela. Não, não é. - Ué? E por que não seria? Afinal, pode ser qualquer uma, estou certo? - Ela não é qualquer uma. Aí está o segredo. Sei lá... falta algo nessas mulheres, é difícil de explicar, falta... falta perigo! É como se você procurasse uma serpente entre coelhos. É fácil distingui-los, você pode se misturar entre eles sem correr qualquer risco, são bonitinhos e inócuos, não existem dentes afiados através dos quais o veneno mortal escorre. Não. Eu saberia, tenho certeza. Ela é diferente, ela mata! E quando ela olha, não pode disfarçar o êxtase assassino. Tenho certeza de que seu sorriso traz o mistério dos instintos predadores, ela quer sexo, quer gozar, quer se divertir, brincar com a presa feito uma gata. Ela até pode misturar seu corpo entre outros, mas jamais esconder o espírito predador. Ela sorrirá para a caça, e seu instinto assassino fará escorrer sangue entre seus dentes brancos, o odor de sua carne inspirará a mordida na qual será ingerido o doce veneno, seu beijo fará a vítima despencar para dentro de labirintos dos quais não haverá volta. Ela anestesia antes de enfiar o ferrão, ela é diferente, ela é única, ela é mortal! Ela seduz... e mata! - Caralho, meu! De onde você tirou tudo isso? - Tenho que ir à luta, Evaldo, qualquer novidade te aviso. Tenho que trabalhar, pensar, meditar, fazer qualquer coisa para evitar que ela faça mais uma vítima. Afinal, ela tem algo que nós não temos. - E o que é? - Ela vai aonde os simples mortais não vão. Ela se permite deslizar em sangue e ir por caminhos apavorantes e sombrios. Caminhos estes que ninguém ousaria por o pé, mas a predadora não, ela se diverte com isso. E pior, fica mais forte e ousada a cada dia. Precisamos pará-la, Evaldo, precisamos pará-la...

- Seus negócios estão em ordem. - disse Telmo fechando uma pasta contendo vários papéis e a colocando sobre sua mesa. Estava em seu escritório de advocacia recebendo a amiga cliente que sorria sentada do outro lado. Amanda reparava com tudo ali era bem organizado: ‘era a cara do Telmo’, afinal, era um sujeito certinho. Atrás do amigo a imensa janela refletia através de outros prédios, um Sol inclemente, responsável por um dia bastante quente. Apesar disso, o homem mantinha seu ar sóbrio dentro de um bem alinhado terno e uma gravata 63


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milimetricamente ajeitada. Amanda levantou-se começou a caminhar pela sala, de maneira tranqüila, a examinar qualquer coisa que surgisse à frente de seus olhos. - Não há nada por aqui que você já não conheça, Amanda. Sou muito conservador para ficar mudando coisas. - É isso que me intriga. Os objetos são todos muito limpos... ou seja: ficam limpos para permanecerem no mesmo lugar, sempre. Interessante... - O que você quer dizer, Amanda? – perguntou o advogado cruzando os braços e esboçando um sorriso. - Que é bem a sua cara! – riu a mulher – Para dizer a verdade não vim aqui para tratar de papeladas que sei que estão em ordem. Vim para ver você, amigo. Vim para me certificar de que você continua o mesmo. Preciso que certas coisas continuem paradas, estáticas. Como uma espécie de porto seguro para o que se move. De vez em quando precisamos disso, não é verdade? Nós, que nos movemos. - Mas de que raios você está falando? Amanda encarou Telmo. Seus olhos engoliram os do amigo. Este se sentiu desabando em um precipício. Parecia que via aquela mulher pela primeira vez, algo começava a excitá-lo violentamente. A visitante conseguira transformar o ambiente sempre frio e prosaico daquela sala em um ninho pronto para um encontro caloroso, em que o ar enchia-se com a névoa invisível do desejo a cada segundo. Porém a sedutora não avançava, e Telmo não era alguém de muita coragem para tomar uma iniciativa que poderia ser catastrófica, Amanda e Maíra eram muito amigas. - O que você vê em mim, Telmo? – perguntou a moça, sentando-se sobre o canto da mesa; o vestido preto havia subido deixando suas pernas mais à mostra, revestidas sensualmente com meias-calças muito finas da mesma cor. O homem tinha um nó na garganta, um pau que crescia, e a precaução de contar até dez antes de responder a enigmática pergunta. - Vejo a amiga de minha namorada... – mentiu com voz sumida. - Não. Isso é o que você via. Minha pergunta é: o que você vê em mim agora. - Amanda eu... – disse Telmo de forma patética, estendendo sua mão em direção à coxa da amiga, gesto que foi barrado delicadamente. - Senhorita Daemon. – interrompeu – Senhorita Daemon, vamos manter certas formalidades aqui em seu local de trabalho, Doutor. O advogado estava com um ar de babaca, a boca aberta e o olhar suplicante transpareciam uma rendição que agradava a fera. Esta se inclinou aproximando seu rosto ao da presa, sua boca de batom vermelho-sangue quase a tocar à do homem, seus olhos cerrados pareciam sorrir certo êxtase. O gesto era gracioso e o hálito da predadora de pronto transformou o pau de Telmo em aço! Parecia um pintinho acossado por uma cascavel. As palavras definitivamente não conseguiam sair da 64


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boca desejosa de beijo da vítima, que tinha a viva sensação de estar enrolado na teia de uma aranha, o suor lhe escorria pelo rosto. Amanda encostou seus lábios nos do amigo, que estremeceu e quase atingiu um gozo inesperado. Tudo havia sumido em volta, só a deliciosa bruma do sexo a envolver o ambiente... mas daí a mulher recompôs-se de supetão, frustrando de forma dramática as expectativas, agora muito vivas, de Temo. - O que você vê em mim, Doutor? – perguntou a felina, pondo-se novamente a andar graciosamente pelo escritório. O leve rebolado fazia lembrar uma cobra. - O diabo encarnado em mulher! – respondeu o rapaz entre dentes, quase se deixando levar pelo impulso de avançar descontroladamente sobre a amiga. Abria o colarinho e afrouxava a gravata para não morrer sufocado pelo tesão. Estava atônito, tonto, enfeitiçado. – Vejo um demônio! – esbravejou descontrolando-se. – Vejo a própria imagem de Lilith! De uma Afrodite! De uma serpente que veio debochar de meu sossego! Afinal, porque você faz isso comigo? - Para que sua hipocrisia lhe escorra pela boca, como agora. Você me deseja, e muito. Mas se eu não lhe corresponder, daí sou uma puta! Você é apenas um idiota como todos os outros, um hipócrita de merda. Eu poderia devorá-lo e cuspir o que sobrou para sua namorada, ela usaria seu espectro apenas como um vibrador de carne, nada mais; uma múmia a gemer em cima da pobre garota, mas com a imaginação enfiada entre as minhas pernas. Você é apenas uma aparência sóbria, Telmo, nada mais. - O que houve com você, Amanda? – perguntou o homem com voz calma, estava empapado em suor. - Senhorita Daemon, já lhe disse. Amanda morreu. - Pois eu preferia Amanda... - Mentira, seu idiota, você prefere a Senhorita Daemon. – disse sorrindo de forma provocativa – Isso fica escancarado por essa ponta que você tem no meio das pernas agora. O corpo nunca mente. Amanda era apenas a amiga confortável. Boa de se levar junto a acompanhar casais para assistir, entre um suspiro e outro, a fingida felicidade alheia. Você prefere aquilo que pensa poder controlar, aquilo que é conveniente para o momento, o que é bom para sua reputação de plástico. Você vive numa mentira. Eu não. - Agora eu entendo o que aconteceu na cozinha de sua casa aquela noite... você seduziu Ângelo. Senhorita Daemon na cozinha, Amanda na sala. Você está brincando com todos nós, se divertindo às nossas custas, por acaso está trepando com Ângelo e ninguém sabe? - Naquela noite Ângelo avançou o sinal. Não fiz nada, nem precisei, o cara tava desesperado para me agarrar. É outro hipócrita que se finge de bom moço, nada 65


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mais. Sinceramente? Nem mereceu que perdesse meu tempo pensando no que aconteceu. - E o que vai ser de agora em diante? Teremos de conviver com a Senhorita Daemon? Como vai ser isso? Conviveremos com uma víbora em nosso ninho? Nem sei como poderei encará-la de agora em diante. - Disfarce sua ereção quando eu estiver por perto e estará tudo bem. – Amanda deu uma gargalhada que revirou os nervos do advogado. – De agora em diante – disse recompondo-se – as regras são as minhas. Continuaremos convivendo como uma grande e feliz família, como sempre fomos, com uma diferença: a irmãzinha caçula que era deixada no quarto nas melhores horas, transformou-se na mamãe sedutora que lixa as unhas dos pés na sala, acompanhada de um Martini e um cigarro na boca, enquanto as crianças brincam no pátio. - Isso não vai dar certo... - Vai sim, bobinho, desde que você e Ângelo se comportem como bons meninos. – disse isso, pegou sua bolsa e se dirigiu até a porta e ainda antes de sair mandou um beijinho debochado para o homem suado e com cara de tolo que permanecia sentado ali, em frente às suas papeladas.

- Ronaldo Cerqueira, dentista. – disse Cássio jogando sobre a mesa de Corrêa a foto de mais um desaparecido. - Minha nossa, mais um! – exclamou o policial ao pegar a foto – Isso está ficando realmente muito sério! Como andam as investigações, Cássio? - É um quebra-cabeça difícil de montar, delegado. Achei o caminho, mas não a pista. - Hmmm.... não entendi porra nenhuma. Você sabe por aonde ir, mas ao mesmo tempo não sabe, é isso? - Essa mulher... – o investigador olhou para o teto enquanto coçava o queixo numa tentativa de organizar as ideias, a intenção era servi-las do modo mais organizado possível ao delegado – é freqüentadora da noite, é sedutora, inteligente, possivelmente têm posses, é de classe média alta, tem bom nível cultural, e mata como quem escova os dentes. Acho que tenho um perfil, mas a partir daí e complicado ir adiante. - Mas vá, vá adiante, me parece que você tem o início de alguma coisa. De minha parte, acho que devemos comunicar a imprensa, acho que é chagada a hora de alertar aos desavisados moçoilos que gostam de freqüentar bares e boates que suas vidas correm risco ao quererem dar uma trepada com a mulher errada. 66


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- Me permita, delegado... - Sim? - Não faça isso agora, me dê mais algum tempo. Se alertarmos a caçadora ela mudará de tática, ou qualquer coisa assim, poderá ir para longe, para lugar mais seguro para cometer seus crimes, talvez jamais a peguemos. - Certo, mais um tempo... Neste momento chegou Evaldo. Estava um pouco afoito, queria falar. - Ontem fui ao Sexton. Conheci uma garota – disse de forma empolgada – ela era bastante estranha, quando me beijou mordeu minha língua, tirou sangue! Fiquei cabreiro, seria a bandida? Dei corda. Queria ver se ela me convidava a ir pra algum lugar, mas não, no máximo demos uns amassos no meu carro. Cara, cada vez que ela encostava os dentes na minha língua eu disfarçava e pegava na minha arma! Coisa de instinto de polícia, né? Que merda! Acho que perdi a naturalidade, enquanto essa mulher andar por aí, vou ter de beijar de olho aberto, que remédio! - Entendeu delegado, – comentou Cássio – por que não é hora de divulgar? Imagine a histeria dos caras lá fora, na certa isso ia dar em alguma merda. - Entendi, entendi mesmo.

A insônia havia passado há algum tempo. Nunca mais botar a cabeça no travesseiro e ficar refém de sua insegurança, daquela angústia. Agora dormia muito bem. É verdade que surgira uma novidade: em algumas noites, ao fechar os olhos, imagens lhe surgiam de forma compulsória, imagens estranhas, sinistras até. No começo ficava assustada, mas depois se deu conta de que se limpasse sua mente, num completo silêncio de pensamentos, tudo ia para seu lugar. Deu-se conta de que aquele turbilhão que brotava de forma espontânea vinha de profundezas abissais, infinitas, quem sabe. Aquelas criaturas que surgiam risonhas e assustadoras, com seus rostos indescritíveis e atitudes inenarráveis, não surgiam do nada, ela sabia, eram bizarros fantoches manipulados pelas mãos negras do inconsciente. Aprendera a observá-los atenta, e ria muito dos gestos e atitudes totalmente descontrolados desses personagens sombrios. Descontrolados porque livres do abraço solar de sua consciência, da moral, de seus conceitos, preconceitos e pensamentos; estes deveriam abandonar o palco de sua mente para que aqueles pudessem subir ao picadeiro livres de qualquer vigilância. Eram locais, paisagens, objetos, seres e coisas que nem ousava adivinhar o que raios poderiam ser. Coisas loucas. Rostos sinistros às vezes lhe fitavam fazendo correr um calafrio por sua espinha, mas ela sorria, passara a amar aquilo tudo. Era um espetáculo que lhe era oferecido como 67


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uma espécie de boas vindas ofertada pelos moradores dos labirintos inexplorados de seu inconsciente. Uma satânica viagem a qual não se negava, pois tudo aquilo não havia de fazer parte do que ela era? Paisagens que não sabia que possuía, e que repousavam nos recônditos mais escuros de sua existência. Agora tudo vinha à tona quando botava sua cabeça no outrora indigesto travesseiro. Pensou em quanto tempo perdera mantendo sua mente refém de pensamentos áridos, destinados a lhe tirar o sono porque construídos com material alheio. Agora era alguém de dentro para fora, nada mais justo então que aqueles palcos em que o infinito encarnava as imagens mais insanas, nas cores mais bizarras, fizesse parte dela agora. Ao seu lado na cama a imensa besta dormia enroscada a lembrar um dócil gato gigante. Passou a mão em seu pêlo negro, Senhorita Daemon estava agradecida, feliz, sintonizada finalmente com sua natureza mais profunda, e alegre por saber que a possuía.

A noite estava quente. Cássio acendeu um cigarro e atravessou a avenida. Na calçada pessoas da noite se agitavam à procura de algumas drogas sempre fáceis de encontrar nos becos próximos. Mas isso não importava mais ao policial, em sua mente só havia um sorriso perverso de mulher em que dentes caninos cresciam finos e pontudos em direção ao pescoço da próxima vítima. O chão ainda molhado de uma chuva recente refletia as luzes coloridas dos letreiros das casas noturnas. Um entra e sai se iniciava ruidoso, mulheres de classe e algumas prostitutas pretensiosas circulavam em um ambiente comum só possível por aquelas bandas e naquele horário. Seria por ali? Ou a caçadora preferia lugares mais refinados? Hmmm... o Sexton não era lá um local assim... que se diga: ‘refinado’. O investigador tinha como praticamente certo que era por ali a zona de conforto da assassina. Suas investigações iam por essa direção, se estivesse errado iria derrapar feio. Parado na calçada olhava para um lado e outro, encarava mulheres; tentava botar seus olhos nos olhos delas, procurava algo diferente. Ingeriu uma pílula contra a tristeza, engoliu a seco. Era um caçador solitário, que caçava usando como isca o próprio corpo. Surreal. Fazer o quê... Era um policial, afinal. Não gostou nada de Corrêa reunir os investigadores da delegacia e convocá-los também para a caçada. Esse troféu tinha de ser dele, Cássio, de mais ninguém! Como se outro policial não tivesse as condições que só ele julgava ter, como se eles todos fossem vulgares demais para uma missão tão perigosa e delicada. Uma tarefa cerebral, um quebracabeça sutil reservado às inteligências privilegiadas, ou talvez fosse só ciúmes. Mas ciúmes de quê? De seu caso ir parar na mão de muitos, ou de alguém mais se aproximar de seu totem? O caso era seu, caralho! Se Corrêa se ativesse apenas às 68


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suas revistas e punhetas não estragava tanto as coisas. Agora isso, um exército de sujeitos imiscuídos pelas casas noturnas. Estava irritado, iria a uma daquelas boates ali em frente, mas decidira que antes faria uma rápida visita a um daqueles becos.

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Cap - 8

O SOM E O CHEIRO DA MORTE

A manhã iniciava como sempre na rua. Nada saía do lugar, como se a partir de um estalar de dedos, todos iniciassem automaticamente suas aparições ensaiadas. Amanda estava em frente à sua casa; olhos fechados, nariz para cima, odores... O de Seu Antero parecia estar ficando mais forte a cada segundo. Acurou o olfato: sim, o cheiro do velhote estava bem forte. - Senhora Amanda. A mulher abriu os olhos. À sua frente Seu Antero esboçava um sorriso sem graça, com uma das mãos mantinha a gola se seu velho roupão marrom apertada sobre a garganta, como se um inesperado e estranho frio o acometesse quando da aproximação com a vizinha. Um vento leve fazia dançar seus finos cabelos bancos ao redor de sua careca e a barba branca de três dias lhe dava um ar de mendigo. - Senhora Amanda, a senhora tem um tempinho? - Claro, seu Antero. - disse a moça de forma compassiva com um sorriso. - Bem, parece meio estranho o que vou lhe dizer, mas é... é uma coisa bem estranha... - O quê, Seu Antero? 70


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- Os sons. - Sons? - Sim, sons estranhíssimos, na madrugada. O assunto rapidamente capturou a atenção da vizinha. - Como assim? Do que o senhor está falando? - Ah, é difícil dizer isso sem parecer louco, mas estou assustado, minha mulher também, já falei com outros vizinhos e eles me garantem que também já escutaram. - Escutaram o quê? - Não sei... parece uma espécie de... de rugido, é apavorante. - Ah, isso. Pois é, já escutei, mas para dizer a verdade nunca dei bola. Coisas acontecem na madrugada, vai saber? Além do mais, são muitas as tubulações subterrâneas por estas bandas. – disse com uma frieza de dar inveja aos grandes psicopatas. - É, pode até ser, – disse o velhote coçando a careca, enquanto Amanda observava se sua isca seria bem digerida – mas... e o cheiro? A predadora cravou os olhos no homem, agora com vivo interesse. - O cheiro Dona Amanda, seria das tubulações? Do esgoto? Não sei... é ruim, quando bate o vento vem aquilo, aquele cheiro, Deus me livre, mas parece até carniça. Estava aí uma faca finalmente encostada em seu pescoço. Sempre tivera especial cuidado com os cheiros oriundos das carnificinas, além do quê, o porão era lacrado de forma a não vazar nada. Teria de redobrar seus cuidados. - É... realmente tem um cheiro ruim. Mas não é sempre. Possivelmente exista algum cortiço, ou um matadouro pelas redondezas. - Matadouro? Hehehe... – a risadinha do velho irritou um pouco a mulher – não, não, não existem matadouros dentro da cidade.

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Era só o que faltava, o inócuo e banal velhinho do outro lado da rua a lhe encurralar, mesmo inocentemente. Estava aí uma coisa de que tinha receio, as pessoas banais são sempre as mais perigosas. Suas inocências são perturbadoras, são capazes das piores coisas sem que nem fiquem sabendo, aliás, nunca sabem de nada. Eram obstáculos à astúcia, eram pedras no caminho, e nem se davam conta. O vizinho ali, desconhecendo que seu velho roupão adquirira ares de reluzente amadura e suas desconfianças, que não eram descabidas, o formato de uma espada; inocentemente ostentava os ares de uma autoridade policial batendo à sua porta. Precisava livrar-se dele, e a melhor maneira seria roubando suas armas. - Vamos fazer assim, Seu Antero, eu me encarrego de investigar de onde vem tudo isso. Não me custa nada. Será a minha contribuição para a boa vizinhança. – Amanda sorriu de forma cínica, mas o velhote só captou o sorriso. - Ah, a senhora faria isso? Nossa, lhe agradecemos muito. Seria muito bom! Desculpe incomodar. Quando souber me avise. Grato! Grato! – disse enquanto finalmente se afastava expondo seus dentinhos amarelados. Amanda fechou os olhos e voltou à posição de ‘sentir cheiros’, o de Seu Antero, finalmente, diminuía lentamente.

Quando Cássio acordou, percebeu a mulher a dormir nua ao seu lado. Quando tentou levantar, a cabeça pesou cem quilos. Ah, que porre! Cadê as pílulas? Que horas são? Seria ela? Seria ela? Não, não... ficou por um tempo a observar a garota que dormia nua e de costas para ele. Não, não era ela, sabia. Puxou levemente o lençol e ficou a admirar o dorso e a bela bunda da “caça”; não, não era ela. Levantou-se nu, cambaleante, tentando organizar a mente confusa a muito custo. E por que haveria de ser ela? Que porra de louca obsessão era essa? Foi ao banheiro... pílulas, pílulas... olhou-se no espelho e percebeu que no rosto inchado, alguns vestígios brancos da cocaína ainda permaneciam em suas narinas ofegantes. Pegou no armário do banheiro o frasco das famigeradas pílulas, abriu e o entornou na boca, foda-se quantas seriam engolidas, em seguida abriu a torneira da pia e bebeu água para empurrá-las. Que merda! Tinha de ir para a delegacia, estava um trapo. A dorminhoca ali quem era? Nem lembrava seu nome. Aproximou-se, olhou direito, 72


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até era bonitinha. Reparou num pentelho no queixo da mulher; teve até alguma vontade de rir. Sentou-se em uma poltrona ao lado da cama; sim, começava a lembrar, a visita no beco, a cocaína, o tesão, a boate, a garota que dormia ali... um calafrio então lhe correu pelo corpo. Mas, e se ao invés da moça na cama ele tivesse topado com a predadora? Na certa agora não estaria vivo. Esse pensamento o incomodou, era um policial, afinal, não podia dar mole. Teria ela saído à caça ontem? Teria mais uma foto de um desconhecido anexada à uma ficha lhe chegando às mãos logo mais? Era hora de descobrir. Excitado, levantou-se e cutucou a garota Acorda! - queria ir para a delegacia o quanto antes.

O shopping estava agitado. Gente, roupas, perfumes, loções e vaidades em um amálgama frenético onde não sobrava muito espaço para o que não era consumo. Escadas rolantes e sorrisos, crianças a correrem desbaratadas de vitrine a vitrine e adultos disfarçando a vontade de fazer o mesmo. Praças de alimentação onde bocas nervosas e comidas inócuas se misturavam em um burburinho ruidoso; numa delas estavam três mulheres em uma pequena mesa redonda a bebericar alguns sucos. O assunto que compartilhavam tinha algo de perigoso. Comentavam sobre seus namorados e traições, as duas que os tinham, a terceira escutava e observava sem dizer nada. - Eu saberia se Ângelo me traísse, seu DNA de idiota faria transparecer tudo em algum momento. – comentou Linda. - Não tenho tanta sorte, Telmo não tem o DNA de idiota. – rebateu Maíra. - Hmmm... Você não olhou direitinho no lugar certo, todos eles têm quando se trata de envolvimento com outra mulher. - Não consigo ver Telmo me traindo, acho que ele não teria coragem. - Mas isso está errado. – finalmente Amanda botou seu bedelho na conversa – Ninguém deveria deixar de trair por ‘medo’, mas sim por não ter vontade. - Me parece, querida Amanda, que nesse tipo de assunto você não é a pessoa mais capacitada para comentar. Não tem namorado faz muito tempo. – disse Linda. 73


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- Me parece, querida Linda, que nesse tipo de assunto não é preciso ter um namorado, basta um pouquinho de percepção, ou uma pequena dose de inteligência, talvez. - Por falar nisso, aonde foi parar aquela garotinha insegura que você era até bem pouco tempo? - Não sei, se perdeu em algum lugar por aí, mas se você quiser posso fingir, se isso lhe agradar. - Calma, Amanda. – ponderou Maíra. - Ué? Estamos apenas conversando, não é Linda? Afinal, vocês são as pessoas seguras, sabem muito bem onde seus namorados mantêm encaixadas suas libidos, seus tesões e paixões repentinas. Quanto a mim... bem, não sei nada sobre essas coisas, sou uma pobre mocinha... – Amanda debochou fazendo cara de choro. - Realmente? Era, mas não é mais. Tudo em você mudou. Até seu olhar tem algo de desafiador, às vezes tenho até medo, sei lá... só se veste de preto, até parece que as outras cores não existem. Sua fala mudou, esse... esse seu jeito manso... não sei, tudo isso me incomoda, é meio perturbador. - Perturbo você também, Maíra? – perguntou à outra amiga enquanto levava até a boca o canudo que estava no copo de suco. - Bem... você mudou, isso é certo. Não sei se pro bem ou pro mal, você não deixa transparecer nada, realmente hoje não tenho mais como definir você. - hmmm... – Amanda levou o dedo indicador ao queixo, fingia estar revolvendo na memória alguma coisa – deixe ver... li em algum lugar uma frase bem bacana, dizia assim: ‘definir é limitar’, onde foi isso? Ah, sim, O Retrato de Dorian Gray, Oscar Wilde. - Talvez isso seja não ter personalidade. – disse Linda sem botar os olhos na interlocutora. - Mas quem liga pra personalidade? Personalidade é um molde construído pelos outros pra que você caiba dentro e fique confinado, para que a Sociedade possa medir e avaliar com quem está tratando. Personalidade, nesses moldes aceitos por aí, é só uma camisa de força que você veste para caber no olho alheio, mas este mesmo tão zeloso olho não tem nenhuma, ou se tem, é bem duvidosa. Tudo é uma casca, 74


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Linda, raspe com jeitinho e você descobre fácil o que há por debaixo. – disse isto e voltou a chupar o suco através do canudo, os olhos negros fixos em Linda. - E você, tem raspado muita gente por aí? - Tenho. Você deveria fazer o mesmo, iria se surpreender. - Parem as duas! – interrompeu Maíra - Que merda! A gente não se via há algum tempo e agora isso! Linda deixe Amanda em paz, ela é o que quiser ser, o problema é dela! - Não! O problema é nosso! Você, Maíra é que não se deu conta! – esbravejou Linda, em seguida se levantou, pegou sua bolsa, abriu, remexeu dentro pegou algum dinheiro e jogou sobre a mesa – Por hoje era isso, estou cheia! – em seguida saiu em passos largos da praça de alimentação. Maíra ainda tentou chamá-la, mas Amanda a impediu. - Deixe. Está nervosa. Às vezes quando faltam os argumentos algumas pessoas agem assim. - O que está havendo, Amanda? Às vezes tenho a impressão de que tudo está se desintegrando, que já não somos mais os mesmos. - Não somos mais os mesmos, e isso não deveria ser ruim. Maíra olhou longamente nos olhos da amiga e perguntou: - O que houve com você? Se não a conhecesse muito bem diria que é outra pessoa... Amanda pegou calmamente o canudo e começou a sugar lentamente o suco, seus olhos dentro dos da amiga, um sorriso beirando o assustador surgiu nos lábios da mulher de preto. Maíra estremeceu. A predadora finalmente tirou a boca risonha do canudo. - Sim, eu mudei. Você consegue conviver com isso? - Essa pessoa em que você se transformou é um enigma. Não sei, Amanda, sinceramente, não sei... Amanda sorriu. 75


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À noite, em casa, tinha muito que fazer. Agora essa, os vizinhos bisbilhoteiros ouvem ruídos e sentem cheiros. Sempre tivera todos os cuidados para que nada passasse para o lado de fora de sua porta. Cuidava para que o porão não exalasse o cheiro indefectível da morte. Acendeu os círios no porão e inspecionou cuidadosamente o local, a pantera em seu canto a observar a dona. Vestia apenas uma bata negra que ia até o chão, seus finos cabelos negros desalinhados caíam-lhe sobre o rosto. Por todos os cantos pilhas de ossos brancos bem limpos brilhavam de forma sinistra sob a luz inquieta das velas. O local havia se transformado em um obscuro templo, onde horrorosas relíquias jaziam pelo chão e sua sacerdotisa gostava que fosse assim. A escuridão formava uma imensa periferia para além do fogo tímido e bisbilhoteiro das velas, e Amanda podia jurar que era habitada por famintos demônios que se compraziam com a lascívia da rainha do local, a besta negra em cujos olhos flamejantes repousava, serena, toda autoridade que lhe era peculiar. A dona da casa sabia que o cheiro do local já lhe era familiar, mas não às narinas alheias. Era bom ter cuidado. Em um canto, uma espécie de altar ostentava as caveiras das vítimas, cada uma com uma comprida vela negra a brotar do crânio e acomodadas de um jeito meio embolado, o que dava um ar mais terrível ao monumento. Conferiu tudo. Tudo certo. Olhou para a pantera e sorriu, o bicho então se levantou e se pôs a andar como que para constatar de que nada saíra do lugar. Amanda fechou os olhos e respirou fundo; fétidos miasmas se harmonizaram com o ar denso formando uma espécie de dança macabra que seguia rumo aos seus pulmões como um alento demoníaco. Seus olhos reabriram lentamente deixando à mostra um indisfarçável desejo de sangue, estavam injetados, arregalados, sua boca abriu-se calmamente também, foi virando com vagar o rosto em direção ao ‘altar’ de crânios; os demônios na escuridão entraram em frenética balbúrdia como se pressentissem a aproximação de algum êxtase. A mulher caminhou em direção ao altar e ali chegando parou e baixou o rosto. Ficou assim por algum tempo, como a meditar sob a influência amarelada e imprecisa que os fogos mansos das velas empestavam à sombria cena. Em determinado momento levou a mão entre as pernas, levantou a bata e começou a acariciar sua boceta desejosa de sexo, um tímido gemido lhe escapou. Quando ergueu a cabeça novamente, a predadora trazia nos

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olhos um brilho satânico capaz de quebrar um espelho. A pantera que a tudo assistia rugiu sua poderosa presença. Era o sinal. Hora de caçar!

- Acho que peguei a puta, delegado! Ela está lá na cela! – disse um sujeito grandalhão, um investigador que se chamava Décio. Este era truculento e se encarnava nas investigações feito um cão. Tinha o rosto redondo, uma testa grande e enrugada e o cabelo rapado tipo careca lhe emprestava um ar ainda mais agressivo. Coincidiu de Corrêa e Cássio estarem de plantão naquela madrugada, portanto a tal prisão passaria pelo crivo de ambos. - Certo, vamos lá. Tomara que você esteja certo, Décio. Vem, Cássio, vamos vê-la. – ordenou Corrêa. Cássio saiu da cama do alojamento de nariz torcido, tinha muita dificuldade em acreditar que Décio pudesse capturar a viúva-negra. Bocejou, esfregou os olhos e seguiu o superior e o colega com certa malevolência e má vontade. Quando chegaram à cela se depararam com uma mulher mal encarada e com um olho roxo. Estava sentada no catre, tinha os cabelos desgrenhados e parecia bem nervosa. - O senhor é o delegado? – esbravejou a prisioneira apontando para Corrêa, já se levantando e indo para junto às grades. - Sim, sou eu. - Então prenda esse careca aí, ele é louco! - Louco, eu? Olhe só o que essa piranha me fez. – ato contínuo, Décio mostrou uma marca vermelha no pescoço. - É um chupão, seu troglodita! - gritou a mulher. - Calma aí, senhora, sem grito! – coordenou Corrêa. - Conte o que aconteceu, senhora. – pediu Cássio. - Ora, eu estava numa boate quando apareceu esse cara aí. Se eu soubesse que era polícia nem dava papo. Ele se engraçou comigo, foi até delicado, pagou umas e 77


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outras, acabei indo na dele. Moro sozinha, convidei o cara para o meu apartamento; a gente já tava embalado, compreende? Já em casa, no sofá, o sujeito esse aí começou a ficar estranho, qualquer coisinha que eu fizesse no pescoço dele, ele segurava o meu com essa sua mão gigante e apertava. Achei que era algum tipo de joguinho, entende? Então lhe taquei um chupão e uma mordida, com tesão, sabe? Aí o podre me enfiou a mão na cara! Ó meu olho! Que é isso? Na minha casa não, pô! Corri até a cozinha e peguei uma faca, pra me defender, né? Peguei a faca e ele então disse tipo assim: “Ah, então é você! Te peguei, puta!” então tirou sua arma sei lá de onde e eu largueia faca, que não sou louca. O cara me algemou e no caminho para cá, até de assassina me chamou! Sinceramente, delegado, esse cara aí é louco. - Solte essa mulher, delegado. – pediu Cássio de uma maneira desconsolada. - Como assim? – irritou-se Décio – quem você pensa que é para dizer quem fica e quem sai da cadeia? Ah, sim, já ia me esquecendo, a investigação era sua. Pois é... mas não é mais! Você se acha melhor que todo mundo, né? Então porque ainda não pegou a cascavel que se arrasta aí pelas ruas? Cássio virou as costas e saiu andando. - Não vire as costas pra mim! - Já chega! – explodiu Corrêa. Em seguida fez um gesto com a cabeça para o carcereiro que assistia tudo à distância. Este então foi até a cela e abriu a porta. - Mas delegado... – Décio ainda tentou ponderar, mas em vão. - Agora, não, Décio agora não. Cássio já estava novamente deitado no alojamento quando Corrêa entrou, tinha um ar preocupado e em seguida sentou-se na cama ao lado. - Isso não vai dar certo. – disse o investigador – Todos querem ganhar o troféu, mas não há planejamento, trabalho de inteligência. Todos viraram ‘iscas’, não vai funcionar assim. - Não posso voltar atrás, Cássio. Paciência. É um ônus com o qual teremos que conviver. - Tomara que esse tipo de coisa não bote tudo a perder. 78


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- Como assim? O que você quer dizer? - Ela é esperta, é perspicaz. Observa. Fareja. Tem ouvidos que escutam longe. Se reparar nesse nosso arranjo... já era. Ela é invisível, pode estar em qualquer lugar e não sabemos. Além do mais, acho difícil que ela fosse com alguém como o Décio. - Mas que porra é assa? Como raios você pode saber tudo isso? Neste momento outro agente chegou à porta do alojamento, estava um pouco afoito. - Delegado, acho que peguei a piranha! – sentenciou. Cássio e Corrêa se olharam e não conseguiram segurar os risos, que saíram meio travados. - Fique aqui e descanse. Deixe que vou lá soltar mais essa... – disse o delegado.

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Cap - 9

GATA E RATOS

- Marco César Gallardo, comerciante. – Cássio jogou a ficha e a foto da mais recente vítima sobre a mesa de Corrêa. – enquanto nosso pessoal prendia suspeitas improváveis, ela atacou de novo. O delegado pegou a foto e enquanto a analisava, o investigador percebeu o filete de suor que, fugidio, descia na têmpora do superior. Não havia dúvidas para o jovem policial de que tudo aquilo excitava Corrêa. Não era culpa dele, era algo que morava lá em suas mais profundas escuridões, em porões remotos e sombrios dos quais o colega por certo mantinha temerosa e prudente distância. Era preferível aliviar amiúde seus efeitos periféricos através de repetidas punhetas, mesmo durante o expediente, do que procurar pelo enlace definitivo que daria fim à sua compulsão. As revistas pornográficas eram servidas como uma espécie de antepasto para seus alívios prementes. O suor copioso denunciava que engrenagens inconscientes se botavam em movimento tão logo algum estimulante decodificado como erótico lhe pingasse vindo lá de onde for. Como agora. O delegado passou a mão no que lhe escorria no rosto, mas outra onda despencou lenta, e mais outra. Olhou para Cássio sem jeito, mas encontrou no subordinado o abraço caloroso e confortável de um sorriso condescendente. Parecia mesmo que o colega podia entender o que se passava com ele. Foi quando reparou que o sorriso do rapaz foi se desfazendo ao mesmo tempo em que perdia o olhar na paisagem de concreto que a janela atrás de si oferecia ao visitante de sua sala. Cássio agora estava ali em pé e muito sério. - Tudo bem com você? 80


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- Ela não transpira... – sussurrou o investigador sem tirar os olhos do nada. - Quê? - Ela não tem medo... - Que porra é essa? - Ela vai até lá, delegado, não tem medo – disse saindo do transe e encarando Corrêa – ela freqüenta o submundo... E gosta. E se refestela com isso. - Normal. Temos gente por aquelas bandas também, fique tranqüilo. - Não, delegado, ela freqüenta o submundo dela mesma... Corrêa ficou sério. - É lá que repousa soberana sua força descomunal... Delegado, essa mulher é muito, muito mais poderosa, perigosa e mortal do que o senhor possa imaginar, do jeito que as coisas estão não vai dar certo. Nossos homens são como meros ratinhos perdidos em um labirinto; e labirintos, senhor, são a especialidade dela, são os mapas de suas veias! são os caminhos que levam ao interior de suas próprias trevas. O que para nós é porta fechada, para ela é caminho. O que para nós é sacro, para ela é profano. O que em nós dá medo, nela dá prazer. O que para nós é proibido, para ela é deleite. O que para nós é maldição, para ela é benção. O que para nós é cerca, para ela é trampolim! A escuridão, esse mar no qual não ousamos molhar os pés, é a casa dela! Se continuarmos pensado com nossas próprias cabeças, nunca a pegaremos. - Por que só agora? – comentou Corrêa pensativo - Por onde ela andou até então? Seria uma moradora nova na cidade? Ou simplesmente decidiu dar sumiços em homens de uma hora para outra? Realmente é intrigante. - Algo pode ter acontecido na vida dela. Algo que virou a chave. Que causou uma mudança radical. Mas seja lá o que for sempre esteve nela, ela apenas perdeu o medo. Possivelmente era alguém bem comum que cansou dessa condição, e que agora está deslumbrada com a autodescoberta, está se testando, indo cada vez mais longe. - Adoraria botar as mãos nessa mulher... – o delegado disse isso e uma Tsunami de suor despencou de sua testa e têmporas. 81


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Cássio observou a reação do superior com um inesperado e especial interesse.

A noite, os becos, as boates, as mulheres, a cama e pílulas. Desta vez ao acordar com a cabeça rodando, não encontrou a parceira dormindo, mas ao abrir os olhos pesados deu de cara com uma sorridente e bela mulata a escancarar-lhe grandes e brancos dentes. Novamente, assim, de saída, não lembrava nada. Era hora do esforço hercúleo de montar o quebra-cabeça da madrugada. Novamente bebera, cheirara, e acordava em sua casa, em sua cama com uma desconhecida. A voz da mulher entrou mansa em sua mente entorpecida, numa espécie de zelo, num cuidado proposital para não desferir uma pedrada nos tímpanos do moribundo ao lado. - Puxa hein? Finalmente. Bem, não me admira que você durma assim, tão pesado. Você é uma máquina hein, cara? Huuu... - Ma... máquina? - Sim, máquina de trepar, querido, Uau! Pedi água três vezes, nossa! Não lembra? Nunca em sua vida tinha escutado algo parecido: “máquina de trepar”. Como assim? Nem era tão bom de cama... mas, afinal, que estranhos dotes adquiria quando na fúria insana da madrugada e que não conseguia lembrar? Aliás, deveria estar trabalhando, e não arrastando mulheres para sua casa. A madrugada era o quintal da assassina; um erro de cálculo e iria para o país dos pés juntos. Que merda de irresponsabilidade era essa? Paciência, estava feito. Hora de levantar, ir para a delegacia, matutar, matutar... Pílulas, precisava das pílulas. - Hora de levantar, policial? - Quê? Eu lhe disse que era policial? – surpreendeu-se. - Disse. - Minha nossa... – murchou a voz e o semblante levando as mãos ao rosto – por acaso... eu disse mais alguma coisa?

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- Disse muitas coisas, mas o principal é que queria uma trepada furiosa! Daquelas, entende? Queria sexo, muito sexo! Não me diga que não lembra? - Preciso ir, arrume-se. – disse com total desalento. - Caramba, meu! Onde foi parar a máquina de fazer sexo de ontem? - Não tenho ideia, querida. – disse enquanto se levantava meio cambaleante – Não tenho a mínima ideia...

O Sol lá fora estendia sua claridade mansa sobre os afazeres corriqueiros dos vizinhos, logo ali, nas calçadas. Amanda desceu pelas escadas do porão já vestida para o cotidiano, tinha de conferir tudo antes de sair. Mesmo seu hábito de farejar o início do dia na rua já havia abandonado. Não queria defrontar-se com as inoportunas perguntas de Seu Antero sobre de como andava suas investigações a respeito dos odores que assombravam a pacata vizinhança. Foi com um sorriso em seus lábios vermelhos e brilhantes que enxergou sua pantera a dormir de tripas cheias, satisfeita. Pedaços do corpo, resíduos sanguinolentos da caçada noturna, ainda restavam espalhados horrorosamente pelo chão. Era um cara bacana até esse tal aí, mas a fome de seu animal era mais importante, nada de sentimentalismos baratos. Agora tinha que sair, logo mais à noite arrumaria tudo; faria a faxina, ensacaria restos, rasparia ossos, limparia o crânio do desavisado; em breve o altar contaria com mais uma vela, uma caveira, uma morte. Era um trabalho minucioso, de artesão. Ofício de um coveiro promíscuo e necrófilo, violador de catacumbas e corpos à procura de emoções sombrias; atividade que passara a executar com paciência e zelo através de afiados instrumentos. Passava mais e mais tempo socada no porão. Sabia que tinha de assumir responsabilidades se não quisesse deixar rastros, era esse o preço a ser pago pelas viagens da madrugada infinitamente prazerosas e mortais. Entidades filhas das sombras acompanhavam silentes as tarefas mórbidas da sacerdotisa do templo obscuro. O silêncio sempre cadenciando tudo; consentidas exceções eram dadas apenas aos movimentos pesados e calmos da pantera. Algumas vezes a cabeça da ferina brotava de alguma sombra, feito o desabrochar repentino e mágico de uma flor mortal, portadora de imensos e desafiadores olhos. Quando no porão sua mente dançava sob a música de uma 83


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embriaguez gerada por escuridões desafiadoras, muito próximas e íntimas... Suas próprias trevas. Sair para o trabalho começava a lhe exigir cada vez mais um ânimo que só poderia sobrevir daquele próprio ambiente, como uma roda que girava e se retroalimentava na dependência de dois pólos que rodavam em perfeita harmonia. Ao sair do alçapão ainda dava uma paradinha em frente ao espelho da sala para conferir se seu semblante estava por inteiro, sereno, seguro; com os instintos alegres, olhos brilhantes, sorriso fácil, gestos macios. Ajeitava o decote do vestido negro a apertar seus seios de marfim, que provocavam, mas com discrição. Corpo de mulher, sombra de pantera. A parte de cima da casa parecia-lhe perfeitamente com seu lado organizado; tudo em ordem sob o reflexo da luz do Sol: os móveis, as cores, as nuances delicadas do lar... as janelas a oferecer as cotidianas imagens repisadas da rua, numa espécie de convite ao corriqueiro, sempre tão morno e seguro. Em nenhum momento essa paisagem confortável se deixava penetrar por alguma invasão arbitrária oriunda do porão. Equilibrava bem as coisas; também não era bom levar as usuais cenas lá de fora quando em seus mergulhos na escuridão. Cada coisa em seu lugar. Imagens seguras, mesmo reduzidas à migalhas não combinavam com as sensações extasiadas que faziam estremecer seu corpo, prazeroso refém de um milhão de borbulhantes zonas erógenas. Podia, sim, brincar durante o dia, de fazer subir sensações de seus profundos abismos capazes de causar-lhe delicados espasmos numa espécie de jogo íntimo que Amanda chamava de pequenos orgasmos existenciais. Um torpor repentino lhe acometia quando da lembrança do porão, da felina negra; era uma espécie de anfetamina, de ópio, uma pulsão extática, etérea, oferecida por seus labirintos através de seu próprio sangue. Estava feliz, seu corpo transformara-se em um templo de carne para onde convergiam todos os prazeres, mesmo os mais sutis. Seu sorriso agora fácil e luminoso eram flores oferecidas ao Sol numa saudação pela exuberância desse prazeroso enlace do negro com todas as cores...

Olhos atentos se esgueiravam por bares e boates, conferiam mulheres de todos os tipos, cores, tamanhos, belezas e feiúras. A polícia trabalhava. Por detrás do piscar de luzes e dos sons estridentes e retumbantes, das vozes altas e ruidosas; uma penumbra saturada albergava olhares que eram entrecortados por coloridos fachos luminosos que jorravam de todos os lados. Tudo chamava a atenção dos homens, e a 84


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esta altura algumas mulheres com escondidos distintivos que se misturavam pela noite na perigosa jornada de passear pela teia de uma aranha invisível. Bastava um olhar feminino para estranhos calafrios acometerem corpos sempre bem treinados. Mas estariam prontos para essa empreitada inusitada? Globos de espelhos giravam refletindo luzes rápidas em sorrisos e beijos, em agarramentos, corpos dançantes e rostos alegres. Onde estaria ela? Talvez camuflada entre um desses milhares de relances. Quem seria a próxima vítima? Aquele desavisado ali no balcão, que sorri para a bela garota a seu lado? Ou aquele outro, que já bêbado e escorado em uma parede seria presa fácil para a predadora? A noite corria ruidosa e festiva enquanto os imensos dentes ensangüentados da fera penetravam em corpos despedaçados. O focinho melequento. Filetes vermelhos esticavam-se entre as escancaradas presas inferiores e superiores... júbilo!. Quando já satisfeita, a felina negra apenas repousava seu bucho cheio, alheia ao que se passava nas casas noturnas da cidade. O que lhe importava? Toda sua alegria estava na visão gratificante de ver sua dona descer as escadas do porão trazendo pela mão o alimento cambaleante ao seu lado; nos risos da sacerdotisa a promessa de delícias iminentes. Corpos nus a se agarrarem, os círios acesos a surpreender o convidado; o altar de crânios sem as velas acesas permanece imerso na escuridão. Até então, apenas uma brincadeira, uma fantasia da dona exótica da casa... eles nunca desconfiam, mas a morte já está a espreitá-los na silenciosa escuridão que circunda a cena. Ela quer gozar mais uma vez, as costas da vítima a sentir o cimento frio do piso, o odor pesado é uma mistura que embriaga mais ainda o incauto; ele se deixa levar pelo ambiente sinistro em que morte e sexo se misturam em uma dança de êxtase, horror, e a promessa de perigosas delícias. Ela abocanha o pênis do homem deitado e com delicadeza faz ressuscitar o que há pouco foi tesão desenfreado. Os movimentos aumentam gradativamente, ela então fica mais gulosa, pula sobre o amante, senta sobre seu pau e o enfia nela; crava as unhas no peito do quase defunto, ele geme, ela também. Ela cavalga. Mais e mais... mais e mais! Pupilas negras desaparecem revirando-se por detrás das imensas conjuntivas vermelhas, os cabelos sobre o rosto, os dentes cerrados, o gozo, o grito! Êxtase! Morte! Êxtase! Morte! Dança etérea! O sussurro abrupto e então... a lenta volta à Terra. O despencar sobre o corpo ainda vivo, o coração a acalmar-se lentamente, o pau a murchar dentro dela. Levanta-se com calma e sai de cima, o homem atônito permanece deitado, o peito retendo o coração que quer fugir. Um rugido vem das sombras. A vítima paralisada de pavor vê imensos olhos surgirem das trevas, em seguida o animal negro e musculoso brota na forma de um pesadelo mortal, o sangue congela, o ar lhe foge, agora é tarde...

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Na sala, as luzes seguem apagadas, só a claridade da rua. Amanda já vestida com sua bata negra prende o cabelo, serve seu Martini, e em seguida escolhe um disco. Bota na antiga vitrola, Turandot de Puccini. Na próxima será Wagner, ou talvez Mundo Novo de Dvorak, está indecisa. Senta-se na poltrona e acende a ponta de um baseado. Sabe que vai demorar para vir o sono, a adrenalina baixa lentamente, momento íntimo e balsâmico, boa hora para pensar...

- Ontem morri outra vez... – disse Evaldo sentando-se na velha e ensebada cadeira do outro lado da mesa de Cássio, na delegacia. Este largou alguns papéis e encarou o colega com um ar surpreso. - Como assim? – sorriu. - Ah, estou ficando descuidado por causa da porra desse trabalho! Esta madrugada levei uma gata pra casa e fodi adoidado. Depois capotei, caralho, capotei! Arrastei a mulher de uma boate, nem a conhecia. Porra meu! E se fosse a criatura essa? A aranha negra? Eu poderia estar despedaçado e enfiado em algum saco agora... Quando acordei e a vi ali no lado dormindo, pensei: pronto, morri! Se fosse ela eu estava morto! Maldita bebedeira! Maldito trabalho! - Já passei por isso, amigo, depois me dei conta, existe uma incoerência aí. - Como assim? - Ela não age em território alheio. Ela atrai para o seu, só assim não deixa pistas, e nem corpos. Além do mais, alguns automóveis das vítimas foram encontrados nas redondezas das boates. Ela faz o serviço em sua toca, disso não há dúvidas. - Mas dominar um homem? Tá na cara que ela mata enquanto eles dormem, assim como eu fiz ontem. Se é que não serve algum veneno junto com a bebida. - Não sei... Não é tão simples. Imagine que ela more em um apartamento. Mesmo agindo na madrugada correria riscos, sempre há o vizinho xereta, sabe? Além do mais, o que faria com os corpos? Como se livraria deles? Os esquartejando? Saindo com malas e mais malas? Hmmm... sei não. Muito arriscado. E teria que fazer isso 86


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logo depois de matar os desgraçados, pois o cheiro a denunciaria. Além do mais, já teríamos descoberto restos de corpos por aí. - E o que você sugere? - Para começar ela mora em uma casa, e se quer minha opinião, numa casa grande. Ela se sente segura e até confortável para agir. Mas ainda há um mistério, o que faz com os corpos? Ela dá sumiço neles, mas... como? - Enterra no quintal? - Pensei nisso, mas também é muito arriscado. Tenho a impressão, mas é só impressão, sabe? De que esses defuntos não saem de dentro da casa. E é aí... e é aí que a pulga morde minha orelha. - Nunca vi você dedicado a um caso como está com esse. Incrível, você não para, mesmo sabendo que se ela não cometer algum erro nunca a pegará. - Ela é muito esperta, Evaldo, não vai cometer erros. - Você está obcecado, não é? Cássio abriu um largo e raro sorriso. – Vamos almoçar? – convidou. - Certo, vamos. - Não tão rápido! – interrompeu Décio, que se aproximava envolto em seu ar truculento. Em seguida atirou sobre a mesa de Cássio mais uma ficha de desaparecido. - Mais um presentinho pra você! Sabe, Evaldo? Corrêa quer que Cássio trate desse assunto pessoalmente, não somos bons o suficiente para pegar essa fodida aí! Essa psicopata de merda! É ele quem monta o mapa psicológico da criminosa, como se ele próprio fosse um psicólogo forense ou coisa parecida, não somos bons o suficiente... - Caro Décio – interrompeu Cássio – percebe o que disse? Nessa sua agressão está a resposta. Raciocine. - Não. Sou muito burro, raciocine você para mim, já que tem a mente privilegiada. – debochou o policial grandalhão. 87


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- Certo, não me custa nada. É simples, você diz: é uma fodida, psicopata de merda! Ora, meu caro colega, se ela fosse o que você alega não estaríamos quebrando a cabeça até agora enquanto ela não para de atacar. Por ‘não’ ser uma fodida nem psicopata de merda é que capturá-la tornou-se uma tarefa praticamente impossível. Ela é calculista e não erra. Tratá-la como uma idiota qualquer é um erro fatal. Psicopata sim, mas astuta como uma cobra, sensual como uma gata e mortal como um escorpião. Por isso eu afirmo: não se pode fazer uma cirurgia de catarata usando uma chave de fenda e um martelo. - Ah, você se acha tão melhor que os outros... e está usando esse caso para provar. É o ‘caso da sua vida’ eu diria. Quanto a nós, somos apenas peões que você usa em seu tabuleiro. Até o delegado entrou na sua, mas saiba, comigo não cola. Repito: é uma putinha de merda, uma doente, uma vagabunda qualquer. Nada mais, nada menos. Vou encontrá-la e vou matá-la com minhas próprias mãos, daí vou jogar o corpo aqui na porta da delegacia pra você lamber! – Décio disse isso e saiu indignado. - É um idiota. – comentou Evaldo. - Vamos comer. Depois tratamos da nova vítima. – disse Cássio e já ia saindo quando o colega o segurou pelo braço. Tinha um ar repentinamente pensativo. - Cássio, e... e... - E? - E se ela devora os corpos? E se ela for uma canibal? - Não. Não é. - Porra meu! Como você pode ter sempre tanta certeza? - Pela velocidade com que ela mata. Se tivesse o apetite de um leão até poderia ser, mas daí teria que ter um estômago de leão. Se fosse realmente uma canibal, haveria um espaço de tempo bem maior, bem maior mesmo, entre um crime e outro; canibais estocam a comida. Não, Evaldo, não é o caso. – Cássio disse isto, coçou a cabeça e ficou um pouco pensativo. - O que foi? - Nada, amigo, nada. Vamos almoçar. 88


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A PANTERA DO PORÃO

Cap – 10

SENHORITA DAEMON 89


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Muitas coisas interessantes agora ocorriam com a Senhorita Daemon. A segurança, a sexualidade exacerbada, a leitura fácil das pessoas – principalmente as mais próximas. O prazer em tudo, até no gesticular com calma; o olfato aguçado capaz de detectar medo, excitação ou a insegurança no outro. E a mania de solidão. Gostava de pintar; elegera um dos quartos da casa como uma espécie de estúdio e ali, nas horas calmas, dava vazão à pinceladas nervosas e sem nexo, apenas se deixando levar pela mão. Era uma miscelânea de cores, às vezes vivas e às vezes sombrias a se entrecortarem em cenários incompreensíveis. Não queria nexo, queria paixão! Queria entrega, queria se dissolver naquelas cores, estaria ela se derretendo sobre as telas? Tudo jorrava de um sopro raivoso, dentes trincados, avental sujo, cabelos presos; sorrisos e caras feias cruzando-se em uma dança diabólica. A tinta preta na ponta dos dedos a riscar a tela, unhas de uma felina a cruzar a obra! as bisnagas contorcidas jazendo pelo assoalho de milhares de respingos feito um arco-íris despedaçado. A vida cotidiana agora lhe parecia de pouco interesse, foi difícil conquistar seu status, mas havia conseguido. Pudera. Era só o que lhe restava fazer, nada mais. Entregara-se com unhas e dentes à empreitada, afinal, tinha que mostrar aos outros de que era capaz. Os outros, os outros, os outros... chegara à conclusão de que para caber no olho do outro havia se esforçado muito, mas o olho do outro, esse impostor, não tem fundo e nunca dá nada em troca. Não mais, ah não mais! Fodamse! Para ela, o olho que lhe interessava era o que enxergava pra fora, que media e calculava sob seus próprios interesses. Já passara muito tempo atendendo as demandas de olhos alienígenas, pagando o preço com sua própria e agora enterrada insegurança. O olho do outro teme o que não compreende, e daí? Teria que deixar de ser a misteriosa Senhorita Daemon para ser apenas a Amandinha, a boa de passar a mão na cabeça, a boa de consolar? Águas passadas, não há retorno. Que gostassem da nova Amanda ou se regozijassem com qualquer outro serzinho de estimação. Afinal, esses outros todos aí também não forçam poses, caras e bocas para formar uma couraça, uma armadura para disfarçar suas próprias imperfeições? Mas todo mundo é perfeito! Todos querem dizer ‘eu’ mais alto que os outros, mas... não seria 90


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essa porra também uma insegurança? Tudo passava à frente de seus olhos como um filme e ela sorria. Não forçava nada, seu sorriso era um brilho nascido de sua espontaneidade, nem sabia fingir, nem precisava mais. Seu olhar derretia os metais mais grosseiros, e olhe que até fingia transformá-los em ouro feito uma alquimista sombria e faminta para depois os devolver aos pedaços para o monturo do qual ingenuamente não deveriam ter saído. Agora não era mais ‘os outros’, era ela, e nada, agora sabia, nada pode ser mais poderoso que isso. Eles tinham suas armaduras douradas, e ela, ela tinha uma pantera no porão. Perdera o medo. Descobrira que mergulhando em seu próprio inferno havia descoberto do que era feito o inferno dos outros. Mas daí vira sabedoria, aprendizado, então para ela não é mais ‘inferno’, porém, é bom que continuasse sendo aos demais. Eles não mergulham nas profundezas, apenas colam rótulos, avisos na porta e vão embora. Que ela ficasse com os abismos só para ela, pois agora faziam parte de seu corpo, de seu mundo. Melhor assim, pensou Amanda, melhor assim... Presenças profanas não devem aventurar-se em tenebrosas terras, não devem despertar demônios se não vão dançar com eles, não devem gritar se não toleram seus próprios ecos ... certas delícias são reservadas apenas a quem pode reconhecer e gozar seus desfrutes. Agora ela sabia que as placas incrustadas no tenebroso caminho, alertando sobre a perdição a que ele leva, foram deixadas pelos eternos cultores do medo; ela própria há bem pouco tempo não se atreveria a exceder esses limites. Foi a pantera, sua amada fera, quem lhe mostrou onde estavam escondidas as douradas chaves que abririam as portas canônicas das quais se recomenda respeitosa distância, algo totêmico que não se deve ultrapassar; ora, mas se o prazer está justamente em escancará-las, em ultrapassá-las! Fodam-se os dedos descarnados e trêmulos que lhe apontavam o caminho do ‘bem’; ela decidia o que era bom e o que era ruim para si, e ruim seria deixar de freqüentar os brumosos pântanos onde confraternizava com sinistras e já familiares criaturas, que a conduziam, alegres, através de fabulosos e sombrios portais. Tudo a impelia a uma nova dimensão estética. Passara a se considerar uma artista, nem tanto por pintar quadros abstratos, mas por dar contornos de beleza ao seu próprio caos. Concluíra que o caos era sua própria ordem, então tudo estava em seu lugar. O porão e aquela que o habitava lhe alçaram a outra medida de espaço, e a escuridão da sombra afinal, pensava, abrigava o infinito! Colecionava crânios, fodia com eles antes de empilhá-los, entregava suas carnes para saciar o apetite sangrento de seu animal; via em tudo isso a beleza da Arte. A moral do olho alheio só poderia estragar tudo, pois que ficassem cegos às suas atividades lúdicas e criativas... uma artista, uma artista, afinal! O altar de crânios crescia na escuridão, iluminado de forma sombria pelo fogo pálido oriundo das compridas velas negras que cada um ostentava, não havia lugar no mundo em 91


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que pudesse se sentir melhor do que nela mesma, e o porão era dela, só dela... só lá podia sentir nas entranhas o sangue borbulhando de tesão e morte, sentia a sensação de que seus dentes cresciam feito os de um vampiro, sua imaginação explodia, seu orgasmo também... O porão! O porão! O porão! Ah, uma artista, afinal, uma artista!

A cidade seguia com sua rotina quase tranqüila. Ninguém desconfiava de que uma serial killer espreitava nas sombras. A polícia preferia assim. Nada de pânico. Mas o tempo passava e zero de pistas, zero... uma migalha que fosse, um pingo de sangue, nada! Só mesmo as deduções de um policial encarnado no macabro assunto; almoçava e jantava a tal assassina que não deixava corpos para trás. Caralho! Mil vezes caralho! Desmantelaria os corpos? Jogava em algum buraco desconhecido os pedaços humanos? Cássio achava que só a ele cabia a autoria do desfecho dessa história, a mais ninguém. Os colegas trabalhavam parecendo tanques de guerra em uma loja de cristais finos; não, não era por aí, havia algo sutil que parecia invisível aos demais policiais. Talvez apenas Corrêa captasse esse melindre através de suas experientes antenas, mas lhe parecia impossível o superior evitar que qualquer coisa sobrevivesse a um afogamento precoce sob as águas mornas e caudalosas que desciam de sua testa e têmporas. Era ele, Cássio, e ela. Ponto! Sabia disso, sentia isso. Ou a pegava ou os assassinatos – seriam mesmo assassinatos? –seguiriam ad eternum. Sentia, sim, um certo conforto nascido da vaidade. Era impelido ao assunto feito uma mariposa em direção à luz, já não dormia direito, precisava dar um rosto à sua obsessão; o fato de não vê-la dava a sensação de uma cegueira insuportável. Caminhava no escuro, e a única e fraca luz que trazia vinha de sua mente cansada, uma tocha simplória carregada por mãos hesitantes, que falseava, piscava, não lhe dava segurança alguma, tudo poderia transformar-se em um breu infinito a qualquer momento. Aí sim, tudo terminaria em nada... seria o fim. Precisava raciocinar; dálhe pílulas para a tristeza, dá-lhe duas ou três carreirinhas, dá-lhe um pouco de vodka... – Caralho, vou enlouquecer! - dá-lhe mais uma visita ao beco, dá-lhe isso, dá-lhe aquilo... Ah, mas o que importava seus devaneios? Ela estava lá em sua zona de conforto, sob as sombras, segura, risonha, desdenhosa da capacidade da polícia. Um rosto, um rosto, precisava de um rosto... Morena? Loira? Negra? Ah, sim, aquele porteiro a viu de relance, disse que era branca com cabelos negros, mas só isso, mais nada. A danada não se deixava apanhar pela fisionomia, só a oferecia à 92


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vítima. Era um fantasma aos demais, é preciso ser muito esperta para usar esses truques e sair ilesa. Quanto mais Cássio pensava mais parecia perder-se em um labirinto, o labirinto montado pela mulher-fantasma, a danada que foi morar em sua cabeça. Não sentia medo, sentia ansiedade e uma espécie de assombro claustrofóbico, como se uma mão invisível não largasse seu pescoço. Ah, como se não bastasse a infinidade de fantasmas que, não fosse as pílulas, arruinariam seus dias de forma impiedosa. Certa vez imaginou-se como um cemitério ambulante; para cada sentimento ou sensação que morria nascia um fantasma correspondente, e esses seres invisíveis e ruidosos não se furtavam a assombrá-lo inadvertidamente nos momentos que julgassem convenientes. Aquela famosa última pá de cal não serve para enterrar mortos no inconsciente, eles voltam, sempre voltam, mesmo que com aspectos e roupagens diferentes. Talvez, mas só talvez, isso explicasse seu interesse de cão faminto pela sedutora assassina. Quem sabe ela fosse finalmente o fantasma que poderia confrontar, um fantasma de carne, osso e sangue! Mais perigoso que todos aqueles que lhe assolavam por dentro, para esses havia as pílulas; para ela só esta angústia mórbida, esta tentativa desesperada para que a maldita não se transformasse também num fantasma, num ser insepulto a lhe atormentar pelo resto de seus dias. Sentia seus pensamentos serem acossados pelo desespero, tinha que disfarçar, sempre tinha, era um homem disfarçado. Na delegacia se mostrava como aquele em que todos podiam confiar, era determinado, interessado, gostava de montar quebra-cabeças criminais, “esse vai longe”... fora do trabalho tinha poucos amigos, e já achava que eram muitos. Ela deveria ser uma solitária também, essas ações diziam isso sobre ela; precisava de espaço, tempo, solidão para poder trabalhar em paz. Deduzia que as vítimas só eram mortas depois de uma alegre ciranda de foda, uma boa chave de boceta, e até, quem sabe, algum cafuné. Ela brincava com a comida antes de dar-lhe o destino final. Ela se divertia com sua solidão, ele não. Viu-se então como uma figura trágica, meio patética até. Que tal pensar em outra coisa? Hmmm.... Um rosto... precisava de um rosto, de uma forma, um cheiro, um som. Precisava de uma pista, precisava parar de pensar... As pílulas! As pílulas!

No círculo mais íntimo da fera, algumas novidades também se faziam notar. Maíra reparava quando deitada ao lado de Telmo, que o namorado tão bom de cama, no 93


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sentido sonífero do termo, agora demorava a dormir; revirava-se na cama como se algo dentro de sua cabeça o estivesse perturbando. Quando perguntava o que estava acontecendo ele apenas respondia que era estresse de trabalho, nada mais. Certo. Queria enganar a quem? Casualmente este comportamento coincidia com duas coisas: ela reparara que o namorado já não era tão carinhoso, como de costume, nem tão divertido. Outra coincidência era a de que a mudança de Amanda parecia reverberar misteriosamente em tudo e todos. Era natural que caraminholas zanzassem por sua mente, mas não queria pensar no pior. A temerosa sombra da mulher, que repentinamente havia se transformado em uma carismática gata sensual, parecia pairar sobre todos os acontecimentos recentes, e ela sempre gostou muito da amiga... e... e era isso. Mudava então de assunto em sua cabeça. Mas sempre por pouco tempo, esse é o tipo de coisa que se espanta, mas sempre volta feito um mosquito faminto. Estava com dificuldade em admitir que a lembrança da parceira havia se tornado um incômodo, era uma lembrança que agora trazia consigo o fantasma da insegurança. Sempre vivera bem com Telmo, tinha confiança no amante... até agora. Merda! Começaria ela também a revirar-se na cama? Tudo por conta de uma nova e misteriosa Amanda? Seu instinto de mulher insistia de que havia algo errado no ar e cochichava em seu ouvido para que abrisse o olho; estaria Linda certa em seu chilique no shopping? Só ela Maíra, não via o óbvio? Desde o episódio não procurara Linda, por medo. Tinha receio de escutar pela boca da amiga o que se negava a enxergar. Coincidências, coincidências... Telmo estava visivelmente perturbado, não tocava mais no nome da fêmea que vestia negro. Estranho... sempre era o primeiro a sugerir que a convidassem para sair junto, agora era como se ela não existisse. Seria porque a convidada não era mais inofensiva? Ademais, a própria refugiara-se em sua imensa casa sem manter contato com os amigos, até nisso Maíra sentia um certo alívio. Quando dava um pouco mais de vazão aos seus temores, concluía de que a gata sensual passara a portar certos poderes, mas dos quais parecia abrir mão quando com os amigos, por puro respeito. Um lobo que se finge de cão quando está entre os cães, por mera generosidade. O olhar, antes sem paradeiro, agora mirava com acuidade e firmeza, envenenado por uma sensualidade desconcertante. O sorriso era natural e seguro. Os gestos leves. A voz era macia e convidativa. Um demônio! Definitivamente um demônio! Exaltouse Maíra em um arroubo involuntário. Alguns flashes brotavam feito relâmpagos em sua mente trazendo imagens de Telmo e Amanda trepando freneticamente. Relutava em admitir que sua tranqüilidade havia ido embora. Que loucura! - Onde foi parar minha amiga que era tão boazinha? um amor de criatura...

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Enquanto a noite caía sobre a cidade, muitos policiais se preparavam para uma caçada discreta. Uma caçada estranha, bizarra. Os próprios deveriam ser caçados se quisessem apanhar a mulher invisível que circulava pela noite matando a seu bel prazer feito uma carniceira descontrolada. A rapaziada civil e inocente se arrumava para a diversão à frente do espelho, alheios ao perigo. As luzes nas fachadas das boates e bares explodiam suas cores convidativas transformadas, inadvertidamente, em guizos de cascavéis. O ambiente sempre alegre de início de noite encobria um perigo iminente e silencioso protagonizado por uma camaleoa faminta, que sabia observar sem ser observada. Era apenas uma mulher como tantas outras que circulavam por esses locais. Antes da sedução ‘ressuscitava’ a Amanda morta, transfigurando-se em um ser comum, que não chamava a atenção. Usava sua antiga identidade como um truque, uma armadilha, seu rosto adquiria um ar ingênuo, inseguro, inclusive preferia passar o batom quando já no interior da casa noturna. Tinha facilidade em vestir sua máscara morta, principalmente quando a ocasião pedia, como nesses momentos dedicados à preparação. Carregava na bolsa seu próprio cadáver e o usava como quem retoca o rímel. Tinha total controle sobre as personagens que interpretava de acordo com o momento, era uma titereira habilidosa e muito cuidadosa. Lia com facilidade seus interlocutores e media rápido o grau de interesse ou vantagens que poderia desfrutar; se não fosse tirar algum proveito descartava sem demora. Até chegar ao alvo, precisava se desvencilhar de uma série de incômodos, todos já catalogados e sabidos, pedras no caminho, nada de mais. Era divertido remover esses obstáculos com sua astúcia, uma espécie de treino antes da ação, um jogo, algo lúdico e que servia para afiar suas garras sanguinárias. Quando já finalmente no local de ataque e transformada em um animal predador que precisa se alimentar, era uma questão de escolha e tempo. A arte de mimetizar-se aos demais era de grande valia, a felina dava o bote só quando julgava que o ambiente estava seguro. Então desabrochava feito uma flor negra só para quem interessava, exalava seu perfume inebriante e abria as portas do alçapão dourado, com tapete vermelho e tudo, ao escolhido. Valia-se com maestria dos artifícios de Proteu. Só quando ambientada se fazia notar, eis um truque fatal que requeria grande habilidade e astúcia, era distinguida como se fosse um ser autóctone a habitar a penumbra há milênios; um fruto que espera ser colhido pela mão certa. Uma Excalibur viva. A essa altura, já alucinada de tesão, a fantasia começa. Ao lembrar que na escuridão seu animal aguarda o alimento seu corpo estremece; nas trevas a luxúria, a 95


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liberdade, o crime. Os crânios aguardam o novo companheiro. Os demônios dançam sua ciranda ruidosa e sinistra. Hora de sorrir ao eleito, de fazer seu olhar penetrar seus sentidos, de insinuar o cio de seu corpo; por um momento nenhum músculo do seu rosto se move, congela a boca entreaberta, só a língua passeia por dentro, vagarosa. O homem inebriado se aproxima. Foi fisgado. A pantera ruge no porão! Seu Antero abre lentamente um olho remelento, afundado em seu travesseiro.

Cássio era alguém que sempre respeitou as regras, aliás, era funcionário delas. Agora ao caminhar solitário pelas ruas matutava: por que ele, tão cioso de seus deveres e obrigações, tão correto, tão moldado ao que era estabelecido como certo, por que não encontrava essa porra de felicidade, paz de espírito e o caralho? E pior, por que a assassina era feliz? Tinha certeza que era! Sim, ela era feliz, dava vazão ao seu ‘eu’ mais profundo não importando a moral ou qualquer coisa que lhe pudesse barrar as vontades. Não teria ele, Cássio, caído em alguma armadilha da qual nunca percebera, uma espécie de arapuca oficial destinada às pessoas de bem? Por que ele não era feliz e ela era? Por que ela se aprazia em cometer crimes e ele não ao evitálos? Para ele, investigar e desvendar – quando possível - crimes era apenas sua obrigação, para isso é que recebia seu salário. Dinheiro que, verdade seja dita, nem sabia como e com que gastar. Ia caminhando e vendo as vitrines, mas reparava mais em seu reflexo cinzento nas vidraças do que nas ofertas coloridas do outro lado. Essa mulher definitivamente surgira do nada para perturbar o arremedo de paz com que pincelava a superfície de seus dias. Por que a bandida o incomodava tanto? Por que ela podia ser feliz à sua maneira e ele... bem, ele nem sabia se haveria uma maneira de ser feliz. Diga-se de passagem: o que é ser feliz? Duvidava disso, era apenas mais uma invenção metafísica destinada aos tolos. Não, ela não era ‘feliz’ no conceito popular e enganoso da palavra, ela descobriu uma nova modalidade de vida, quanto mais sugava suas próprias raízes mais estas cresciam na escuridão. Ela não precisava mais da ‘felicidade’, quem sabe até julgasse que isso fosse coisa para pobres de espírito. Não, não... ela estava em outra esfera, em um mundo só dela. Cássio podia apostar que o ramerrão do cotidiano lhe pesava mais e mais a cada dia, era o preço mundano a pagar por suas delícias. Deveria também, a moça, ter uma espécie de ética invertida, gostava de viver de ponta-cabeça, só assim o mundo lhe fazia algum sentido. Bem, ela tinha sim um peço a pagar, era essa a condição de sair 96


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à luz e se misturar aos demais sem ser desmascarada. Mas a danada já deveria ter alcançado uma estatura tal, que mesmo esses sacrifícios poderiam lhe causar prazer; um prazer mórbido, talvez? Mas a morbidez na certa era algo que não incomodava a viúva negra... pelo contrário. Ela vê tudo e todos, mas ninguém a vê. Ela se diverte. Sim, não haverá de ser peso algum o cotidiano, ela tira de letra, manipula, brinca, salta por sobre as cercas. Ninguém desconfia da colega de trabalho, da vizinha, da irmã, da cliente do salão... ela é assim até chegar a noite. Daí tudo muda, suas obrigações terminam, agora é ela por ela mesma. Todos os poderes lhe convergem na forma de uma bruxaria selvagem, ela cresce, suas unhas crescem, assim como seu apetite. As fantasias afloram trazendo consigo rebuscadas formas de matar, de gozar seus apetites necrófilos e insanos, ela se perde propositalmente em seus próprios labirintos mórbidos, se permite coisas que fariam corar um demônio. Segue sempre, vai além de todos os limites, se testa, quer mais e mais. Goza rios etéreos e loucos! É em suas trevas que mora seu paraíso, é lá que ela dança, é lá que é uma deusa orgástica, é lá que é feliz! Sim, uma felicidade que não é eterna, uma alegria fugidia, talvez dure apenas uma noite, mas ela sabe que as noites são eternas, elas voltam sempre. Amanhã tem mais! Ela tinha suas delícias, e ele tinha seu trabalho. Quando voltou a por os pés no chão estava prostrado à frente de uma vitrine, seu reflexo borrado lhe dava um ar grotesco.

O shopping estava cheio como sempre. Na praça de alimentação dois casais conversavam de forma discreta, Maíra e Telmo mais Linda e Ângelo. Parecia que as amigas haviam feito as pazes, nenhum sinal de animosidade vazava do descontraído encontro. Em uma esquina do estabelecimento Amanda observava os amigos de sem chamar a atenção envolta em sua invisibilidade, pois se tornara uma expert em não ser notada quando não queria. Reparava principalmente em Telmo e Ângelo e de como representavam seus papéis de bons moços com uma canastrice só possível de ser percebida assim, à distância. A ‘distância’ era ouro para ela, aprendera que quanto mais se afastava mais podia observar o todo, e por osmose perceber qual seu papel nesse ‘todo’, quanto mais distanciava seus olhos, mais eles enxergavam. Percebia os dois casais como algo meio patético, como se ambos representassem um script rançoso e cansativo. Um roteiro escrito por alguém, não por eles, a eles cabia apenas a representação correta de seus papéis, nada mais. Sentia até um certo constrangimento pelo que via, pela pobreza daquelas vidas assentadas nos moldes 97


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burgueses clássicos, tão pobres em originalidade vital e tão ricos em cinismo. Os dois homens dariam um dedo para comê-la, mas mantinham suas aparências intactas com as quais podiam sustentar seus status em uma sociedade de aparências. Teriam filhos, com certeza, e quando nos bares com os amigos se vangloriariam de suas famílias típicas compostas por esposa, filhos e amante. Quanto às amigas, a essas pressentia um destino mais sombrio. Ao cumprirem seus papéis, cujos contornos frágeis exigiriam uma fidelidade canônica embora tênue, atrofiariam suas verdadeiras vontades em prol de uma vida galgada em moldes alienígenas aos seus corpos e instintos. Poderia, quem sabe, mais adiante, haver uma separação nascida de uma pressão sanguínea e mental insuportável; um divórcio consentido em que poderia servir de fuga para outros arquétipos mais favoráveis. Amanda enxergava o resumo da ópera, seria preciso às suas amigas reduzir o conceito de ‘felicidade’ para poder caber dentro dele. Mas sempre, sempre, haverá o que transborda para fora dos moldes, aquilo que nelas será uma espécie de sobra, e elas nunca saberão de que se trata. Possivelmente entregarão essa ‘sobra’ a alguma religião morta ou coisa parecida, legitimando e dando algum nome bonito às suas esquizofrenias. A verdade é que o jogo continuaria a ser jogado mesmo com novos atores; as regras desse jogo já estavam escritas e as normas estabeleciam que a vitória ficasse reservada, como sempre, somente os autores das regras. Aos participantes só restava jogá-lo. Amanda sentiu um misto de dó e raiva. Olhava para Telmo, depois para Ângelo, voltava para Telmo... bem que podia arrastá-los para o porão. Era a tarefa mais fácil do mundo; uma excitação lhe subiu pelo corpo causando uma espécie de espasmo. Era algo que lhe agradava pensar, mas apenas não concretizava a fantasia por respeito à sua amizade com Maíra e Linda, nada mais. Aí era uma questão de ética, a sua ética, aquela escrita de próprio punho, e não de vaidade ou simplesmente tesão. Também se impunha alguns procedimentos. Suas aventuras malditas só poderiam ser possíveis acompanhadas de uma responsabilidade autóctone, nascida de suas próprias convicções. Decidira: deixaria os rapazes como um legado seu às amigas, para que o grande baile regido por hinos desprovidos propositalmente de qualquer vestígio de Arte, pudesse prosseguir seu árido percurso. Que sejam felizes, que vistam essa felicidade comum a todos, mas que não servia a ela, Amanda. Para ela bastava esta alegria infinita que brotava na forma de flores sangrentas que exalavam perfumes sombrios e proibidos, cujas raízes estavam cravadas em seus instintos como as garras de uma águia faminta. Pouparia seus amigos, e uma sensação de poder lhe invadiu a existência... era a Senhorita Daemon, a deusa demoníaca da vida e da morte, só cabia a ela decidir. Sorriu e saiu satisfeita andando pelo shopping, olhando as vitrines de forma descontraída. 98


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Cap – 11

O DIA QUE CORRÊA DERRETEU

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- E então, cabeça privilegiada, nada? – disse Décio, passando pela mesa de Cássio na delegacia. - Falando em ‘cabeça’, porque você não usa um pouco a sua! Você vai se surpreender, tenho certeza que consegue. – devolveu Cássio. Décio retornou em direção ao atrevido, visivelmente irritado. – Olhe aqui, meu! – esbravejou – estou cansado dessa porra! Todas as noites é isso, esse disfarce do caralho! Bares, boates, inferninhos, putarias, quer saber? Pra mim tudo isso é história... você inventou uma personagem, uma ficção! E todo mundo se mexe para achar um fantasma. Só o Corrêa mesmo para cair nesse tipo de devaneio! De minha parte posso garantir, estou de saco cheio! - E o que você sugere? Que deixemos essas vítimas de lado? Que quem fez isso siga impune? E pior: que homens continuem desaparecendo, assim, no nada? Somos policias, nosso trabalho é achar e prender essa assassina. - Se é que é uma ‘assassina’, isso ficou consagrado por uma decisão sua. - Por uma ‘dedução’ minha. - Enfim, perseguimos uma ‘dedução’... ora, essa é boa! - Não, Décio. Perseguimos algo que, garanto, você nunca sonhou. Estamos atrás do pior dos pesadelos; de algo mortal, implacável, terrível. Uma assassina que não vai parar, pelo contrário, até deverá sofisticar mais e mais seus hábitos criminosos. Ela não tem piedade, é determinada e sofisticada. Quando a vítima se dá conta da fria que se meteu já é tarde. Não há saída, não há perdão. Então se coloque no lugar desses pobres coitados e no desespero de seus últimos momentos; a mão da morte a lhes arrancar o coração bem debaixo de seus olhos arregalados, reféns do mais genuíno pavor! Se errei minha dedução, bem, é do jogo... mas se acertei, aí lhe garanto, temos meio caminho andado. O que não podemos é ficar de braços cruzados, aliás, se me der licença, a noite está caindo lá fora e meus instintos me dizem que hoje ela vai sair para caçar. – Cássio levantou-se de sua cadeira, pegou seu sobretudo e saiu sem demora. Décio ficou a observar o colega, havia pensado em dar uma resposta, mas seu cérebro não reagiu a tempo... 100


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Quando já caminhando pela rua, Cássio tirou do bolso o pequeno frasco com suas pílulas, mas logo o guardou novamente. Não, hoje não. Iria passar lá naquela porra de beco, encarar os mal-encarados, se fazer de louco e comprar cocaína. Queria uma noitada. Que começasse mansa, e que tomasse o rumo e a direção que seus instintos apontassem. Foda-se! Queria nadar de braçada no mar noturno, sempre agitado, excitante e perigoso. Nas profundezas dessas turbulentas águas um tubarão assassino espreitava imerso em negrumes abissais. Tinha certeza, sabe-se lá porque, de que hoje o predador iria se divertir, subindo à superfície trazendo a morte entre suas poderosas mandíbulas. Era um condimento a mais, uma excitação capaz de arrepiar sua pele e sua mente atormentada. Um delicado toque sinistro na paisagem caótica em que se metera e não conseguia - ou não queria? - sair. Estava cansado de pensar, tentar montar quebra-cabeças, fazer mapas sangrentos. Não, hoje não. Não iria remar em nenhuma direção, deixaria a correnteza lhe levar. Entrou em seu carro, deu a partida e seguiu em direção ao agito da noite.

Demônios não sabem quando é dia lá fora, tanto faz, o que são os dias para os capetas? Para eles as horas são feitas de sombras. É na escuridão que íncubos e súcubos praticam suas orgias infernais, sendo assim, o que eventualmente cair sob a luz morna e esclarecedora de bisbilhoteiros e indigestos holofotes, devido a algum escorregão acidental, irá gerar gargalhadas. Possivelmente irão brincar de eleger qual deles vai se curvar e deixar o rabo ereto e a bunda à mostra para pegar o sabonete no chão. Os demônios são impiedosos. Odeiam o que não é riso. Talvez seja por isso que elegeram os afiados dentes da pantera como uma espécie de símbolo para suas alegrias ruidosas. Podiam jurar que cada rugido do animal era uma risada satânica na qual podiam se comprazer no deleite daquelas presas afiadas e longas. O hálito da fera lhes chegava às narinas abrasadas feito doce e vivo perfume. Mas o ápice da bagunça se dava quando do banquete da besta; o corpoalimento estraçalhado sobre o tapete negro e pegajoso, o focinho a escarafunchar a carne até achar as delícias que faziam com que a cabeça negra se erguesse, rápida, puxando o que lhe interessava do monturo inerte. O porão era uma festa! Discreta, mas mesmo assim uma festa. As compridas velas negras, em cujas pontas a dança lenta do fogo emanava uma claridade comedida, não importunavam as profundas trevas, onde a balbúrdia demoníaca brotava como ondas de um mar infernal. Eram 101


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milhões de seres risonhos e sacanas a tripudiarem saborosamente a imaginação da deusa, causando uma espécie de delírio manso na mente daquela a quem deviam suas existências. Ela ali no canto, sentada nua no chão, costas na parede, mão na bocetinha, semblante de quem pressente o êxtase. O pesado odor da morte a permear tudo. Mas hoje a pantera não tem nada para comer, transita lenta entre os ossos humanos, olha para a dona, respeita o momento íntimo da mulher, sabe que ela está excitada, sabe que ela vai sair, seus suspiros nada discretos deixam bem claro que hoje é dia de caça! O corpo de Amanda estremece, está no ponto, mas ela não goza. Levanta-se vagarosamente, vai até seu bicho, acaricia sua cabeça e inicia uma dança esvoaçante e calma. O sorriso e os olhos semicerrados anunciam a promessa de uma noite excitante... então é chegada a hora da preparação, é a hora da cascavel lustrar o guizo. É hora de ficar cheirosa e sorridente, de afiar o olhar, acalmar os gestos, dar graciosidade aos movimentos. E principalmente, feito a pantera que se faz de morta para atrair pequenos animaizinhos xeretas, atrair caçadores ansiosos para serem fotografados ao lado do poderoso animal abatido, numa vanglória que lhes custará o próprio sangue. A fera negra está com fome, muita fome. A moça sai do porão. Hora do banho, mas antes passa pela antiga vitrola, dá uma paradinha, bota um disco, Vavaldi, aguarda pelos primeiros movimentos da Primavera com os olhos fechados e uma ponta de sorriso. No cinzeiro um baseado fumado pela metade, na casa lá da frente um Senhor Antero querendo respostas, no porão seu animal querendo devorar, devorar... então suspirou, e seu demora seguiu seu rumo.

Quando a noite cai muita coisa acontece, mas ninguém vê. Ah, a noite... essa metáfora perfeita para os labirintos e escuridões que habitam compulsoriamente nas pessoas. Em todas as pessoas. Algo então se realiza, alguns portais invisíveis se abrem oferecendo os caminhos ocultos que burlam sutilmente restrições milenares. As defesas arrefecem; afinal, não está agora o Sol bisbilhoteiro sorrateiramente escondido para que se viva as mais coloridas ou sombrias fantasias? A Lua oferece a passarela azul para que os demônios mais exaltados saltem, bem despertos, estourando suas champanhas e ejaculando seus jorros de espuma nas mentes cansadas pela insolação do cotidiano. As ruas se abrem, alegres, aos passos cambaleantes do prazer. Tudo dança. Tudo dança no ritmo da música inaudível da promessa do novo. Tudo arrepia. A noite deixa marcas de batom no copo. Cheiro de 102


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cigarro no vestido. Mancha de vinho, de esperma. Odor de suor, de boceta. De tapa, de mordida. Último beijo, despedida. Gargalhada, choro. A noite é um mundo dentro do mundo, ou talvez fora dele... válvula de escape, delícias inconfessáveis. Trombada de automóvel, delegacia de polícia. Deixa-se alguma coisa ao sair de casa, não se sabe o que é, só se percebe, depois, que é algo supérfluo e incômodo, ninguém precisa disso; não, na noite não. Há quem fique em casa acalentado monstros debaixo da cama, preparando o ramerrão do dia seguinte... pra esses o Sol nunca se põe, são os apologistas de seu reflexo. Não desligam, temem a rua, temem a noite. Lá fora amor e guerra dançam aos beijos. Nada é igual, tudo muda a cada momento, para melhor e para pior. A noite tem o mágico poder de transformar vinho em sangue, vida em morte, azar em sorte. Tem uma caveira dentro da rosa, uma faca na cerveja. É quando o bem e o mal vão pra rua de mãos dadas. Tem um memento mori em cada esquina escura, em cada boteco. Tem o riso vadio, a mão boba. O perfume importado, e quem não se importe. Tem tudo e tem nada. Tem início, indício e madrugada. Tem máscaras para ninguém saber quem é quem; tem disfarce até o primeiro gole. Tem maconha, cocaína, êxtase, heroína. Tem o terraço e tem a sarjeta. E tem isso, e tem a quilo. O que tem por detrás das luzes coloridas que sorriem seus chamariscos? Aí tem! Hein? E tem, também, Cássio no beco comprando pó...

Antes de sair, Amanda deu uma passada pelo porão. Havia algo que lhe puxava para o macabro buraco feito um Imã, como se precisasse encarar seu animal numa espécie de legitimação do que estava por vir. Só era possível uma boa e proveitosa noitada se houvesse a consonância, a cumplicidade com a fera negra; precisava que ambas se fundissem em um só elemento natural, perigoso e vivo. Nesses momentos as trevas em volta se acalmavam, em respeito à luxuriante simbiose que este silencioso ritual representava. Olhos nos olhos. Um sentimento de amor emanava do encontro. O perfume caro e delicado da mulher fundia-se então aos odores de morte do obscuro templo, como se precisasse absorver as essências sinistras do ambiente para que o arranjo final estivesse realmente pronto. Um toque sutil. Era bom que a aura do porão lhe acompanhasse em suas aventuras, que o hálito faminto da besta não abandonasse seu olfato delicado. Sentia-se forte, corajosa, invencível. Era uma espécie de droga a lhe embriagar os instintos, a aguçá-los até transformá-la, com seu 103


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toque mágico, em uma selvagem ferina. Desviou mansamente o olhar e reparou, satisfeita, que tudo ali havia adquirido pesados ares góticos; as sombras pareciam engolir as limitadas e prosaicas dimensões do local para oferecer em troca um negrume infinito. Os ossos pelo chão lhe chegavam à visão trazendo o cenário de um brumoso pântano, mórbido e movediço. O altar de crânios e suas compridas velas negras, parecendo solitários chifres a brotarem nas cabeças de monstruosos unicórnios, oferecia uma fonte de luz mortiça e amarelada, a dar o tom e o ritmo lento ao estranho esconderijo. Os roncos da pantera a quebrar o silêncio. Amanda adorava quando o animal aparecia, malevolente, surgido de algum canto trevoso, para assumir seu protagonismo naquele acanhado palco de luz débil. A pouca claridade oriunda daquelas magras velas, reféns da escuridão, incidia na cabeça do bicho dando-lhe ao semblante uma espécie de efeito camaleônico, numa dança intermitente e macabra a lhe desfigurar a cada segundo, como se as faces de mil demônios incorporassem rapidamente para que suas imagens se desvelassem à sacerdotisa, que adorava esses momentos. Talvez os habitantes das sombras prezassem por essa apresentação, que se fosse um pouco mais lenta, ela tinha certeza, até poderia dar-lhes nomes, afinal, não aprendera a conviver alegremente com eles? Acaso não faziam, esses seres, parte do que ela era agora? O porão era seu lar. Tudo ali lhe pertencia, e ela, ela pertencia a tudo ali. A pantera seguia com fome. Hora de partir. Ir à luta. Suspirou, aproximou-se de sua amada e lhe carinhou a cabeça, em seguida caminhou até o altar e reparou que a cera negra derretida das velas agarrava-se às caveiras feito finas raízes a dar-lhes um aspecto mais pavoroso. Eram raízes que se amontoavam a cada dia encorpadas por pingos que se consolidavam formando filetes tenebrosos a lhes cobrir a nudez dos ossos. Córregos mórbidos e estáticos eram alimentados por lágrimas de cera, revestindo de forma irregular e medonha aquelas cabeças descarnadas. Novas fisionomias eram plasmadas através das habilidades de um artista incansável e incorpóreo. Amanda sorriu e calmamente se foi, deixando as caveiras ali, tendo seus novos rostos moldados, aos poucos, pelas mãos invisíveis da morte.

Algo surge de misteriosos e escuros cantões e assusta aos desavisados quando relampeja suas imagens assustadoras. Isso pode acontecer a qualquer momento, mas com Cássio se dava com mais freqüência durante a noite. Algumas vezes, pouco 104


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antes de pegar no sono, surgia alguma imagem sem pé nem cabeça a interromper a sempre complicada descida ao reino de Morfeu. Nunca fora fácil pegar no sono, mesmo com sua cabeça afundada confortavelmente em seu gordo travesseiro. Era difícil desenroscar os fios dos eventos cotidianos, não que estes tivessem alguma relevância, normalmente não tinham, pelo menos de sua mente pra fora. Via tudo como algo grotesco, meio patético, e se perguntava, afinal, o que estava fazendo ali. Era como se vivesse para receber salário. Ou talvez, lhe pagassem um salário para que vivesse, não sabia direito. Sua cabeça no travesseiro, a mente transformada em um ninho de cobras nervosas, o semblante de dor. Que merda! Virava-se de um lado para o outro na cama, como se com isso pudesse entornar o palco e seus indesejados personagens, limpar o pensamento, dormir, caralho! Dormir! Mas não, tudo retornava lentamente aos seus devidos lugares tão logo se acomodava em uma nova posição, feito uma maldita ampulheta de areias-pensamento. Nessas horas é que algo acontecia; misturada a essas medíocres areias, uma imagem intrusa e fugidia aparecia, sempre fazendo com que seus olhos abrissem de supetão. Essa imagem variava, uma noite era isso, outra noite era aquilo, mas era sempre algo assustador. Era um baque! Um tapa em sua mente! Certa vez, lembrava-se bem, viu o que parecia ser uma espécie de demônio peludo debaixo de um imenso portal, encravado em uma escuridão infinita, a acenar-lhe alegremente com um sorriso debochado. Assustou-se. Era algo vívido e potente. De onde surgira aquilo? Nunca esqueceu essa visão. Agora, ao acender um cigarro, andando por aquelas ruas movimentadas, três tecos gordos na cabeça, essas coisas lhe viam à mente. Por que nunca tivera a devida paciência para limpar o pátio e aguardar essas intromissões de forma a oferecer-lhes o palco? Aquele que entornava com seus inóspitos personagens e tudo? Tinha medo de quê? Aonde aquele demônio peludo que sorria poderosos dentes brancos e pontudos queria levá-lo? Como poderia saber das coisas da predadora, pretensiosamente entrar em sua cabeça, se não se atrevia a cruzar tenebrosas fronteiras? Não estaria a assassina a esperá-lo para lá da escuridão para íntimas carícias e uma satânica foda dos infernos? Como poderia ir adiante, se nunca foi? Estava prestes a desistir. Sentia-se como uma formiga querendo capturar uma víbora. Podia imaginar as gargalhadas de Décio. Seria então tudo fruto de sua imaginação doentia, nunca existira uma assassina em série, aqueles homens sumiram porque sumiram, ponto final! Talvez agora estivessem confraternizando em algum Éden, ou em algum Tártaro rodeado por lascivas e belas garotas. Corrêa por certo preferiria dar tudo por encerrado, assim poderia dedicar-se às suas intermináveis bronhas, sem nenhum indesejável fantasma por perto, com a exceção daqueles que pinçava no cotidiano para lhes causar a abrasiva sudorese. A sensação de impotência lhe incomodava, tinha a impressão de ter sido barrado e um baile por não possuir a 105


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roupa adequada, ou o que era pior: era uma festa para pessoas nuas e ele não tinha coragem, nunca tivera, de tirar sua surrada indumentária cinzenta. Parou em uma esquina e observou a boate do outro lado da rua, seria uma boa tomar algumas doses, esquecer tudo, quem sabe... Distraído com seus pensamentos, não percebeu o reluzente carro negro que lentamente passava por ele, já pela terceira vez, feito um calculista tubarão faminto.

Aquele tem algo diferente, pensou Amanda. Um ar blazé, uma aura oitocentista. Gostou. Deu a volta com o carro, conferiu novamente, hmmmm... levou as mãos entre as pernas. O homem caminhava pela rua meio distraído, tinha um semblante atormentado, com a gola do sobretudo levantada, soltava longas baforadas de cigarro. Ficou imaginando quais pensamentos arrastavam suas correntes por aquela mente para deixá-lo tão belo aos seus olhos. Não era como os outros, que na alegria das promessas ambíguas da noite, pareciam sempre dispostos e felizes; quase como se formassem, todos juntos, as cabeças oriundas de uma Medusa filistéia , amistosa e idiotamente brincalhona. Aquele ali não. Era preocupado, passava os olhos por tudo, mas não via nada. Por certo estava mergulhado dentro de si mesmo, o que procurava lá? Amanda sorriu. Quem sabe com esse poderia abordar outros assuntos? E não a mesmice de sempre? Ou poderia se decepcionar e o cara seria apenas mais uma cabeça da Medusa filistéia e estaria apenas sentindo a dor por conviver com algum ente querido muito doente? Mas... não, aquele ali não. Tinha certeza. Trazia o peso de séculos nos olhos cansados, trazia uma indignação, um nó Górdio a esmagar-lhe o coração. Era uma figura trágica a misturar-se aos demais transeuntes. Olha lá, vai atravessar a rua, acho que vai até aquela boate! O que iria fazer em uma boate? O que procurava por lá? Talvez alguma rápida diversão, panos quentes em suas dores latentes. Seria o último romântico, ali, a atravessar a rua quase sem olhar para os lados? Ou seria ela, Amanda, que insistia e querer pintar um malogrado quadro do século XIX em sua própria mente? Dourar a pílula! Enfeitar a presa, dar-lhe humanidade. Aquele homem a deixara um pouco confusa, via mais vida em sua tristeza do que nas ‘alegrias’ dos demais homens-corpos que passaram por seu tesão e terminaram na bocarra da fera. Queria ele. Iria atrás. Sentiu sua calcinha molhar. A pantera haveria de deliciar-se hoje como nunca. 106


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Um bafo quente e caótico logo envolveu o rosto de Cássio. O som retumbou raivoso em seus ouvidos. Sentia-se um alienígena sempre que entrava em uma casa noturna para fazer qualquer coisa que não fosse trabalho. Talvez não fosse do ramo. Parou à frente de um imenso espelho e disfarçadamente conferiu suas narinas, nenhum vestígio do beco. Ótimo. Porém, teve a impressão de que minúsculos sulcos mapeavam o entorno de seus olhos dando-lhe um ar cansado e envelhecido. Ah, foda-se! Queria beber, observar, e com alguma sorte, foder. Tudo dependeria de seu estado de ânimo. Logo as luzes coloridas começaram a cruzar pelo seu rosto como a lhe esquartejar o semblante. A casa ainda não estava cheia. Foi ao balcão, pediu uísque. Depois de servido, virou-se de costas para o balcão e se escorou com os cotovelos. A festa era a de sempre, luzes e sombras em uma dança frenética. Rostos, risos, abraços, beijos, dentes, línguas, mãos gulosas exploradoras de corpos que se negavam a parar de pular. Deu um gole, mais outro. Sentiu-se como um peixe fora d’água. O som alto e intenso parecia martelar seus pensamentos em direção ao seu fígado. Procurou limpar a cabeça, relaxar, afinal, tudo ali era festa, não é isso? Pois que seja. Quando se virou novamente para o balcão, percebeu a mulher de vestido negro sentada no banco ao lado. Bebia um Martini e sem demora virou-se para ele deu um sorriso e voltou a bebericar. Um dragão lhe subiu pela espinha. Os olhos negros da moça, tal qual uma marca d’água, seguiam impressos nos seus, mesmo que tenha sido um rápido olhar. Suas pernas bambearam, sentiu o sangue abandonar seu rosto, o corpo parecia amolecer. Precisava de um tempo para se recompor. Sorriu idiotamente de volta, mas a garota não estava olhando. Ajeitou-se. Precisava abordála com urgência, mas não sabia como fazê-lo, estava atordoado. Ela então facilitou tudo ao encará-lo novamente, desta vez com um imenso sorriso nos lábios vermelhos, o que o deixou tonto. Não havia dúvidas, Cássio tinha certeza... ‘é ela!’, estava entre surpreso e irritado; sonhara com este momento e agora parecia uma criança perdida. Um perfume delicioso e estranho lhe penetrou as entranhas, um instinto de predador assumiu seus nervos, queria aquela mulher de todo jeito. Mais uma vez, ela abriu as portas: - Você não combina muito com este lugar, me parece... – disse Amanda, com um sorriso gracioso. 107


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- Acho que não combino com lugar algum. – devolveu Cássio, com um riso meio desajeitado. - Não, não... na verdade o lugar não interessa, mas sim com quem estamos. Às vezes encontramos pessoas que mudam todo o astral do lugar, é mágica? Talvez. Mas tudo fica bem quando encontramos a pessoa certa. Sei lá, comigo funciona assim. Cássio não conseguia tirar os olhos de Amanda, seus gestos delicados e o jeito de falar quase lhe deixavam prostrado. Mas precisava prosseguir. - E quando encontramos a pessoa errada, a coisa piora? – brincou. - Às vezes as pessoas erradas são as certas. O homem sorriu sem tirar seus olhos dos da mulher. Convidou para que continuassem a conversa naquela mesa lá no canto. Ela topou. Levantaram-se e seguiram para um lugar mais reservado. A penumbra agora engolia o casal. Cássio tentava disfarçar que acusara o golpe, mas ainda não encontrava as palavras certas, ou as erradas poderiam servir? - E como é o seu nome? – perguntou, sentindo-se um canastrão. - Amanda. - Amanda... – repetiu feito um sommelier farejando o bouquet de um raríssimo vinho. - Você parece um pouco nervoso, está tudo bem? - Bem... é que o dia hoje não foi muito bom. Nada de mais. Sou assim mesmo meio atrapalhado, principalmente com mulheres. Mais um uísque e tudo volta ao normal. Amanda achava estranho a rapidez com que se evaporara aquele semblante que havia lhe fascinado na calçada. Sabia que o escolhido à sua frente não podia ser tão inseguro quanto aparentava. Via nos olhos do homem um misto de fascinação e pavor. Algo estava fora de lugar. - E o seu nome? – perguntou.

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- Cássio. - E o que você faz, Cássio? Desculpe a pergunta idiota. – sorriu. Sinuca de bico. Pronto, lá estava ele contra a parede, com a faca no pescoço. Podia perceber que Amanda era esperta, tal qual imaginara. - Sou contador. - Ah! Sou empresária, lido muito com contadores. - Sim, mas vou lhe pedir, não vamos falar de trabalho. Estou aqui justamente para esquecer tudo isso. - Você é quem manda, Seu Cássio! tem razão, aqui não é lugar para isso. Sorry! - Tudo bem. – Cássio sentia-se um retardado. A voz saía desbotada, nada parecia dar certo. Amanda, então ajeitou o cabelo do rapaz fazendo com que seus delicados dedos, aqueles que estavam entre suas pernas no carro, trafegassem em volta do olfato da presa, jogando o feitiço. E seguida riu um riso gostoso e aproximou seus lábios aos do homem atônito. Só mesmo a cocaína tinha o poder de evitar que uma poderosa ponta surgisse entre suas pernas feito uma naja, despertada ao som de uma flauta tocada por uma sensual bruxa. O policial não agüentava mais, estava embriagado de tesão. Já não conseguindo se controlar, botou sua mão na perna da predadora, procurando sem demora o caminho por debaixo do vestido até sua bocetinha. - Ops! – brincou a mulher, pegando e retirando delicadamente a mão invasora, mas sem largá-la – Quem sabe vamos para outro lugar, mais íntimo. Parece que você já não consegue se comportar e um lugar público... nossa... isso é bom! Podemos ir até a minha casa, no meu carro, sabe como é, a vizinhança comenta, são uns bisbilhoteiros de merda. Depois posso lhe trazer de volta, sem problemas. Tenho um champanhe esperando, sabe, para o caso de conhecer alguém interessante. – sorriu. Ah, então é assim, – pensou o policial – direta e eficiente. Cássio não tirava os olhos da viúva negra, não conseguia. Sentia uma vontade de trepar como nunca sentira antes na vida, estava zonzo. Claro que topou o convite, mas antes pediu para mandar uma mensagem pelo celular, se ela não se importasse, claro. Ela consentiu através de um luminoso sorriso. Em seguida o rapaz começou a dedilhar 109


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freneticamente no aparelho, enquanto Amanda o observava como a lhe medir peso e altura. Terminada a tarefa, acertaram a conta e partiram.

Cedo pela manhã, o ritmo da delegacia era mais lento. Normal. Todos trabalhavam até altas horas atrás da suposta assassina em série. Corrêa chegou e foi para sua sala espalhando alguns ‘bom dia’ por onde passava, angariando às vezes algum bocejo como resposta. Já em seu escritório, sentou-se, pegou um molho de chaves em seu bolso, vasculhou um pouco entre elas e catou uma pequenina; ato contínuo a usou para abrir uma gaveta de sua mesa e em seguida retirou um aparelho celular. Era um aparelho que mantinha só para si, apenas para assuntos não urgentes e de preferência relacionados a encontros sexuais e conversas pouco republicanas, como ele mesmo gostava de dizer. Ao conferir as ligações e mensagens percebeu uma de Cássio realizada na noite anterior. Começou a ler, e em seguida não conseguia mais tirar os olhos da tela, mais adiante seu costumeiro suor começou a surgir descendo pelo rosto feito as larvas de um vulcão. Ficou ali estático, a camisa já colada no corpo, os óculos deslizando vagarosamente pelo nariz, o celular na mão empapada. Evaldo chegou à sala e levou um susto ao ver o superior aos pingos, o semblante já desaparecendo por detrás da inundação caudalosa. - Décio! Corra até aqui! Corra até aqui, meu! – pediu aos berros. Décio chegou e exclamou assustado: - Caralho meu! O home tá derretendo! Sem demora ambos acudiram o delegado, cada um pegando em um braço gosmento do homem que parecia catatônico e o levantaram da cadeira. A essa altura outros colegas se juntara à empreitada molhada e levaram o superior para o banheiro, parecia que precisava de muita água fria. Evaldo ficou na sala curioso, o que afinal teria causado o derretimento de Corrêa? Foi quando percebeu o celular no chão. Pegou o aparelho e viu a mensagem de Cássio. Começou a ler. Caro amigo Corrêa, sim, amigo, nada de ‘delegado’. Já não precisamos mais dessas porras de formalidades. Caro amigo, quando você estiver lendo esta 110


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mensagem já não existirei mais. Farei parte das estatísticas policiais no que diz respeito à assassina que tanto procuramos. Estou com ela bem aqui, na minha frente. Eu tinha razão, ela é extremamente sedutora, tem um sorriso lindo e fácil que a faz bonita, embora tenha um rosto comum. Neste exato momento ela me convidou para sua casa, tem até um champanha nos esperando! Não é uma graça? Decidi, meu caro amigo, que as coisas devem seguir seus respectivos cursos, é a natureza, sabe?Sempre achei que quando matamos uma aranha, matamos uma artista maravilhosa, sabe? Criando delicada e pacientemente sua obra terá seu alimento como justa recompensa. E eu, o que sou? Um mero funcionário de bosta nenhuma! Somos pagos para desfazer a teia e matar a aranha, não raro ficando com o alimento. Sou um cara pago para reagir à ação de algum outro, nunca gostei disso, tenho que lhe confessar. Se ‘o outro’ não fizer nada, morro de fome, não é verdade? Pois que eu morra do meu jeito, que ninguém me tire essa vitória, a única da minha vida! Nunca vi muito sentido em nada. Nada nunca me agradou de verdade. Mas essa mulher aqui, essa mulher me deu uma razão, um norte, nada mais justo que colha seus frutos. É justo! E mais: ela não vai parar, outros vão desaparecer, sei lá até quando, acho muito difícil que a peguem. Deixe meu abraço a todos aí, tenho que admitir que algumas vezes até foi divertido. Um grande abraço, amigo, e vai tomar um banho frio! Cássio. Evaldo olhou pela janela. Estava atônito. Seria uma piada? Mas Cássio não era dado a piadas. Tinha certeza de que a partir de agora seria o responsável pelas investigações. Seu colega havia feito uma escolha e lhe deixado um sinistro legado nas mãos. Estava triste. Gostava de Cássio. E agora, sem corpo, sem nada, o danado juntava-se, sorrateiro, ao rol dos desaparecidos. O detetive achava esse ato final muito estranho, mas quem era ele para julgar? Não fora ele, Cássio, a farejar o caminho de seu destino? Teria ele, Evaldo, condições de seguir a partir do que o colega deixara? Botou as mãos no parapeito da janela, respirou fundo e encarou a paisagem cinzenta lá fora. Seus olhos estavam entre assustados e melancólicos, afinal, quem ou o que é essa mulher? pensou, e então um filete de suor desceu lento, insolente e provocativo por sua testa.

FIM

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