A objetividade do conhecimento nas ciências sociais: o caso dos assentamentos

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A objetividade do conhecimento nas ciências sociais: o caso dos assentamentos * Reforma Agrária – Revista da Associação Brasileira de Reforma Agrária – nº 3, vol 24:36-53 – set-out - 1994 Ricardo Abramovay ** José Juliano de Carvalho Filho *** * Versão parcial e modificada de relatório de pesquisa apresentado para o Departamento de Macro Estratégias da Secretaria de Assuntos Estratégicos (DME/SAE) da Presidência da República e para o PNUD em fevereiro de 1993. ** Sociólogo, professor do Departamento de Economia da FEA/USP, pesquisador visitante no Centre d'Etudes des Relations Internationales da Fondationa Nationale des Sciences Politiques (Paris), autor de Paradigmas do Capitalismo Agrário em Questão - Hucitec/Edunicamp/Anpocs, 1992 *** Economista, professor do Departamento de Economia da FEA/USP e conselheiro da ABRA

1. Apresentação O contraste entre os resultados dos dois mais importantes e abrangentes estudos sobre o desempenho econômico dos assentamentos no Brasil - o do BNDES (Castro, 1992) e o da FAO (1992) - poderia ser usado em cursos de metodologia para ilustrar a célebre discussão sobre a "objetividade do conhecimento nas ciências sociais". Com efeito, Max Weber (1989:87) ensina que "não existe qualquer análise científica puramente `objetiva' da vida cultural, ou...dos `fenômenos sociais', que seja independente de determinadas perspectivas especiais e parciais, graças às quais estas manifestações possam ser, explícita ou implicitamente, consciente ou inconscientemente, selecionadas, analisadas e organizadas na exposição, enquanto objeto de pesquisa" De fato, ambas as pesquisas trabalham com informações quantitativas baseadas em entrevistas, ambas quantificam a renda dos agricultores, mas seus resultados não poderiam ser mais diferentes. O trabalho da FAO (1992), dirigido pelo economista Carlos Guanzirolli e referente a amostra de cerca de 10% dos projetos desenvolvidos durante a Nova República - 44 projetos visitados, num total de 828 famílias entrevistadas - apresenta dados animadores. No outro extremo encontra-se a pesquisa do economista Márcio Henrique de Castro (sintetizada em sua tese de doutoramento, Castro, 1992), resultado de um grande levantamento do BNDES realizado com 1.517 parceleiros contemplados com


terra antes de 1985 (1) e cujos resultados indicam que a reforma agrária não é um caminho adequado para o enfrentamento da pobreza rural. É bem verdade que o objeto empírico de cada uma não era o mesmo, já que o trabalho da FAO concentrou-se nos assentamentos criados pela Nova República, enquanto o do BNDES tomou por base aqueles que foram criados durante o regime militar. Mesmo assim, as diferenças de resultados entre elas parecem originar-se mais em razões teóricas e metodológicas que na base empírica em que cada uma se apóia. O objetivo deste trabalho é apontar as principais raízes teóricas e metodológicas destas posições polares e examinar as conclusões que daí podem ser extraídas no debate sobre a oportunidade e mesmo sobre a legitimidade da reforma agrária entre nós. Os trabalhos do BNDES e da FAO confirmam o que apontamos em trabalho anterior (Abramovay e Carvalho Filho, 1993): o que é central no debate da reforma agrária é o papel atribuído à agricultura familiar no desenvolvimento brasileiro. Do ponto de vista teórico, são as diversas visões do processo de diferenciação social dos produtores que determinam, em última análise, o julgamento que se faz da oportunidade de se massificar um programa de reforma agrária no Brasil (parte II, logo abaixo). Quais os fundamentos econômicos da reforma agrária ? A parte III do trabalho expõe aquelas que nos parecem as três principais concepções sobre o tema hoje. Primeiramente estão aqueles para os quais a reforma agrária se justifica e legitima socialmente pela própria luta dos trabalhadores rurais e não tanto pelos resultados econômicos dos assentamentos. Em segundo lugar estão os que só aceitariam uma reforma agrária caso os assentamentos tivessem rentabilidade econômica igual ou superior à das empresas já existentes. Enfim estão os que procuram fundamentar a noção de competitividade econômica dos assentamentos no custo de oportunidade do trabalho dos que aí vivem. Embora, é claro, estas três posições não esgotem o tema, elas representam, ainda assim importantes vertentes do debate atual. Na parte IV são expostas as principais conclusões do texto.

2. Viveiro de pobres ou esperança de emancipação ? 2.1. O estudo do BNDES A partir do estudo do BNDES, Castro (1992) sustenta que o assentado é uma figura efêmera, sem condições, na maior parte dos casos, de permanecer na terra por mais de dez anos (Castro 1992:3). Sua idéia básica é que o assentado não age verdadeiramente como produtor, mas tende a reproduzir a situação em que se encontrava quando não possuía terra, vendendo o bem que lhe foi atribuído 1.

Trata-se de uma verdadeira "PNAD dos assentamentos", no entender do prof. José Graziano da Silva (exposição na mesa-redonda sobre reforma agrária no XVI Encontro Nacional da APIPSA).


assim que isso lhe for possível. A "transformação do pobre rural em agricultor" (Abramovay e Carvalho Filho, 1993:42-43) nos assentamentos é, na opinião de Castro, extremamente seletiva e atinge uma camada minoritária entre os contemplados com terra. Assim, embora a renda monetária média encontrada por ele nos assentamentos seja de três salários mínimos, ela é muito concentrada. Somente 11,9% das famílias recebem rendas monetárias superiores a seis salários mínimos, enquanto 58% das famílias não ultrapassam dois salários mínimos de renda monetária mensal. Ao todo, 36% dos parceleiros não ultrapassam um salário mínimo de renda monetária por mês. Examinando cada um dos 26 projetos estudados pelo BNDES, Castro (1992:88) constata que os 50% mais pobres entre os agricultores recebem de 6% a no máximo 36% da renda total gerada no assentamento. A conclusão geral do trabalho é que apenas 20% dos assentados terão condições de se converter em agricultores profissionais. Portanto, é bastante duvidoso que a reforma agrária seja uma forma socialmente justificada de se procurar a distribuição de renda, já que ela é incapaz de alcançar seu objetivo fundamental (estabilizar uma nova camada de produtores rurais) e resulta em grande concentração da renda. Castro propõe que ao invés da atribuição de terras aos pobres rurais, o Estado concentre seus gastos em investimentos sociais e de infra-estrutura em pequenas e médias cidades, como forma de criar ocupação e renda no interior e evitar o agravamento do êxodo rural. Algumas informações sobre a pesquisa do BNDES são importantes para que se possa apreciar o valor das conclusões a que chega Castro em sua tese. a) a pesquisa não abrange os assentamentos realizados no quadro do Plano Nacional de Reforma Agrária da Nova República (PNRA), já que as informações foram coletadas entre novembro de 1986 e janeiro de 1987: todos os assentamentos examinados tiveram início entre 1981 e 1983. Se por um lado, estas experiências apresentam a vantagem do amadurecimento, por outro, elas sofrem o fato de terem sido implantadas no quadro do regime autoritário, quando as organizações de trabalhadores rurais que hoje têm um papel importante na gestão dos assentamentos não existiam e quando o INCRA adotava concepção centralizada e pouco eficiente da gestão dos projetos. b) não existe uma regionalização séria dos resultados do trabalho. Um dos dados mais relevantes da pesquisa da FAO que examinaremos a seguir (2.2., logo abaixo) é o contraste entre o desempenho dos assentamentos no Nordeste, relativamente ao que ocorre no Sul do País. Na medida em que não existe no país um processo de reforma agrária (box 1), mas assentamentos realizados "a conta-gotas", é de se esperar (como mostra o trabalho da FAO) que no Sul o desempenho dos assentamentos supere vários dos problemas encontrados no Nordeste. Castro não examina seriamente esta hipótese, embora perceba claramente a existência do problema (Castro 1992:178):


"Aqui devemos fazer uma pausa para esclarecer que quando tratamos de diferenças entre projetos, devemos necessariamente observar fatores externos ao projeto, dotações específicas de recursos naturais e ambiência cultural em um sentido amplo. Mas quando observamos cada projeto em si e suas diferenças internas, estes fatores cedem lugar para outros que se relacionam antes com os parceleiros investigados do que com a situação geográfica do projeto. No caso dos projetos das regiões sul e sudeste, se tomarmos a renda, a utilização de insumos, o volume de mão-de-obra temporária, podemos visualizar um grupo de projetos com uma grande homogeneidade interna, em que pese a diferença entre eles" (grifos nossos, J.J.C.F. e R.A.) A raiz do problema é de natureza metodológica: toda a ênfase do estudo de Castro está nos fatores internos aos assentamentos, o que o faz atribuir grande peso aos elementos "culturais" no julgamento de seu desempenho. Ora, as explicações das condutas individuais pelo ambiente social em que se inserem são mais plausíveis. (2): se o processo de diferenciação dentro dos assentamentos - e portanto a concentração de renda que os inviabiliza na opinião de Castro - no Sudeste e no Sul é menos acentuado (grande homogeneidade interna, segundo a expressão de Castro) é que provavelmente ali um grupo maior de pobres rurais encontrou o ambiente que lhes possibilitou transformarem-se em agricultores profissionais: ou seja, naquelas situações em que as condições de crédito, de mercado, de acesso a assistência técnica, a bens e serviços básicos é melhor, um número muito maior de agricultores consegue vencer o desafio que consiste em obter uma renda aceitável a partir de suas atividades agrícolas. E isso não pode ser explicado fundamentalmente por fatores ditos "culturais". Muito menos por aquilo que no raciocínio de Castro é, em última análise central: os dados que ele expõem com relação ao Sudeste e ao Sul do País mostram exatamente que um número muito significativo de produtores familiares conseguiu derrubar a fortaleza inexpugnável que, segundo ele, condenaria fatalmente os menores agricultores à eliminação social. Voltaremos a este tema abaixo.

2.

Este tema foi desenvolvido mais atenciosamente em Abramovay 1992, capítulo IV. Ver também Abramovay, 1994.


BOX 1- Existe reforma agrária no Brasil ? A questão pode parecer escolástica para quem está envolvido seja na luta pela terra seja no trabalho prático de viabilizar as experiências existentes e portanto na construção de um campo de forças definido pela perspectiva de reforma agrária. De qualquer maneira, é preciso reconhecer que uma das origens das dificuldades de muitos dos assentamentos é que eles foram implantados enquanto experiências importantes, mas relativamente isoladas e não foram capazes de transformar o ambiente sócio-econômico e institucional onde se inserem a ponto de gerar condições que possibilitem o desenvolvimento da renda dos produtores. Um processo de reforma agrária se caracteriza não só pelo acesso à terra a uma quantidade significativa de agricultores, mas sobreduto pela transformação da maneira como o agricultor relaciona-se com as instituições da sociedade em que vive. Jacques Chonchol (3) afirma que o principal produto da reforma agrária no Chile é que o camponês passou a entrar no banco com a cabeça erguida. Para isso, é claro que as experiências isoladas não são suficientes. Não é, aliás, por outra razão que naquelas regiões em que as possibilidades de inserção dos assentamentos em mercados dinâmicos eram grandes (fundamentalmente no Sul do País) os resultados foram muito melhores que ali onde os esquemas tradicionais de dominação clientelista e personalizada faziam dos mercados uma espécie de instituição privada do coronelismo local. Neste sentido, a massificação da reforma agrária é uma condição para que se rompa o círculo de ferro que limita o desenvolvimento de muitos assentamentos, sobretudo no Nordeste.

c) o estudo do BNDES não computa o auto-consumo como renda, mas apenas a renda monetária: "Como entendemos que o processo de desenvolvimento da pequena produção nos projetos de reforma agrária coincide com seu processo de integração na economia capitalista, ou seja, com o desenvolvimento de relações mercantis sólidas e interativas, a renda monetária deve ser escolhida como a variável-chave em nossa análise na medida em que sintetiza o desempenho do parceleiro e, por agregação, do projeto" (Castro, 1992:77) Como bem lembrou Afrânio Garcia Jr. (1994) a definição do que é renda neste caso tem uma história quase secular. De fato, a obra de Alexander Chayanov (1924/1986) dedica-se, em grande parte, a mostrar que os parâmetros pelos quais a renda é definida na sociedade capitalista são inadequados para o estudo do campesinato (4). De qualquer maneira, é importante ter em mente que além de sua renda monetária, as famílias estudadas por Castro estão se alimentando e 3. 4.

Exposição feita no Programa da Terra (PROTER) em 1986. Para um aprofundamento do tema, ver Abramovay, 1992, capítulo II.


desfrutando de alguns bens (extremamente precários, na maior parte dos casos), que não estão incluídos nos cálculos por ele oferecidos. Em suma, concentração de renda, precária capacidade de resolver os problemas dos mais pobres, falta de sustentabilidade econômica, tudo isso condena a reforma agrária a uma opção pouco racional de política social e distributiva, segundo a opinião de Márcio Henrique Castro. 2.2. O estudo da FAO Vejamos então os principais dados da pesquisa da FAO. A renda total do assentado, tal como a define o estudo da FAO, é a soma de cinco categorias: renda agrícola líquida, renda animal líquida (renda total destes produtos menos despesas, tudo indexado pelo IGP/FGV-DI), renda de consumo (avaliada aos preços de venda dos produtos auto-consumidos) renda de outros trabalhos e de outras receitas. Se por um lado, relativamente ao trabalho do BNDES, a renda aqui encontra-se "superestimada" pela inclusão do auto-consumo, por outro, a FAO computa a renda líquida da atividade (o que subestimaria o total), enquanto o BNDES calcula a sua renda bruta. A tabela I resume os resultados alcançados TABELA I

Renda familiar nos assentamentos em salários mínimos Norte: Nordeste Centro-Oeste Sudeste Sul Brasil

4,18 2,33 3,85 4,13 5,62 3,70

Fonte: FAO, 1992:25 Desde logo fica nítida uma contradição: justamente na região em que a reforma agrária é mais necessária, os assentamentos apresentam renda menor. O primeiro ponto que a FAO (1992:26) assinala é que a renda global obtida é "...bastante significativa, se comparada com a média salarial da população de baixa renda da cidade ou com a média de renda do setor rural". Esta é provavelmente a razão pela qual, nas entrevistas, 90% dos assentados dizem que sua situação melhorou com relação à que se encontrava antes de


receber a terra: o que, por si só, não significa muita coisa, com relação ao desempenho do assentamento, já que pode estar embutida aí (é com esta hipótese que trabalha Márcio Henrique Castro em sua tese) uma simples expectativa de realização patrimonial. Mais importante é considerar que a grande maioria dos assentamentos encontrase acima da linha de pobreza. Se é verdade que, no meio rural, esta linha situase em um quarto de salário mínimo per capita, estariam em situação de miséria absoluta aqueles assentados que não obtêm renda familiar superior a um e meio ou dois salários mínimos ao todo (considerando-se famílias de seis a oito pessoas). Dos 44 assentamentos estudados, oito têm renda inferior a dois salários mínimos. Ao todo, somente três assentamentos (os três no Nordeste) têm renda familiar média inferior a um salário mínimo e meio. Comparando-se a renda média por trabalhador assentado com a de outras atividades às quais poderiam ter acesso os que receberam terra, percebe-se que é superior à dos empregados mensalistas no campo, embora inferior à de tratoristas, administradores e capatazes. Esta informação é tanto mais importante que somente em 13,4% dos casos, os beneficiários eram proprietários ou posseiros antes de entrar no assentamento, vivendo, na sua maioria, em ocupações instáveis e sub-remuneradas. Em outras palavras, "...o custo de oportunidade gerado pelos assentamentos foi bastante alto..." (FAO, 1992:43) Dados não muito diferentes foram encontrados também por Almeida (1992:617) para assentamentos de colonização dirigida na Amazônia, com um consumo familiar mensal médio (monetário e não monetário) de 3,4 salários mínimos e um total de um salário mínimo por trabalhador. Em termos agregados, os dados obtidos pela FAO não diferem muitos daqueles a que chegou o BNDES, que encontrou a média de pouco mais de 3 salários mínimos de renda monetária mensal para a totalidade dos projetos (Castro, 1992:79). Só que os dados referentes à distribuição de renda são muito diferentes: em média, não chegam a 15% do total as famílias que recebem apenas um salário mínimo ou menos. Vimos acima que Castro (1992) estima este patamar em 36%, mais que o dobro do encontrado pela FAO. Entre um e três salários mínimos, a FAO localizou 40% dos assentados e 45% ela encontrou com mais de três salários mínimos de renda familiar. É interessante observar que o Nordeste apresenta a pior situação em termos de distribuição da renda: ali, 24% dos assentados não conseguem renda familiar superior a um salário mínimo, 50% estão entre um e três salários mínimos e somente 26% acima de três salários mínimos. Com base nesta constatação a FAO aponta um processo de diferenciação, mas num sentido bastante diferente do sugerido por Castro. Na opinião de Castro, os assentamentos não foram capazes de mudar fundamentalmente a matriz


distributiva em que se origina o processo de diferenciação social no capitalismo agrário brasileiro. Assim, os assentamentos nada mais fizeram que reproduzir o quadro pelo qual a minoria de cerca de 20% dos agricultores consegue se capitalizar e a imensa maioria condena-se ao imobilismo, à miséria e à perda da terra. "...as linhas de evolução da agricultura brasileira já estão traçadas..." (Castro, 1992:54) e o processo de modernização é extremamente seletivo, então "...a maioria daquelas pequenas unidades arcaicas são estéreis ao processo de modernização...[e]...uma tentativa de avançar a modernização sobre pequenos produtores arcaicos, tendo em vista as tendências gerais do sistema, deverá apresentar custos elevados e pequena eficácia no curto prazo. Não sendo, portanto, o caminho mais curto para a elevação do padrão de vida desta população" (Castro, 1992:55) O fundo da questão é que, na visão de Castro, a redistribuição patrimonial não é capaz de alterar a matriz de distribuição do processo de geração da renda porque, em última análise, o caminho que permitiria a entrada no mercado de unidades produtivas familiares está fechado em virtude do peso que os grandes empreendimentos agrícolas hoje possuem no País. Já a FAO sugere uma classificação dos assentados diferente e em três categorias a) os beneficiários da reforma agrária que não têm conseguido empreender uma atividade produtiva e que se mantêm abaixo da linha de pobreza - setor pobre ou marginalizado. Aqui situam-se os 15% onde estão aliás os que têm desistido dos projetos (22% do total dos assentados, FAO, 1992:96) b) um grupo, cujas rendas oscilam entre 1 e 3 sslários mínimos por mês, que pode ser catalogado como setor em vias de integração c) o grupo de rendas mais altas, maiores de 3 salários mínimos por mês que a FAO chama de "agricultores integrados ao mercado". Este setor consegue produzir regularmente quantidades razoáveis de produtores de origem agrícola ou animal. Em ambos os casos, é nítido o processo de diferenciação social. Só que para Castro ele impede que a imensa massa de agricultores se integre enquanto produtores à economia de mercado. Já para a FAO, o importante é a constatação de que praticamente a metade dos beneficiários já se encontram integrados e quarenta por cento deles têm chances de se integrar.


Outro dado sobre o qual convergem as informações e separam-se as interpretações é o referente à distribuição das atividades econômicas dos assentados. Nos dois relatórios são as atividades agropecuárias que concentram o essencial da renda gerada pelos assentados. No estudo de Castro a renda agrícola bruta total corresponde a 3/4 da renda obtida pelos assentamentos. Dois terços dos ganhos totais vêm da renda agrícola do lote (a diferença entre ambas renda agrícola que é de 75% do total e renda agrícola do lote que atinge 64% do total - vem de produções agropecuárias obtidas fora do lote). O extrativismo contribui com menos de 1% da renda total e a venda de força de trabalho, com menos de 15%, não chegando as outras rendas a 10%. Embora classificados de outra maneira, os dados da FAO vão exatamente no mesmo sentido. O trabalho assalariado contribui com apenas 11% da formação da renda e as "outras rendas" com menos de 15%. As rendas derivadas de atividades agropecuárias somam 74% da renda total (o mesmo que o BNDES obteve), só que divididas da seguinte forma: 22% da renda total corresponde à renda agrícola líquida; 15% à renda animal líquida e 37% ao auto-consumo. Mais que isso: dos 44 assentamentos visitados, nos dez de menores rendas, o trabalho assalariado correspondea 31,6% dos ganhos totais; já nos dez assentamentos de maiores rendas este percentual cai para apenas 8,4 (FAO, 1992:40). Destes dados, a FAO tira a conclusão de que, contrariamente ao que se diz com frequência, os assentamentos não podem ser considerados "reservatórios de mão-de-obra", mas sim unidades que respondem ao seu objetivo maior que é a geração de renda a partir do trabalho familiar na agropecuária. Já o BNDES vê neste fato a confirmação da assertiva de que os problemas econômicos dos assentamentos não derivam da incapacidade de os assentados dedicarem-se às atividades agropecuárias, mas resultam das próprias condições com que eles são capazes de enfrentar estas atividades. Derivam de sua falta de competitividade no mercado. É a este tema que dedicaremos o próximo item, logo após uma rápida síntese desta discussão. 2.3. Renda, diferenciação social, teoria e método Tudo indica que a principal diferença nos resultados quantitativos a que chegaram os dois trabalhos está na maneira como a renda é definida. A inspiração do trabalho da FAO, neste sentido, é nitidamente chayanovista. Já o BNDES aplica aos assentados categorias próprias à economia capitalista por ser este o ambiente em que os agricultores têm que se inserir. Esta separação metodológica entre ambos porém só se explica por uma questão teórica de fundo: a visão que se tem, em cada caso, do processo de diferenciação social na agricultura. Não se trata de um detalhe ou de um preciosismo teórico indiferente aos resultados práticos do que são os assentamentos. No trabalho do BNDES, o formato da diferenciação dos produtores no Brasil está mais que configurado e as chances de novas unidades produtivas resultantes de assentamentos são praticamente nulas. Por esta razão Castro enfatiza que


"...não existem diferenças significativas entre os pequenos produtores localizados no interior ou fora do projeto de reforma agrária" Mas a premissa teórica destes resultados é que "...o processo de destruição da pequena produção avança inexoravelmente movido pelo desenvolvimento do mercado de bens, de terras e pelo progresso técnico da agricultura" Subjacente ao trabalho da FAO encontramos a idéia de que novas unidades produtivas têm chances de se afirmar no mercado e que o processo que conduz à polarização social extrema na agricultura - e que fornece a base dos estudos dos clássicos marxistas da questão agrária (5) - não é uma fatalidade, mas um produto histórico, que, enquanto tal, pode ser alterado pelo intervenção política das forças sociais interessadas em sua transformação. São portanto de natureza teóricas as razões que nos fazem encontrar resultados tão díspares na avaliação da FAO na do BNDES sobre os assentamentos. Estas diferenças serão reencontradas no próximo item onde examinaremos a competitividade e a sustentabilidade econômica dos projetos.

3. Viabilidade econômica e legitimidade O debate atual sobre a viabilidade econômica dos assentamentos (6) apresenta três vertentes fundamentais. 3.1. Competitividade: uma falsa questão Por um lado, estão aqueles que consideram que esta questão não é relevante e que a competitividade não deveria ser um critério de desempenho. Falar em competitividade seria, por este raciocínio, submeter-se à lógica viciada do discurso econômico, incapaz de apreender a especificidade da dinâmica dos movimentos sociais que resultam em assentamentos. Comentando posição atribuída à CONTAG, pesquisadores do CEDEC (7) afirmam

5.

Ver neste sentido Abramovay, 1992, capítulo I. A classificação aqui proposta não é muito diferente da adotada por Sampaio (1992) que sintetiza o debate atual da reforma agrária como o existente entre a corrente camponesista, a das políticas sociais, a da ampliação da democracia e a da promoção do desenvolvimento articulado. É interessante também a visão que tem a professora Leda Castro (1992) deste debate. Para ela, contra a reforma agrária existem uma vertente liberal e uma marxista. A favor da reforma agrária, ela identifica três posições: concepções da reforma agrária como política social setorial, concepções da reforma agrária como política econômica e social setorial e concepções a favor da reforma agrária como movimento de transformação radical da sociedade. Este item foi parcialmente exposto em Abramovay, 1994. 7. "Alguém Viu a Reforma Agrária por aí" ? - Informações CEDEC, No. 3, fevereiro de 1990. Pesquisa coordenada pela professora Maria Conceição d'Incao. 6.


"Trata-se de um projeto que, no essencial, ainda se move no horizonte político e cultural de três décadas atrás e que, por isso, carrega uma forte marca economicista (grifos nossos, R.A., J.J.C.F.). A esquerda nacionalista levantou a bandeira da reforma agrária nos anos 50 como parte de um projeto econômico (e político) mais amplo, o desenvolvimentismo...Note-se que a mudança na estrutura agrária era justificada não da ótica dos trabalhadores rurais sem-terra e de suas lutas, e sim do ponto de vista dos supostos imperativos do desenvolvimento econômico. Os camponeses não eram vistos como sujeito dessa transformação (grifos nossos, R.A. e J.J.C.F.). É importante aqui assinalar a diferença entre a situação dos assentamentos com relação à das reservas indígenas ou extrativistas. Nestes casos, é óbvio que não é sob o critério de desempenho econômico que se organizam os índios ou os seringueiros. Do ponto de vista do restante da sociedade, a legitimidade do uso da terra feito por estes setores não está em sua capacidade de oferecer os produtos por eles cultivados a melhores preços (8). Sua função social é outra: são os elementos vivos sem os quais a biodiversidade de determinados sistemas florestais e a preservação de certos povos e culturas estarão comprometidas. Ao apoiar uma reserva extrativista a sociedade paga por esta preservação sem que o critério da manutenção dos seringueiros seja sua capacidade de competir com a borracha produzida em São Paulo ! Mas no caso dos assentamentos, é óbvio que algum tipo de critério de eficiência econômica tem que ser destacado, sem o que a reivindicação de acesso à terra aparecerá socialmente como expressão de puro corporativismo, como aspiração que não traz qualquer benefício - e que pode mesmo conduzir a prejuízo - ao resto da sociedade. É em grande parte por sua capacidade de responder a desafios econômicos que os assentamentos serão julgados pela sociedade. E este julgamento, em última análise, também é econômico e se traduz na capacidade de obter renda a partir de seu trabalho por parte dos assentados. 3.2. Eficiência pelo custo de oportunidade do capital Mas de que tipo de renda se trata ? Há aqui dois critérios possíveis de cálculo. Num deles, o desempenho do assentamento seria julgado pelo custo de oportunidade do capital aí aplicado. Sempre que os recursos colocados num determinado investimento social pudessem ter retornos mais elevados em outros setores econômicos e se optasse, ainda assim, por este investimento social, estaríamos diante da situação em que preocupações de natureza distributiva atrapalhariam a eficiência alocativa do sistema. Em última análise é a partir deste tipo de raciocínio que o pensamento liberal hoje recusa o estímulo ou a interferência estatal em atividades produtivas ou em aspectos sociais que 8.

Embora é claro que os seringueiros, muito mais que os índios, procurem desenvolver projetos economicamente viáveis. Mas o critério básico está na sustentabilidade e na preservação da biodiversidade florestal.


incidam diretamente nas atividades produtivas. Sob este ângulo, a política social pode até atuar no plano distributivo através da entrega gratuita ou subsidiada de alimentos, através das frentes de trabalho, enquanto o verdadeiro remédio para a pobreza (o crescimento) não consegue resolver todos os problemas. Mas ele recusa, por ineficiência, a tentativa de interferir na maneira como o próprio mercado aloca os fatores entre os agentes econômicos. Se os empresários já existentes são mais eficientes no uso dos fatores disponíveis, a riqueza social não vai aumentar (e muito menos sua distribuição melhorar) se estes recursos se espalharem entre as mãos de agentes cujo desempenho empresarial é sofrível. A tese de Márcio Henrique Castro é um exemplo desta posição e não é por outro motivo que ele insiste tanto na incapacidade quase atávica de os pobres rurais desempenharem um papel minimamente importante enquanto produtores. 3.3. Eficiência pelo custo de oportunidade do trabalho Uma das conclusões mais importantes do trabalho de Howe e Goodman (1992) contesta exatamente as premissas que acabam de ser expostas para o caso brasileiro: boa parte da eficiência de nosso setor empresarial apóia-se no fato de que o Estado, através de sua política concentrada de subsídios, distorceu a racionalidade da alocação dos fatores produtivos, tornando rentáveis atividades que não o seriam sem o apoio estatal: "The rapid expansion of large scale, capitalized agriculture is no longer quite as obviously the only path of agricultural development - now that producers may have to pay the real cost of capital" (Howe e Goodman, 1992:27) O País não dispõe mais dos capitais "baratos" (isto é, subsidiados) que estimularam a expansão agropecuária dos anos 1970. Portanto, dizem Howe e Goodman (1992:138) "production must be expanded on a substantially less capital-intensive footing", ao menos no que se refere ao setor alimentar. No fundo, Howe e Goodman propõem que o bimodalismo existente na agricultura brasileira seja convertido de handicap em vantagem, pelo estímulo que os produtores familiares recém instalados teriam em produzir sem requerer níveis de retorno correspondentes aos dos empresários já estabelecidos (9). Esta possibilidade existe pelo fato de que, para os assentados, o cálculo que rege a formação do critério de eficiência não se pauta pelo custo de oportunidade do capital, mas do trabalho. É claro que, ao longo do tempo, e na medida em que os 9.

Embora, como vimos anteriormente (Abramovay e Carvalho Filho, 1993:42-43) eles consideram que a quantidade de pobres passíveis de ingressarem neste processo de ascensão social já está pré-definida, enquanto na nossa opinião, ela vai depender da existência ou não do desencadeamento de um processo de reforma agrária entre nós.


produtores prosperem e se desenvolvam, estes critérios podem alterar-se e o comportamento tipicamente empresarial tomar conta da organização da atividade econômica. É significativo o fato de que em 30% dos casos as produtividades encontradas nos assentamentos superaram as respectivas médias municipais (FAO, 1992:87). Mas agora, tanto para os assentados, como para a sociedade, no fundo trata-se de saber se a renda gerada nos assentamentos seria produzida caso estes agricultores estivessem alocados em qualquer outro setor da economia. Como a maior parte dos assentados estudados pela FAO não tinha atividade assalariada permanente, é claro que o assentamento representa o melhor custo de oportunidade do trabalho até aqui encontrado. Este raciocínio é tanto mais verdadeiro quanto menos o sistema produtivo tiver condições de gerar empregos por força de sua própria expansão econômica (Romeiro, 1991). Os assentamentos representam então uma forma (ainda que precária, boa parte das vezes) de integrar os pobres rurais por eles contemplados à vida econômica nacional. É neste sentido que Sampaio (1992) coloca, com razão, a reforma agrária como uma das condições para o desenvolvimento articulado do Brasil. Trata-se de um meio não só de atenuar provisoriamente as condições de pobreza (como são as propostas de frentes de trabalho em infraestrutura, por exemplo), mas de possibilitar a geração permanente de uma renda pela qual o trabalhador esteja inserido na produção e circulação nacional de bens enquanto produtor e consumidor. A exclusão da maior parte dos brasileiros - e particularmente dos pobres rurais - do sistema econômico nacional mostra que nos encontramos num estágio pré-fordista de desenvolvimento do capitalismo, onde o consumo de massas não é o elemento dinâmico mais essencial à expansão do sistema. A reforma agrária pode ser um passo importante para o preenchimento daquilo que Fajnzylber (1987) chamou de "el casillero hasta ahora vacío donde el crecimiento converge com la equidad" Neste sentido, mais importante até do que a questão estrita dos preços agropecuários é o conjunto dos efeitos multiplicadores que os assentamentos imprimem ao processo de desenvolvimento. A descentralização do consumo é um dado essencial. Há poucas informações a respeito, mas vale a pena mencionar o caso estudado por Zamberlam e Florão (1989) na região de Cruz Alta, Rio Grande do Sul. Aí não só os assentamentos possuem produtividades superiores às médias municipais (e não se trata de uma região sem tradição empresarial anterior !), mas representam um mercado de consumo de bens industriais e uma forma de valorização do meio rural cujo cálculo econômico pode não ser imediato, mas cujos efeitos sociais são óbvios. A tabela II foi montada da seguinte maneira. Considerou-se uma área de 20.875 hectares onde foram implantados oito projetos (três em 1968, um em 1983, dois em 1985 e dois em 1988) e descreveu-se a situação material da área em termos de população produção e bens no momento em que houve a desapropriação e em 1989, quando foi feito o levantamento:


Tabela II População, bens e produção em áreas determinadas na região de Cruz Alta (RS) antes e depois dos assentamentos Total

Área No. de Famílias No. de pessoas Escolas Igreja/salões Mercados/bares Lojas Oficinas Granaleiro Coop. Canchas de bocha Telefones Grãos sacos Bovinos Ovinos Suínos Aves Tratores Automotrizes Caminhões Veículos Passeio Implementos Indústria caseira Pés fruteiras Eletrodomésticos

Antes

Depois

1968/88

1989

20.875 57 214 102.500 4.850 3.300 362 348 30 11 14 10 103 1.000 217 314

20.875 755 4.406 17 26 13 7 6 3 11 3 657.931 5.730 664 6.798 51.288 554 174 82 291 5.771 276.310 53.906 6.344

Fonte: Zamberlan e Florão, 1989:116 É claro que a produção na região de Cruz Alta poderia ter aumentado e possivelmente aumentado até mais se ao invés das 755 famílias assentadas, as fazendas continuassem em mãos de seus proprietários (desde que estes a cultivassem com efificiência, é claro). A renda assim gerada entretanto não teria o mesmo efeito sobre a dinâmica regional. A produção poderia subir, mas sobretudo considerando-se que se trata de uma região onde a cultura mecanizada é dominante entre os empresários, a riqueza estaria concentrada em poucas mãos e dificilmente serviria como base para o próprio desenvolvimento do meio rural da região.


O caso do Núcleo Rural Fazenda Capivari (Valinhos - SP) vai no mesmo sentido. São 672 hectares pertencentes à família Guimarães e objeto de uma desapropriação amigável no início dos anos 1960, no quadro da Lei de Revisão Agrária do Governo Carvalho Pinto. Freqüentemente, se toma o caso da Fazenda Capivaria como exemplo fracassado de assentamento. Não é a opinião dos pesquisadores da UNESP que examinaram o caso recentemente (Bergamasco, 1992). É bem verdade que das 72 famílias inicialmente assentadas, apenas 21 continuam na área e mais seis incorporaram-se ao projeto depois. Inicialmente, os agricultores permaneceram em seus produtos tradicionais (milho, amendoim e algodão), apesar de estarem próximos a grandes centros urbanos e dotados de privilegiada infra-estrutura. Permaneceram nos lotes aqueles que puderam transformar sua base técnica e suas formas tradicionais de integração ao mercado, produzindo figo, uva, goiaba, caqui e até aspargo. O apoio financeiro do Estado foi essencial para esta reconversão. Pode-se tomar a redução de 72 para 27 do número de famílias no projeto como sinal de fracasso. Mas se compararmos a situação atual com aquilo que teria sido deixar os 672 hectares nas mãos da família Guimarães as coisas mudam de figura. Seria mal fundada a expectativa de que, após 30 anos de existência, um assentamento pudesse permanecer com praticamente o mesmo número de famílias com que começou. Quanto mais o assentamento estiver inserido na economia de mercado, mais ele tenderá a acompanhar as tendências concentracionistas que são inerentes a este tipo de economia. O que a distribuição fundiária permitiu neste caso foi que o grau desta concentração fosse muito menor do que se as terras tivessem permanecido nas mãos da família Guimarães. De certa forma é o que ocorreu no Chile com o desmantelamento da reforma agrária por parte do General Pinochet. Se é verdade que a maioria dos camponeses perderam suas terras, o fato é que elas não voltaram a pertencer a seus antigos proprietários, mas distribuíram-se em pequenos e médios empreendimentos capitalistas, altamente integrados ao mercado e responsáveis pelo sucesso daquele país no mercado internacional de frutas (Sampaio, 1992 e Barraclough, 1991). 3.4. Eficiência: uma noção socialmente construída As três vertentes expostas acima correspondem tanto a visões sobre a integração dos assentados na economia de mercado, como a casos reais. De fato, há situações em que a competitividade não está e não pode estar em jogo (reservas indígenas e extrativistas); existem aquelas em que a eficiência pode ser medida pelo custo de oportunidade do capital (parece ser o caso da região de Cruz Alta) e - o que deve corresponder à maioria dos casos - aquelas em que o custo de oportunidade do trabalho é que fornece o parâmetro de desempenho. Seria absurdo escolhermos uma ou outra como a mais justa teórica ou historicamente. O importante é que o desenvolvimento da agricultura familiar comporta estes três casos. Este é um exemplo típico em que a noção - aparentemente tão objetiva - de eficiência nada mais é que um conceito socialmente construído, em função tanto do interesse do pesquisador como das situações sobre as quais trabalha.


4. Conclusões A Constituição de 1988 e a regulamentação da Lei Agrária praticamente imunizam o latifúndio no Brasil da ameaça que poderia representar um programa governamental destinado a modificar as relações de poder hoje existentes no campo. Apesar disso, a discussão sobre a reforma agrária não perde nada de sua atualidade: o que está em jogo aí, tanto quanto a instalação de novos agricultores, é também o destino das milhões de famílias que hoje se encontram em situação precária e cujo destino dependerá fundamentalmente das políticas públicas a elas aplicadas. Caso estas políticas sejam elaboradas na perspectiva de que o processo de diferenciação social dos produtores na agricultura conduz fatalmente à eliminação social dos menores, é evidente que as chances de integração desta população na cidadania ficará confinada aos limites das políticas sociais. Caso, ao contrário, haja políticas públicas que partam do princípio de que a agricultura familiar pode ter um papel importante na maneira como se organiza o capitalismo agrário, então existirá uma chance de que as necessidades econômicas de aumento da oferta sejam organicamente integradas ao combate à pobreza. O tema clássico da diferenciação social dos produtores não poderia ser mais atual. Se um certo darwinismo social tomou conta da maneira como parte importante do pensamento marxista enfrenta este tema, não é menos verdade que ele pode abrir outras perspectivas tanto de pesquisa como de política. Não se trata no debate de hoje de opor os teóricos da diferenciação social àqueles que concebem o meio rural como a massa mais ou menos coesa, homogênea, relativamente impermeável às influências exteriores. É importante que o estudo da diferenciação social se despoje do fatalismo que o envolveu durante tanto tempo. Neste sentido a batalha de argumentos em torno da reforma agrária ganha uma dimensão que ultrapassa em muito aqueles que estão envolvidos na luta pela terra nos assentamentos e nos acampamentos. Trata-se de saber, nesta batalha, não só se as 20 mil famílias acampadas terão suas necessidades atendidas, mas sobretudo, se os movimentos sociais no campo serão capazes de persuadir a sociedade brasileira que a agricultura familiar pode ser um caminho para a articulação entre prosperidade econômica e distribuição de renda.

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