Bem vindo ao mundo da controvérsia

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Meio de campo

Bem vindo ao mundo da controvérsia Ricardo Abramovay

RESUMO A controvérsia desempenha um papel decisivo no funcionamento tanto da ciência como dos mercados. Não se trata apenas de constatar o fato óbvio de que a ciência se alimenta das críticas e que os mercados são, por excelência, o domínio do confronto de interesses opostos. O importante, no campo científico, é que as controvérsias não se limitam e não podem limitar-se aos especialistas, mas se desenvolvem com base numa vasta rede em que atores variados fazem parte daquilo que a ciência realmente é. Encarar a ciência como rede sócio-técnica é retirar-lhe o poder soberano de emitir juízos indiscutíveis em torno de grandes decisões sociais. É a razão pela qual não pode existir justificativa de natureza puramente científica para que se adotem ou não organismos geneticamente modificados. Mas as controvérsias fazem parte do funcionamento dos próprios mercados, enriquecem-nos, pois estimulam – por meio da rastreabilidade dos produtos e dos inúmeros certificados a respeito de seu conteúdo social ou ambiental – que as técnicas de fabricação, suas condições sociais e seus impactos façam parte das informações que regem as trocas e que o mecanismo dos preços não é capaz de contemplar ou de revelar. As sociedades contemporâneas enfrentam cada vez mais decisões que envolvem o conhecimento científico, mas que só podem ser tomadas a partir de instâncias em que a contribuição da ciência é importante, mas, nem de longe, definitiva ou única. Da mesma forma, nos mercados contemporâneos, elementos valorativos, que vão muito além dos que os preços são capazes de sinalizar, fazem parte da própria constituição dos mercados. É a razão pela qual, a controvérsia em torno do uso dos transgênicos se incorpora ao próprio funcionamento dos mercados.

1. Apresentação Decidir se os transgênicos são ou não uma boa escolha tecnológica envolve duas armadilhas, das quais parte expressiva das ciências sociais contemporâneas procura escapar. A primeira consiste em imaginar que o tema pode ser solucionado fundamentalmente por julgamento científico. A segunda é de natureza econômica e reside na idéia de que a discussão pública – mesmo que inevitável – traz ruído, incerteza, forma obstáculo ao funcionamento de mercados dinâmicos e que, portanto, a fluidez das operações comerciais exige que as polêmicas em torno das inovações técnicas sejam logo solucionadas, para o bom prosseguimento dos negócios.


A sociologia das ciências e das técnicas volta-se a desfazer os fundamentos da primeira armadilha, mostrando que a controvérsia é inerente ao próprio funcionamento da ciência. Assim, decisões quanto a investimentos para reduzir os impactos do aquecimento global, à pesquisa e ao uso de células-tronco ou aos transgênicos, não podem ser tomadas com base exclusivamente em supostas certezas científicas. A sociologia econômica contemporânea, por sua vez, volta-se à segunda armadilha, abordando os mercados não como sistemas de equilíbrio e sim a partir de uma ótica político-cultural (Fligstein, 2001). Por que razão nem os cientistas nem os próprios protagonistas envolvidos diretamente com o tema conseguem chegar a uma conclusão unificada em torno da conveniência ou não da pesquisa, da produção, do uso e do consumo humano e animal de organismos geneticamente modificados na agropecuária? A resposta não está na ignorância nem na má fé. Seria absurdo considerar que o ponto de vista favorável aos transgênicos é ilegítimo por coincidir com poderosos interesses privados. Mas seria igualmente absurdo descartar de antemão os riscos ambientais que a adoção dos transgênicos oferece para a diversidade biológica de que depende a própria atividade agropecuária. A impossibilidade de optar por um dos lados do debate público exclusivamente sobre a base de argumentos racionais não tem como resultado a paralisia diante da necessidade de ação pública. Ao contrário, recusar a existência de uma verdade estabelecida e unânime à qual se chegaria em algum momento traz conseqüências práticas quanto aos modos de funcionamento da decisão pública – por meio por exemplo, do princípio da precaução ou do apelo à assembléia de cidadãos leigos - e está na raiz de regras a partir das quais se organizam os mercados contemporâneos, como a rastreabilidade e as várias formas de certificado de origem e garantia quanto aos procedimentos produtivos. A idéia central deste artigo é que as diferenças de opinião em torno dos transgênicos na agricultura são elementos decisivos de construção tanto da ciência como dos mercados contemporâneos e não um limite, uma precariedade ou uma falha, de cuja correção a vida social poderia beneficiar-se. Em outras palavras, tanto a ciência como os mercados ficam melhores – e não piores – por sua imersão na vida social, por incorporarem a seus modos de funcionamento o debate social, os valores e a própria controvérsia.O que a sociologia da ciência procura permanentemente demonstrar é a falsidade da oposição entre situações de polêmica - que refletiriam imaturidade científica - e o estabelecimento de verdades consagradas de onde a ciência poderia transmitir


mensagens seguras para a vida social. As proposições científicas são objetos de permanente negociação que envolve diferentes segmentos sociais, dos financiadores públicos às associações civis, dos políticos ao setor privado. A ciência resulta da maneira como são construídos os laços a partir dos quais ela se desenvolve. Da mesma forma – e simetricamente – os mercados não são pontos de equilíbrio que funcionarão tanto melhor quanto menos os agentes procurarem intervir conscientemente em seu equilíbrio. O pensamento social clássico – particularmente Marx e Weber – sempre considerou os mercados como o domínio da intransparência, do anonimato e da impossibilidade de controle direto dos indivíduos sobre os resultados da ação humana. Ora, os mecanismos contemporâneos pelos quais os agentes econômicos procuram evitar os riscos inerentes a sua exposição ao funcionamento do sistema de preços são compostos por um conjunto de informações que envolvem, cada vez mais, as formas de fabricação dos produtos, suas conseqüências ambientais, sociais e os próprios valores a que se vinculam. Logo após esta apresentação, o texto (parte 2) procura expor a idéia central da teoria do ator-rede, presente no título de um dos livros de Bruno Latour (1999), “Fazer entrar as Ciências em Democraria”: a imersão da atividade científica em vários tipos de redes, e, em particular, a atividade de controvérsia, é essencial a sua constituição e a seu funcionamento. A ciência não é atividade autônoma que recebe influências variadas, mas uma das inúmeras formas de construir associações, cujo conteúdo e cujo resultado são sempre imprevisíveis. Isto quer dizer que os produtos do trabalho científico em torno dos organismos geneticamente modificados não dependem apenas do esforço dos pesquisadores – esforço que seria tanto melhor sucedido, quanto menos recebessem interferências de interesses sociais - mas da própria configuração das redes em que se inserem. Os movimentos sociais contra o uso destes produtos na agricultura, bem como a separação, no interior dos grandes laboratórios multinacionais, das dimensões farmacêuticas no uso dos transgênicos daquelas voltadas à alimentação são essenciais para se compreender não só os rumos do conhecimento científico, mas seu próprio conteúdo. Latour se opõe à idéia de uma ciência desprovida de finalidades e que se colocaria, olimpicamente, uma vez seus resultados alcançados, a serviço da sociedade. A parte três do texto volta-se ao papel cada vez mais importante que as controvérsias desempenham na construção dos mercados contemporâneos com base numa rápida


discussão tanto do “princípio da precaução”, como da “teoria dos mercados contestáveis”.

2. As ciências em democracia “Descrição das controvérsias” é o título de um dos cursos oferecidos por Bruno Latour ( 1 ), na célebre École des Mines de Paris. Trata-se de uma das mais importantes escolas européias de engenharia e que faz parte do sistema francês das “grandes écoles”, cujo sistema de seleção é extremamente exigente e de onde sai parte expressiva da elite técnica e intelectual do país. O que é descrever controvérsias? Trata-se da capacidade de acompanhar e expor "um debate que tem, ao menos em parte, por objeto conhecimentos científicos ou técnicos ainda não assegurados”. Como exemplo, Latour cita exatamente o caso dos organismos geneticamente modificados, sublinhando, porém, que há muitos outros. O que significam conhecimentos científicos ou técnicos ainda não assegurados? São aqueles em que “as incertezas usuais do social, da política, da moral complicam-se – e não se simplificam – com o aporte de conhecimentos científicos ou técnicos”. O interessante é que o curso tem uma justificação eminentemente prática: a pesquisa e seu uso social trazem, evidentemente, incertezas. Estas incertezas refletem a situação real em que os engenheiros vão trabalhar, onde prevalecem “o risco tecnológico, a incerteza científica, a multiplicidade dos cenários possíveis, os conflitos de valor moral, para os quais não há modelização garantida e onde, apesar disso, será preciso decidir no calor da hora”. Mas por que descrever uma controvérsia, em vez de decidir por um de seus lados? Não se trata da atitude “pós-moderna” que se compraz em constatar a igualdade heurística dos argumentos e que, portanto, torna frivolamente equivalentes os termos do debate, interessando-se, por exemplo, simplesmente por sua retórica. A descrição das controvérsias é parte, aqui, da formação de engenheiros! Por que então insistir na controvérsia e não na capacidade de optar por um de seus lados? “Por que a aptidão fundamental que se exige dos engenheiros não é mais a de escolher a solução técnica 1

http://www.bruno-latour.fr/cours/index.html - Extraído da internet em 9/05/07.


que lhes parecerá ótima, mas de preparar seus empregadores para localizar o conjunto das soluções e, sobretudo, as reações sociais, morais, econômicas, organizacionais diferentes que estas soluções podem acarretar; para isso, pede-se, portanto, ao engenheiro, a capacidade de fazer a cartografia da gama de posições atualmente defendidas, por mais aberrantes que pareçam, sem tomar diretamente partido a seu respeito”. Os alunos não podem escolher qualquer tipo de controvérsia, mas somente aquelas que colocam em jogo competências técnicas e saberes especializados. Mas também, os estudantes não se limitam ao estudo do conteúdo das diferenças de opinião e devem seguir a controvérsia não apenas nas revistas científicas, mas também na imprensa leiga e nos boletins das associações de classe, das ONGs, em relatórios governamentais, no Parlamento, etc. As competências a partir das quais as controvérsias se formam e desenvolvem não estão enclausuradas nos laboratórios, mas passam por diferentes domínios da vida social. Convém mencionar três dimensões desta corrente do pensamento social contemporâneo – da qual Latour é expressão importante - que ajudam a explicar sua relevância e, ao mesmo tempo, podem oferecer ensinamentos práticos importantes sobre como encarar o debate a respeito da pesquisa e do uso de organismos geneticamente modificados na agricultura. a) Bruno Latour define-se explicitamente como um pensador relativista. Qual o contrário do relativismo, pergunta ele (Latour, 1989)? É o absolutismo, o etnocentrismo: “as ciências são relativistas do começo ao fim. Aprender a estabelecer relações, a construir equilalências, a passar por transformações de um ponto de vista a outro, eis em que consiste desde sempre relativismo que não poderia reduzir-se ao ridículo adágio de que todos os pontos de vista valem-se igualmente” (Latour, 1989:15-16). O trabalho de Latour tem um claro registro anti-mertoniano, pois ele não faz uma sociologia dos cientistas, das instituições científicas e da influência de outras organizações sociais em seu funcionamento (Merton, 1938). Tem igualmente um registro anti-khuniano, já que não se trata de julgar a maturidade das atividades científicas por sua capacidade em estabelecer convergências em torno de supostos paradigmas (Khun, 1987). O relativismo latouriano enfatiza o fato de que os resultados científicos não são


expressões objetivas que, por fim, a clarividência permitiu alcançar, não são soluções ótimas que já estavam inscritas, por assim dizer no mundo natural e que agora puderam enfim ser claramente lidas, mas ao contrário, devem ser explicadas como produtos legitimamente humanos, ao mesmo título que a produção literária ou artística (Latour, 1993). As ciências e as técnicas não são o mundo objetivo e real cuja existência peremptória já não depende de sociedade, traduções de leis naturais com as quais os homens já não precisam se imiscuir. É o que justifica uma antropologia das ciências – e não apenas dos cientistas – com a qual Bruno Latour inicia sua carreira e que acompanha toda sua obra. É por isso que, em seu último livro, Latour (2006) declara: “o relativismo é sinônimo de atitude científica em sociologia”. b) Esta postura tem uma conseqüência política decisiva que se traduz na consigna de “fazer entrar as ciências em democracia” (Latour, 1999). O mito da autonomia de uma ciência capaz – quando pronta – de decidir a respeito das verdades de que é feito o mundo é a base de uma ideologia, segundo a qual a sociedade produz ilusões que serão desmistificadas pela atividade científica. Nós vivemos, diz Latour (2001), até hoje, sob o platônico mito das cavernas, onde a sociedade só produz ilusões que serão desmistificadas pelos sábios filósofos, pelos cientistas. Uma visão realista da atividade científica mostra que não se podem separar seus resultados dos processos a partir dos quais são obtidos e que envolvem uma enorme variedade de atores, muito além dos próprios cientistas. Latour (1995 e 2001) usa diversos exemplos das ciências naturais para opor-se à cisão convencional entre o núcleo das conclusões da ciência de um suposto invólucro constituído por seu contexto social. Este modelo de um núcleo e seu contexto é substituído, por Latour por cinco anéis que se entrelaçam e formam a rede sócio-técnica. As atividades dos cientistas consistem basicamente em: i) mobilizar o mundo por meio de um conjunto de instrumentos materiais, sejam eles ratos de laboratório, reatores nucleares, bases de dados estatísticos, arquivos históricos, seqüências genômicas ou campos de experimentação agronômica; ii) construir a autonomia, ou seja, buscar um conjunto de colegas e de instituições que vão constituir a audiência especializada dos cientistas. Nós, cientistas, não temos clientes, só temos colegas, nossos caros colegas (Latour,


1995). A credibilidade de um resultado científico supõe colegas que possam julgá-lo: “Um especialista isolado é uma contradição nos termos” (Latour, 2001:106); iii) formar alianças e buscar aliados: industriais, políticos, membros da burocracia governamental, passam a tomar parte nas próprias polêmicas científicas a respeito não só dos OGMs, mas das células-tronco, da energia nuclear, das ondas eletromagnéticas emitidas pelos aparelhos celulares ou da contribuição dos biocombustíveis para a redução do aquecimento global; iv) responder por relações importantes com a opinião pública, com a representação social não formalizada e que se traduz pela imprensa, por associações de interesse tópico e localizado. Da mesma forma que as dimensões anteriormente citadas, esta exige dos cientistas um conjunto de competências específicas. Que 67% dos europeus e nada menos que 80% dos franceses julguem que os alimentos transgênicos ameaçam a ordem natural das coisas, que 83% dos europeus e 90% dos franceses considerem inaceitáveis seus riscos e que 87% dos europeus e 91% dos franceses acreditem que se trata de inovação ameaçadora para as gerações futuras (Bonny, 2003:65), não são opiniões exteriores ao âmago da atividade científica ( 2 ). Os cientistas sabem que sem a capacidade de negociar para que a legitimidade do que fazem seja aceita pela opinião pública, suas pesquisas estarão ameaçadas. A solução mertoniana que consiste em enfatizar instituições autônomas capazes de se opor ao esperado preconceito popular a respeito das conquistas científicas, simplesmente não é mais aceitável, nos dias de hoje; v) elaborar conceitos, categorias, teorias, hipóteses e métodos para demonstrar suas idéias, ou seja, aqui estão os laços e os nós que permitem a mobilização do mundo, a construção da audiência junto a colegas, as alianças para a obtenção dos mais variados tipos de apoio e a legitimidade da pesquisa frente à demanda da opinião pública. Colocar as ciências em democracia não é uma instrução normativa, mas o reflexo da maneira como a atividade científica, de fato, se organiza. O cientista é uma espécie de gestor de rede e se ele e sua equipe desprezarem qualquer das cinco dimensões acima, o resultado é que serão relegados à periferia da rede. O esforço do cientista é fazer com que os diversos anéis desta rede passem por ele, 2

É importante observar que esta oposição não se exprime da mesma maneira na utilização de medicamentos com base em produtos geneticamente modificados: em 1997 14% dos alemães declaravam-se hostis ao uso de remédios transgênicos, proporção que cai para 8% em 2000 (Hommel, 2004:271). Voltaremos a este ponto na parte três, logo abaixo.


o que exige uma atuação – científica – em cada um destes campos. O que significa então que a exposição ao debate público não é uma conseqüência, uma opção ou um acréscimo cívico às atividades do laboratório, mas é constitutiva daquilo que a ciência é. c) Colocar as ciências em democracia é recusar que elas tenham, por si só, o poder de decidir e legislar sobre como funciona e deve funcionar o mundo. E isso se aplica também, obviamente, às ciências sociais. Bruno Latour faz parte de uma ampla corrente do pensamento contemporâneo que se insurge contra a idéia de que se podem descrever estruturas pré-determinadas, oferecidas por teorias gerais e que poderão contribuir a, para utilizar a expressão de Émile Durkheim, “explicar o social pelo social”. Para Latour, o social não explica, mas tem que ser explicado, ele não é constituído por si próprio, mas resulta daquilo que fazem os atores. As posições a favor e contra os transgênicos não se explicam por situações sociais ou interesses já constituídos, mas pela maneira como as diferentes redes sociais se formam, se juntam. Não que estes atores sejam “estas pessoas sem qualidades que a economia chama de indivíduos e que servem de sustentação a conhecimentos e preferências” (Boltanski e Thévenot, 1991:11). O importante para Latour – assim como para a teoria da justificação (Boltanski e Thévenot, 1991, Thévenot, 2006), para Alain Touraine (2005) em seu “Novo Paradigma” e para Harrison White (2004) – é que as entidades coletivas que fazem parte do arsenal explicativo das ciências sociais devem ser construídas e reconstruídas a partir daquilo que as pessoas fazem e daquilo de que são capazes (Thévenot, 2006). Trata-se não tanto de estudar uma ordem estabelecida – que seria capaz, por exemplo, de explicar as atitudes contra e a favor dos transgênicos - e sim o processo de “ordenamento” (mise en ordre), segundo a expressão de Thévenot (2006:12). Este processo de ordenamento não decorre de qualquer essência que torne os fatos indiscutíveis – como, por exemplo, “os transgênicos exprimem interesses de grandes multinacionais” ou, ao contrário, “a oposição aos transgênicos exprime posturas conservadoras de forças avessas à inovação técnica” - e sim das controvérsias que os formam. O método a partir do qual são feitas as cartografias das controvérsias é totalmente diferente daquele pelo qual Lacey (2006) estuda o conteúdo da polaridade entre correntes favoráveis e contrárias à adoção de organismos geneticamente modificados, pois


não consiste em imprimir coerência, a partir da determinação de interesses econômicos, éticos, culturais e políticos a posições opostas. A principal conseqüência desta atitude metodológica e política é exposta por um dos maiores especialistas europeus em temas que se referem àquilo que os franceses chamam de “expertise scientifique”. Philippe Roqueplo (1997:67) mostra que os melhores procedimentos de “expertise”... “não se destinam a convergir em torno de um consenso, mas, ao contrário, a abrir, tanto quanto possível, o espaço da crítica científica relativa às opções que se podem encarar: é neste espaço que se encontra a “expertise” necessária à tomada de decisão”. É fundamental que a diversidade de pontos de vista científicos seja exposta claramente em revistas internacionais, para que se instaurem espaços públicos de debate em que os homens políticos e a opinião pública possam ter base sólida para suas tomadas de decisão. Há um espaço entre saber e decisão (título do livro de Roqueplo): a decisão não resulta da unidade do saber, mas, ao contrário, de sua diversidade, em outras palavras, da controvérsia. Ou como sublinha um importante relatório do Commissariat Général du Plan, elaborado a pedido do Primeiro Ministro da França (à época, Lionel Jospin): “não se trata, com efeito, de substituir a “expertise” científica pelo debate democrático, nem de colocar simplesmente em cena os diferentes ‘pontos de vista’, mas de permitir uma verdadeira maiêutica, fiadora de escolhas realmente apropriadas” (Chevassus-au-Louis, 2001:272). As “conferências de consenso”, neste sentido, são especialmente importantes. Trata-se de um procedimento criado nos Estados Unidos e que se generalizou na Europa a partir de meados dos anos 1980, voltado principalmente para preparar debates parlamentares em torno de escolhas tecnológicas. É um painel de cidadãos (em inglês, um lay panel) e um painel de especialistas que dialogam durante vários dias em torno de certo tema. Os cidadãos tiveram, antes disso, um preparo técnico de vários meses. Serão então capazes de estabelecer o diálogo com os especialistas. Da discussão emerge um relatório dos cidadãos que, antes de sua divulgação, é exposto aos especialistas. Um dos resultados destas conferências é que a comunidade científica, as organizações ligadas a movimentos sociais, as agências governamentais e, sobretudo, as próprias empresas, são expostas, em suas decisões estratégicas àquilo que Slovic (1987, apud Hommel, 2004:271) chama de “heurística qualitativa de avaliação, atribuída ao grande público”.


A idéia central que presidiu a fundação da sociologia da ciência por Robert Merton (1938) quase setenta anos atrás – o estudo da maneira como as sociedades contemporâneas produzem organizações para lutar contra “as fontes de hostilidade em relação à ciência”, que se exprimem não só nas sociedades totalitárias, mas também na democracia – foi virada do avesso: Borram-se as fronteiras entre ciência e opinião: não que a pesquisa científica produza resultados semelhantes àqueles que se obtêm fora dos laboratórios. São as próprias fronteiras do laboratório que se encontram misturadas, imersas em um conjunto de laços sem os quais elas não são compreensíveis. Os riscos coletivos que atingem as sociedades contemporâneas alteraram de maneia importante as relações entre saber e decisão, entre ciência e poder: “pensava-se que para tomar boas decisões bastava apoiar-se em conhecimentos indiscutíveis e eis que é necessário tomar decisões - e disso, ninguém pode escapar - no momento em que se está mergulhado nas incertezas mais profundas” (Callon et al., 2001: 11-12). Da mesma forma que contribuem para lançar a “ciência em democracia”, a incerteza e as controvérsias entre os especialistas obrigam que “o mercado não seja mais esta força obscura, ou melhor, que foi considerada deliberadamente obscura, que dispensa toda deliberação política...” (Callon et al, 2001:23). Não é só a ciência que funciona sob a forma de uma rede em que poderes inéditos e surpreendentes se exprimem. É também esta outra esfera da vida social reputada por garantir sua eficiência com base na sua autonomia – o mercado – que se politiza e se organiza, cada vez mais, com base na tentativa de enfrentar as controvérsias pelas quais passa sua própria existência. É o que será visto a seguir.

3. Politizando os mercados O que mais chama a atenção, sob o ângulo econômico, no debate contemporâneo a respeito da pesquisa e do uso de organismos geneticamente modificados na agropecuária é a capacidade de os movimentos sociais lançarem um conjunto de dúvidas a respeito do produto, que exigiu profunda reformulação em sua organização empresarial. Wilkinson (2006:12) chama a atenção para o “…inesperado escopo e a persistência do movimento anti-transgênico que forçou uma redefinição das políticas nacionais e regionais e empurrou para fora dos trilhos as estratégias transnacionais”. Da mesma maneira, Schurman (2004:243) assinala o fato surpreendente que, desde 1998,


uma indústria que parecia ter diante de si futuro tão promissor passa por um conjunto de transformações determinadas pelos ataques que sofre. Em novembro de 1999 sete das maiores firmas da área de ciências da vida formam uma nova aliança industrial – o Council for Biotechnology Information – para melhorar a imagem pública do setor. Mas em 2000, prossegue Schurman, os investimentos começam a declinar e muitas empresas européias tomam a decisão de adiar seus planos de expansão na área, chegando a vender suas divisões agrícolas e concentrando-se na área farmacêutica. Em 1999, o Deutsch Bank, na época o maior banco do mundo, recomenda que não sejam feitos investimentos em empresas envolvidas na produção de transgênicos e declara que os “organismos geneticamente modificados para a agricultura morreram” (Harvey, 2000). O International Finance Corporation empresa ligada ao Banco Mundial e voltada às relações com o setor privado, não financia, já há alguns anos, iniciativas empresariais cuja base esteja em organismos geneticamente modificados para a agricultura. Sem que tenha havido sequer um episódio espetacular e catastrófico capaz de justificar o temor público diante de sua difusão, os transgênicos transformaram-se em inovação tecnológica suspeita e parte significativa dos investimentos em seu desenvolvimento não foi levada adiante. Este é um caso emblemático de uma situação cada vez mais freqüente no mundo contemporâneo. O que está em jogo não é tanto o conhecido poder das chamadas “relações de mercado” na vida social – por meio das quais o pensamento sociológico clássico caracteriza a própria idade moderna – mas, ao contrário, é a presença cada vez maior de determinações em princípio estranhas às relações de mercado no seu próprio funcionamento. Este não é um fenômeno particular aos transgênicos e a sua regulamentação, mas um traço decisivo que a nova sociologia econômica localiza na constituição mesma dos mercados como formas de interação humana. Por um lado, a sociologia econômica rejeita a autonomia do mercado – tanto quanto a teoria do atorrede rejeita a autonomia da ciência - e faz a opção metodológica de estudá-lo enquanto resultado da maneira como se constroem laços sociais, ou para usar a expressão de Latour (2006), como se juntam, como se reúnem as condições necessárias a seu funcionamento. Não se trata então de encará-los como mecanismos de equilíbrio, à semelhança dos que regulam as relações entre corpos físicos. A natureza da junção social nos mercados exige um trabalho – conflituoso, claro – de estabelecimento e aceitação de regras quanto ao que é legítimo nos procedimentos adotados, no conteúdo


dos produtos, em suas modalidades de comercialização e até nos ganhos dos atores. As próprias características dos produtos não derivam de atributos objetivos, mas “são relacionais, provêm de um trabalho de qualificação/requalificação permanente, que envolve...humanos e não-humanos, na rede construída pelo produto, em seu caminho do design até o consumo” (Fonte, 2006:204). Os transgênicos colocam uma questão central para a formação de novos laços sociais de organização dos mercados e que só aparece a partir do avanço das biotecnologias (Chevassus-au-Louis, 2002): a quem pertence a matéria viva (o que os franceses chamam de “le vivant”) e particularmente os recursos genéticos: são um patrimônio da humanidade? Pode-se deixar que indivíduos reivindiquem a propriedade de uma parte deste patrimônio? Nos últimos cincoenta anos, a matéria viva deixa de ser “objeto natural” e transforma-se em invenção, passível – a partir de decisão de 1980 da Corte Suprema norte-americana – de patenteamento. Até onde pode ir a modificação de seres vivos? Quais os limites que estas modificações devem sofrer? Em entrevista a Mission Agrobioscience ( 3 ) Michel Griffon assinala que um dos focos centrais do debate é que está se produzindo “uma ruptura na propriedade do conteúdo genético das sementes”, o que envolve uma “questão ética de caráter geral sobre o direito que teríamos de modificar a ordem genética do mundo vivo”. É claro que se podem considerar como “externalidades” os efeitos ambientais eventualmente negativos associados ao uso dos transgênicos. Sob este ângulo a questão acima, levantada por Bernard Chevassus-au-Louis - quanto à propriedade da matéria viva e a seus limites de transformação – seria exterior ao mercado. Mas da mesma forma que a sociologia da ciência recusa a delimitação entre o núcleo (científico) e o contexto (não científico), a sociologia econômica contemporânea também se insurge contra a rígida delimitação do que é próprio da ordem mercantil e do que pertence a outras esferas da vida social. Michel Callon (2002:286), em entrevista publicada por destacada revista científica, logo após o lançamento de sua importante coletânea (Callon, 2001), explica: “o que é criado fora do mercado, não é algo que se possa reduzir ao cálculo econômico porque os mercados criam novas identidades coletivas que não são muito bem definidas. É impossível levá-las em conta sem criar um espaço que é político, em que estas identidades são discutidas e confrontadas umas com as outras”. Callon fala de uma “estranha combinação de tecnociências e mercados 3

Trata-se de um centro de debate público: “Mission d’Animation des Agrobiosciences” financiado pelo Conselho da Região Midi-Pyrénées e pelo Ministério da Agricultura. Griffon (s/d).


econômicos que produz a proliferação de novas identidades e cria novas incertezas sobre a constituição do coletivo” (Callon, 2002:287). Há uma dupla transformação associada aos universos controvertidos de que se compõe parte significativa das mudanças técnicas e dos mercados contemporâneos. A primeira é o reconhecimento de que envolvem não apenas um conjunto de riscos - cujo cálculo atuarial permitiria estimar sua distribuição entre os atores – mas lidam com a incerteza. Daí a importância do princípio de precaução, que tem como ponto de partida exatamente o reconhecimento da incapacidade de o tribunal da ciência emitir de maneira peremptória o julgamento capaz de orientar as condutas em situações controversas. A segunda transformação refere-se às externalidades, que deixam de ser consideradas temas que, por definição, são “externos” às empresas e incorporam-se à formulação de suas estratégias. O trabalho de Schurman (2004) mostra como os movimentos sociais exigiram transformações na própria organização empresarial. Ou, nas palavras de Michel Callon (2002:290): “a noção de mercado é ampla, ambígua, polivalente e que é possível moldar o mercado, mudar suas raízes e suas instituições”. É neste sentido que os próprios mercados passam por crescente politização, no sentido, de que, cada vez menos, podem limitar-se a considerações que façam abstração de suas finalidades. A mais interessante explicação teórica deste amplo movimento vem do grupo organizado na França em torno de Olivier Godard, da École Polytechnique: é a teoria dos mercados contestáveis, ou seja a constatação de que um número crescente de firmas antecipa-se à legislação ambiental. Vejamos esta dupla transformação nos mercados trazidas pelo princípio da precaução e pela contestabilidade.

3.1. Precaução não é paralisia: crítica à “heurística do medo” Incorporado, desde 2005, à Constituição Francesa por meio da Charte de l’Environnement, o princípio de precaução estipula que “quando a realização de um dano, ainda que incerta no estado atual dos conhecimentos científicos, pode afetar de forma grave e irreversível o meio ambiente, as autoridades públicas zelam, pela aplicação do princípio de precaução e em seus domínios de atribuição, à execução de procedimentos de avaliação dos riscos e à adoção de medidas provisórias e proporcionadas com o objetivo de evitar a realização do dano” (4 ). Seria impossível, nos 4

« Lorsque la réalisation d'un dommage, bien qu'incertaine en l'état des connaissances scientifiques, pourrait affecter de manière grave et irréversible l'environnement, les autorités publiques veillent, par


limites deste trabalho, uma análise circunstanciada deste princípio, que representa uma das mais importantes contribuições normativas ao enfrentamento democrático dos temas inéditos ligados à inovação técnica nas sociedades contemporâneas. O importante aqui é que o princípio de precaução – e, portanto, a atitude que consiste em rejeitar a adoção ou a aceitação dos transgênicos, por exemplo, com base em algo como um parecer científico independente – coloca a incerteza no centro dos processos decisórios, públicos e privados. Mais que isso, ele estimula uma atitude reflexiva com relação à própria ciência e fortalece o envolvimento entre opinião pública e comunidade científica. O princípio de precaução se dirige, antes de tudo, “a estes novos territórios sócio-técnicos, onde domina o sentido do irreparável e da singularidade das situações e dos embates” (Godard, 1997:40). O importante é que diante da possibilidade de um dano – ainda que não comprovada – algo deve ser feito, tanto mais, quanto maior a estimativa de que este dano pode ser irreparável e de conseqüências amplas. O princípio de precaução não é uma regra de abstenção diante da incerteza, nem tampouco se apóia na ilusão de que pode existir um “dano zero” nos processos de inovação (Godard, 1997:51). O trabalho de Chevassus-au-Louis (2001:222), com relação aos transgênicos na agricultura também repudia a idéia de “risco zero” e propõe, como forma de enfrentar a incerteza, pesquisas “a montante” e um acompanhamento rigoroso, tópico e localizado, quanto aos efeitos do eventual uso dos produtos. É claro que existem várias concepções a respeito do princípio de precaução. A mais importante e mais conhecida foi aquela em que, filosoficamente, a própria idéia adquiriu importância no debate contemporâneo. Publicado em 1979, na Alemanha, Das Prinzip Veranwortung, de Hans Jonas (2006) tornou-se rapidamente um clássico, por lançar o tema da responsabilidade como básico para o engajamento futuro, onde a própria sobrevivência da espécie estaria em questão. Nossas capacidades técnicas avançaram a tal ponto que sua reprodução tornou-se, de certa forma, automática e as sociedades contemporâneas perderam a capacidade de perguntar-se sobre as finalidades que presidem e devem presidir ao domínio técnico sobre o mundo. Esta autonomização da técnica nos dota de um poder perigoso não só para nós, mas, o que é mais importante, para o conjunto da vida, cuja existência mesma se encontra, por nós, ameaçada. Daí a importância do que Jonas chamou de “heurística do medo”, o reconhecimento deste application du principe de précaution et dans leurs domaines d'attributions, à la mise en oeuvre de procédures d'évaluation des risques et à l'adoption de mesures provisoires et proportionnées afin de parer à la réalisation du dommage »


poder destrutivo e, ao mesmo tempo, a consciência de que nosso conhecimento sobre os resultados futuros do avanço técnico é muito pequeno. É curioso que o pessimismo de Jonas acompanhava-se de uma conseqüência política autoritária: ele considerava que os países comunistas teriam melhores condições que as democracias ocidentais para gerir uma relação salutar entre sociedade e ambiente natural (Larrère e Larrère, 2001:238246). Não se trata aqui de expor a riqueza e a complexidade do pensamento de Hans Jonas, tão importante para a reflexão contemporânea sobre o domínio da técnica no mundo contemporâneo. Nas discussões para incorporar o princípio de precaução à Constituição francesa, inúmeras vozes opuseram-se à iniciativa, pela ameaça potencial ao progresso técnico e à inovação. O trabalho de Hans Jonas e, mais recentemente, de Jean-Pierre Dupuy (apud Godard, 2006), jogam água neste moinho, pois assimilam a precaução a uma atividade de “abstenção” e à expectativa totalmente irrealista de “dano zero”. Olivier Godard enfatiza que o princípio da precaução não está fora de um cálculo custobenefício do qual a idéia do dano zero se afasta de forma radical. É por isso que, na Charte de l’Environnement, as “circunstâncias” devem envolver danos graves e definitivos, que as autoridades zelam pela aplicação de certas normas, mas que estas normas vão envolver também as empresas e as coletividades territoriais e que, como bem assinala Godard (2006:1) o texto não fala em “impedir a todo preço” o dano, mas usa o verbo francês “parer”, que significa desviar-se de uma agressão e não interromper a todo custo. Godard (1997:57) mostra a irracionalidade da idéia de que determinada inovação só pode ser adotada se sua inocuidade for provada. Aqui se aplica exatamente o raciocínio em que Popper apoiou seu “falseacionismo”: ninguém pode dizer que todos os cisnes sejam brancos, pois a existência de um cisne negro não pode ser descartada por argumentos lógicos. Ninguém pode garantir que tenha localizado absolutamente todos os cisnes para daí tirar a “prova” de que são brancos. A inversão do ônus da prova – em que uma inovação só pode ser adotada se provar sua inocuidade - não faz parte, portanto, da essência do princípio da precaução. Inverter o ônus da prova – tal inovação só pode ser adotada depois que se provar inofensiva para o meio ambiente (Hermite e Noiville,1993) – é exatamente imaginar que se pode suprimir a incerteza ligada às inovações técnicas contemporâneas e que a autoridade científica teria aí o papel decisivo. O princípio da precaução, ao contrário, “tem por objetivo estruturar a ação em


situação de incerteza científica envolvendo riscos coletivos” (Godard, 2005). A inversão do ônus da prova tem por base a ilusão de que a incerteza pode ser superada pela autoridade do julgamento científico, que atestaria sua inocuidade. O princípio da precaução não é um recurso para congelar a inovação e o progresso tecnológico, mas, ao contrário, pretende sintetizar consignas para lidar com eles. O problema não está na assimetria de informações em que um dos lados – os inovadores, por exemplo – teriam mais informações sobre os riscos ligados a suas descobertas e as omitiriam da sociedade. Embora isso possa acontecer, é claro, não é aí que se encontram os problemas mais desafiadores e sim no fato de que, para usar a expressão de Godard (2005), há uma situação de “incerteza partilhada”, em que, na verdade, nenhum dos lados sabe melhor que o outro os impactos do que está sendo proposto. Como “tornar a ação possível, em detrimento da incerteza” (Godard, 2005)? Como evitar os riscos de uma determinada inovação, sem, no entanto, privar a sociedade de desfrutar de seus benefícios – e os agentes privados dos benefícios de sua exploração, é claro? A resposta a estas perguntas só podem ser tópicas, localizadas e caso a caso. Ela envolve a mobilização dos recursos expostos no item anterior a respeito da discussão pública, as competências científicas, a legislação e um permanente processo de aprendizagem em torno da avaliação dos resultados daquilo que é feito. Mas esta pergunta não é apenas colocada pelo setor público, pela sociedade civil organizada, pela opinião pública e pela imprensa. Cada vez mais, ela se encontra no âmago da própria organização empresarial. É o que será rapidamente visto a seguir.

3.2. Mercados contestáveis A posição de uma empresa num determinado mercado é ameaçada pela simples possibilidade de que algum concorrente seja capaz de oferecer os bens a que se dedica em melhores condições que ela mesma (Baumol et al., 1986:50-71). Na teoria moderna da concorrência os mercados são “contestáveis” porque mesmo na ausência de competição real, a simples possibilidade de ingresso de uma nova firma força os preços em direção ao que seriam em situação efetivamente concorrencial. Thierry Hommel e Olivier Godard inspiraram-se nesta idéia para estudar um importante paradoxo nos comportamentos de grandes firmas contemporâneas. Eles observaram a


freqüência cada vez maior com que as empresas adotam medidas de natureza ambiental que não correspondem a restrições impostas pelos Estados e tampouco à expectativa de futuras restrições legais. A tese de doutorado de Hommel (sob a orientação de Godard) estuda vários casos para os quais a maneira como a economia trata o tema das externalidades mostra-se inadequada. Com efeito, no pensamento econômico convencional, cabe ao poder público tomar as medidas necessárias – por meio de regulações, taxas, proibições – para que as empresas internalizem as externalidades. Na ausência de intervenção pública “nenhuma tomada em consideração dos riscos coletivos deveria ser observada, ainda mais se os conhecimentos científicos a respeito do tema em questão forem lacônicos, incertos, controvertidos e se as responsabilidades em questão forem mal definidas ou se mantiverem em suspenso” (Hommel e Godard, 2001:2). No entanto, é crescente o número de firmas que adotam políticas de gestão ambiental sem que sejam empurradas nesta direção por determinações legais, por imposições de Governo ou por cálculos referentes à evolução do sistema legislativo. Hommel e Godard (2001) – e sobretudo a tese de Hommel (2004) – mostram que as firmas estão expostas a novas modalidades de contestação: não apenas a que ameaça suas posições nos processos competitivos, mas a que se origina na adoção de parâmetros de comportamentos ambientais que passam a ser socialmente legitimados e cujo desrespeito pode colocar a perder anos de investimentos. A legitimidade das escolhas feitas pelos gestores empresariais não pertence a uma esfera reservada da firma, mas envolve – como bem o mostra Hommel (2004:63) - regimes de acordo, universos de justificação ou sistemas de legitimidade que vão sendo construídos e reconstruídos em suas relações recíprocas e que, em situações de incerteza tecnológica e de controvérsia com relação aos resultados do que fazem, exige convenções que estabilizem as condutas em torno de certas normas. A adesão das empresas a normas ambientais não se faz por razões altruístas ou por motivações que escapem a seu objetivo básico de lucro: o importante é a capacidade de as empresas se organizarem para o que Hommel chama de “gestão antecipada da constestabilidade”. Ali onde são feitos grandes investimentos e de longo prazo de maturação, aumentam os riscos ligados a esta contestabilidade e, portanto, amplia-se a necessidade de as empresas – num universo de incerteza, bem entendido – tomarem medidas preventivas com relação aos danos que possam provocar. Não é uma estratégia de marketing, onde se possam resolver os problemas por meio de publicidade. Os temas são incorporados de forma


orgânica à gestão empresarial, sob pena de a própria legitimidade – e, portanto os mercados – daquilo que faz a empresa ser colocada em questão. O principal resultado da pesquisa empírica de Hommel (2004) quanto às empresas produtoras de OGMs na agricultura é que elas fracassaram na gestão antecipativa da contestabilidade. As empresas não levaram em conta “...possíveis fenômenos de não aceitabilidade das inovações [elas tinham] uma visão falseada, supondo estabilizado o contexto institucional e social do engajamento na atividade”. Com isso as firmas demoraram a retrair-se deste mercado e a optar, por exemplo, pela oferta de produtos mais específicos, respondendo às apreensões da opinião pública e incorporando as críticas recebidas. “A derrota da gestão antecipativa da contestabilidade repousa, portanto, na escolha de mecanismos de cobertura elaborados sem que fossem levadas em conta as reivindicações de certos contestatários, que se pensava poder pacificar por meio de escolhas clássicas” (Hommel, 2004:270). A posição de Michel Griffon, na já citada entrevista, neste sentido oferece uma excelente ilustração da análise de Thierry Hommel. “Eu acho, diz Griffon, que seria preciso limitar a utilização dos transgênicos a situações críticas (situations de grands enjeux) para a sociedade e como último recurso, depois de ter tentado outras soluções e num contexto de precaução sistemática. Se um tal contexto tivesse prevalecido, eu não acho, por exemplo, que se teria chegado a utilizar a transgênese para produzir soja resistente ao glifosato. Mas se, por exemplo, não houver outro meio satisfatório além da transgênese para introduzir caracteres de resistência à seca em plantas de primeira importância alimentar em países que serão atingidos por mudanças climáticas, por que não faze-lo? Claro que com prudência” (Griffon, s/d). A observação de Griffon mostra que os mercados não podem ficar alheios às finalidades das inovações técnicas: os benefícios sociais da soja resistente ao glifosato não poderiam justificar aos olhos da opinião pública européia os riscos de expor os agricultores a perder o domínio sobre seus processos produtivos, de submeter a agricultura ao poder de um punhado de grupos econômicos e de ameaçar a própria biodiversidade. E a idéia de que os transgênicos elevariam a produtividade da agricultura e, portanto, ampliariam as condições para o combate à fome no mundo (insistentemente veiculadas pelas empresas) se chocava contra a evidência de que o problema alimentar mundial não está na oferta de alimentos. Já a capacidade tópica, específica e localizada de resolver problemas produtivos em regiões de pobreza,


contribuindo concretamente para aumentar as capacidades produtivas dos mais pobres, isso não fez parte das estratégias empresariais. Não basta conformar-se à legislação, sobretudo diante da percepção de que se trata de técnica revolucionária, que põe em pauta a questão a propriedade sobre a matéria viva e os limites de sua transformação, como bem mostra Chevassus-au-Louis. A demonstração da legitimidade das novas técnicas não é algo que possa ficar de fora das estratégias empresariais. É claro que o quadro foi seriamente agravado – para as empresas – com a introdução de tecnologias como a do Terminator, com a propaganda, na Europa, de processos nos EUA contra agricultores que reutilizavam sementes e com a imagem de que haveria poucas firmas capazes de dominar sozinhas um segmento econômico tão importante quanto a agricultura e retirar dos agricultores seu domínio histórico sobre o setor. O resultado foi o estigma da própria engenharia genética na opinião pública européia (Hommel, 2004:272), do qual as empresas ainda custam a se recuperar. Mas os transgênicos são apenas um caso especialmente ilustrativo – por envolver uma inovação tecnológica que atinge o manuseio da própria matéria viva – de uma tendência mais geral dos mercados contemporâneos. O conhecimento a respeito dos procedimentos produtivos, de seus impactos não só sobre a saúde humana, mas sobre o ambiente e as paisagens é uma exigência cada vez mais forte. Mesmo produtos considerados basicamente como “commodities” e que, portanto, seriam objeto de mercados indiferenciados devem legitimar sua presença por meio de atributos de qualidade em cujo julgamento a vasta rede que forma o mercado estará presente. As bioenergias, por exemplo, já são forte objeto de contestação por sua insustentabilidade energética e pela ameaça que representam às áreas florestais de países em desenvolvimento, sobretudo na Ásia (www.biofuelwatch.org.uk). O Bank Sarasin & Co, da Suíça patrocinou um estudo cujo resultado recomenda prudência aos investidores estrangeiros na área de etanol pela ausência de projetos capazes de comprovar eficiência sócio-econômica. A rastreabilidade da produção agropecuária tende a deixar os mercados especiais de produtos orgânicos ou solidários e converter-se num fator geral de relação entre as empresas e seu público.

4. Conclusões


A controvérsia não paralisa a decisão, mas a enriquece. A aceitação dos transgênicos com base na idéia de que, depois de tantos anos, não há qualquer dano significativo ligado a seu uso faz vista grossa ao traço mais importante das inovações técnicas contemporâneas, a incerteza. Mais que isso, ela se apóia numa cisão entre ciência e opinião pública, que a noção de rede sócio-técnica, da sociologia das ciências, procura combater. O princípio de precaução sugere que não se pode esperar um dano real para se evitar riscos coletivos de envergadura. A maneira como foi conduzida esta inovação subestimou, de maneira sistemática, a própria possibilidade que ameaçasse a saúde humana e o meio ambiente e, desta atitude prepotente, vieram perdas empresariais significativas. As perdas não foram determinadas por suposto sectarismo dos movimentos sociais ou por falta de compreensão e arcaísmo dos consumidores e sim pela incapacidade de as empresas levarem adiante a gestão antecipada da contestabilidade. A negação dos transgênicos com base na idéia de que não foi provada sua inocuidade é o simétrico oposto da aceitação, pois acaba por depositar na ciência a expectativa de que esta impossível prova - o risco zero - possa um dia ser levada adiante. Ausência de impactos ou risco zero são fatores de paralisia da pesquisa e afastam do horizonte um potencial que estas tecnologias certamente contêm para lidar com situações críticas de escassez de água ou de aportes vitamínicos em situações específicas. Uma análise realista da atividade científica permite superar este falso impasse e fazer com que a controvérsia alimente a decisão. Os processos democráticos pelos quais as escolhas tecnológicas, cada vez mais, são feitas pertencem ao interior mesmo da atividade científica. Da mesma forma, os mercados não podem ser vistos como entes autônomos cujo funcionamento será tanto melhor quanto menos sofrerem a intervenção voluntária e consciente de invidíduos, organizações, convenções, regras, acordos e tudo o que venha da maneira como se forma a própria cultura. Os mercados contemporâneos tendem a incorporar determinações que não derivam simplesmente dos mecanismos básicos de equilíbrio entre unidades autônomas, independentes, auto-determinadas e atuando na ignorância umas das outras. Quando se abre a caixa preta dos mercados, o que se encontra neles é a formação, a dissolução e a reconstrução incessante de laços humanos com base em fatores que questionam permanentemente a pertinência, a utilidade, em suma, a legitimidade do que se faz. A busca das empresas pela estabilização dos vínculos que permitem sua reprodução passa por capacidades de lidar


com situações de incerteza que se referem não apenas ao funcionamento do mecanismo de preços, mas, cada vez mais ao próprio rumo que toma a mudança técnica. A principal conseqüência desta perspectiva é que os mercados adquirem uma dimensão políticocultural decisiva e não podem ser encarados como o domínio da vida social ao qual as mais importantes aspirações humanas são necessariamente estranhas. A presença do mundo da controvérsia no interior da ciência e dos próprios mercados é um importante fator de mudança social no mundo contemporâneo.

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