A agricultura familiar entre o setor e o território

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1 Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas – FEA/USP Programa movimientos sociales, governanza ambiental y desarrollo territorial rural

A agricultura familiar entre o setor e o território Projeto: As forças sociais dos novos territórios – O caso da Mesorregião Grande Fronteira do Mercosul Programa de pesquisa: Movimentos sociais, governança ambiental e desenvolvimento territorial – RIMISP/IDRC http://www.rimisp.cl/seccion.php?seccion=308 Ricardo Abramovay Professor Titular do Departamento de Economia da FEA e do Programa de Ciência Ambiental da USP – Pesquisador CNPq www.econ.fea.usp.br/abramovay Reginaldo Magalhães Cooperativa Plural - Mestre em Ciência Ambiental pelo PROCAM – reginaldosm@uol.com.br Mônica Schröder Cooperativa Plural - Doutora em Economia pelo IE/UNICAMP – m.schroder@uol.com.br RELATÓRIO FINAL Primeira versão – comentários, críticas e sugestões são bem vindos

São Paulo, 16 de dezembro de 05


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A agricultura familiar entre o setor e o território Ricardo Abramovay*, Reginaldo Magalhães** e Mônica Schröder***

1. Apresentação: valores e interesses O destino dos mais importantes movimentos sociais do meio rural brasileiro depende da maneira como vão enfrentar três desafios – três dilemas – essenciais. O primeiro é o da diversificação, ou, em outras palavras, o dilema territorial: formados fundamentalmente por agricultores, estes movimentos atuam em regiões cujo tecido social e econômico se diversifica e onde a agricultura representa parte decisiva, mas cada vez menor, da criação de riqueza e da ocupação de mão-de-obra. Podem voltar-se a uma atuação territorial e, ao mesmo tempo, incrementar sua coesão social? São capazes de fortalecer sua identidade social interna – aquilo que Michael Woolcock (1998) chamou de integração – ao mesmo tempo em que ampliam o horizonte de suas práticas além dos atores com os quais se relacionam habitualmente – aumentando as ligações (linkages, na terminologia de Woolcock) a partir das quais se inserem socialmente? O segundo dilema é o da inovação: na base destes movimentos sociais estão produtores cujos mercados e cujas técnicas correspondem aos padrões rotineiros das regiões em que atuam. Os movimentos tendem a organizar os agricultores para que melhorem suas condições de vida no âmbito de suas atividades correntes, muito mais do que para estimulá-los a práticas inovadoras. Podem estes movimentos defender os agricultores, reivindicar benefícios de políticas públicas e, ao mesmo tempo, estimula-los a alterar seus métodos produtivos, a inserir-se em melhores mercados e a adotar técnicas diferentes das que atualmente usam? São movimentos que favorecem transformações produtivas e organizacionais, ou, ao contrário, tendem a evitar que seus participantes corram os riscos inerentes a processos inovadores? O terceiro é o desafio habermasiano ou o dilema da governança: não há dúvida que a participação direta dos cidadãos nas decisões coletivas por meio de sua “ação comunicativa” passa, nas sociedades contemporâneas, pela adesão a regras formais e procedimentos burocráticos aos quais os próprios movimentos acabam tendo que se dobrar. A natureza democrática deste processo participativo – expressa, por exemplo, na existência de nada menos que 27 mil conselhos gestores no Brasil, em 1999, voltados às mais diversas áreas de atuação – não elimina o risco de que seu vigor, seu entusiasmo e sua capacidade crítica sejam entorpecidos pela própria lógica das organizações estatais. A sociedade civil organizada deveria manter-se – como preconiza Habermas (1996) – fora de instâncias diretas de “administração pública deliberativa”? Ou, ao contrário, conforme a as expectativas de Fung e Olin Wright (2003) em seu projeto “utopias reais”, a “governança participativa dotada de poder” (“empowered participatory governance”) permite melhorar de fato os processos de escolha pública em sociedades contemporâneas (1)? *

Professor Titular do Departamento de Economia da FEA e do Programa de Ciência Ambiental da USP www.econ.fea.usp.br/abramovay ** Mestre pelo PROCAM/USP, pesquisador da Cooperativa PLURAL – reginaldo-sm@uol.com.br *** Doutora pelo Instituto de Economia da UNICAMP, pesquisadora da Cooperativa Plural – m.schroder@uol.com.b r 1 O trabalho recente de Schatan sobre os Conselhos de Saúde em São Paulo corrobora fortemente o ponto de vista de Fung e Wright.


3 O objetivo deste texto é discutir a influência de organizações de agricultores familiares sobre processos localizados de desenvolvimento: que os agricultores familiares atuam contra poderes estabelecidos, que são capazes de organizar manifestações e que suas lutas alteram a correlação de forças com os grupos sociais que enfrentam ( 2), disso não há dúvida. Mas será que suas conquistas favorecem o processo de desenvolvimento? Estão construindo as habilidades sociais (Fligstein, 2001a) necessárias a que desempenhem um papel de destaque na construção de tecidos sociais mais ricos e diversificados que os atuais, em formas de inovação que permitam alterar suas condições de vida e em modalidades de participação política que afastem a natureza burocrática e clientelista que tão freqüentemente caracteriza a relação entre populações pobres e o Estado? Em torno do fortalecimento da agricultura familiar constituiu-se no Brasil um movimento social organizado (social movement organization, para empregar o termo de Mc Carthy e Zald, 1977), muito mais que um “grupo de interesse”. São organizações que se articulam em torno de interesses e reivindicações, é claro, mas cuja coesão interna deriva da defesa de um conjunto de valores sem os quais não poderiam existir. A agricultura familiar, muito mais que um setor social e econômico é um valor: num país com a tradição latifundiária do Brasil, cuja formação histórica repousa na forma mais radical de separação entre propriedade e trabalho - a escravidão - não é trivial afirmar que unidades produtivas ao alcance da capacidade de trabalho de uma família podem afirmar-se economicamente em mercados competitivos. Não é sem razão que as três grandes organizações ligadas às lutas sociais no campo brasileiro definem sua substância pela expressão “trabalhadores” e não pelo exercício da profissão de agricultor: Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG), Movimentos dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e a recém criada Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar (FETRAF-Brasil). São - mais que organizações profissionais – movimentos sociais organizados (box I). Mas a tensão entre valores e interesses é um dos aspectos mais interessantes destes movimentos e que, de certa forma, sintetiza os três dilemas expostos acima.

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São alguns dos traços pelos quais Tarow (1998/2005) identifica os movimentos sociais.


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Box I CONTAG, MST, FETRAF Os três são pela reforma agrária, contra o latifúndio, lutam por um modelo alternativo de sociedade - ou um projeto alternativo de desenvolvimento rural - vinculam-se a organizações internacionais críticas aos rumos tomados pela globalização, apóiam-se fundamentalmente em agricultores familiares e orientaram suas bases de maneira massiva para o voto no PT nas últimas eleições. Apesar disso, a existência de três grandes organizações ligadas às lutas dos trabalhadores rurais no Brasil é perfeitamente explicável. A CONTAG foi fundada em 1962 e consolidou-se, a partir dos anos 1970 como uma grande organização de oposição à ditadura – e por esta tolerada, ainda que freqüentemente perseguida - cujas bases sociais encontravam-se fundamentalmente no Nordeste e cujo trabalho voltava-se antes de tudo à organização dos assalariados rurais. O MST é criado em 1985 como um dos mais importantes resultados do trabalho de base levado adiante pelas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) da Igreja Católica e de sua Pastoral da Terra, órgão oficial da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. As CEB’s fomentaram, por todo o País, oposições aos sindicatos “pelegos” e as “oposições sindicais” acabaram tendo influência imensa na Central Única dos Trabalhadores (CUT), formada em 1983. Organiza-se, na CUT, um Departamento Nacional de Trabalhadores Rurais, em que tiveram importância crucial duas regiões: aquela ao qual se volta o presente trabalho, o Sudoeste do Paraná (juntamente com áreas próximas do Alto Uruguai) e o Norte do País, cujos sindicalistas são migrantes vindos das áreas de agricultura familiar do Sul do País. São estes sindicalistas que darão origem, posteriormente, já nos anos 2000, à Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar. Tanto quanto o MST, eles recebem uma fortíssima influência da Igreja Católica, o que se vê em seus encontros, sempre precedidos por músicas religiosas e acompanhados por celebrações. A CONTAG tem rituais muito menos influenciados pelas liturgias católicas que o MST e as organizações que foram dar lugar à FETRAF. Mas entre FETRAF e MST, apesar da origem comum nas organizações de base da Igreja a distância não poderia ser maior: o MST liga a luta pela terra a uma espécie de sacralização das próprias atividades reivindicativas, recusa-se a organizar-se formalmente e pouco participa de organizações reivindicativas locais. Além disso, a visão de reforma agrária do MST, ao menos na sua origem, era fundamentalmente coletivista. A FETRAF, ao contrário, é formada basicamente por sindicatos e tem presença marcante nos conselhos locais de desenvolvimento. Sua visão de reforma agrária, desde o início enfatiza o papel e a viabilidade econômica das unidades familiares de produção (Favaretto, 2004). Se a distância com relação ao MST é nítida, não é fácil entender a separação entre CONTAG e FETRAF. Embora a CONTAG tenha entrado na CUT em 1995, a relação entre os sindicalistas oriundos do trabalho da Igreja Católica (sobretudo no Sul e Norte do País e que já estavam na CUT) e os que vêm da própria CONTAG nunca foi de completa integração. Desde o início dos anos 2000, os sindicalistas formados no âmbito das CEBs dos três Estados do Sul dão início a uma organização sindical separada da CONTAG (a FETRAF-Sul) que agora tornou-se organização nacional (FETRAFBrasil). Até aqui ambas (CONTAG e FETRAF-Brasil) pertencem à Central Única dos Trabalhadores.


5 A idéia central deste artigo é que os movimentos sociais de fortalecimento da agricultura familiar trazem contribuições decisivas para o enriquecimento do tecido social das regiões em que atuam. Sua existência está na base da conquista não só de políticas públicas fundamentais (como o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar, PRONAF), mas também de organizações econômicas capazes de alterar o próprio funcionamento dos mercados e, por aí, a correlação de forças entre os grupos sociais de suas regiões. Mas é nítido o contraste entre o peso econômico da agricultura familiar, sua capacidade de pressão para conquistas específicas, setoriais, seu poder de construir organizações econômicas relevantes, por um lado, e a impressionante debilidade de sua participação direta, planejada nos processos localizados de desenvolvimento. Apesar de sua importância territorial, agem como organizações setoriais. Pode-se falar de um conflito entre a cultura reivindicativa predominante das organizações sindicais e um conjunto de inovações organizacionais – com importantes conseqüências produtivas – levadas adiante pelas organizações econômicas da agricultura familiar, nomeadamente por suas cooperativas de crédito e de leite. Por fim, o formato das políticas públicas de fortalecimento da agricultura familiar – embora de natureza nomeadamente territorial – contribui de maneira decisiva para acentuar o viés setorial da atuação dos movimentos e não estimula iniciativas inovadoras no plano produtivo, mercadológico e organizacional. O artigo se apóia em trabalho de campo junto aos principais atores sociais do Sudoeste Paranaense, região brasileira de colonização européia em que a luta pelo fortalecimento da agricultura familiar adquire hoje, talvez, a maior densidade quando comparada ao restante do País. É aí que se originam não só parte significativa dos quadros dos mais importantes movimentos sociais do meio rural brasileiro hoje, mas também as experiências mais inovadoras como a do Sistema Cresol de crédito solidário (Bittencourt e Abramovay, 2001; Junqueira e Abramovay, 2005; Schröder, 2005) ou as cooperativas de leite formadas mais recentemente (Magalhães, 2005). A este trabalho de campo em que se entrevistaram alguns dos principais atores sociais e econômicos da região - representantes de associações comerciais, prefeitos, vereadores, membros de conselhos locais de desenvolvimento, dirigentes de sindicatos e de cooperativas acrescenta-se uma pesquisa quantitativa aplicada a 167 dos quase 200 delegados da Região Sul presentes ao Congresso de fundação da FETRAF-Brasil (Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar, ver Box I). Este Congresso foi realizado no final do mês de novembro, em Brasília. Os resultados dessa pesquisa embasam, ao longo deste texto, vários dos seus argumentos, pois sintetizam a percepção de um importante grupo de dirigentes sindicais vinculados aos movimentos analisados. Inicialmente (parte 2) o texto apresenta uma síntese histórica da formação do movimento social voltado ao fortalecimento da agricultura familiar na região brasileira em que sua existência é mais emblemática e que lhe forneceu - juntamente com as regiões Oeste de Santa Catarina e Noroeste do Rio Grande do Sul - parte muito expressiva dos quadros: o Sudoeste Parananense (ver figura 1). O objetivo aí é mostrar que se trata de fato de um movimento – que se exprime sob quatro modalidades organizativas diferentes - e não de um “grupo de interesse”. A parte três do artigo expõe alguns elementos que mostram o processo de diversificação desta região eminentemente rural e examina de que maneira as organizações da agricultura familiar contribuem para este processo. Na parte quatro, o trabalho examina o tema da inovação e na parte cinco volta-se a uma análise crítica do formato organizacional dos conselhos territoriais de desenvolvimento rural, iniciativa recente do Ministério do Desenvolvimento Agrário. As conclusões do texto são apresentadas em sua parte seis.


6 Figura 1 – Local de residência dos representantes da região Sul do Brasil no Congresso Nacional de Fundação da Fetraf – novembro de 2005.

* O núcleo central da Fetraf se localiza no grande território formado pelas regiões

Sudoeste do Paraná, Oeste de Santa Catarina e Alto Uruguai

2. Um novo horizonte estratégico No final dos anos 1980, Charles Tilly (1988:455-456) fez um rápido balanço dos estudos sobre movimentos sociais, desde os anos 1960 e concluiu que, apesar das diferentes abordagens teóricas e dos variados campos empíricos de aplicação, os analistas convergiam na idéia de que “...os movimento dependem intimamente das redes sociais em que seus participantes já estão imersos, que as identidades desdobradas em conflitos coletivos são contingentes, mas cruciais, que os movimentos operam em estruturas dadas pela acumulação de compreensões partilhadas, que a estrutura de oportunidade política delimita significativamente as histórias de cada movimento social, mas que as lutas e os produtos dos movimentos também transformam as estruturas de oportunidades políticas”. Os movimentos sociais podem ser estudados então com base em quatro temas básicos. Primeiramente, é necessário saber em que redes sociais se apóiam: só podem existir caso exprimam formas espontâneas de interação social, de interconhecimento, de conexões elementares entre indivíduos capazes de se reconhecerem como pertencentes a um universo e a um conjunto de experiências comuns. É com base nestas experiências que se forma – segundo tema - a identidade social necessária à ação comum. A ótica aqui se distingue claramente do horizonte de Mancur Olsom (1965) e da teoria da escolha racional para a qual somente em pequenos grupos, a identidade social oferece base suficiente para explicar iniciativas deliberadas coletivas ( 3). O terceiro tema fundamental para o estudo dos movimentos sociais é a mobilização de recursos, que exprime o fato elementar de que movimentos sociais só podem afirmar-se socialmente 3

É interessante, neste sentido, a crítica que Sidney Tarow (1998/2005:3-4) dirige aos trabalhos de Russel Hardin (1982): a ação coletiva – base dos movimentos sociais – não é uma categoria abstrata a ser interpretada a partir de possibilidades lógicas passíveis de análise, por exemplo, pela teoria dos jogos. É uma categoria política e histórica que cuja compreensão exige estudos concretos sobre seus contextos explicativos.


7 quando adquirem certa estrutura organizacional e são capazes de obter apoios variados para alterar a correlação de forças dos campos em que atuam. Experiência comum e identidade são a condição mesma de existência dos grupos sociais. Daí não decorre, automaticamente, que se mobilizem sob a forma de movimentos sociais. Donde a importância da mobilização de recursos. Este tema pode ser abordado tanto com base numa inspiração weberiana (4), como a partir da preocupação marxista segundo a qual a ausência de uma organização política profissional torna inconseqüente a revolta popular, ponto de vista expresso não apenas por Lênin em seu célebre “O Que Fazer?”, mas também por Eric Hobsbawn em Rebeldes e Primitivos. Por fim, quarto tema, o desenrolar das ações levadas adiante pelos movimentos sociais depende de um contexto, de um conjunto de oportunidades políticas existentes ou criadas em função das ações do próprio movimento. Em nenhum outro país latino-americano a expressão agricultura familiar ganhou tanta força – entre os movimentos sociais, na comunidade científica e na própria política pública – como no Brasil. E foi exatamente na região sulista de forte presença da imigração européia da qual faz parte o Sudoeste Paranaense que este termo nasceu e se consolidou. Os quatro temas básicos propostos por Charles Tilly na análise dos movimentos sociais – redes sociais, identidade, mobilização de recursos e oportunidades políticas - podem ajudar a compreender as razões desta particularidade. Vejamos a questão mais de perto. 2.1. Redes sociais: uma experiência social e ambiental comum Apesar da importância do latifúndio em sua formação histórica, o Sul do Brasil conheceu também um massivo processo de ocupação da terra por parte de migrantes oriundos da decomposição das relações sociais tradicionais em países europeus, sobretudo da Itália, da Alemanha e da Polônia. Parte desta migração foi organizada por empresas de “colonização”, como no Norte do Paraná, por exemplo, e em algumas regiões do Rio Grande do Sul. Mas, uma vez instalada uma primeira geração de imigrantes (a partir do início do Século XIX), seus descendentes acabaram por deslocarse em direção a áreas florestais (de domínio indefinido, ou pertencentes formalmente ao Estado) seguindo o curso do Rio Uruguai. Ao Sudoeste Paranaense, começaram a chegar a partir do final dos anos 1940. Na verdade, estas áreas – muitas vezes erroneamente consideradas como inabitadas estavam ocupadas por populações rarefeitas, chamadas “caboclas” ( 5) que nelas praticavam formas de agricultura itinerantes, baseadas no que Ester Boserup (1970) chamou de pousio longo associadas à caça e à pesca. Com a chegada dos filhos de migrantes europeus, estes “caboclos” vendiam suas lavouras que eram ocupadas a partir de então sob o regime de propriedade privada – até ali inexistente nas modalidades convencionais de uso do solo, por parte dos “caboclos”. Com isso, cria-se uma distinção social – persistente até hoje em toda esta região – entre proprietários de origem

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As organizações – mesmo as revolucionárias – supõem estruturas que, na abordagem weberiana, apóiam-se num corpo profissionalizado de quadros: estas organizações são estudadas por Weber no item correspondente à “dominação legal com quadro administrativo burocrático” de seu capítulo sobre os tipos de dominação em “Economia e Sociedade”. 5 São ilustrativas as definições de caboclo do dicionário Houaiss: indivíduo (especialmente habitante do sertão) com ascendência de índio e branco e com físico e os modos desconfiados, retraídos; selvagem brasileiro que tinha contato com os colonizadores.


8 européia e trabalhadores (sem terra) “caboclos” que formam a parte mais empobrecida desta população (Abramovay, 1981). É importante assinalar que a ocupação destas terras por parte dos migrantes de origem européia apoiava-se sempre na queimada e derrubada da floresta e no plantio sobre suas cinzas. Para estes migrantes a derrubada da floresta representava um caminho mais econômico de implantação de suas unidades produtivas que a ocupação das vastas superfícies de pastagens naturais. Na ocupação da floresta, a família podia dispor não apenas de alguma caça para sua alimentação, mas, sobretudo, a derrubada da mata fornecia os elementos de fertilidade que permitiriam extrair safras abundantes até que a parte do lote posta abaixo se esgotasse (dois ou três anos). Assim que isso ocorria, era queimada e derrubada parte subseqüente do lote, num sistema de rotação de terras no interior das áreas delimitadas como propriedade (Waibel, 1949). Esta rotação de terras com base num regime de propriedade privada foi a forma dominante de utilização do solo até o final dos anos 1960. A partir do início dos anos 1970 parte muito significativa destes agricultores – cujos solos perdiam produtividade pelo próprio esgotamento do regime limitado de rotação de terras praticado – passa a adotar os pacotes tecnológicos caracterizados pelo uso intensivo dos insumos químicos e meios mecânicos e que tão fortemente alteram as formas produtivas até então dominantes. A cobertura florestal, já seriamente comprometida pela rotação de terras praticada no interior das propriedades, foi quase inteiramente dizimada por técnicas que supunham um terreno plano e livre de obstáculos à especialização das culturas e a sua mecanização intensiva. A devastação só foi atenuada por um relevo que permitia preservar algumas áreas montanhosas. Portanto, a formação da propriedade da terra nas regiões de agricultura familiar do Brasil meridional apóia-se, na maior parte dos casos, numa dupla destruição: por um lado, na eliminação social do “caboclo”, das formas itinerantes de utilização do solo que se apoiavam naquilo que Ester Boserup chamou de pousio longo - substituídos por períodos cada vez mais curtos de pousio e, posteriormente, pelos insumos de origem industrial característicos da Revolução Verde; por outro, na destruição massiva da cobertura florestal, acentuada de forma drástica com a adoção dos pacotes tecnológicos que se impuseram como padrão produtivo dominante a partir dos anos 1970. Esta dupla eliminação social e ambiental se fundamenta numa ética do trabalho e da propriedade familiar que molda a experiência comum de toda esta região brasileira. 2.2. Igreja, latifúndio, agroindústria: elementos de uma nova identidade. A estas características objetivas – que marcam, por assim dizer, a sociabilidade primária desta população – acrescentam-se três importantes elementos subjetivos que dão a marca do segundo tema pelo qual Charles Tilly aborda os movimentos sociais: sua identidade. a) Poucas regiões brasileiras tiveram um trabalho tão profundo e capilarizado de Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) como o Alto Uruguai e, particularmente, o Sudoeste Paranaense. Em 1962 funda-se em Francisco Beltrão, com apoio de religiosos belgas, a Assesoar (Associação de Estudos e Orientação Rural), cujos quadros religiosos e leigos respondem pela organização de um impressionante trabalho de base sob a forma de pequenos grupos que faziam leituras bíblicas à luz da discussão dos problemas cotidianos vividos pelos agricultores. O corpo técnico da Assesoar respondia pela formação de um conjunto de “ministros da eucaristia”, de grupos de jovens e de casais uma espécie de sociedade civil organizada no interior mesmo de uma estrutura religiosa.


9 É destes pequenos grupos que se originam a Comissão Pastoral da Terra, as primeiras articulações que passaram a contestar as modalidades assistencialistas de atuação sindical e, em última análise, parte significativa do próprio Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. A atuação crítica das Comunidades Eclesiais de Base correspondia a uma orientação importante da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil à época e se apoiava em verdadeiros laboratórios de elaboração teológica, responsáveis por uma riquíssima literatura que vinculava a discussão dos problemas sociais brasileiros a dimensões filosóficas e existenciais dos textos bíblicos ( 6). Este trabalho ia muito além de uma análise puramente instrumental com conseqüências reivindicativas e teve o mérito de difundir uma verdadeira filosofia de vida em torno da valorização do trabalho, de dar voz a quem não tem voz, da denúncia da exploração e da pobreza. b) No caso do Sudoeste Paranaense, esta atividade cotidiana – muito mais que uma pregação eventual de rituais religiosos - encontrou um caldo de cultura ainda mais fértil: esta é uma das duas únicas regiões brasileiras ( 7) em que foi vitoriosa uma revolta popular contra o latifúndio. Conhecida como a “revolta dos colonos” ou a “revolta de 1957” e liderada à época por um jovem médico, não se tratou absolutamente de um movimento revolucionário: uma empresa que se dizia dona de todas as terras da região queria impor a seus ocupantes o pagamento dos lotes que já ocupavam e que haviam comprado dos caboclos que lá viviam quando chegaram, a partir do final dos anos 1940. De fato a empresa não era proprietária e, de maneira surpreendentemente rápida e sem uma liderança política definida, os colonos conseguiram, em 1957, ocupar as rádios dos principais municípios da região, fechar seus pequenos aeroportos e expulsaram os jagunços encarregados de semear entre eles o pânico e lhes impor a obrigação de pagamento por terras que já eram suas. O governo da época reconheceu a vitória dos colonos e esta foi uma das bases de uma estrutura fundiária particularmente desconcentrada, quando comparada ao padrão do Brasil e mesmo do Estado do Paraná. c) O trabalho das Comunidades Eclesiais de Base, numa região que viveu uma vitória histórica importante contra o latifúndio - mesmo que dela pouco se falasse, após o Golpe de 1964 – permitiu que as transformações técnicas produtivas e organizacionais características do pacote tecnológico da Revolução Verde fossem recebidas de maneira especialmente crítica. Os agricultores adotavam as novas modalidades produtivas que passaram a dominar a paisagem social e ecológica da região a partir dos anos 1970: mesmo aqueles cujas áreas eram pequenas demais para permitir mecanização, empregavam sementes certificadas, ampliavam suas culturas de soja, aplicavam pesticidas em larga escala e, durante certo tempo, ao final dos anos 1970, tinham acesso aos créditos altamente subsidiados que davam apoio a este conjunto de inovações. Ao mesmo tempo em que cresce o poder das indústrias que atuam a montante e a jusante da agricultura, amplia-se a insatisfação dos agricultores com um processo que resulta, para eles, com imensa freqüência, em endividamento, insumos caros e preços pouco compensadores pelos seus produtos. A força da agroindústria – não só na compra de produtos de lavoura, sobretudo da soja, mas, sobretudo, na produção de pequenos animais – permitiu que impusesse um padrão técnico cujas conseqüências sociais foram devastadoras: área de expansão da fronteira agrícola, o Alto Uruguai vê declinar, de maneira acentuada, seu número de agricultores a partir dos anos 1980. É verdade que as 6

Além do peruano Gutierrez, que trabalhou intensamente em elaborar a teologia da libertação, a partir do Concílio Vaticano II, concentravam-se em Angra dos Reis inúmeros pensadores brasileiros de destaque como Leonardo Boff e Clodovis Boff. 7 A outra encontra-se no Estado de Goiás.


10 unidades produtivas de aves e suínos – responsáveis por parte expressiva das exportações brasileiras – apoiavam-se inteiramente em trabalho familiar. Mas, os investimentos necessários à instalação de uma granja e as exigências técnicas que acompanham suas inovações produtivas conduzem a uma crescente concentração do processo produtivo e a imensa eliminação social dos agricultores da paisagem social da região. Além disso, nos seus primeiros anos de implantação, este modelo técnico é adotado sem alguns cuidados básicos com a integridade do solo conduzindo a graves situações de erosão e perda de fertilidade, cujas conseqüências só não foram mais sérias em função da qualidade privilegiada da superfície agropecuária e de um conjunto de medidas – curvas de nível, sobretudo – já ao final dos anos 1970, destinadas a combater os efeitos destrutivos das novas técnicas. Em suma, a junção entre o trabalho da Igreja, a oposição ao latifúndio e a experiência concreta de transformações produtivas e de integração a mercados diferentes daqueles com que até então os agricultores tinham se relacionado alterou de maneira sensível o próprio panorama das lutas sociais no campo brasileiro: as mudanças na organização produtiva a partir do início dos anos 1970 ofereceram aos agricultores familiares um elemento inédito de identidade social, dado pela experiência de relação com novos atores (comerciantes e fabricantes de insumos, compradores de novos produtos, gerentes de bancos), pelo enfrentamento de novos problemas (decomposição das comunidades, erosão dos solos, manuseio de agrotóxicos) e pelo início da construção de um horizonte de oposição a estas transformações, vindo tanto do que veio a ser a luta por uma nova política agrícola, como nas mais variadas tentativas de organização alternativa da produção (8). É interessante observar neste sentido a resposta dos entrevistados no Congresso de fundação da FETRAF-Brasil sobre os adversários mais importantes das lutas nacionais da FETRAF (tabela 1): para quase um terço dos entrevistados é o agronegócio e para 44% entre eles, o latifúndio (não se permitiam respostas múltiplas). TABELA 1

NÚMERO DE DELEGADOS DA REGIÃO SUL ENTREVISTADOS NO CONGRESSO DE FUNDAÇÃO DA FETRAF-BRASIL, SEGUNDO RESPOSTAS SOBRE O ADVERSÁRIO MAIS IMPORTANTE NAS LUTAS NACIONAIS DA FETRAF – 2005

Adversários da FETRAF

O agronegócio O latifúndio O Ministério da Fazenda/ Política Econômica Os bancos Outros Não sei Total

N. entrevistados 52 74 10 15 8 8 167

(%) 31,1 44,3 6,0 9,0 4,8 4,8 100, 0

Fonte: pesquisa de campo, nov. 2005.

2.3. Mobilização de recursos: Igreja, sindicatos, conselhos, cooperativas. Os agricultores familiares, portanto, partilham uma experiência comum de ocupação e reorganização do espaço que é a base objetiva de construção de uma identidade fornecida pelo trabalho das Comunidades Eclesiais de Base, pela oposição ao latifúndio 8

Em 1976 a Assesoar contratou dois engenheiros agrônomos cuja missão era difundir técnicas agrícolas poupadoras de insumo e preservadoras do meio ambiente. Na mesma organização o Padre Cyrillo levava adiante um levantamento minucioso das tradições e dos conhecimentos ligados a ervas medicinais. Estes trabalhos – é bem lembrar – irradiavam-se de maneira importante pelo tecido social da região em virtude da própria rede formada pelas Comunidades Eclesiais de Base.


11 e pelos inúmeros problemas que enfrentam ao transformarem de maneira tão profunda a própria base técnica de seus sistemas produtivos. Mas é claro que esta identidade supõe a mobilização tanto dos recursos da própria Igreja Católica – que na época da ditadura era a única organização capaz de dispor de quadros profissionais voltados a uma atividade de mobilização popular – como também das próprias organizações sindicais. A Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG) teve, neste sentido, papel decisivo: por um lado, sempre foi, durante a ditadura, uma organização de oposição, ainda que seus sindicatos locais não refletissem, bem entendido, a orientação de sua direção nacional. Além disso, a CONTAG foi protagonista direta das mudanças que marcaram novas identidades nos movimentos sociais: se até o final dos anos 1970 seus esforços e sua orientação estratégica faziam das lutas dos assalariados o eixo de sua organização, este panorama se altera a partir dos anos 1990, quando a agricultura familiar torna-se o pilar de uma verdadeira reorientação que enxerga no fortalecimento da agricultura familiar o próprio sentido estratégico das lutas sociais no campo. Surgem, então, não só novos adversários – as agroindústrias, sobretudo as de produção integrada – mas novas reivindicações ligadas a um tema até então monopólio das organizações patronais. Agricultura familiar emerge como categoria sindical e permite a valorização de temas até então ausentes das pautas dos movimentos como alternativas de comercialização, formas de produção associadas, a questão ambienta, entre outros (Medeiros, 1997). É com base em ações de grande impacto nacional – ocupação do Ministério da Agricultura e invasão do edifício do Ministério da Fazenda – que são negociadas diretamente com o Gabinete da Presidência da República uma novidade institucional que corresponde a uma virada decisiva na história das políticas públicas brasileiras: o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF), implantado a partir de 1996 e que é reivindicado de forma unânime pelo movimento sindical como sua conquista. Origina-se na região Sul do Brasil uma nova geração de dirigentes sindicais, formada a partir dos problemas vividos no enfrentamento do processo de modernização acelerada da agricultura familiar. Estes dirigentes respondem por parte significativa da renovação temática – e até de geração – dos quadros sindicais. Parte importante destes novos dirigentes foi educada no ambiente cultural da teologia da libertação e freqüentou as comunidades eclesiais de base, como mostra a tabela 2. Como se vê, 55% dos entrevistados são membros de alguma organização religiosa e 28% já o foram. TABELA 2

NÚMERO DE DELEGADOS DA REGIÃO SUL ENTREVISTADOS NO CONGRESSO DE FUNDAÇÃO DA FETRAF-BRASIL, SEGUNDO RESPOSTAS SOBRE A PARTICIPAÇÃO ATIVA EM ALGUMA ORGANIZAÇÃO RELIGIOSA – 2005

Participação em organização religiosa Já foi membro e hoje não é mais É membro Nunca foi membro Não é católico Total

N. entrevistados 47 92 26 2 167

(%) 28,1 55,1 15,6 1,2 100,0

Fonte: pesquisa de campo, nov. 2005.

São estes dirigentes que deram origem à Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar, inicialmente formada na região Sul (FETRAF-Sul) e recentemente transformada em organização nacional (FETRAF-Brasil).


12 Os movimentos sociais de fortalecimento da agricultura familiar apóiam-se em quatro modalidades de organização local. •

Embora menos importantes que no período da ditadura, as Comunidades Eclesiais de Base ainda são significativas.

Os sindicatos de trabalhadores rurais – filiados, alguns, à CONTAG, outros, à FETRAF - são canais importantes de mobilização direta dos agricultores.

Com significado bem menor na vida cotidiana do interior da região, os conselhos de desenvolvimento rural – sobretudo os que tratam de temas referentes à agricultura – também fazem parte dos recursos em que se apóiam as mobilizações.

As cooperativas de crédito e de leite são as mais importantes organizações econômicas criadas por agricultores familiares e possuem uma considerável capilaridade.

2.4. Estrutura de oportunidades políticas Como bem mostram os autores que estudam a relação entre movimentos sociais e regimes políticos, é claro que “um mínimo de abertura do poder local ao protesto aparece como uma variável que favorece a mobilização” (Neveu, 1996/2005:84). Mesmo que em 1994, o candidato às eleições presidenciais, apoiado massivamente pelos movimentos sociais (Lula) tenha sido derrotado e que a adesão ao PT seja claramente predominante entre seus quadros (tabela 3), o governo de Fernando Henrique Cardoso negociou desde o início as reivindicações das organizações dos trabalhadores rurais e, com especial ênfase, a proposta de uma “política agrícola diferenciada”. Neste sentido é interessante observar que os movimentos sociais voltados ao fortalecimento da agricultura familiar puderam valer-se das três dimensões básicas assinaladas por Kitschelt (1986), em seu estudo sobre a relação entre mobilizações e regimes políticos. Em primeiro lugar, ganharam resultados de procedimentos, isto é, tiveram acesso a instâncias de concertação e foram reconhecidos como interlocutores oficiais em nome de uma categoria social que se coloca, de maneira historicamente inédita, como parte integrante da formação da política agrícola, discutindo créditos, subsídios, preços de garantia, assistência técnica, a partir de 1994. A segunda dimensão estudada por Kitschelt também é preenchida pelos movimentos sociais de fortalecimento da agricultura familiar, que obtêm resultados substantivos para suas bases, materializados antes de tudo no PRONAF que beneficia 300 mil agricultores em 1996, chegando a mais de 1,5 milhão de agricultores em 2005. Por fim, foi a própria estrutura de oportunidades políticas que se alterou como resultado das lutas em torno do fortalecimento da agricultura familiar: cria-se o Ministério do Desenvolvimento Agrário que – inicialmente voltado apenas para a questão dos conflitos fundiários acaba absorvendo o conjunto das políticas voltadas à agricultura familiar e ganha credenciais que lhe permite negociar recursos e políticas com o conjunto do Governo, nomeadamente com o Ministério da Fazenda e os bancos estatais. As organizações ligadas à agricultura familiar (CONTAG e FETRAF) têm assento no Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural (atual Condraf) e participam ativamente de todas as negociações nacionais de políticas para o segmento. Não se pode ignorar também a imensa proximidade que têm os dirigentes de ambas as organizações do Presidente Lula


13 e sua influência na própria escolha dos principais dirigentes do Ministério do Desenvolvimento Agrário. TABELA 3

NÚMERO DE DELEGADOS DA REGIÃO SUL ENTREVISTADOS NO CONGRESSO DE FUNDAÇÃO DA FETRAF-BRASIL, SEGUNDO RESPOSTAS SOBRE OS VÍNCULOS A PARTIDOS POLÍTICOS – 2005

Partidos Políticos PT PDT PFL PMDB Nenhum Outro Não respondeu Total

N. entrevistados 118 1 2 4 38 3 1 167

(%) 70,7 0,6 1,2 2,4 22,8 1,8 0,6 100,0

Fonte: pesquisa de campo, nov. 2005.

O fortalecimento da agricultura familiar deu lugar, portanto, a movimentos sociais que, apoiado em formas de vida comuns, numa experiência partilhada de significados culturais e de lutas, dotou-se de recursos oferecidos por organizações variadas ( 9) e foi capaz de aproveitar oportunidades políticas para afirmar-se. Num país de tradição democrática recente e precária, a existência de organizações voltadas a representar os interesses de segmentos das populações cujos indivíduos vivem próximo à linha de pobreza e são excluídos das chances mais promissoras de inserção social, isso, por si só, já é notável. Esta conquista democrática não elimina, entretanto o risco de que os movimentos, conforme se consolidam, vejam estreitar seu raio de ação e convertam suas ambiciosas aspirações de mudança social numa representação corporativa. Este risco se materializa nos três desafios, nos três dilemas anunciados ao início do texto e ao qual ele se volta agora.

3. O dilema territorial O caso do Sudoeste do Paraná é emblemático por exprimir uma característica mais geral: é notável o contraste entre a importância das organizações da agricultura familiar na organização de suas bases para a conquista de benefícios de políticas públicas, sua impressionante capacidade de construção de cooperativas inovadoras – como será visto no próximo item – e sua ausência dos processos decisórios que envolvem a sensível diversificação por que passam as regiões onde atuam. 3.1. Mas por que o território? Mas por que razão, agricultores familiares deveriam envolver-se com dimensões da vida regional que concernem segmentos aos quais não pertencem, como a industrialização, a implantação de universidades e os centros de pesquisa? Não seria mais razoável esperar que exercessem seu papel concentrando-se exclusivamente na luta pela democratização das oportunidades ligadas à própria agricultura?

9

À Igreja e aos sindicatos vem somar-se o apoio de uma parte significativa da intelectualidade universitária, da burocracia estatal e de organizações internacionais de desenvolvimento que financiavam o trabalho de várias organizações não-governamentais desde o final dos anos 1960.


14 Existem ao menos três razões para uma resposta negativa a esta pergunta. a) As organizações da agricultura familiar formam quadros que, com freqüência, envolvem-se na política e acabam exercendo funções de prefeitos ou vereadores. O PT elegeu, no Sudoeste do Paraná, um deputado federal por dois mandatos entre em 1990 e 1994 e hoje tem um representante cuja eleição pode ser atribuída às cooperativas de crédito. Estas lideranças lidam com temas como os incentivos que recebem as indústrias, a instalação de faculdades, o uso dos espaços das sedes municipais, a distribuição dos tributos, o lixo, entre outros. Entre os 167 entrevistados no Congresso da FETRAF de novembro de 2005, havia um prefeito, um secretário parlamentar, 13 vereadores e três assessores parlamentares (tabela 4). Um dos casos mais vigorosos de industrialização recente – o do município de Dois Vizinhos – teve por base a criação de um “distrito industrial” sob uma administração coligada entre PMDB e PT (cuja importância para os quadros da FETRAF já foi exposta na tabela 2). No município de Ampére e no de São Jorge d’Oeste o PT participa diretamente de administrações que estimulam fortemente processos localizados de industrialização com base no uso de recursos públicos. Portanto, as lideranças da agricultura familiar envolvem-se com temas locais, estaduais e nacionais que vão muito além do setor que representam. No entanto, suas organizações estão praticamente ausentes das instâncias colegiadas que discutem e deliberam sobre estes temas. A região Sudoeste do Paraná sempre teve como espinha dorsal de sua identidade a agricultura. O processo de diversificação tende a modificar esse elemento de identidade o que pode ter grande influência sobre as políticas de desenvolvimento local e sobre a destinação dos recursos públicos para a região. TABELA 4

NÚMERO DE DELEGADOS DA REGIÃO SUL ENTREVISTADOS NO CONGRESSO DE FUNDAÇÃO DA FETRAF-BRASIL, SEGUNDO RESPOSTAS SOBRE DESEMPENHO DE FUNÇÃO PÚBLICA REMUNERADA – 2005

Funções públicas remuneradas Prefeito Secretário municipal Vereador assessor parlamentar Outro Não Não sei Não respondeu Total

N. entrevistados 1 1 13 3 11 130 4 4 167

(%) 0,6 0,6 7,8 1,8 6,6 77,8 2,4 2,4 100,0

Fonte: pesquisa de campo, nov. 2005.

b) O processo de diversificação do tecido econômico regional – com o incremento de gêneros tradicionais da indústria (alimentos, particularmente o segmento de abate e processamento de aves, confecções e madeira) e a chegada de novas indústrias dos setores metalúrgico e metal-mecânico (IPARDES, 2003 e 2004) e, sobretudo, com a ampliação da presença de universidades regionais e centros de pesquisa – interfere de maneira flagrante na vida dos agricultores. No município de Ampére, por exemplo, o apoio da prefeitura à industrialização por meio de generosos subsídios – prática corrente na região, configurando uma verdadeira guerra fiscal entre os municípios – atraiu como assalariados, num primeiro momento, jovens, filhos de agricultores, que se dispunham a morar na sede do município, apesar dos baixos salários. O fortalecimento da cooperativa de


15 crédito do município e a construção da cooperativa de leite – juntamente com a chegada dos recursos creditícios do PRONAF – ampliaram as perspectivas de geração de renda nas propriedades familiares e melhoraram as próprias condições de negociação salarial para os jovens agricultores que passavam parte do ano trabalhando na indústria. O tema ainda é pouco estudado na região ( 10), mas é um exemplo claro de que o processo de desenvolvimento rural exige uma abordagem sistêmica, não setorial, sem a qual a própria defesa dos interesses dos agricultores pode ficar comprometida (11). c) A diversificação produtiva não é o resultado espontâneo e imprevisto de mecanismos neutros e impessoais decorrentes da interação atomizada de unidades econômicas independentes entre si. Ela só pode ser compreendida à luz do que fazem, concretamente, os atores sociais e suas organizações. A implantação de uma indústria, de uma universidade ou de um centro de pesquisa supõe uma capacidade de obter cooperação, um conjunto daquilo que Neil Fligstein (2001a) chama de habilidades sociais, responsáveis pelo próprio perfil e conteúdo do desenvolvimento. Por terem uma atuação fundamentalmente setorial, as organizações da agricultura familiar acabam renunciando ao exercício de liderança sobre este processo em benefício de outros segmentos sociais e de forças políticas com as quais pouco se identificam e pouco se relacionam. 3.2. Elementos de diversificação produtiva Não se trata aqui de traçar um panorama histórico sobre aquilo que Bagnasco e Trigilia (1988) chamaram – referindo-se à Itália – industrialização difusa, tão importante em diversas áreas do Alto Uruguai e que, nos últimos anos se acentua no Sudoeste Paranaense. Mas é importante destacar alguns elementos que dão base concreta às três proposições expostas logo acima.

10

O crescimento do emprego formal no Sudoeste Parananaense foi superior ao do Estado, com importante participação dos pequenos municípios no incremento e no estoque regional. Embora ainda dependentes do emprego formal no setor público, alguns pequenos municípios tiveram forte incremento de ocupações industriais (IPARDES, 2004).

Embora seja uma região fundamentalmente agrícola, a indústria representa quase 30% do valor adicionado fiscal, em 2002, como mostra a tabela 5. A indústria de transformação possuía cerca de 19 mil empregos e contribuiu, em 2003, com 30% do emprego regional: não

Sérgio Schneider e Flávio Sacco dos Anjos fizeram interessantes trabalhos sobre colonos operários no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina (dúvida, citar). 11 Segmentos expressivos do movimento operário brasileiro já se deram conta da importância desta atuação territorial: Ricardo Ramalho (2005), em interessante trabalho recente, mostra que a aglomeração industrial do Sul Fluminense é “um indutor da necessidade de cooperação para o desenvolvimento econômico. Isso pressupõe aceitar que os atores políticos das localidades da região possam se capacitar para atuar (até mesmo para contestar) na gestão da nova fase do desenvolvimento local. De forma diferenciada, também pode atuar no sentido de moldar o desenvolvimento a favor dos interesses econômicos e sociais da sociedade local. Neste coletivo estariam incluídos os trabalhadores, principalmente aqueles contratados pelas novas empresas, que além de constituírem um grupo social expressivo, com novas expectativas e demandas no espaço fabril e no espaço da cidade, transformariam a organização sindical em participante potencialmente relevante nesse processo”.


16 se pode superestimar a importância desta informação, uma vez que os agricultores, em sua grande maioria, não fazem parte dos registros de “emprego formal”. Ainda assim, é uma quantidade não desprezível para a realidade regional. TABELA 5 –VALOR ADICIONADO FISCAL (VAF) POR SETOR E TOTAL E VARIAÇÃO ANUAL E ABSOLUTA, SEGUNDO SUDOESTE E PARANÁ -1999-2002

Região e Estado Sudoeste PARANÁ

Variação do VAF Industrial 1999-2002 Indústria Serviços Total Absoluta Anual (%) (%) (%) Valores (1000 R$) (%) (%) 28,9 34,8 4.064.348,00 100,0 34,8 7,8 40,8 43,0 77.467.164,00 100,0 36,5 8,1

Composição Setorial do Valor Adicionado Fiscal (2002) Agropecuária (%) 36,3 16,2

Fonte: IBGE – PIB dos Municípios 1999 - 2002

TABELA 6

Em função da articulação existente entre escola técnica, universidade, esferas de governo, empresários e instituições de apoio, em particular para a constituição do Centro Tecnológico e Industrial do Sudoeste (CETIS) - uma incubadora tecnológica em Pato Branco (Stainsack et al., s/d) - há evidências de conformação de um cluster regional de base tecnológica (IPARDES, 2003). De qualquer maneira a presença de universidades é um traço novo e marcante na vida da região. Entre as lideranças de agricultores, por exemplo, é muito comum que os filhos sejam universitários. E entre os próprios dirigentes da FETRAF, apenas 36% têm menos de oito anos de escolaridade sendo que 15% deles estão cursando ou cursaram (tabela 6) uma faculdade (12). NÚMERO DE DELEGADOS DA REGIÃO SUL ENTREVISTADOS NO CONGRESSO DE FUNDAÇÃO DA FETRAF-BRASIL, SEGUNDO RESPOSTAS SOBRE GRAU DE ESCOLARIDADE – 2005

Grau de escolaridade 1ª a 4ª série 5ª a 8ª série 1º a 3º ano Cursando faculdade superior completo Não respondeu Total

N. entrevistados 16 45 79 19 6 2 167

(%) 9,6 26,9 47,3 11,4 3,6 1,2 100,0

Fonte: pesquisa de campo, nov. 2005.

Este processo de industrialização numa região até poucos anos atrás marcada quase exclusivamente pela agricultura e por algumas poucas indústrias alimentares foi provocado por dois fatores básicos. Por um lado, teve imensa importância a expansão da Sadia, gigantesca indústria de produção de aves e suínos, responsável por parte expressiva da pauta de exportações brasileiras na área. Os efeitos multiplicadores desta 12

Sobre a estrutura de ensino superior existente no Sudoeste, são doze instituições, entre faculdades particulares, universidades estaduais, fundações municipais e escolas técnicas federais, que ofertam cursos nesse nível educacional, constituídas em vários municípios da região, especialmente a partir de meados dos anos 1990. Essas instituições ofertam cerca de 50 cursos de graduação e também cursos de especialização, além de um MBA em Produção na Indústria do Vestuário, em Dois Vizinhos. Os municípios que têm instituições de ensino superior são: Pato Branco, Francisco Beltrão, Dois Vizinhos, Chopinzinho, Barracão e Realeza.


17 indústria manifestam-se não só na demanda por materiais variados – com efeitos sobre a metalurgia e a metal-mecânica da região - mas também na formação de quadros, gerentes, executivos, alguns dos quais estão na origem de empreendimentos industriais, quando deixam a própria agroindústria. O subsídio oferecido pelas prefeituras é o segundo fator explicativo do vigor da industrialização difusa na região. O tipo de indústria que prevalecia na região tinha, até meados dos anos 1990, forte relação com a agricultura. Não é o caso destas novas indústrias, que passam a constituir um setor autônomo, com poucos vínculos com a agricultura familiar, a não ser o uso da mão-de-obra barata. A participação das organizações dos agricultores familiares no Fórum de Desenvolvimento do Sudoeste seria importante no sentido de estimular um tipo de industrialização que favorecesse a integração inter-setorial, podendo ser esta uma estratégia de fortalecimento da agricultura familiar da região. Escapa aos objetivos deste trabalho uma apreciação substantiva sobre a natureza real deste processo de diversificação: alguns dos atores em campo – foi, em particular, o ponto de vista de um advogado trabalhista – ressaltaram as péssimas condições de trabalho em que esta industrialização difusa está imersa. Outros, ao contrário, insistiam nas dimensões virtuosas deste processo, dada fundamentalmente pela ligação entre indústrias e centros tecnológicos. O trabalho de campo, de fato, mostrou tanto indústrias claramente inovadoras, com setores de design e engenharia locais bastante atuantes, como outras com baixíssimos salários e atuação predatória sobre os recursos naturais. O importante a ser destacado aqui é que estas novas atividades não só se apóiam numa ação deliberada do poder público e, muitas vezes, no apoio de organizações de pesquisa, mas contam também com o patrocínio e o estímulo direto de um conjunto variado de organizações, conselhos e fora regionais. A partir dos anos 2000, os atores mais influentes no cenário regional foram as Associações Comerciais e Empresariais (ACE) (vinculadas à Coordenadoria das Associações Comerciais e Empresariais do Sudoeste do Paraná – CACISPAR e à Federação das Associações Comerciais e Empresariais do Paraná – FACIAP), o Sistema Federação das Indústrias do Estado do Paraná (FIEP) – ao qual vinculam-se os sindicatos patronais, como o sindicato das indústrias do vestuário, e estruturas diversas, como o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial, SENAI - as cooperativas agropecuárias, ligadas à estrutura do Sindicato e Organização das Cooperativas do Estado do Paraná (OCEPAR); as cooperativas de crédito, vinculadas aos sistemas SICREDI e ao Sistema Cresol de Crédito Solidário (que será examinado no próximo item), a Associação dos Municípios do Sudoeste do Paraná (AMSOP), a Agência de Desenvolvimento Regional do Sudoeste do Paraná, criada por iniciativa da AMSOP e o SEBRAE, apoiando a constituição de fora de desenvolvimento municipal e dos pólos microrregionais, nesse caso para integrar o empresariado e as instituições de ensino superior. 3.3. Habilidades sociais para o desenvolvimento territorial O interessante é que estas organizações não se limitam à defesa de interesses setoriais particulares, mas estruturam, de certa maneira, a própria pauta do processo localizado de desenvolvimento e oferecem os parâmetros a partir dos quais as decisões são tomadas. O principal dirigente do Fórum de Desenvolvimento do Sudoeste do Paraná (que hoje transformou-se numa agência), Célio Bonetti, salienta que as novas indústrias que se desenvolvem na região provêm basicamente de capitais locais. Mas ele mostra


18 que, apesar dos avanços, não existe ainda uma visão estratégica regional claramente definida. O Fórum tem a ambição de contribuir na construção deste caminho. Neste sentido, chama a atenção o Fórum Futuro 10 Paraná. A iniciativa reuniu as principais lideranças empresariais, sociais e políticas do Estado em torno do chamado método de “investigação apreciativa” - criado por David Cooperrider, professor da Weatherhead School of Management da Case Western Reserve University (Cleveland, Ohio) - para que elaborassem uma visão do futuro e apontassem os caminhos mais viáveis para chegar a estes objetivos. A liderança do Fórum pertence à Rede Globo local, mas é impressionante a sua capacidade agregadora: regionalmente, reúne não apenas empresários, mas professores, representantes da sociedade civil e de grupos de base, com técnicas participativas de trabalho que não deixam de evocar aquelas praticadas nas Comunidades Eclesiais de Base a partir dos anos 1960. É surpreendente, neste sentido, o discurso das lideranças da Associação Comercial de Ampére, ao evocar com freqüência mobilização, participação, cooperação e compromissos dos empresários locais com o desenvolvimento do município. No mesmo sentido, o Conselho Paranaense de Cidadania Empresarial, por exemplo, é um dos atores deste trabalho e seus documentos citam de forma insistente a Declaração do Milênio das Nações Unidas, o desenvolvimento sustentável e um conjunto variado de informações sobre o Estado que não se limitam ao crescimento da indústria, mas envolvem segurança, educação, cultura, entre outros. O Fórum reuniu cerca de 5000 lideranças empresariais, políticas e associativas em sete cidades do Paraná em que foram promovidos seus encontros durante 2005. O último evento, na capital do Estado, Curitiba, contou com a presença do Presidente da República. Esta intervenção organizada no processo de diversificação – de desenvolvimento, em última análise – merece destaque por duas razões básicas. a) Em primeiro lugar, ela mostra a importância do que Neil Fligstein (2001a) chamou de habilidade social, ou seja, a capacidade de induzir os outros à cooperação. A vida social, para Fligstein – claramente inspirado em Pierre Bourdieu - pode ser estudada a partir de certos campos mais ou menos institucionalizados. Estes campos definem-se sempre não apenas pela partilha, entre seus participantes de um universo cultural e cognitivo comum, mas, sobretudo, por uma intensa e permanente disputa de posições. Mercados, por exemplo, podem ser estudados como campos. É o que faz Fligstein num dos mais importantes livros da sociologia econômica contemporânea, onde ele contesta a visão canônica a respeito da concorrência, segundo a qual os preços se estabelecem com base numa espécie de leilão, cuja eficiência é tanto maior, quanto menor forem os vínculos de dependência entre seus protagonistas. Ao contrário, mostra Fligstein (2001 b), mercados são, antes de tudo, formas de estabilizar as relações entre produtores e fornecedores, entre produtores e compradores, de forma a atenuar os efeitos destrutivos do caráter instável do sistema de preços. Para isso, são criadas não apenas instituições, mas também a partilha de compreensões e significados em torno do que fazem os atores. Esta visão político-cultural dos mercados é importantíssima para que se compreenda a intervenção organizada tanto do Estado como das mais diferentes formas de associações na vida econômica. O interessante no Fórum Futuro 10 Paraná é que não se trata apenas de propostas exclusivamente no campo econômico, mas de consignas que representam uma espécie de orientação de vida e que envolvem o conjunto da organização social. A cooperação não é o


19 resultado inconsciente e involuntário do que os atores fazem na ignorância uns dos outros. Ao contrário, ela supõe capacidade de persuasão, de interferir na própria formação dos significados em torno dos quais se organiza a ação social. É claro então que além dos empresários individuais, a cooperação em que se apóiam os processos localizados de diversificação produtiva supõe que se formem empreendedores associativos voltados especificamente a este objetivo, capazes de formar associações de classe, de expor concepções de funcionamento da vida econômica e social à qual vão aderir os principais expoentes de cada segmento considerado. Diferentemente das visões culturalistas sobre “capital social” tão importantes nas obras de Putnam (1993) e Fukuyama (1995), por exemplo, aqui a cooperação não é um ideal de sociedade e sim expressão da própria correlação de forças entre os grupos sociais. Diferentemente também de muitas vertentes institucionalistas, as regras não são soluções racionais a que chegam os indivíduos por força de sua própria interação, mas sim o produto da capacidade de cada grupo de formar justamente as habilidades sociais necessárias para organizar a cooperação. A atuação das organizações empresariais paranaenses que participam do Fórum Futuro 10 Paraná não corresponde às definições consagradas de “movimentos sociais”, por não se articularem com base na oposição a um inimigo comum. Mas ela exprime uma ação coletiva voltada a um objetivo que vai bem além de interesses setoriais imediatos e envolve uma visão estratégica da própria organização social. As organizações patronais organizam não apenas seus próprios membros, mas mobilizam outros segmentos da sociedade na construção de significados comuns em torno de uma utopia social (13). b) Exatamente por isso, chama a atenção a completa ausência das organizações dos agricultores familiares deste processo organizado de reflexão estratégica: 87% dos sindicalistas entrevistados durante o Congresso da FETRAF-Brasil, não tiveram qualquer reunião com representantes de entidades empresariais ou para empresariais como o SEBRAE, por exemplo, no último ano. Ao mesmo tempo, estas organizações não levam adiante um outro processo de reflexão estratégica que pudesse lhes dar credenciais para exercer um papel de destaque na conquista da cooperação necessária a ações localizadas significativas no plano do desenvolvimento. Mesmo no grupo de Juventude – durante o último Congresso da FETRAF (14) – a ênfase das discussões e das resoluções concentrava-se muito mais nos temas específicos da reprodução econômica da agricultura familiar (acesso à terra e acesso ao crédito, basicamente) do que em aspectos gerais ligados à vida dos jovens no meio rural, como, por exemplo, a educação. E em nenhum momento, durante o Congresso, foram citadas as relações com atores de outros segmentos sociais que pudessem contribuir a uma ação conjunta, voltada à melhoria do ambiente educacional das regiões rurais. Pode-se dizer, é claro, que os agricultores familiares participam dos Colegiados de Desenvolvimento Territorial organizados pela Secretaria de Desenvolvimento Territorial do Ministério do Desenvolvimento Agrário. Mas justamente o traço fundamental destes colegiados reside em seu caráter estritamente setorial e na ausência, em seu interior, da diversidade necessária a que exerça papel relevante na condução do processo de desenvolvimento. Mas antes de examinarmos este tema, no item 13

O trabalho de Friedberg (1992) mostra que não é rígida a fronteira entre organizações, mercados e movimentos sociais. 14 Um dos autores do texto atuou como assessor desta sessão do encontro e teve oportunidade de fazer discussões sobre o tema com os jovens ali presentes.


20 5 deste trabalho – o dilema da governança – vejamos quais as principais conquistas e os principais limites da agricultura familiar no que se refere à inovação organizacional e produtiva.

4. O dilema da inovação 4.1. A importância do empreendedorismo coletivo Os trabalhos mais recentes de Ignacy Sachs (2002 e 2004) insistem na idéia de que o fortalecimento do empreendedorismo coletivo é a base indispensável para que possam emergir, entre os mais pobres, energias produtivas cujas oportunidades de aproveimento são socialmente bloqueadas pelas estruturas sociais em que vivem. A tese opõe-se frontalmente ao preceito de que a legalização dos ativos de que dispõem é condição suficiente para que os pobres dêem vazão a seus talentos e tomem a frente de seus pequenos negócios (De Soto, 2004). A posição de Sachs faz coro com a abordagem de Swedberg (2000:8) que critica o caráter quase mágico com que o empreendedorismo é apresentado na literatura sobre o assunto, inclusive pelo próprio Schumpeter. Na introdução a uma interessante coletânea respeito, Swedberg – inspirado em Peter Drucker – lembra que as escolas de negócio, hoje, ensinam não apenas habilidades gerenciais mas também habilidades empresariais. Cocco et al. (1999) chamam esse novo tipo de empreendedor coletivo de “empresário político” exatamente porque suas funções dependem não tanto de sua capacidade de administrar a produção, mas principalmente de sua habilidade de coordenar as condições sociais e políticas da produção, fazendo a interface entre vários grupos de produtores no âmbito do território e levando em conta as dinâmicas do mercado externo. Albert Hirschman (1984/1989) também encontrou este empreendedorismo coletivo – e em circunstâncias as mais surpreendentes – em seu tão interessante mergulho de oito semanas nas experiências comunitárias, há vinte anos, por vários países da América Latina. Longe de ser apenas a manifestação instintiva de um “animal spirit”, de um ímpeto criativo inexplicável, o empreendedorismo pode ser ensinado, aprendido e, sobretudo – como mostram as experiências da agricultura familiar brasileira – organizado. Se as condições coletivas para tanto são essenciais, não é menos importante, para que o empreendedorismo – e sobretudo a inovação - se manifestem, um ambiente propício à desobediência das rotinas estabelecidas. Num dos mais interessantes textos da coletânea de Swedberg, Kanter (2000:168) lembra que “inovação é a criação e a exploração de novas idéias. Na sua raiz, o processo empresarial de inovação e mudança é estranho ao processo administrativo que garante a reprodução do passado. O desenvolvimento da inovação requer um conjunto de práticas e modos de organização diferentes dos que marcam a gestão corrente e as operações estabelecidas, onde o desejo e a expectativa de mudança é mínima”. Na interpretação de Neil Fligstein (2001 a e 2001 b), o maior desafio à mudança está na capacidade de seus protagonistas em estabelecer novas relações sociais e estabilizar os vínculos com os fornecedores e os clientes de que dependem. A inovação, sob esta ótica, altera a correlação de forças num determinado campo, impõe novos padrões de cooperação entre os atores. Na mesma direção Kanter (2000:170-171) apresenta o processo inovativo em quatro tarefas maiores que lhe dão a lógica: a) a geração da idéia e a ativação dos empreendedores ou dos inovadores; b) a construção da coalizão


21 e a aquisição do poder necessário para transformar a idéia em realidade ( 15); c) a realização da idéia, transformando-a num produto, plano ou protótipo passível de uso e d) a transferência ou a difusão do modelo em escala comercial. Quando se trata de empreendedorismo coletivo, de inovações organizacionais que alteram a estrutura de determinados mercados – e, com isso, a fisionomia e as coalizões (para empregar a expressão de Kanter) predominantes em certos territórios – a contribuição da agricultura familiar brasileira, nos últimos anos, é especialmente significativa. Na região semi-árida do Estado da Bahia, por exemplo, a cultura do sisal que estava associada até poucos anos atrás ao trabalho infantil e à amputação dos que operavam suas máquinas desfibradoras, hoje dá lugar a uma fábrica de propriedade associativa e a um conjunto de cooperativas de crédito cuja influência regional é internacionalmente reconhecida (Nascimento, 2003; Magalhães e Abramovay, 2005). No Sul do Brasil, num domínio tão complicado como o das finanças, organizaram-se cooperativas de crédito num sistema que se massifica, atinge populações até então excluídas do acesso aos bancos e é economicamente sustentável. Nos últimos três anos, cooperativas de leite também desenharam uma espécie de quadratura do círculo ao se afirmarem pela coleta junto àqueles produtores considerados “inviáveis” pelas grandes indústrias. Em outras palavras, o empreendedorismo coletivo dá lugar a organizações sólidas e abre oportunidades de geração de renda que não existiriam na ausência destas organizações. Após a apresentação sumária de dois dos mais importantes casos brasileiros de empreendedorismo coletivo, o texto discute, no item 4.4. o delicado tema da relação entre estas iniciativas econômicas e a organização sindical. 4.2. Inovações organizacionais no cooperativismo de crédito Nenhum governo brasileiro levou tão longe a idéia de liberalização da economia como o de Fernando Collor, eleito em 1989 e deposto pelo Congresso Nacional em 1992. A interrupção de seu mandato encontrou o País não só com a inflação e as contas públicas em situação calamitosa, mas com a política agrícola inteiramente desmantelada. Durante o breve período Itamar Franco os movimentos sociais prepararam-se para levar adiante um conjunto de reivindicações que conduziram à criação do PRONAF. Mas em 1995, já estava claro para as organizações dos agricultores familiares que o acesso ao crédito bancário num ambiente de restrições macroeconômicas como o que se anunciava desde o início do Plano Real seria muito restrito. Ao mesmo tempo, as iniciativas apoiadas por organizações internacionais de desenvolvimento de “crédito rotativo” tinham poucas chances realmente de sair de um estágio puramente experimental. Foi neste momento – dez anos anos atrás – que um grupo de agricultores oriundos das lutas sociais pelo fortalecimento da agricultura familiar no Sudoeste do Paraná decide formar uma cooperativa de crédito. Contaram, para isso, com apoio de ONG’s brasileiras e internacionais e também com a participação ativa de sindicalistas. A iniciativa era extremamente ousada pois significava construir uma organização que se exporia ao controle do Banco Central e que não poderia manter-se com base em recursos oriundos da cooperação internacional. Era algo totalmente inédito para seus organizadores: o campo (no sentido bourdieusano) estava totalmente dominado por instituições bancárias convencionais e, antes de tudo, pelo Banco do Brasil. Não era possível que este minúsculo desafiante das organizações dominantes deste mercado (este challenger, diante dos incumbents, para usar a terminologia de Fligstein, 2001b) 15

Embora venham de universos teóricos diferentes (Kanter não cita, em seu trabalho Bourdieu ou Fligstein), esta abordagem é totalmente coerente com a noção de habilidade social exposta acima.


22 impusesse seus próprios padrões de funcionamento – vindos da solidariedade social, a marca das organizações de crédito rotativo até então organizadas e mantidas por grupos ligados às CEB’s – a um campo inteiramente dominado pelos princípios formais da racionalidade econômica. Mas é importante mencionar que o campo dos trabalhos sociais das organizações de que se originavam os atores que deram início ao Sistema CRESOL também estava dominado por uma completa aversão às necessidades da racionalidade econômica. Tanto é assim que as diversas iniciativas de crédito rotativo apoiado por ONG’s internacionais resultavam, sistematicamente em inadimplência generalizada e continham o risco de que seus empréstimos fossem atribuídos em função de proximidade política com as organizações que os concediam e não por critérios públicos e universais. A maior inovação das cooperativas consistiu justamente na unidade – sempre e necessariamente contraditória – entre estes dois mundos, o da solidariedade social e o da racionalidade econômica. Ao fazê-lo, o Sistema CRESOL introduz no campo das organizações populares concepções de controle sobre os recursos e visões sobre o próprio sentido estratégico das organizações que acabarão por alterar a correlação de forças entre elas, provocando conflitos de posições e de interesses como será visto um pouco mais abaixo no item 4.4. Foi penosa a construção das habilidades sociais necessárias a manter esta unidade contraditória. A vinda de especialistas em administração bancária para auxiliar na organização do sistema foi uma decepção completa que quase levou à falência as primeiras cooperativas. Os dirigentes logo se deram conta que precisariam recrutar gerentes e diretores entre agricultores e seus filhos e foram bem sucedidos nesta direção: para isso precisavam formá-los e introduzir, num ambiente até então crítico aos rígidos critérios que pautavam os empréstimos bancários, princípios de gestão que permitissem a sobrevivência e o desenvolvimento das cooperativas. Ao mesmo tempo, o sentido do seu trabalho não poderia estar na sua simples reprodução organizacional: o crédito deveria ser solidário, isto é, o sistema tinha por missão fundamental não apenas oferecer acesso a serviços financeiros aos que não conseguiam – por precariedade de sua situação patrimonial e incapacidade de oferecer contrapartidas – obtê-los por meio dos bancos. Mais que isso: criado por sindicalistas e militantes originários do trabalho das CEB’s, o Sistema CRESOL faz parte do conjunto do movimento social de fortalecimento da agricultura familiar e tem a intenção de favorecer práticas produtivas respeitosas do meio ambiente e que permitam reduzir a dependência dos agricultores com relação aos insumos de origem industrial que empregam. Mas é importante salientar que seu sucesso em atingir populações excluídas do sistema bancário foi muito maior que sua capacidade real de transformar as práticas produtivas dos agricultores em direção a uma agricultura sustentável. Hoje o Sistema CRESOL de crédito solidário está presente em mais de 200 municípios do Sul do Brasil e conta com mais de 40 mil associados, sendo uma referência nacional de construção sólida de cooperativa de crédito. Um dos princípios básicos do Sistema é a exploração da “economia da proximidade”: cada cooperativa não pode ultrapassar um certo número de associados para que se exerça o controle social sobre as suas atividades e, por aí, se reduza a inadimplência dos tomadores de empréstimo. É importante salientar que mais da metade dos participantes do sistema CRESOL estava totalmente fora do sistema bancário. Passam não só a tomar


23 financiamentos PRONAF, mas também a operar outros serviços financeiros, o que é uma das bases da sustentabilidade econômica das cooperativas. Os atributos que tornam inovadora a atuação do Cresol e que lhe conferem eficiência na coordenação de determinada transação (no caso específico, o acesso ao sistema financeiro e aos instrumentos de política pública) resultam da combinação entre os elementos da complexa trama social no espaço em que atua com uma gestão racional e responsável dos seus componentes financeiros. Os instrumentos de gestão e controle dos vínculos sociais construídos entre os agricultores nas comunidades em que vivem tornam-se fatores não-econômicos da sustentabilidade do Cresol: fortalecem os vínculos de confiança e permitem evitar a inadimplência. Tal procedimento se viabiliza por dentro da estrutura organizacional de relativa flexibilidade que regula a atuação das cooperativas do Sistema Cresol. A estrutura flexível permite às cooperativas, mesmo articuladas a uma cooperativa central, manter sua autonomia administrativa e financeira e se moldarem, mais facilmente e de forma horizontal, à realidade das comunidades rurais em que atuam, desde que mantidos os princípios do funcionamento do Cresol. É importante mencionar, nesta exposição sumária, três elementos centrais que dão permanência ao caráter inovador deste empreendedorismo coletivo. Em primeiro lugar o sistema submete-se a processos de avaliação que se originam dos dois componentes contraditórios em que se apóia. Por um lado, existe o controle cotidiano do Banco Central. E aqui é importante mencionar que o Sistema CRESOL conquistou uma respeitabilidade política que faz dele hoje um interlocutor de peso nas negociações em torno do conjunto da política governamental destinada ao fortalecimento da agricultura familiar. Como será visto adiante, é claro que esta conquista traz problemas importantes na relação com o movimento sindical. Além disso – segundo elementos – o sistema expõe-se à avaliação não só de suas bases, mas dos próprios movimentos sociais em que se insere. Faz parte deste processo, por exemplo, a decisão de criar, no interior dos municípios em que atua, a figura do agente comunitário, responsável não só pela tramitação de operações financeiras – reduzindo então seu custo de transação – mas também por atividades políticas das cooperativas. Mas o sistema CRESOL se faz presente também nas reuniões sindicais no plano local, nos Estados e no plano nacional. O terceiro elemento central é que, por suas características empresariais, o Sistema CRESOL coloca seus dirigentes e seus principais quadros em permanente situação de aprendizagem e num contato com atores sociais variados, condição para que possam oferecer novos produtos financeiros a seus associados e, por aí, manter sua própria viabilidade econômica. Nem de longe o sistema conformou-se em ser apenas um elo de repasse de créditos governamentais. Ao contrário, há um esforço permanente para oferecer novos produtos e conquistar novos públicos. Exemplo disso foi a participação vitoriosa num processo concorrencial – contra a Caixa Econômica Federal – para uso de recursos governamentais na construção de residências destinadas a populações vivendo abaixo da linha da pobreza. O Sistema CRESOL ganhou a licitação – pois seus custos para chegar a estas populações eram mais baixos que os das grandes instituições estatais formais – e fez desta intermediação financeira a base para um trabalho de desenvolvimento junto a um público bem mais pobre do que aquele com que trabalha e que, como vimos, estava excluído do sistema bancário (16). 16

Ver mais informações no site do sistema CRESOl, http://www.cresol.com.br/site/.


24 4.3. Inovações organizacionais no mercado de leite A região formada pelo Sudoeste do Paraná, Oeste de Santa Catarina e Alto Uruguai no Rio Grande do Sul é a segunda maior produtora de leite do País, sendo um produto especialmente importante na reprodução da agricultura familiar, presente na quase totalidade dos estabelecimentos agrícolas. Três sistemas de cooperativas da agricultura familiar têm participação expressiva no mercado da região, com uma produção que corresponde, aproximadamente, a 11% do volume total. São as habilidades sociais (Fligstein, 2001 b) das cooperativas que têm conseguido suplantar os fatores exógenos provocados pelo processo de internacionalização do mercado de leite. Mesmo sob as pressões da abertura comercial, dos novos padrões tecnológicos, das agressivas estratégias empresariais de fusão e aquisição e da nova regulamentação de qualidade, as cooperativas de leite, formadas com o apoio de sindicatos e outras organizações de agricultores familiares, reverteram uma espécie de profecia sempre anunciada de que os pequenos estabelecimentos eram economicamente inviáveis e estavam fadados a desaparecer. O sistema Coorlac, criado em 1994, surgiu do processo de privatização da antiga Corlac (Companhia Riograndense de Laticínios e Correlatos), num processo de negociação conduzido pelos sindicatos de trabalhadores ligados hoje à FETRAF. A Corlac vinha há alguns anos em processo de crise e sucateamento, com grandes dívidas junto a produtores, funcionários e ao fisco. A saída encontrada pelo governo do Estado do Rio Grande do Sul era a privatização. Mas após uma longa negociação com produtores e sindicatos, definiu-se por um processo de cooperativização. Atualmente o Sistema é formado por uma central estadual, quatro centrais regionais e 22 cooperativas singulares. Em Santa Catarina, as cooperativas de leite da agricultura familiar começaram a ser formadas a partir de 2001 e hoje formam um sistema de 7 cooperativas que integram a Associação das Cooperativas Produtoras de Leite do Oeste Catarinense (Ascooper). As cooperativas e a associação regional têm o apoio de um conjunto de parceiros. A Apaco (Associação dos Pequenos Agricultores do Oeste Catarinense) faz assessoria na gestão da cooperativa e dos produtores de leite, os sindicatos da agricultura familiar integrantes da Fetraf auxiliam no trabalho de organização dos produtores e as cooperativas de crédito do Sistema Cresol oferecem serviços financeiros para os produtores e cooperativas. A organização das cooperativas permite uma relação de proximidade com os associados que se repercute na grande participação nas cooperativas, que atuam basicamente no processo de organização dos produtores. Seu papel é negociar o volume total de produção com as empresas que industrializam leite na região, uma vez que as indústrias não possuem uma organização de base local para garantir o abastecimento do produto. No Paraná, o Sistema de Cooperativas de Leite da Agricultura Familiar com Interação Solidária (Sisclaf) é composto por 16 cooperativas singulares, as CLAFs (Cooperativas de Leite da Agricultura Familiar) e por uma cooperativa central. Uma densa organização social, baseada em pequenos grupos comunitários dá suporte à gestão da produção e coleta de leite. A principal habilidade das cooperativas reside na sua capacidade de garantir a estabilidade da oferta de leite num ambiente altamente competitivo, mesmo dispondo de poucos recursos econômicos. As cooperativas de leite conseguiram desenvolver e mobilizar um eficiente capital tecnológico (Bourdieu, 1997/2005) originalmente desenvolvido pelas cooperativas de crédito da região, e caracterizado por uma série de


25 procedimentos e competências únicas, um conhecimento local (Geerz, 1983) construído numa longa história de relacionamento entre as organizações e os agricultores familiares. As cooperativas conseguem também transformar em capital econômico um grande capital simbólico baseado na forte identidade dos agricultores familiares que estimula a confiança, a credibilidade e o reconhecimento da organização junto aos agricultores familiares. É essa capacidade de mobilizar diferentes formas de capital, de combinar valores e interesses, como estratégia de alçar agricultores familiares pobres a posições de maior destaque no mercado de leite que caracteriza as habilidades sociais das cooperativas. Estas habilidades se expressam de duas formas: na construção de vínculos de proximidade com os produtores e, ao mesmo tempo, na capacidade de promover a cooperação com empresas de médio porte da região. As parcerias entre cooperativas e empresas complementam habilidades e capacidades, formam dois lados de uma moeda: por um lado, a Ascooper e a Sisclaf dependem das empresas para industrializar e vender o leite coletado: mas, por outro lado, as empresas dependem das cooperativas para eliminar os altos custos de transação na organização dos produtores, no transporte e no controle da qualidade. Um importante motivo que garante a fidelidade dos produtores às cooperativas é a oferta de financiamento, normalmente realizado em parceria com as cooperativas de crédito, a capacitação, a assistência técnica e o controle das comunidades sobre a coleta e o transporte de leite. Mesmo recebendo preços menores que aqueles pagos pelas grandes empresas, o acesso a esses serviços é determinante para a manutenção dos vínculos entre os produtores e as cooperativas. As cooperativas de produtores de leite têm uma forte relação com cooperativas de crédito. Assim como ressalta Granovetter (2000), as ligações estreitas entre agentes financeiros, produtores e comerciantes são determinantes nos processos de inovação. A parceria com as cooperativas de crédito do Sistema CRESOL foi fundamental para a formação das cooperativas de leite da agricultura familiar. A CRESOL oferece serviços financeiros para a produção de leite, especialmente o financiamento para a aquisição dos equipamentos e dos animais e o pagamento dos produtores pela produção de leite comprada pelas cooperativas. Por último, a existência de lideranças e de organizações comunitárias foram os fatores que possibilitaram a substituição dos tradicionais “freteiros” – agentes que fazem a coleta de leite nas comunidades através de vínculos de proximidade e confiança – significando uma mudança importante nos direitos de propriedade que caracteriza o mercado regional de leite como um todo. Esses serviços são em parte financiados por recursos públicos, frutos da negociação entre o Fórum Sul do Leite, o Sistema Cresol de cooperativas de crédito e instâncias federais do governo, especialmente o Ministério do Desenvolvimento Agrário, o Banco do Brasil e o BNDES. As negociações entre as cooperativas de leite e de crédito com o governo são articuladas de forma mais ou menos planejada com as lutas sindicais dirigidas pela FETRAF. A organização sindical exerce um papel político amplo e relativamente difuso de promover maior visibilidade da agricultura familiar na sociedade e exercer pressão política sobre o governo. Em suma, pode-se dizer que as cooperativas de leite da agricultura familiar são organizações setoriais que têm fortíssima repercussão sobre o território, já que elas se voltam a coordenar um conjunto de atividades em que se envolvem milhares de atores econômicos locais. Apesar do papel econômico muito bem determinado, as cooperativas exercem também importante influência sobre outros campos de relações sociais dos


26 territórios, mostrando que existe um forte entrelaçamento entre campos econômicos, políticos, sociais e culturais. 4.4. Um importante foco de tensão no interior dos movimentos sociais O caráter inovador das organizações econômicas da agricultura familiar nem de longe encontra eco na sua estrutura sindical. Num caso, formam-se organizações obrigadas, por força de sua própria natureza, a adotar estruturas de auto-avaliação permanente, com participação social efetiva, modelos gerenciais atualizados e, sobretudo, transparência tanto nas contas como no próprio planejamento. No outro, a estrutura sindical, tem caráter fundamentalmente reivindicativo e se concentra na obtenção de políticas públicas; ela pode sobreviver mesmo que não tenha participação viva de seus aderentes, ainda que suas formas de gestão sejam arcaicas e que a avaliação e o alcance de metas previamente estabelecidas não façam parte de suas pautas. Estas características que empurram a organização sindical para uma ação rotineira, burocrática são favorecidas pela existência de contribuições compulsórias, por parte dos sócios, e até – no caso dos aposentados – pelo acordo entre a CONTAG e Instituto Nacional de Seguridade Social, que permite descontar da folha de pagamento dos aposentados a contribuição sindical. A FETRAF-Brasil forma-se, em grande parte, para opor-se ao que enxerga como forma burocratizante de ação do movimento sindical. Esta oposição sempre fez parte da cultura das organizações católicas de esquerda que estiveram, desde o início dos anos 1970, na origem das oposições sindicais e da própria Central Única dos Trabalhadores. A denúncia dos vícios de uma organização sindical montada com base na Carta del Lavoro de Mussolini e a necessidade participação real das bases fazem parte de uma história de desconfiança, por parte dos que se formaram nas Comunidades Eclesiais de Base, das formalidades inerentes à atual estrutura sindical. Quando perguntados sobre as razões que conduziram a FETRAF a separar-se da CONTAG, os participantes do Congresso de novembro (tabela 7) dividem-se, majoritariamente entre dois tipos de resposta. Pouco mais de um terço deles realça o fato de a CONTAG não ser uma organização exclusiva de agricultores familiares, já que seus sindicatos reúnem também os assalariados. Mas quase metade das respostas (45,5) insistem nas diferenças políticas e ideológicas entre as duas organizações. Ora, ambas pertencem à CUT e ambas apoiaram Lula nas últimas eleições. Portanto, estas diferenças políticas e ideológicas refletem, muito provavelmente, esta ambição, por parte dos membros da FETRAF-Brasil, de uma atuação sindical inovadora, mais próxima às bases e mais ligadas à vida cotidiana dos agricultores.


27 TABELA 7

NÚMERO DE DELEGADOS DA REGIÃO SUL ENTREVISTADOS NO CONGRESSO DE FUNDAÇÃO DA FETRAF-BRASIL, SEGUNDO RESPOSTAS SOBRE A RAZÃO DA FETRAF SEPARAR-SE DA CONTAG – 2005

Razões da separação FETRAF e CONTAG A CONTAG é muito burocrática As reivindicações dos agricultores familiares são diferentes das dos outros trabalhadores rurais que estão na CONTAG Existem diferenças políticas e ideológicas essenciais entre a FETRAF e a CONTAG A FETRAF não deveria organizar-se separadamente da CONTAG A CONTAG não quis reconhecer as federações e sindicatos da agricultura familiar Não sei Total

N. entrevistados 6

(%) 3,6

60

35,9

76

45,5

3

1,8

7

4,2

15 167

9,0 100,0

Fonte: pesquisa de campo, nov. 2005.

Faz parte desta ambição evitar que os dirigentes se distanciem das bases, que se consolide no movimento aquilo que o célebre sociólogo norte-americano Robert Michels, analisando os partidos políticos, já em 1911, chamou “lei de ferro das oligarquias”, segundo a qual as organizações tendiam a distanciar-se de suas bases e funcionar segundo interesses próprios e autômos. É interessante observar, neste sentido, que a maior parte dos dirigentes (76% deles) concilia sua atividade sindical com a continuidade da vida na unidade produtiva, o que é indicado por morarem “no interior” e não na sede do município (tabela 8). TABELA 8

NÚMERO DE DELEGADOS DA REGIÃO SUL ENTREVISTADOS NO CONGRESSO DE FUNDAÇÃO DA FETRAF-BRASIL, SEGUNDO RESPOSTAS SOBRE O LOCAL DE MORADIA NO MUNICÍPIO – 2005

Local de moradia no município Na sede No interior Total

N. entrevistados 40 127 167

(%) 24,0 76,0 100,0

Fonte: pesquisa de campo, nov. 2005.

Ainda é cedo para saber se a recém criada FETRAF-Brasil conseguirá, de fato, modificar o estilo e o conteúdo da atuação sindical. Esta atuação - tão importante na conquista de políticas públicas que correspondem a uma virada na história da relação entre Estado e agricultores, no Brasil – hoje concentra-se fundamentalmente na organização da pressão necessária a que estas políticas sejam preservadas e ampliadas, o que passa pelo que já se tornou uma espécie de ritual das lutas sociais no campo, que é o Grito da Terra, organizado todo o mês de maio e que traz a pauta que os movimentos levam ao Governo. As organizações sindicais não se preparam para participar ativamente da formulação e execução de projetos de desenvolvimento. Elas são, antes de tudo, caixas de ressonância de uma negociação nacional entre o Governo e as direções sindicais e cujos resultados são, basicamente, a ampliação dos montantes de créditos subvencionados, dirigidos aos agricultores no âmbito do PRONAF. Que estas créditos tragam contribuições decisivas para os agricultores e que eles abram caminho inclusive para a atuação das organizações econômicas da agriculutura familiar, disso não há dúvida. Mas a atividade sindical corre fortemente o risco de coagular-se em modalidades consagradas de ação, convertendo-se numa espécie de correia de transmissão dos grandes – e certamente importantes – processos nacionais de negociação em torno dos recursos a serem dirigidos para a agricultura familiar.


28 A renovação sindical a que se propos a FETRAF-Brasil depende de sua capacidade de construir procedimentos que tornem sua existência significativa para a vida dos agricultores das localidades onde atua. Hoje a organização volta-se, antes de tudo, para a obtenção de políticas públicas capazes de fortalecer a agricultura familiar. Concentrarse exclusivamente nesta dimensão traz o forte risco de que se constitua uma organização de natureza corporatista e não uma estrutura voltada a melhorar as condições de vida ali onde estão os agricultores. O dilema da inovação envolve o conflito entre dois atores coletivos importantes: um movimento sindical que tende a reivindicar benefícios governamentais que permitam aos agricultores melhorar suas condições de vida a partir do que já fazem e um conjunto de organizações econômicas que, ao contrário, introduzem novas modalidades de ação, estimulam a formação de novos mercados e novas práticas produtivas. É bem verdade que há uma forte relação entre as cooperativas e os sindicatos da agricultura familiar. A maioria dos dirigentes das cooperativas passou pela direção dos sindicatos ou ainda exerce cargos nas duas organizações. Além disso (tabela 9) 86% dos entrevistados no Congresso dizem ter ajudado a construir uma cooperativa de crédito e 71% participaram da construção de uma cooperativa de leite. TABELA 9

NÚMERO DE DELEGADOS DA REGIÃO SUL ENTREVISTADOS NO CONGRESSO DE FUNDAÇÃO DA FETRAF-BRASIL, SEGUNDO RESPOSTAS SOBRE O APOIO DO SINDICATO PARA A CONSTITUIÇÃO DE UMA COOPERATIVA DE CRÉDITO NO MUNICÍPIO OU REGIÃO– 2005

Apoio do sindicato na constituição de uma cooperativa de crédito

Sim Não Total

N. entrevistados 143 24 167

(%) 85,6 14,4 100,0

Fonte: pesquisa de campo, nov. 2005. TABELA 10

NÚMERO DE DELEGADOS DA REGIÃO SUL ENTREVISTADOS NO CONGRESSO DE FUNDAÇÃO DA FETRAF-BRASIL, SEGUNDO RESPOSTAS SOBRE O APOIO DO SINDICATO PARA A CONSTITUIÇÃO DE UMA COOPERATIVA DE LEITE – 2005

Apoio do sindicato na constituição da cooperativa de leite Sim Não Não sei Total

N. entrevistados 118 48 1 167

(%) 70,7 28,7 0,6 100,0

Fonte: pesquisa de campo, nov. 2005.

Porém, há uma clara disputa de concepções de controle (Fligstein, 2001b) entre cooperativas e sindicatos da agricultura familiar (17). São três os pontos centrais de discordância entre sindicatos e cooperativas.

17

Embora aplicada especificamente ao estudo dos mercado esta noção pode ser usada em outros campos onde existem disputa pelo uso dos recursos socialmente disponíveis. “Uma concepção de controle é uma forma de ‘conhecimento local’”, diz Fligstein (2001a:35), fazendo alusão ao conhecido texto de Geerz, 1983). Ele prossegue: “Concepções de controle são produtos históricos e culturais. Eles são historicamente específicos a certos setores em uma sociedade. São culturais, no sentido de que formam um conjunto de compreensões e práticas sobre como as coisas funcionam numa determinada configuração de mercado”.


29 O primeiro se refere ao poder de decisão e autonomia das cooperativas. Em muitos municípios, as cooperativas têm grandes dificuldades de relação com os sindicatos. Segundo um dos dirigentes da FETRAF. "A cooperativa é um instrumento, o centro é o sindicato, quem representa as cooperativas nas negociações são os sindicatos e as cooperativas funcionam como um departamento dos sindicatos. No estatuto da cooperativa, os sócios têm que ser associados do sindicato". As cooperativas por outro lado, buscam construir sua autonomia e uma racionalidade baseada na viabilidade econômica e na relação com os mercados, enquanto que os sindicatos se orientam e tentam enquadrar as cooperativas segundo seus objetivos políticos. Reivindicam inclusive maior contribuição financeira das cooperativas para as lutas e mobilizações organizadas pelos sindicatos. As cooperativas não discordam da importância que as lutas sindicais têm para sua própria viabilidade econômica, mas defendem que a sua contribuição deve ser orientada por resultados concretos. Na Cooperal foi criado um fundo de lutas com sobras da cooperativa para apoiar os movimentos, principalmente a FETRAF. Para ter acesso ao fundo os sindicatos têm que apresentar projetos e prestar contas dos resultados. O segundo ponto se refere à visão sobre os mercados. Nesse caso, alguns sindicatos e algumas ONGs também ocupam importante lugar nos conflitos entre as organizações. Segundo um dos técnicos da Sisclaf, apesar da origem das cooperativas ter sido fruto do trabalho de organização promovido pelas ONGs, uma visão ideologicamente crítica sobre os mercados ainda prevalece. O terceiro ponto de discordância se refere à estratégia organizacional das cooperativas. Esta diferença de visão tem ficado evidente no processo de reestruturação da Coorlac que vem implementando um processo de centralização da comercialização, para aumentar a escala da indústria e do seu potencial de competitividade no mercado. Os sindicatos e ONGs defendem porém um modelo baseado em indústrias locais de pequeno porte. Os sindicatos de trabalhadores rurais e as ONGs são portadores de uma forte identidade da agricultura familiar, de uma cultura política crítica e combativa, com visões de mundo eminentemente críticas às regras dos mercados. Já as novas concepções de controle formadas pelas cooperativas de leite foram resultados de mudanças culturais, sobretudo de um processo de racionalização econômica que é constantemente questionado pelas organizações sindicais. A formação desse campo estruturado pelas organizações da agricultura familiar pode ser caracterizada assim por um sistema de oposições fundamentais: a combinação conflituosa de racionalidade econômica e cultura política. Processo semelhante descrito no trabalho sobre as cooperativas de crédito no sertão da Bahia, nas quais a adesão à racionalidade econômica não levou necessariamente ao abandono dos valores em torno dos quais a comunidade construiu historicamente a sua coesão (Magalhães, 2005:136). Pelo contrário, a eficiência econômica e o resultado social da ação de organizações econômicas e movimentos sociais se explicam, justamente, pela associação existente entre a racionalidade econômica e a cultura política dos movimentos.

5. O dilema da governança Os trabalhos recentes de Charles Sabel (18) mostram o esforço permanente das empresas contemporâneas para fazer de seu funcionamento em rede um elemento de aprendizagem. É neste sentido que – mais até do que aprender fazendo (o famoso 18

Sua home page é um exemplo prático do que ele preconiza para as empresas e as organizações associativas ou adminitrativas: toda sua produção recente está ali disponível: http://www2.law.columbia.edu/sabel/papers.htm Ver Sabel 2005.


30 learning by doing) –é fundamental hoje a aprendizagem por interação – “learning by interacting”. Boa parte da literatura sobre sistemas produtivos localizados ou clusters insiste nesta característica contemporânea das empresas que é o conhecimento tácito que emerge de sua interação localizada. A recuperação por autores italianos e franceses das noções a partir das quais Alfred Marshall estudou os distritos industriais e sobretudo o reconhecimento da existência de elementos subjetivos ligados a uma atmosfera de cooperação entre atores econômicos é uma das características mais importantes das análises atuais sobre os perfis que vêm adotando a localização das empresas (Pyke et al., 1990, Maillot, 1996). Sabel (1996) insiste, justamente, que esta não pode ser apenas uma característica das empresas privadas: as agências públicas – e o mesmo pode ser dito das organizações não-governamentais e dos movimentos sociais – não ficarão à parte deste movimento que altera de maneira tão expressiva o próprio perfil das principais organizações do mundo contemporâneo e que se apóia na aprendizagem pela interação. O item anterior mostrou que os movimentos sociais voltados ao fortalecimento da agricultura familiar construíram – e em escala que ultrapassa a dimensão piloto ou experimental – organizações econômicas que exprimem energia inovadora cuja repercussão sobre a vida dos territórios onde atuam é notável. Este empreendedorismo coletivo, - uma verdadeira “economia da aprendizagem” - apóia-se, sem dúvida, na ação dos sindicatos, que contribuem de maneira importante para a formação das cooperativas, como se observa nas tabelas 9 e 10, comentadas acima. Entretanto, as formas de organização sindical e os interesses que dela emergem não são estímulos nem à inovação, nem à ampliação do círculo de relações sociais de que depende a reproduão dos agricultores. Pode-se falar em dilema – e não num desenho já claramente constituído – exatamente pela multiplicidade de organizações e pelo esforço autoreflexivo que o próprio movimento sindical vem levando adiante recentemente ( 19). Neste sentido, adquire extrema importância o formato das políticas públicas voltadas a estimular os processos localizados de desenvolvimento. Estas políticas podem tanto fomentar a adoção de práticas criativas, inovadoras, conduzindo então ao enriquecimento das formas de aprendizagem características da interação social localizada, como, ao contrário, estimular um vínculo entre Estado e movimentos sociais de caráter corporatista voltado a reproduzir o poder e as bases políticas das agências estatais (20) bem como a força dos sindicatos por meio de sua capacidade de alcançar recursos públicos. 5.1. Representatividade e inovação A organização de conselhos locais encarregados de discutir aplicação de recursos públicos, de captar recursos privados e levar adiante projetos que configurem um plano de desenvolvimento de uma região apóia-se numa premissa fundamental: a organização dos atores sociais — e especialmente dos que vivem em situação de pobreza — é um dos meios decisivos para que adquiram o poder de intervenção necessário à mudança da qualidade de sua inserção social. Aí reside o desafio institucional mais importante de 19

Os autores deste texto têm tido o privilégio de participar deste esforço tanto junto à CONTAG como junto à FETRAF e não poderiam deixar de exprimir não apenas seu agradecimento a ambas as organizações, mas sua admiração pela abertura com que enfrentam as discussões dos temas difíceis que elas próprias vêm levantando. 20 Baccaro e Papadakis (2004) em seu interessantíssimo estudo sobre os conselhos na África do Sul encontraram clara evidência de captura não do espaço público por parte dos poderosos e bem dotados de recursos, mas, ao contrário, das organizações da sociedade civil pelo Estado.


31 qualquer política de desenvolvimento territorial e das formas de governança que a acompanham: ela supõe que a organização dos que se encontram em situação de pobreza ou — de maneira mais geral — dos que têm menores chances de aproveitar oportunidades econômicas é um caminho para que possam obter a cooperação (Fligstein, 2001a) necessária a que participem de processos sociais e econômicos de cujas oportunidades de aproveitamento encontravam-se até então excluídos. Daí a criação — ao que tudo indica no mundo todo — no âmbito das políticas de desenvolvimento rural, de estruturas locais organizadas sob a forma de conselhos, grupos ou outras modalidades de intervenção participativa em que justamente os segmentos menos favorecidos da população deveriam estar presentes. O objetivo fundamental destas estruturas é que permitam a expressão de energias produtivas e de projetos que não seriam elaborados e executados na ausência destas organizações. Aí reside então o sentido econômico maior das estruturas conciliares que, habitualmente, acompanham a abordagem territorial do desenvolvimento rural: são meios não tanto de fiscalizar ou reivindicar a ação do poder público, mas, fundamentalmente, de criar bases para a inovação que se encontra na raiz do próprio processo de desenvolvimento. Em regiões pobres, há um conflito, mais ou menos agudo, dependendo de situações locais, entre participação social e as inovações sócio-culturais, produtivas e políticas necessárias ao processo de desenvolvimento. É óbvio que sem participação social o processo de inovação tende a tomar um rumo altamente concentrador e predatório que o afasta da própria essência do desenvolvimento. Mas não há evidências de que a participação social tenha o condão, por si só, de estimular práticas inovadoras e que ampliem as oportunidades de geração de renda e melhorem a qualidade da inserção dos mais pobres. Ao contrário, é com imensa freqüência que os processos participativos acabam servindo a consolidar e legitimar não apenas poderes dominantes, mas, sobretudo, que inibem formas inovadoras de uso dos recursos. Vejamos a questão mais de perto. 5.2. Limites das políticas brasileiras de desenvolvimento territorial A criação, pelo Governo Lula, da Secretaria de Desenvolvimento Territorial no interior do Ministério do Desenvolvimento Agrário teve a ambição de superar um dos mais graves problemas das políticas de desenvolvimento rural, tal como foram concebidas e implantadas durante a segunda década dos anos 1990 no Brasil: o municipalismo e, em muitos casos, o “prefeituralismo” (Abramovay, 2003). Recursos passaram a ser transferidos a grupos de municípios caracterizados como territórios, o que, em princípio deve ter melhorado o alcance, os efeitos e o controle social das transferências, até então excessivamente pulverizadas pelo horizonte excessivamente estreito de sua atribuição. Porém, onde a organização social é frágil, o poder das prefeituras e as disputas entre municípios continuam intactos. A participação das organizações sociais nos conselhos não é suficiente para alterar a tradicional relação de forças entre a sociedade civil e o poder público local. Muitos sindicatos ou associações continuam dependendo dos prefeitos, seja para o transporte até as reuniões dos conselhos, seja para obter o aval das prefeituras aos projetos de financiamento. Não existe ainda uma avaliação dos resultados desta política, que, na verdade, se encontra em implantação. Mas apesar do avanço da passagem do município para o “território” pode-se questionar se seu formato organizacional é de natureza a estimular a


32 inovação necessária a qualquer processo de desenvolvimento. As proposições abaixo se apóiam em alguns elementos importantes da organização deste tipo de política nos EUA e na Europa. Não se expõem aqui detalhes sobre estas políticas, mas apenas alguns elementos básicos de seu formato organizacional. Três dimensões básicas das políticas de desenvolvimento territorial são aqui rapidamente discutidas. 5.2.1. A formação dos territórios Na experiência européia quem define os territórios do programa LEADER são os próprios grupos de ação local e não o governo (Sumpsi, 2005). Esta definição se apóia, na verdade, em uma rede política composta por diversas agências governamentais, pelo setor privado, por sindicatos, por ONG’s e forças sociais ligadas à arte, à cultura, além dos eleitos locais. Estes grupos de ação local exprimem, de certa maneira, a essência mesmo da noção de governança, formas não hierárquicas de governo, onde atores não estatais, privados e associativos participam da formulação das políticas públicas (Mainz, 2001). Na experiência norte-americana do Empowerment Communities/Empowerment Zones, embora haja parâmetros objetivos (basicamente pobreza) para estabelecer as áreas potencialmente beneficiárias e apesar da organização por condado (county), a escolha dos dirigentes locais é feita por sufrágio universal, com regras formais claramente estabelecidas (http://www.ezec.gov/). A ampla participação reflete, evidentemente, a própria organização da sociedade civil nestas regiões. O importante é que nos dois casos, a organização reflete a dinâmica social dos atores e não a escolha que o Governo faz de certos interlocutores locais a serem privilegiados por suas ações. A formação de territórios a partir de uma iniciativa centralizada, como é o caso no Brasil, envolve o risco de que os atores mais importantes de sua dinâmica econômica, social, política e cultural estejam ausentes de suas organizações animadoras. Este risco aumenta quando a política de desenvolvimento territorial vem de um ministério específico e não corresponde, de fato, a uma decisão incorporada por uma variedade de agências governamentais. A existência simultânea e em muitos casos bastante desarticulada de conselhos formados por diferentes ministérios é um exemplo da grande dispersão na gestão das políticas de desenvolvimento territorial. Pior: ao escolher certas organizações como parceiras privilegiadas de suas ações locais amplia-se o risco de uma ação clientelista e patrimonialista em que governo e organizações estão se fortalecendo mutuamente não a partir do que vão fazer no plano local e sim com base em compromissos políticos mais amplos. Neste caso, os Conselhos locais tenderão a ser muito mais forças de representação de natureza sindical – e em grande parte corporativa – do que elementos dinâmicos de elaboração de projetos inovadores. O desafio chave que se vai colocar aos Conselhos, o esforço em que seus membros vão dedicar suas melhores energias não estará na qualidade e na inovação dos projetos a serem elaborados, mas sim na própria obtenção dos recursos públicos a serem obtidos pelos Conselhos. Os elementos básicos da economia da aprendizagem por interação destacados nos importantes trabalhos de Charles Saibel encontram-se aí totalmente ausentes. 5.2.2. A composição social e política das organizações territoriais


33 As organizações locais formadas pela Secretaria de Desenvolvimento Territorial nos últimos dois anos não parecem ter uma composição social variada que estimule a vinculação de seus projetos com as dinâmicas mais promissoras das regiões em que atuam. A política está atravessada por uma espécie de contradição nos termos: embora seja nominalmente territorial, seu foco é inteiramente setorial. As regiões são escolhidas levando-se em conta o peso da agricultura familiar e dos assentamentos. Mais que isso: a política escolhe um “público prioritário” para sua atuação: agricultores familiares, assentados, populações ribeirinhas, extrativistas e indígenas. Este formato oferece dois riscos importantes. O primeiro é a transformação das estruturas conciliares em uma espécie de correia de transmissão em que os representantes locais se legitimam por sua capacidade de obter recursos e o Estado adquire uma base social de apoio para sua própria política. O segundo é que as forças sociais, econômicas, políticas e culturais mais importantes dos territórios não estejam presentes nestes conselhos. Este tipo de composição desestimula a presença nos conselhos daqueles que respondem pelos investimentos produtivos realizados na região. A ausência dos empresários dos conselhos afasta estas organizações de sua missão básica, reforça sua natureza reivindicativa e inibe sua capacidade de formulação de projetos inovadores. No caso norte-americano a capacidade de ampliar os recursos obtidos inicialmente do Estado é um dos parâmetros de julgamento para a continuidade dos projetos apresentados. Espera-se que as organizações locais obtenham de fundações e de empresas privadas o apoio necessário para multiplicar aquilo que teve início com recursos estatais. No caso europeu a presença do setor privado é igualmente importante. Na avaliação feita por José Maria Sumpsi (2005) da experiência do LEADER, fica claro que os resultados são muito menos interessantes ali onde os empresários locais não fizeram parte das iniciativas. É claro que se pode argumentar que nas regiões mais pobres os empresários locais estão comprometidos com as piores formas de exploração do trabalho e, portanto, não podem ser os protagonistas do processo de desenvolvimento. Mesmo que, com muita freqüência isto seja verdade, não é possível imaginar que a junção de organizações não governamentais, técnicos do governo, militantes políticos e sindicais seja suficiente para produzir, no plano local, uma dinâmica propícia à geração virtuosa de ocupação e renda. Além disso, não se pode ignorar a importância que vem assumindo no Brasil os temas ligados à responsabilidade social e ambiental das empresas e, portanto, o potencial que isso abre para a formulação de projetos voltados à geração de renda em regiões pobres. 5.2.3. Formulação e avaliação de projetos Tanto no programa LEADER como no Empowerment Communities/Empowerment Zones (EC/EZ) norte-americano, os projetos submetidos às agências públicas são aprovados de maneira competitiva e em função de sua qualidade. No caso do EC/EZ, voltados a áreas e populações muito pobres (inclusive indígenas) são atribuídos recursos a universidades locais que capacitam os atores na formulação de projetos. Cada projeto é submetido a um grupo interministerial de especialistas a partir de critérios que envolvem uma clara definição dos objetivos que deverão ser atingidos com os recursos transferidos ao Conselho. As atividades dos Conselhos estão sempre ligadas a ONG’s e fundações privadas. Os planos apresentados são de longo prazo e devem mostrar horizonte em que vão tornar-se auto-suficientes depois de certo período de atuação. Os projetos são publicados na internet, assim como seus resultados. Um dos


34 parâmetros fundamentais desta avaliação está na capacidade de obter recursos privados que vão complementar os fundos públicos transferidos às comunidades. Para que um projeto seja aprovado, é fundamental que o horizonte estratégico de aplicação dos recursos esteja claramente definido, o que envolve um plano voltado ao próprio fortalecimento do empreendedorismo. O mais importante é que estas regras estimulam a aprendizagem organizacional na animação do processo de desenvolvimento. O caráter competitivo da aprovação das propostas é um estímulo à qualidade que passa pela comparação entre os próprios atores dos territórios da qualidade do que puderam elaborar. Na base deste tipo de organização está a idéia de que a inovação depende do fortalecimento do empreendedorismo, isto é, da capacidade de formulação de novas idéias quanto ao uso dos recursos locais. E o empreendedorismo não se limita às atividades empresariais privadas. Ele envolve também atividades associativas e políticas. Os exemplos da produção de sisal em Valente, das cooperativas de leite pertencentes a organizações de agricultores familiares no Sul do Brasil e do cooperativismo de crédito solidário que se expande por todo o País, mostram que o empreendedorismo associativo pode ser uma força decisiva na mudança localizada da maneira como os que estavam em situação de pobreza redefinem sua inserção social e por aí, sua relação com os mercados. E no plano político, as inúmeras iniciativas de transparência nas contas públicas e de formas participativas de tomada de decisão também são fundamentais. Em suma, o dilema da governança envolve opções difíceis para as organizações sindicais e as agências públicas às quais vinculam parte importante de sua atuação. Parte significativa da atuação sindical volta-se à obtenção de recursos governamentais para seus associados – e também para a reprodução de suas próprias estruturas – o que se, por um lado, corresponde a uma das funções básicas de uma organização representativa, por outro, fortalece o risco de que seu prestígio político esteja muito mais na sua capacidade de negociação com o poder federal do que com os atores locais. Esta lógica impede que as organizações sindicais – que, no entanto, contribuem de maneira importante na construção das cooperativas de leite e crédito, como visto – dotem-se da habilidade social necessária a que tenham um papel importante na condução do processo de desenvolvimento territorial. Do lado do Governo, torna-se crucial responder às demandas de uma clientela específica, setorial e organizar um conjunto de estruturas locais que, na verdade, legitimam e reproduzem o próprio poder governamental. A capacidade crítica, de aprendizagem, a avaliação das políticas, a inovação, o empreendedorismo, a qualidade dos projetos e a ligação entre os atores cruciais do desenvolvimento rural ficarão comprometidos por uma estrutura de incentivos que valoriza o setor, muito mais que o território.

6. Conclusão Não existe qualquer fatalidade na maneira como serão resolvidos os três dilemas que têm pela frente os movimentos sociais voltados ao fortalecimento da agricultura familiar. CONTAG, MST e FETRAF são muito mais que forças setoriais. São elementos vivos em torno dos quais se decide um tema que vai muito além de seus protagonistas imediatos e que envolve uma decisão crucial de civilização: qual o futuro das regiões rurais no Brasil contemporâneo? Estas organizações repudiam a idéia de que o meio rural nada mais é que o espaço físico onde se desenrola a produção agropecuária e cujo tecido social se limita à necessidade


35 de mão-de-obra (cada vez menor) para esta atividade econômica. É neste sentido que a luta pelo fortalecimento da agricultura familiar tem, por si só, uma dimensão territorial extraordinária, pois pretende que o meio rural seja um conjunto do que Edgard Pisani (1994) chamou de “bacias de vida” (bassins de vie), espaço de convivência, de construção, recuperação da cultura e lugar em que oportunidades de geração de renda e de interação social inéditos se exprimem. Estas possibilidades serão tanto maiores, quanto mais diversificado o tecido social, econômico e cultural das regiões rurais: a maioria dos filhos dos agricultores dificilmente vai poder ou querer seguir a profissão dos pais (21). Isso não significa, porém, que devam, necessariamente, abandonar as regiões onde cresceram e criaram laços de proximidade tão importantes para a construção de sua vida adulta. Tudo vai depender justamente da diversidade de oportunidades das regiões rurais. E é aí, exatamente, que os movimento sociais voltados ao fortalecimento da agricultura familiar encontram sua maior fragilidade e seus maiores riscos. Se a agricultura familiar é um valor, a agricultura, por si só, nada mais é que um setor econômico. Por um lado, os movimentos sociais influem sobre o desenvolvimento territorial por sua própria existência: eles são forças que atuam no sentido da democratização das oportunidades de geração de renda e sua extraordinária capacidade de construir organizações econômicas mostra uma força coletiva empreendedora surpreendente, sobretudo quando se analisam os recursos materiais e culturais de que partiram as duas mais importantes iniciativas aqui rapidamente apresentadas, o CRESOL e as cooperativas de leite. Por outro lado, entretanto, seu comportamento estritamente setorial não permite que construam as habilidades sociais necessárias a que intervenham ativamente no planejamento, na execução e na própria distribuição de recursos do processo mais geral de diversificação que caracteriza a região. Pior: a atuação estritamente setorial inibe sua contribuição mais geral à democratização das oportunidades. Os movimentos não discutem, por exemplo, a educação nas regiões rurais e a formação de um ambiente que, nelas, permita a valorização do conhecimento e sim a educação específica para os agricultores. Da mesma forma, as organizações – sobretudo as sindicais – estão ausentes das instâncias colegiadas que procuram formular projetos estratégicos para o desenvolvimento da região. As políticas governamentais, por sua vez, acentuam características que empurram os movimentos sociais pelo fortalecimento da agricultura familiar em direção a comportamentos de natureza corporatista. Apresentam como territoriais articulações que são na verdade setoriais e sobre as quais pesa o risco de que sirvam como forma de reprodução do poder tanto das próprias agências públicas como das organizações representativas convocadas para participar de instâncias colegiadas de decisão. A retórica em torno de um “modelo alternativo de desenvolvimento rural” – comum às duas mais importantes organizações da luta pelo fortalecimento da agricultura familiar – não tem como contrapartida prática a construção real de novos modos de vida ou de produção nas áreas de atuação sindical. Serve como referencial ideológico cada vez mais distante de uma ação sindical cujos efeitos correm o risco de limitar-se à obtenção de recursos creditícios para os agricultores. A perda do monopólio da representação sindical e o provável fim das formas estatais de financiamento do movimento poderão ter duas conseqüências diametralmente opostas. Existem sinais de que a vida financeira 21

Em Santa Catarina, pesquisa de campo mostrou que 70% dos rapazes, mas apenas 40% dos filhos de agricultores que viviam na propriedade paterna diziam querer seguir esta profissão no futuro (Silvestro et al. 2001).


36 do movimento passa por formas de obtenção de recursos estatais, o que tende a reforçar as práticas em que o movimento existe para pressionar o Estado na obtenção de certas conquistas e as agências públicas ligadas ao tema se legitimam pela capacidade de cooptar parcelas do próprio movimento e satisfazer necessidades de suas bases em anúncios com grande impacto publicitário. O outro caminho é a construção de um sindicalismo que – além de lutar pelo desenvolvimento e melhoramento das grandes políticas públicas nacionais de fortalecimento da agricultura familiar – seja uma força significativa na construção das instituições locais do desenvolvimento, voltando-se para melhorar a educação, a saúde, para discutir as estratégicas locais e o uso dos recursos naturais da região como um todo. Tão importante quanto a coesão dos movimentos em torno de valores e utopias em torno do sentido da vida social, da produção material e da relação com a natureza são as modalidades práticas como se organizam e os incentivos a partir dos quais mobilizam os atores em que se apóiam. Movimentos sociais com ideário altamente transformador e formas de organização avessas a práticas auto-reflexivas características da aprendizagem por interação têm uma fantástica chance de enveredar por rumos corporatistas que a retórica revolucionária saberá mal disfarçar. Ao contrário, aqueles que puderem adotar formas de organização atualizadas, que estimulem o espírito crítico de avaliação das próprias políticas que beneficiam suas bases e, sobretudo, que souberem transformar as causas que defendem em um conjunto de serviços prestados a seus associados poderão contribuir de forma muito construtiva aos processos localizados de desenvolvimento. Existem fortes razões para que a tradição dos movimentos sociais ligados às lutas dos trabalhadores tenha um viés francamente anti-patronal e encare, portanto, com desconfiança a participação em instâncias colegiadas em que o conjunto das forças empresariais discute o destino dos recursos – inclusive ambientais – de que depende uma região. Mas imaginar que o processo de desenvolvimento poderá ser estimulado na ignorância do que fazem os empresários, por articulações exclusivas na economia solidária é exatamente entregar o campo econômico a interesses cuja dominação exclusiva pode ser contrabalançada pela formação de poderes que os enfrentam, como bem mostram as experiências do cooperativismo de crédito e de leite. A idéia de que estas intervenções são irrelevantes e que as energias sociais básicas devem concentrarse na construção de um “novo mundo” é derrotista e afasta os movimentos sociais de sua possibilidade real de ser um dos atores cruciais do processo territorial de desenvolvimento. Felizmente, existem experiências com consistência suficiente para mostrar que as finalidades do desenvolvimento – que só podem ser de natureza ética, como bem lembra Ignacy Sachs (2005) – têm nos movimentos sociais atores decisivos de sua construção. Referências bibliográficas ABRAMOVAY, Ricardo (1981) – Transformações na vida camponesa: O Sudoeste Paranaense – Dissertação de mestrado – Departamento de Política da FFLCH/USP – in http://www.econ.fea.usp.br/abramovay/outros_trabalhos/1981/Mestrado_Abramovay.do c ABRAMOVAY, Ricardo (2003) – “Conselhos além dos limites” in O Futuro das Regiões Rurais – Ed. UFRGS, Porto Alegre.


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