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“Tem mais presença em mim o que me falta” O livro sobre nada (Manoel de Barros)
Entre. A chave da casa está próxima à porta da galeria e, talvez, tão presente como ela está a sua sombra. Coexistência. Em “casa 34”, os trabalhos expostos parecem surgir a partir da projeção da infância do artista no espaço, como se esta fosse um elemento que se encontra frente à luz da lembrança. Nada de ruínas aparece na exposição, nem mesmo a poeira que pairou em julho de 2016 no centro de João Neiva/ES, quando a casa de número 34, pertencente aos avós paternos do artista e, posteriormente, ao seu tio Djalma, foi posta abaixo. Da residência só restou o terreno, a metragem que abrigava as vivências dos familiares, os cômodos, o quintal e o desconhecido. Porém, Rick Rodrigues a deixa vívida, organiza todos os signos de sua memória de forma que o ambiente familiar se misture às paredes de um outro espaço tão íntimo seu, a galeria, numa mescla que levanta a possibilidade de inúmeras narrativas e processos de identificação no outro. A memória pessoal se desvela e é exposta com suas lacunas preenchidas pelo ato imaginativo ou, até mesmo, com o vazio, o não recordado ou o vivido. Tudo parte do ato de lembrar e do que se permite criar. São bordados sobre lenços e fitas, casa reconstruída em fachada e planta-baixa, miniaturas, objetos presentes oriundos da conciliação de traços de memórias fiéis e da imaginação de uma criança que ainda reside dentro do artista. A casa não pôde ser totalmente explorada, porém são trazidas fortes memórias de detalhes apreendidos por um olhar curioso que percorreu alguns de seus cômodos, bem como particularidades do quintal, das brincadeiras e dos momentos em que os pés não tocavam o chão devido ao vai e vem no “pé de balanço”.
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Citando versos de “O apanhador de desperdícios” do poeta Manoel de Barros, Rick parece ter sido “aparelhado para gostar de passarinhos”. Como um pássaro maduro que alça voos para novos ares, parece reconstruir um lar-ninho a partir das memórias, galhos que trouxe da sua vida, unindo-os com outros, referências encontradas pelos caminhos percorridos até então. Assim como a linha e a agulha, que na união de um ponto a outro fazem surgir árvores, pássaros, paredes, janelas e palavras, a expografia pensada pelo artista para “casa 34” delineia uma casa, forma um todo. Assemelha-se a muitos de seus desenhos bordados pela forma em que os signos da memória são apresentados em uma organização e pelo diálogo com o fundo brancos dos lenços. Nesta casa, resiliente, ressignificada, podemos habitar por um momento, bem como tecer tramas com nossas próprias vivências. É-nos dada a linha do verso. Dani Nogueira, 2018 Musicista, compositora e mestra em Artes pela Universidade Federal do Espírito Santo.
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ERA UMA VEZ UMA CASA DE NÚMERO 34 A demolição dessa casa ocorrida em 2016 tornou-se, a partir de então, o estímulo gerador do projeto poético do jovem artista capixaba Rick Rodrigues, que a cada nova exposição apresenta ao espectador um jorro de imagens/referências das memórias desse ambiente topofílico. Essa casa de número 34, que se localizava no centro do pequeno município de João Neiva, interior do Espírito Santo, era para o artista o lugar dos sonhos e dos afetos, uma vez que ali residiu por muitos anos o casal Maria Roza e Esmeraldo Rodrigues, seus avós paternos, e onde Rick passou a infância e grande parte da juventude. Foi com grande emoção e impacto que o jovem se deparou com os escombros da casa avoenga numa de suas idas à terra natal, da qual se afastou temporariamente para estudar na capital. Depois de concluir os estudos, voltou a residir na cidade, onde também mantém ativo seu ateliê, o que torna muito presente a memória da casa, como se visse ali soterrada grande parte de sua história e memória afetiva. Como um arqueólogo, que remove a terra e as camadas do tempo em busca de recuperar o que sobrou do passado, para melhor conhecê-lo e preservá-lo, Rick iria revirar impulsiva e intuitivamente os escombros à procura de objetos, fotografias, documentos e outros vestígios da memória da antiga residência e daqueles que a habitaram, referências essas que eram também significativas para sua própria existência. À medida que remexia os escombros, as lembranças da vivência na casa surgiam como emanações, e a cada achado emergiam novos sentimentos e recordações de fatos, experiências, pessoas, afetos. Se o tempo produz apagamentos da memória e impossibilita criar um cenário completo desse lugar do idílio, o artista o reconstrói poética e imaginariamente por meio de desenhos, gravuras, bordados, objetos, instalações, fotografias e vídeos. As primeiras imagens poéticas da casa foram desenhos criados por Rick Rodrigues naquele mesmo ano, representando-a como o arquétipo de um ninho ou pombal. Consistia em um pequeno esquema geométrico, com telhado de duas águas e uma pequena abertura central, que servia tanto de janela como de porta, pois a casa que habitamos na infância é nosso ninho, útero, berço, esconderijo. Esse mesmo esquema arquetípico foi transposto para gravuras e
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para dobraduras de cartolina, idênticas, como cubos vazios, que o jovem artista apresentava uma ao lado da outra, lembrando um pombal ou um conjunto de casas de um núcleo habitacional, despojado de seus habitantes. Surgiram, depois, miniaturas do mobiliário e de outros objetos que existiram na casa ancestral: camas tipo patente, armários, cômodas, mesas, gramofone, confeccionados com tal perfeição que lembram pequenas relíquias. Remetem a brinquedos ou aos objetos do mundo do pequeno dos contos de fadas. O propósito do artista ao apresentar essas miniaturas dos móveis e objetos da casa é formalizar um jogo do faz de conta, entre realidade e ficção, invenção e imaginação, possível e impossível. Assim, as referências ao mobiliário aparecem agora posicionadas nos respectivos lugares originais sobre o desenho bordado da planta baixa da casa 34, desvelando, numa espécie de sobrevoo por uma superfície transparente, o interior da casa e os objetos que integravam cada um dos cômodos. As miniaturas de camas e de outros objetos eram anteriormente posicionadas no alto das paredes dos espaços expositivos, convidando o público a acessar paradoxalmente esses objetos aéreos por meio de frágeis escadas miniaturizadas, que não aguentariam o peso de uma aranha. Os armários tinham as gavetas abertas e vazias, remetendo ao esvaziamento e ao apagamento da vida na casa, uma vez que encontrar gavetas vazias seria inimaginável em um lugar habitado. Os paradoxos ou as incongruências também se revelam em outras imagens poéticas criadas pelo artista: as miniaturas das camas, às vezes, são instaladas sobre travesseiros bordados, num processo de inversão em que o travesseiro é maior que a própria cama. Todavia, como observa Bachelard (2008), as “imagens poéticas nos fazem viver fenomenologicamente o não vivido”, não mostram necessariamente um fato real, “são pura linguagem, pura invenção libertadora, pura imprevisibilidade”. Nessa visão topográfica da casa 34, a referência à cozinha é feita por pequenas prateleiras, nas quais estão penduradas miniaturas de panelas e outros utensílios que, embora remetam à memória da infância do artista, não deixam de aludir a brinquedos, assegurando-nos que se trata mais de imaginação do que de realidade, mais de devaneio que de lembrança. São topofilias; sinalizam que se trata do lugar da intimidade e dos afetos. No espaço da sala, a referência que marcou mais profundamente a memória do artista foi o retrato dos avós, pendurados no alto de uma das paredes, como se dali pudessem proteger e abençoar o neto. Entre as imagens poéticas que
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integram a exposição Casa 34, as silhuetas dos avós resumem por si só o afeto e o sentimento mais profundo que o neto lhes devota. Os retratos foram bordados sobre tecido branco de lençol e mantidos enfeixados pelas molduras originais, que Rick conseguiu resgatar e restaurar. Especialista em gravura, tanto por sua praxe criativa quanto por ser pesquisador, o artista tem se dedicado em seu projeto poético mais efetivamente a inventar cenas e cenários em que predominam os objetos miniaturizados e os delicados bordados. Estes são executados com linhas coloridas sobre fitas de cetim, fronhas, almofadas, lenços, sacolas plásticas, cartões antigos, fotografias e peneiras. Embora o artista relate a existência de bordadeiras em sua família, aprendeu a bordar observando o irmão mais velho a costurar pedaços de couro para a confecção de arreios e de outros utensílios necessários à lida diária no sítio familiar. Anos mais tarde, esses exercícios até então descompromissados, realizados com agulha e linha, seriam canalizados para a elaboração de suas imagens poéticas em forma de pássaros, árvores, flores, nomes de objetos e de pessoas, retratos, além da planta baixa e da fachada dessa mesma casa, adornada com delicados vasos de flores. Não raramente, os bordados repetem inúmeras vezes um mesmo elemento visual, como os referidos vasos de flores ou uma simples sequência de flores estilizadas, numa referência ao jardim da avó e também ao quintal da casa, onde havia uma frondosa e imponente goiabeira, que servia de suporte ao balanço em que Rick Rodrigues e outras crianças da família brincavam. Mas, num exercício sinestésico, o artista diz ainda sentir o odor e o sabor das goiabas que colhia na árvore. É como se todas as lembranças da casa permanecessem enraizadas no inconsciente do jovem artista, em cujo projeto poético vai desvelando e apresentando aos seus potenciais interlocutores fragmentos dessa memória íntima a cada nova exposição que realiza. O diálogo com essas imagens despertará a consciência imaginante do interlocutor, fazendo com que ele rememore e evoque lembranças e vivências de sua própria história, porque é a vida que se revela nessas imagens em sua plenitude poética. Dois outros elementos merecem atenção especial na exposição do artista: uma gaiola de madeira, onde não há nenhum pássaro aprisionado, e a chave original da casa. Dentro
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Almerinda Lopes, 2021 Doutora em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e Universidade de Paris I “Panteon Sorbonne”. PósDoutorado em Ciências da Arte pela Universidade de Paris I.
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ÍNDICE REMISSIVO DE IMAGENS páginas 2, 18, 19 VISÃO GERAL DA EXPOSIÇÃO, 2021 página 5 OS CAMINHOS, 2020. Bordado sobre algodão de lençol. Dimensões: 21 cm x 15 cm. A CASA, 2018. Dobradura de papel branco 220 g/m² e prateleira de acrílico. Dimensões: 06 cm x 08 cm x 05 cm. 34, 2018. Placa numérica de metal. Dimensões: 18 cm x 12 cm. RUA MIGUEL CABIDELLI, 2021. Bordado sobre tecido de algodão. Dimensões: 11 cm x 17 cm. página 6 A FACHADA E O JARDIM, 2018. Bordado sobre lenço de algodão, brinquedos e prateleira de acrílico. Dimensões: 54 cm x 44 cm x 05 cm. ENTRE, 2018. Chave de metal e fita acetinada. Dimensões: 10 cm x 02 cm x 02 cm. páginas 7, 12, 13, 14, 15 A COZINHA, 2021. Instalação. Bordados sobre algodão, molduras, prateleira de madeira, fotografia, miniaturas de cobre, casa de passarinho, armário, jogos de chá, gaiola e bandeja bordada com ponto cruz. Dimensões variáveis. páginas 16, 17 CARTA A QUEM NÃO LEU, 2017. Bordado sobre fita voil, gaiola de madeira e porcelanas. Dimensões: 300 cm x 100 cm x 100 cm. páginas 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28 SÉRIE: ROSA ENQUANTO FLOR. ROSA ENQUANTO COR. ROZA ENQUANTO AVÓ. Bordados sobre papéis de algodão, envelope, lenço, saco de papel, pedaço de papelão e caixa de papelão. Dimensões variáveis.
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casa 34 páginas 29, 30 SEM TÍTULO, 2019. Instalação. Desenhos com papel carbono sobre 27 tacos de madeira. Dimensões: 21 cm x 203 cm. página 31 A PLANTA, 2018. Bordado sobre lenço de algodão branco, miniaturas de cama, cadeira e criado-mudo e caixa de acrílico. Dimensões: 44 cm x 44 cm x 05 cm. páginas 32, 33 REVOADA, 2017. Instalação. Bordados sobre lenços de padrões florais, miniaturas de madeira e varal de aço. Dimensões: 22 cm x 400 cm. páginas 34, 35 PÉ DE BALANÇO, 2017. Instalação. Bordado sobre lenço de algodão branco, brinquedos, galho de goiaba, miniaturas, dobradura de papel branco 220 g/ m², pedra de rio e grama artificial. Dimensões: 300 cm x 100 cm x 100 cm.
FICHA TÉCNICA Casa 34, Rick Rodrigues
GOVERNADOR DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO Renato Casagrande
REALIZAÇÃO OÁ Galeria – Arte Contemporânea
VICE-GOVERNADORA DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO Jacqueline Moraes
AÇÃO EDUCATIVA Conrado Ribeiro Leal – Arte educador
SECRETÁRIO DE ESTADO DA CULTURA Fabricio Noronha
PARTICIPAÇÃO ESPECIAL / AÇÃO EDUCATIVA LEM – Laboratório de Educação Museal
SUBSECRETÁRIA DE ESTADO DE POLÍTICAS CULTURAIS Carolina Ruas Palomares
PROJETO EXPOGRÁFICO Rick Rodrigues e Equipe OÁ Galeria
SUBSECRETÁRIO DE ESTADO DE GESTÃO ADMINISTRATIVA Pedro Sobrino Porto Virgolino
MONTAGEM Equipe OÁ Galeria e Filipe Rodrigues PROJETO GRÁFICO Rick Rodrigues e TonCriativo FOTOGRAFIAS Bruno Coelho e Junior Luis Paulo VÍDEO Matheus Noronha TEXTOS Almerinda da Silva Lopes Dani Nogueira REVISÃO DE TEXTO Leo Fávaro
GERÊNCIA DE ESPAÇOS E ARTICULAÇÃO CULTURAL Vinícius Fábio Ferreira Silva GALERIA HOMERO MASSENA – ACOMPANHAMENTO DO EDITAL 34/2019 Nicolas Soares – Coordenador Catálogo da exposição Casa 34, do artista plástico Rick Rodrigues, realizada de 13 de julho a 27 de agosto de 2021, na OÁ Galeria – Arte Contemporânea. Projeto contemplado pelo Edital 34/2019 - Seleção de Projetos Culturais Setoriais de Artes Visuais Realizados no Estado do Espírito Santo da SECULT, desenvolvido com recursos do FUNCULTURA.
realização:
apoio: realizado com recursos do