ENTRE VISTA COM FABIO BOLOTA
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Você é de São Paulo? Você cresceu em qual bairro em São Paulo? E você estudava em qual bairro?
Sou de São Paulo, cresci no Centro/Bela Vista e também estudei pelo Centro/Bela Vista.
Então você sempre fez tudo a pé? Fiz tudo sempre a pé, estudei aqui no Marina Cintra da Consolação, depois pro Caetano de Campos aqui da Praça Roosevelt , depois fui para Aclimação e depois só foi skate na veia.
Poxa, então você estudava na frente da Praça Roosevelt?
Sim. Como eu morava aqui na Bela Vista e muito perto do Parque do Ibirapuera, o que aconteceu? A cena começou aqui com a molecada do bairro, só que a história veio do meu irmão ter ido no Ibirapuera de bicicleta, chegou lá e estava tendo um campeonato na Marquise do Ibirapuera, campeonato de "freestyle". Já tinha umas rampas e era com uns caras que andavam da 1a geração do skate de São Paulo. Nós fomos da 2a geração. Tinha o Caltai, Tchapi Chura, Bola 7. Os caras já tinham até patrocínio das marcas da época. A Costa Norte, a Wave e etc. A galera da Wave Park também participava.
Eu fui ver, a antiga Praça Roosevelt ficou pronta em 1970.
Exatamente. Aquele palco que tinha na parte de cima, antes de construírem a nova Roosevelt, era de mármore, muito liso. Eu praticava "freestyle" lá, então eu ia lá em cima andar, era tudo muito novo. Sendo assim, começamos a andar entre Roosevelt e Centro. A gente pegava o skate aqui e ia até a Praça da Sé, nós éramos muito novos, sem pretensão alguma, já era uma galera que era aqui do centro. Até a gente focar só no Ibirapuera e a gente só andar
de "freestyle". Não tinha essa de ficar migrando pra lá e pra cá, era só na Marquise. Mas a minha origem sempre foi aqui no centro. Toda essa cena urbana aqui de São Paulo e do centro, era o que eu respirava.
INTRODUÇÃO
Gostaria de entender, sobre sua opinião, de como a prática do skate começa e imerge no espaço urbano. Como foi esse início? Lá nos EUA e como chega aqui no Brasil. É bem louca essa história do skate urbano, pois ele começa na rua em sua origem. Está se discutindo muito hoje se o skate veio do surfe ou se veio do patinete. Aquela história clássica: o skate surgiu em um dia sem ondas na Califórnia, aí desmontaram o patins, botaram uma madeira para simular o surfe e andar sobre o asfalto. Tem a história, até no filme do Stacy Peralta: “Bones Brigade: Uma Autobiografia” e no próprio filme "Back to the Future", que é representado a molecada que está ali com o patinete, aqueles em um formato caixa de maçã, em alta velocidade e, na hora que solta o guidão, ele continua andando, só que como um skate. Essa discussão está rolando muito hoje, um pouco mais pra desmistificar de que não veio do surfe, mas nós skatistas nunca gostamos do patins também. Tudo para descredibilizar um pouco o surfe e o patins, que são dois esportes “irmãos”, mas que a gente nunca gostou. O skate, em seu início, começa interagindo com o asfalto e o concreto, com isso veio o nome "sidewalk surf" ou surf de calçada. Era o nome que vinha nas pranchas da época, final dos anos 60, em que o skate simulava os mesmos movimentos do surf. Ampliando o uso apenas da calçada, a prática começa a se expandir utilizando as transições de garagens residenciais (isso
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na Califórnia), que até em vídeos antigos, filmados em super 8, no final dos anos 60/ começo dos anos 70, os meninos estão andando de skate, bem descontraídos, sem pretensão alguma em executar manobras, porque elas não existiam. De repente eles vem descendo uma ladeirinha e uma entrada de garagem, que é sempre aquela transição tradicional estadunidense, quase uma rampa 450 para entrar na garagem, usando pra dar umas batidinhas e voltar. Então assim começa a ter uma interação com a arquitetura e o desenho dos espaços .
Basicamente uma arquitetura que nunca existiu no Brasil: a calçada perfeita com o meio fio que desliza o skate, que emenda na garagem e por aí vai. Em nosso imaginário, lá era tudo perfeito, não tinham buracos na calçada, na época as rodas eram de metal. Aqui no Brasil, a guia era alta, a calçada irregular, nunca tivemos essa experiência. Nesse ponto a arquitetura começa a interagir com o skate, usar a cidade, a virar o seu habitat natural, interagindo com o que a cidade proporciona.
Nesse começo, a modalidade de skate que tomava conta era o “freestyle”, quando ele ainda não se apoiava de fato pela cidade, no sentido de sair sem destino à procura de novas praças, bancos, escadas e corrimões. Isso vem acontecer no final dos anos 70/começo dos anos 80, quando surge o termo “street skate” ou skate de rua, aí começa uma “revolução” de uma nova prática urbana. A cidade começa a ser “bombardeada” em todos os aspectos pelo skate, como naquele velho chavão: “O banquinho da praça, o hidrante, as guias, as paredes e as escadinhas".
E ssa migração foi tão grande, a ponto de acabar o "freestyle" praticamente. Todo mundo começou a migrar para o skate de rua, até a gente aqui no Brasil. A minha galera começou a fazer "street skate" no Parque do Ibirapuera, influenciado pelo o que a gente via nas revistas de skate
estadunidenses. Até então, a gente andava apenas em pistas de skate ou em ladeiras , não era o skate de rua que a gente praticava.
As manobras e movimentos, eram muito menos técnicos, não sabíamos ainda mandar “ollie” (ato de pular com o skate sem usar as mãos), nossas manobras ainda necessitavam muito das mãos para serem executadas, principalmente nos “plants”, “boneless”, "sweepers" e “wallrides” (manobra que usávamos a mão para levantar nosso corpo e o skate para percorrer com as rodinhas pela parede). Chegando nos anos 90, os skatistas param de usar a mão, usando apenas os pés para executar as manobras, abominando tudo que foi feito nos anos 80. Mas é curioso que atualmente o jeito de andar de skate dos anos 80 voltou a ser difundido por muitos jovens skatistas.
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Thronn na Marquise - Foto: Jair Borelli
IBIRAPUERA
A “meca” do skate paulistano foi o Ibirapuera, por ser aquela marquise gigante, com piso extremamente liso. Era incontestável que ali era o melhor lugar de São Paulo pra andar de skate, primeiro que era coberto, faça chuva ou faça sol, você está andando de skate à vontade. O piso naquela época era absurdo, eu tenho isso muito claro na minha cabeça, você via o seu reflexo no chão de tão liso.
Por que esses espaços acabaram sendo escolhidos? O chão liso? Questões de localização? O que esses espaços tinham de especial para promover esses primeiros encontros do skate? Vou falar de novo do Ibirapuera, pois era a "meca". Você falava de skate de quantidade e de qualidade era o Ibirapuera, era a Marquise. Dentro desse parque tinha uma baita estrutura divertida pra cidade, era engraçado que naquela época o parque era aberto, não tinha grade, passavam ônibus, passava carro dentro do parque. O parque tinha todos esse atrativo, tipo "gringo", tinha todo esse aspecto de entretenimento.
Todo esse rolê que você falou por São Paulo com a galera do skate, eram os "Ibiraboys"? Quer falar um pouco sobre os "Ibiraboys"?
Como o Ibirapuera virou a "Meca", o "street skate” de certa forma começou lá. Quem eram os "Ibiraboys"? Era uma galera que andava de "freestyle" nos anos 70. Quando veio a crise nos anos 80, o skate sumiu, mas nós continuamos, a gente ia para lá mais para zoar do que para andar de skate. Já os "Ibiraboys", eram eu, o Kuji, que é dono da marca Urgh, o meu irmão, o Anchovinhas , o Wilson Salada que andava de vertical profissional, Eddie Gralha, que é um cara que até hoje anda, era da 1a
geração, mas aí ele continuou com a gente e virou amigão dos "Ibiraboys", o Bê e mais alguns, que hoje estão mais afastados, mas que tão na cena, são esses. Depois vem o Thronn, o Pois É .
O Thronn andava no Ibirapuera também?
O Thronn, quando começou a andar e a surgir no skate, foi para o Ibirapuera. Foi um negócio muito louco, ele começou a frequentar o Ibirapuera, só que andava tão bem que ele conquistou a gente só de andar, foi o mais "filha da puta" de todos.
Como ele era?
Na época era um cara negão de dread, chegou lá andando bem, dando 360 0 , fazendo "space walk", uns "manual". A gente era "Ibiraboy" e falava assim: "Só anda aqui com a gente quem sabe andar de skate e só anda com a gente quem são nossos amigos, o resto da galera ficava tudo longe".
O grupo de vocês acabou ficando conhecido na época?
Todo mundo sabia quem a gente era. Mas o Thronn não. Ele chegou andando, eu lembro do dia, foi bem louco. Ele chegou sem olhar pra ninguém. Já ganhou ponto. Foi lá e andou pra caralho. A gente ficou olhando querendo saber quem era aquele cara. Ele começou a frequentar sempre e automaticamente começou a ser meio adotado, começou a andar de "freestyle" com a gente. Não é arrogância nem nada, mas naquela época era difícil chegar alguém andando bem. Não tinha ninguém que chegasse andando bem lá no parque, era muito difícil, quem andava bem, andava com a gente.
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Ibira Boys, 1979 (Bolota, Anshowinhas, Edu Britto, Pastel, Kuge e Danilo.
Foto: desconhecido
Fabio Bolota posando na frente de uma viatura em plena ditadura. Parque do Ibirapuera.
Foto: desconhecido
Ibira Boys (Kuge, Sallada, Makoto, Bolota, Danilo e Anshowinhas. -
Foto: desconhecido
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PICOS E TRAJETOS
Aqui em São Paulo não tinha muita transição fácil de andar. As poucas da paulista que tinham, a gente começou a andar em 1985 . Tinha um prédio que ficava na Alameda Santos , do lado do Trianon (existe até hoje), com chafarizes de concreto na entrada e transições perfeitas para o skate. A gente invadia direto pra andar à noite. Andávamos e os seguranças expulsavam a gente, quando não tinha água, né? Até hoje eu choro de não ter fotos das sessões que a gente fez lá. Mas assim, tinham umas transições de 1,20m de altura, rápidas pra caramba, e a gente dava uns "rock n roll". O nosso ímpeto era invadir tudo que fosse possível, rebeldia total. Era: um andando; outro olhando; o segurança vindo; os caras correndo atrás da gente.
Quais foram esses primeiros espaços públicos a receberem essa prática? Foram praças? calçadas? ruas? monumentos históricos, por baixo de coberturas?
É o que eu falei, o skate era "freestyle" ou pista. Como era o "freestyle" ? Era um piso liso, mas como o Brasil e São Paulo nunca prezaram muito pelo piso liso, tudo sempre foi muito detonado. O "freestyle" pra se praticar, tinha alguns poucos lugares. Recapitulando, tinha o Ibirapuera que era a "meca". Era tudo cena por região. Tinha uma no Monumento do Ipiranga. Uma na Sumaré, existe até hoje a Igreja do Sumaré, bem no começo da Av. Alfonso Bovero, com a entrada de mármore liso. Essa cena era muito grande.
Então vocês andavam por ali também?
Eu particularmente não. Mas tinha uma cena ali, desse Tchapi Chura, que era um
dos melhores skatistas da época. Ele era do Sumaré. E lá, além da Igreja, também tinha a cena de skate da pracinha do Sumaré.
Qual pracinha?
É uma pracinha que fica entre a Av. Afonso Bovero e a Av. Heitor Penteado. Tem uma praça ali no meio que se chama “pracinha do skate”. Porque ali, desde 1975, já tinha uma galera andando. Tem até propaganda da Pepsi de 1976/7 que está no YouTube.
Essa pracinha ainda existe? É a Blue Square?
Existe e não é a Blue Square. A Blue é a ladeira da morte, que apareceu bem depois nos anos 80. Essa é a mesma até hoje. Mas é anos 70 total e o Tchapi Chura andava lá. Foi o melhor da época e andava ali, ele foi um dos precursores do "freestyle" em São Paulo.
Tinha poucos pontos de skate para o "freestyle", por isso que o Ibirapuera, por ser maior e concentrar mais skatistas (mesmo de outras regiões), tinha essa importância de ser o centro do skate em São Paulo. Até o surgimento do "street" e o "street skate" foram lá. Era perfeito para andar: coberto; liso; em um pavilhão de 1 km/800m de extensão. Então a cena urbana de São Paulo era essa.
Junto disso, começam a surgir as pistas de skate. A "Wave Park", a "Franeti" na Mooca, que, em 1978 , era uma loja e chegou a ter uma pista que era nos fundos da loja.
Já em outros lugares, você andava de skate e ia embora. O próprio Parque da Independência no Ipiranga nunca teve uma estrutura legal, mas era o que tinha no bairro do Ipiranga. Por isso que a galera da 1a geração do skate, do Ipiranga, de
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Santana e da Sumaré, iam para o Ibirapuera. Acabou virando esse ponto de encontro de gerações. A minha era a 2a geração e quando a gente chegou esses caras já estavam lá. A gente interagiu com esses caras, brigando e querendo conquistar território. No final dos anos 80 eles começaram a não andar mais, então vamos dizer que a gente conquistou território meio na marra .
Você chegou a andar na praça de Santana?
Cara, a Praça de Santana veio bem depois, ali por 1986/1987. Foi uma cena nova que começou a ter de "street". Até vou mais longe, ali começou a surgir o "street skate" entre 86/87/88, por causa da ZN Skatepark , uma pista muito legal. Como não tinha muita pista de skate em São Paulo, lá acabou virando ponto de encontro de gerações, da galera mais antiga de "street", (a nossa), até a geração nova de "street" que estava chegando. Você via os caras que foram skatistas profissionais nos anos 90, e que nos anos 80 eram moleques: o Daniel Trigo, o Samuca, o Pinguim (que era muito pequeno), o Ribeiro (que era "mais profissional"). Então a gente ficava ali andando e eles eram locais, pois eram de Santana . Aí essa molecada colocou aquele famoso trilho de trem e os latões também. Antes disso, a galera andava numa Igreja na rua Leão Xlll, que tinha uma transição de concreto com chão liso igual a da Avenida Paulista. Essa também era uma cena ali da galera da Zona Norte, eles também andavam com a gente aqui no centro.
Tinha bastante gente da zona norte que andava, né?
Tinham umas pessoas importantes. Se você voltar mais no tempo, a "Bancários" foi o único "half pipe" de São Paulo, que foi construído em 1983 . "Bancários" era um
condomínio lá na zona norte, pra Cantareira. Era um "half" que todo mundo sabia que existia, mas era meio difícil de achar. Era público, porque era um condomínio tipo B.N.H. Foi o único "half" que segurou a onda nos anos 80 pra galera de vertical. Curioso que o cara que construiu esse "half" foi quem desenhou a "ZN Skatepark", o Zequinha, que foi talvez o primeiro arquiteto de skate do Brasil. Acho que ele ajudou a desenhar o "QG Skatepark", que foi a pista de Pinheiros , na Henrique Schaumann com a Teodoro Sampaio. Ficava no meio de uns prédios e era uma pista particular, mas não existe mais. O dono era proprietário de umas baladas ali por Pinheiros, ele já tinha uma balada na Faria Lima que chamava "QG". De repente, ele constrói essa pista e o Zequinha foi um desses caras que desenhou ela. Ele também desenhou uma em Jundiaí, em um lugar chamado Chácara dos Sonhos . Lá tinha um "banks", que era igual ao QG. Atibaia também era assim, Perdizes era assim: lá embaixo na Cardoso de Almeida, quase na Francisco Matarazzo, onde é uma loja Pernambucanas hoje em dia. Zequinha foi pioneiro no campo dos arquitetos skatistas .
Para resumir, vamos listar um pouco desses picos de skate que vocês andavam?
Eles eram: o Ibirapuera; Roosevelt; Pracinha da Sumaré e a ladeira também; Praça de Santana; Avenida Paulista; Rua Augusta; Parque da Independência no Ipiranga. A gente sempre andou na paulista também, porque lá sempre teve arquitetura moderna. andávamos pela Paulista, descíamos a rua Augusta fazendo "downhill slide". Era meio integrado com o "street skate".
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E quando não eram espaços físicos, mas sim possíveis caminhos, pensando o skate enquanto ferramenta de deriva: quais trajetos na cidade vocês faziam? Por que a escolha desses trajetos?
As rotas, sendo bem prático, em geral todos faziam. Pegava o ônibus e ia até o Ibirapuera. A minha galera do Ibirapuera (Ibira Boys) emendava o skate na balada. A gente começou a andar de skate nas ruas e a cena punk começou a bombar. Toda essa cena jovem de banda punk como "Ira", "Ratos de Porão", mais punk rock e essas bandas novas, "Legião Urbana" e etc.
A gente ia de skate, andava o dia inteiro no Ibirapuera, depois subíamos até a Paulista, ficávamos andando na Paulista até umas 22h. Depois "dropava" a Augusta inteira, íamos de skate até a Faria Lima, porque lá tinha um bar que chamava "Jimba", que era da galera do surf e ficava lotado. Aí você chegava lá estava a maior galera, toda galera de Ubatuba, de Maresias, do surf, das marcas e tal.
E stou colocando isso tudo, porque a gente usava o skate. Aí de lá, a gente emendava pras festas, que era “saber o que estava rolando na noite”. Tinha um pouco dessa cultura de saber dos rolês noturnos , até a hora que chegava alguém e falava que estava rolando uma festa ali na Cidade Jardim, aí geral ia lá e invadia a festa.
O que era esse núcleo de pessoas da noite?
Era uma mistura de tudo. O Supla ia e a galera do surf começou a interagir com a gente, mas eles tinham a postura deles. Aí a gente ia pra essas festas, invadia, curtia, sempre com o skate embaixo do braço, quase 24 horas por dia. O "street skate" era uma novidade pra todo mundo. A gente chegava de skate arrepiando, subia na parede dando "slide" e criava aquela sen-
sação de todo mundo parar pra ver a gente andar. Onde a gente levava skate e ficava andando. Éramos meio exibidos, essa que era a real. Porque a gente gostava de mostrar que andávamos pra caralho de skate. Abria aquela roda e ficava todo mundo olhando, esse era o nosso cartão de visita e assim ficávamos locais dos picos.
O skate abriu essa porta pra gente, isso durou anos. Volto a repetir, porque o "street skate" era uma novidade. Ninguém nunca tinha visto um cara subir na parede e, de repente, vai lá e sobe o skate na parede, dá um "plant", pega o skate na mão, volta e sai rindo. Era tudo novo. "Boneless" na parede, por cima do carro, tudo isso virou um cartão de visita nosso pra entrar e ser local do nosso jeito. Era atitude, por isso que o punk rock e o skate andavam juntos. Até os caras da música começaram a aceitar a gente.
O skate deixava a gente interagir com todo esse universo. Chegávamos no Madame Satã com o skate na mão, os caras olhavam meio estranho. Aí começavamos a andar de skate na porta, não parávamos de andar. Era tão louco e chamava tanta atenção, que depois a galera começou a gostar e falava: "Pode entrar". A gente entrava de graça em tudo que era lugar, porque a gente levava uma galera junto e isso era muito maluco. Carbono 14 , aqui na 13 de Maio, era um prédio alternativo dos anos 80 que rolava show embaixo, vídeo em cima e pebolim, era todo alternativo porque tocava só punk rock e new wave, que era a linguagem do prédio (uma cena alternativa em um Brasil fechado). O skate interagindo com essa efervescência da noite "underground" e cravando no meio. Assim viramos amigos dos caras de banda, íamos nos shows e os caras curtiam que a gente colava.
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E eram sempre esses caminhos?
Ibira, Paulista, Augusta, centro.
A gente emendava tudo, Augusta direto. Segurava nos ônibus até o topo da Paulista, depois "dropava" e voltava lá da Faria Lima até a Paulista segurando nos ônibus. Era tudo ônibus elétrico e hoje eu olho e fico: "Como a gente fazia isso?", aí chegava lá em cima, a polícia via e dava geral na gente.
E a rua Boa Vista? Você andou nela?
No centro? Ali no Pátio do Colégio? O Pátio do Colégio virou uma cena de "street" nos anos 90 .
Vocês não andaram tanto no Centro Velho, né?
No centro velho não, porque a gente já era muito mais cravado desse centro para a parte dos "boy": Paulista e rua Augusta. Porque pra aqueles lados do centro, como era só "flat", era só piso e não tinha essa coisa que a molecada começou a fazer nos anos 90, que era ficar pulando... O Pátio do Colégio virou pico de fazer manobra no "flat", pulando aquelas faixas de pedra no chão. Como eu era de "street", de pular obstáculos e de usar a parede, eu olhava aquilo e achava muito estranho. Mesmo pra mim que estava no meio, fazendo revista. Porque era só o prazer de pular um espaço, mas não tinha nada que te impedia de errar, porque não tinha um obstáculo.
A São Bento também virou uma cena dos anos 90, que a gente documentou no filme que eu dirigi que chama "Television", de 1993 , em que cravamos essa cena toda. A São Bento, o Anhangabaú e a pista de São Caetano são picos anos 90 total. O "Television", eu particularmente acho que filmei 80% do filme. Era com câmera Super VHS , gigante.
Vocês só andavam entre meninos?
Meio clube do bolinha?
A única "Ibiragirl" que andava com a gente, mas não andava de skate, era a Cecília "Mãe". Ela nunca andou, mas sempre esteve com a gente, porque ela morava quase na Paulista, entre a Paulista e a Brigadeiro. O prédio dela já chamava predinho, já era ponto de encontro de uma galerinha do bairro. Quando a gente começou a andar e ela começou a interagir conosco, chamava a gente pra ir no prédio dela e ficávamos lá na frente trocando ideia. Saímos do Ibirapuera e ficávamos lá trocando ideias a noite inteira. A Cecília Mãe virou uma grande amiga do nosso grupo. Ela sempre foi interessada pelo skate, depois disso trabalhou com a gente no universo das revistas de skate, ela ficou bem conhecida até hoje por escrever em grandes revistas.
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Monica Polistchuk - Marquise do Ibirapuera, 1986 Foto: desconhecido
PROIBIÇÃO
Como a cidade recebeu vocês? Quando o "street skate" começou a ir para a rua, foi uma parada expansiva. Era a gente agredindo o patrimônio público, a gente agredindo a rua e a gente quase agredindo o pedestre, porque estávamos dividindo espaço, mas não era feito como uma divisão de espaço: "Ô, dá licença que a gente quer andar".
Vou contar alguns fatos rápidos, para especificar isso, por exemplo:
1 0 - A Ladeira do Morumbi (Rua Circular do Bosque), nos anos 70, tinha uma placa grande escrita: “Rua de lazer para skate”. Isso em 1976/7, no meio das mansões do entorno do Parque Alfredo Volpi. Os moradores nunca gostaram muito de skate, porque a gente ficava descendo e fazendo barulho com a roda. Uma vez rolou um evento lá, um campeonato na ladeira em 1988 . Um dos moradores da região era Olavo Setúbal, dono do Itaú. Ele pediu pra jogar óleo na ladeira e aí no dia seguinte, quando a gente chegou para o campeonato, tinha óleo nela inteira. Tivemos que fazer o campeonato quase no final da ladeira, em uma área que nem era a que a gente andava, mas rolou.
2 0 - O Jânio Quadros , por que ele proibiu o skate no parque? Porque a gente estava andando de skate, porque a gente estava usando os bancos , porque a gente estava fazendo barulho e a prefeitura ficava dentro do Parque do Ibirapuera. Com isso, o Jânio começou a ficar incomodado, chegando informações pra ele de que a gente estava quebrando tudo. Após isso, ele foi pessoalmente ver o que estava acontecendo. Eu tenho até foto, os guardinhas às vezes ficavam ali na marquise e faziam vista grossa. Mas a gente já estava andando lá
fazia anos. O "street" fazia muito barulho: é a manobra que cai errado; o skate voa; a gente grita. Sendo assim, o Jânio veio e proibiu a prática do skate dentro do parque, porque ele não queria mais ver aquele “vandalismo” no patrimônio público. Quando ele proibiu, nós skatistas fizemos uma passeata de skate. Quem organizou foi o Márcio Tanabe, que era dono da marca Mad Rats que me patrocinava. Saímos lá da Paulista/Paraíso e fomos até o Ibirapuera, com faixa na mão e megafone. Como já estava um barulho na mídia sobre a proibição do skate no parque, ela veio junto conosco. Quando chegamos com a passeata no parque, o Jânio fechou os portões, pois já sabia que estávamos indo pra lá. Ele, muito irritado, falou na frente da mídia e dos skatistas: "Não só proíbo o skate no parque, como proíbo o skate em toda a cidade de São Paulo". Quer dizer, o que a gente tinha perdido, que era só o parque, virou a cidade toda. Aí, como costumo dizer, essa foi a melhor manchete que nós skatistas tivemos, lógico. Teve um monte de skate apreendido, a partir daí, a polícia ia pra cima da gente para pegá-los e o próprio Thronn foi preso duas vezes .
3 0 - Em outro momento, eu também fui preso, lá na pracinha de Moema. Eu, o Thronn e o Pois É. A gente estava andando de skate e a polícia veio, nos prendeu, levou pra delegacia e botou a gente dentro da cela. Depois disso eu fiz a matéria, já estava fazendo a Revista Overall e fiz uma puta matéria: "skateboarding is not a crime".
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Skatistas na Ladeira do Morumbi em 1986. Foto: Wagner Avancini
Vocês chegaram a sofrer repressão da polícia? Você falou que chegou a ser preso, como que foi? Já apanharam por andar de skate? Tem uma história de que uns policiais foram pegar o Thronn e ele começou a rodar com o skate na mão pra acertar os policiais. Não, nunca apanhei. Mas é que o Thronn sempre foi muito mais punk. Ele sempre foi um cara mais agressivo. Era um cara que realmente peitava, ia pra cima.
Não teve uma capa da Revista Yeah, que tinha a chamada "skate não é crime"?
Sim, a matéria foi bem legal, abordou esse momento da proibição na revista praticamente inteira. A foto da capa foi do Daniel Trigo, lá na zona norte, no trilho da pracinha de Santana . Foi a época que nós skatistas tivemos maior mídia. Foi nesse momento que veio o Jânio Quadros com a
sua postura de ditador, porque ele proíbe uma diversão em um parque e depois proíbe em São Paulo toda. Isso virou um estopim para a mídia, ninguém gostava do Jânio, porque ele era meio "louquinho", ele era muito personagem. A mídia foi pra cima dele. Faziam matéria quase todo dia na tv, revista, capa de jornal: "Skatistas são presos, skates apreendidos". Mostravam a sala da delegacia com pilhas de skates apreendidos, era um negócio muito maluco, eu digo que foi a melhor mídia que nós skatistas tivemos. Eu mesmo apareci várias vezes na televisão falando sobre isso. Até postei esses dias eu andando de skate dentro do estúdio da TV Cultura (eu, o Cupim, o Cabralha). Perguntavam pra gente o que achávamos do skate ser proibido na cidade e falávamos: "É, o Jânio Quadros deveria andar no Half Pipe e cair de cabeça pra ele entender a burrada que ele fez", isso estava no ar no programa Metrópolis .
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Passeata contra proibição do skate Parque Ibirapuera, 1984. Foto: Alexandre Tokitaka
REVISTAS DE SKATE
A primeira matéria que eu escrevi, foi quando o “street skate” começou a surgir em São Paulo. Em 1983/4 não tinha mais revistas de skate, elas pararam todas nos anos 70 e aí como o skate estava em baixa, as revistas pararam também.
Quais revistas pararam nos anos 70?
Nos anos 70, praticamente todas revistas duraram 3 edições . Todas eram cariocas, é muito louco isso, toda cena de mídia era no Rio de Janeiro. Tinha a Brasil Skate, uma revista só de skate, que veio da Brasil Surf, que já existia. A Visual Esportivo era uma revista com vários esportes radicais, então tinha como carro chefe: o skate; surfe; asa delta e a bike. Isso aconteceu no final dos anos 70 e durou um pouquinho no começo dos anos 80, mas logo parou. Tinha um jornal, chamado Jornal do Skate, no Rio de Janeiro também, que era gratuito no Brasil inteiro, principalmente em São Paulo e no Rio. Durou anos, uns 5 anos. Aí chegaram os anos 80 e acabaram todas, porque o skate caiu em crise.
Que crise foi essa?
Foi um momento do skate começar a “acabar” nos EUA. As pistas de skate lá começaram a fechar, por causa de um seguro que obrigou os donos de pistas de skate a pagar uma suposta taxa. Quando as pistas de skate começaram a fechar, o mercado diminuiu muito e as marcas começaram a acabar, automaticamente as revistas somem. Não tinha mais comércio, praticamente não tinham mais marcas de skate no final dos anos 70.
A Revista Thrasher começa em 1981, numa pegada de fanzine. Assim se lança a “Thrasher Magazine”, modesta e tal, mas tá aí até hoje, pra ter essa comunicação com as poucas que sobraram.
No Brasil não tinha mais mídia. O que aconteceu, chegou em 1984, eu falei assim: "Meu, eu tenho que falar de “street skate"", porque a gente já estava fazendo "street", mas era algo muito novo, ninguém sabia o que era. Em um momento, cheguei para um amigo meu, que era fotógrafo da Visual Esportivo, o Jarborério e falei pra ele pra gente dar um jeito de levar uma matéria pra esses caras. Essa história é maluca, porque aí esse cara, que hoje é dono da Revista Trip, o Paulo Lima, vendedor comercial da Visual Esportivo em São Paulo, vendia os anúncios e mandava para o Rio de Janeiro. Então ele já tinha sido gerente comercial e de mídia. A partir disso, fez uma negociação e pegou essa revista Brasil Repórter pra ele. No caso, revista em que eu já estava escrevendo. Um dia o Paulo falou pra mim: "Vamos fazer uma revista de skate?". Isso já era final de 1984, eu tinha 19 anos e falei: "Lógico!", molecão total, não tinha revista, né? Vamos fazer. Assim, começamos a trabalhar, dentro do escritório dele, porque não tinha editora nem nada ainda. Assim, surge a Revista Overall.
A Overall surgiu dentro da Trip?
Na verdade, eu costumo dizer que é ao contrário. A Trip surgiu dentro da Overall, porque a Overall saiu primeiro. Diz ele que já tinha esse projeto da Trip na gaveta. Se tinha ou não tinha eu não sei. A verdade é que a Overall saiu em 1985 e a primeira revista Trip saiu 7/8 meses depois. Estou falando isso por que? Pois queria fazer uma matéria sobre "street skate”. A gente pegava o skate e andava a milhão pela cidade, na Av. Paulista, Rua Augusta, ia pros bares à noite e ficava 24 horas andando de skate. Era uma minoria, uma galera que migrou do "freestyle" pro "street skate". Eu queria muito escrever sobre isso. A minha primeira matéria era exatamente sobre isso: “O skate de "street" é realizado nas ruas, pulando banco, escada, hidrante”.
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E nos anos 90 você continuou no universo das revistas de skate?
Comecei a fazer a Revista Tribo em 1991. Como tudo acabou no plano Collor, com o roubo da previdência, todas as marcas e revistas pararam. Tinham 4 revistas de skate na ativa antes do Collor. 90% das marcas de skate pararam, ficaram poucos skatistas, ficamos 1 ano ali sem fazer nada, sem mídia especializada. Aí eu com o Girão, juntamos uma galera das mídias que tinham parado, que eram da Revista Yeah, da Revista Overall e da Revista Skatin. Juntamos na casa dele e fizemos algumas reuniões. Tinham 6 marcas no mercado do
skate nacional, chamamos essas 6 marcas para apoiarem nossa nova revista. Assim começamos a Revista Tribo em 1991. Se você pegar a Tribo de 1991, o que tem de anúncio é o que tem de marca. O mercado já tinha quebrado de novo, estávamos andando porque gostávamos. A Tribo começou nos anos 90 retratando uma nova cena do "street skate", que é a molecada nova, a nova geração. Muda todo estereótipo do skate, sai a cena dos anos 80 e entra a dos anos 90 (hip hop, roda pequena, roupa larga, "gangueiros"), e a minha galera dos anos 80 olhando e falando assim:
"O skate mudou".
CAPA DAS REVISTAS CITADAS
38
Brasil Skate - Ano 1: nº 2 / 1978 Visual Esportivo - Ano 1: nº 1 / 1980
39 Jornal do Skate - nº 35 / 1986
Magazine - nº 1 / 1981 Revista Overall - nº 8 / 1988 Revista Yeah - Ano 1 nº 2 / 1988 Revista Skatin - Ano 1 nº 3 / 1988 Revista Tribo - Ano 1 nº 1 / 1991
Thrasher