História da Educação - RHE - n. 23

Page 1

ASSOCIAÇÃO SUL-RIO-GRANDENSE DE PESQUISADORES EM HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO

HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO

NÚMERO 23 Set/Dez 2007

Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe História da Educação Pelotas n. 23

p. 1-262

Quadrimestral Set/Dez 2007


HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO ASPHE Presidente: Maria Stephanou Vice-Presidente: Beatriz Daudt Fischer Secretário: Claudemir de Quadros Conselho Editorial Nacional Dra. Denice Cattani (USP) Dr. Dermeval Saviani (UNICAMP) Dr. Elomar Antonio Callegaro Tambara (UFPel) Dr. Jorge Luiz da Cunha (UFSM) Dr. José Gonçalves Gondra (UERJ) Dr. Luciano Mendes de Faria Filho (UFMG) Dr. Lúcio Kreutz (UCS) Dr. Maria Teresa Santos Cunha (UDESC) Dra. Maria Helena Bastos (PUCRS) Dra. Marta Maria de Araújo (UFRGN)

Conselho Editorial Internacional Dr. Alain Choppin (INRP, França) Dr. Antonio Castillo Gómez (Univer. de Alcalá – Espanha) Dr. Luís Miguel Carvalho (Univer. Técnica de Lisboa) Dr. Rogério Fernandes (Univer. de Lisboa)

Comissão Executiva Prof. Dr. Elomar Antonio Callegaro Tambara Profa. Dra. Maria Helena Câmara Bastos

Editoração eletrônica e capa Flávia Guidotti flaviaguidotti@hotmail.com

Consultores Ad-hoc Dr. Eduardo Arriada (UFPel) Dra. Maria Tereza Cunha (UDESC) Dra. Beatriz Daudt Fischer (Unisinos) Dr. Jorge Luiz da Cunha (UFSM)

Imagem da capa Deux mères de famille Elizabeth Gardner Le Salon de 1888 Paris

História da Educação Número avulso: R$ 15,00 Single Number: U$ 10,00 (postage included). História da Educação / ASPHE (Associação Sul-Rio-Grandense de Pesquisadores em História da Educação) FaE/UFPel. n. 23 (Set/Dez 2007) - Pelotas: ASPHE - Quadrimestral. ISSN 1414-3518 v. 1 n. 1 Abril, 1997 1. História da Educação - periódico I. ASPHE/FaE/UFPel CDD: 370-5 Indexação: CLASE (Citas Latinoamericas em Ciências Sociales y Humanidades) Bibliografia brasileira de Educação – BBE.CIBEC/INEP/MEC EDUBASE (FE/UNICAMP)


SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO .......................................................................................5 LA ESCRITURA DE LOS EXAMENES ESCOLARES E IDEAS DE MODERNIDAD, 1884 – 1912 SCHOOLS WRITTEN EXAMINATIONS AND MODERNITY IDEAS: 1884 – 1912 Rosalía Meníndez Martínez .............................................................................7 REFLEXÕES HISTÓRICAS EM TORNO DO (EVENTUAL) SUCESSO DA EDUCAÇÃO NOVA. O EXEMPLO DO INSTITUTO FEMININO DE EDUCAÇÃO E TRABALHO (19111942) HISTORICAL REFLEXIONS ON THE (POSSIBLE) SUCCES OF NEW EDUCATION. THE "INSTITUTO FEMININO DE EDUCAÇÃO E TRABALHO" (1911-1942) – AN EXEMPLE Joaquim Pintassilgo.......................................................................................35 EM DEFESA DO FILOSOFAR CONCEITOS CIENTÍFICOS

E

DO

SUPPORTING THE PHILOSOPHIZING HISTORICITY OF SCIENTIFIC CONCEPTS

HISTORICIZAR AND

THE

Rochele de Quadros Loguercio; José Cláudio Del Pino...................................67 DA "REVOLUÇÃO FRANCESA" AO "SÉCULO XXI": ALGUMAS NOTAS ACERCA DO SISTEMA EDUCACIONAL FRANCÊS FROM THE "FRENCH REVOLUTION" TO THE "XXI CENTURY: SOME COMMENTS REGARDING THE FRENCH EDUCATIONAL SYSTEM Nilce da Silva ...............................................................................................97 O CONHECIMENTO EM DESENHO DAS ESCOLAS PRIMÁRIAS IMPERIAIS BRASILEIRAS: O LIVRO DE DESENHO DE ABÍLIO CÉSAR BORGES


THE KNOWLEDGE ABOUT DRAWING IN THE BRAZILIAN IMPERIALIST PRIMARY SCHOOLS: ABÍLIO CÉSAR BORGES'S DRAWING BOOK Gláucia Trinchão ........................................................................................125 O SURGIMENTO DA COMISSÃO BRASILEIRO-AMERICANA DE EDUCAÇÃO INDUSTRIAL (CBAI) THE RISING OF THE BRAZILIAN-AMERICAN COMMITTEE OF INDUSTRIAL EDUCATION (CBAI) Mário Lopes Amorim..................................................................................149 A POLÍTICA EDUCACIONAL NO RIO GRANDE DO SUL E A QUESTÃO DA NACIONALIZAÇÃO DO ENSINO (1930/1945) THE EDUCATIONAL POLICIES IN GRANDE DO SUL AND THE MATTER OF TEACHING NATIONALIZATION (1930/1945) Berenice Corsetti; Dilmar Kistemacher; Alessandra Vieira Padilha ...............173 DAS SCHULBUCH (O LIVRO ESCOLAR), 1917-1938. UM PERIÓDICO SINGULAR PARA O CONTEXTO DA IMPRENSA PEDAGÓGICA NO PERÍODO DAS SCHULBUCH (THE SCHOOL TEXT BOOK) 1917-1938. A PECULIAR JOURNAL IN THE PEDAGOGICAL CONTEXT AT THAT TIME Lúcio Kreutz...............................................................................................193 RESENHA HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO Cláudia Regina Costa Pacheco; Elomar Tambara.........................................219 DOCUMENTO APRESENTAÇÃO: O CENTRO REPUBLICANO CONSERVADOR E A REFORMA DE ENSINO PROPOSTA POR TAVARES DE LYRA - 1907 Elomar Tambara.........................................................................................227 DOCUMENTO ENVIADO PELO CENTRO REPUBLICANO CONSERVADOR AO CONGRESSO NACIONAL - 1906...................241 ORIENTAÇÕES AOS COLABORADORES.........................................261


APRESENTAÇÃO

A ASPHE tem a satisfação de apresentar a seus leitores o número 23 da revista História da Educação. Cumprindo seu compromisso editorial de divulgar trabalhos científicos da área de História da Educação e também de disponibilizar fontes documentais trazemos neste número uma série de resultados de investigações que, com certeza, colaborarão para preencher eventuais lacunas do conhecimento na área da História da Educação. Iniciamos nossa secção de artigos com o trabalho do renomado professor e pesquisador francês Pierre Caspard que nos presenteia com um excepcional texto "Igreja, religião ensino elementar antes das leis de laicização européias: Um reexame crítico de suas relações" no qual analisa temáticas clássicas da área da história da educação como são educação, igreja e religião. A professora Rosalia Menindez Martinez investigou as idéias de modernidade em seu texto "La escritura de los examenes escolares e ideas de modernidad, 1884-1912. E trabalha com conceitos e categorias que denotam a erudição da autora. "Em defesa do filosofar e do historicizar conceitos científicos" constitui-se em um trabalho de investigação teórico metodológica elaborado pelos professores Rochele de Quadros Loguercio e José Cláudio Del Pino da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e que contribui para uma melhor compreensão do constituição da ciência na área das ciências humanas. A pesquisadora Nilce da Silva analisa o sistema educacional francês tão bem focalizado em nossa revista neste ano. Seu trabalho "Da ‘Revolução Francesa’ ao ‘Século XXI’: algumas notas acerca do sistema educacional francês" contribui para preencher lacunas que ainda persistem nesta área. Um dos educadores de maior renome do século XIX foi Abílio César Borges que destacou em vários segmentos da área História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, n. 23, p. 5-6, Set/Dez 2007 Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


educacional mas principalmente como escritor de textos didáticos e como proprietário de escolas. A pesquisadora Gláucia Trinchão trabalha em seu texto com uma faceta específica do trabalho do professor Abílio - o desenho. O artigo "O conhecimento em desenho das escolas primárias imperiais brasileiras: o livro de desenho de Abílio César Borges" constitui-se num trabalho impar no desvelamento deste autor. "A política educacional no Rio Grande do Sul e a questão da nacionalização do ensino (1930/1945)" trata de um tema controvertido e cada vez mais investigado que é o da nacionalização do ensino. A professora Berenice Corsetti pesquisou este problema de pesquisa com maestria e desenvoltura e discorre sobre esta temática tão importante para a história da educação. Nesta mesma linha de investigação, que privilegia a educação e escolas teuto-brasileiras, o professor Lúcio Kreutz em seu texto Das Schulbuch ( O livro escolar) 1917-1938 Um periódico singular para o contexto da Imprensa Pedagógica no período investiga de forma pioneira e original um periódico que teve grande influência no processo educacional desenvolvido nas comunidades teuto-brasileiras. Na tradicional seção – Documentos trazemos um texto do Centro Conservador de São Paulo em que em 1907 elaborou um documento enviado ao Congresso Nacional por ocasião da reforma educacional proposta pelo Governo Federal onde aparecem com nitidez as influências das idéias positivistas em sua linha doutrinária De modo que esperamos que nossos leitores façam bom proveito dos trabalhos apresentados neste número e que continuem a nos brindar com a sua atenção.

A comissão executiva

6


LA ESCRITURA DE LOS EXAMENES ESCOLARES E IDEAS DE MODERNIDAD, 1884 – 1912 Rosalía Meníndez Martínez

Resumen El propósito de este artículo es abordar un interesante tema de la cultura escrita, el de la escritura de los exámenes escolares. A finales del siglo XIX, en México se experimentó un proceso de modernización en el ámbito económico, el cual impacto al sistema educativo; en este contexto las practicas escolares fueron alteradas y este fue el caso de la escritura de los exámenes para las educación primaria, el modelo de presentación oral fue sustituido por el escrito, con ello se generaron nuevas formas de expresión que denotaban rasgos del entorno político y cultural de la época. Mí interés se centra en analizar los exámenes de niñas de educación primaria en la ciudad de México a finales del siglo XIX. Los exámenes escolares representan una importante fuente para enriquecer la historia de la cultura escrita y de la educación de allí mi interés por ahondar en este tema. Palabras-clave: Mexico; Ideas de modernidad; examenes escolares. A ESCRITA DOS EXAMES ESCOLARES E IDÉIAS DE MODERNIDADE, 1884 - 1912 Resumo O objetivo deste artigo é abordar um interesante tema da cultura escrita, o da escrita dos exames escolares. No final do século XIX, no México, se experimentou um processo de modernização no âmbito econômico , o qual impactou o sistema educativo; neste contexto as práticas escolares foram alteradas e este foi o caso da escrita dos exames para a educação primaria, o modelo de apresentação oral foi substituído pelo escrito, com isso originaram-se novas formas de expressão que denotaram aspectos do ambiente político e cultural da época. Meu interesse centra-se em analisar os exames das meninas da educação primária na cidade do México no final do século XIX. Os exames escolares representam uma importante fonte para enriquecer a história da cultura escrita e da educação daí o meu interesse em abordar este tema. Palavras-chave: Mexico; idéias de modernidade; exames escolares.

História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, n. 23, p. 7-33, Set/Dez 2007 Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


SCHOOLS WRITTEN EXAMINATIONS AND MODERNITY IDEAS: 1884 – 1912 Abstract This article aims to study an interesting subject of the written culture: schools examination writings. In the end of the 19th century, in Mexico, it took place a modernization process in economic field which impacted educational system; in such context, schooling practices were modified and this was the case of the Elementary school examination writings. The oral presentation model was replaced by the written one, and new expressive forms were generated, denoting traces of the political epoch and the cultural context. We are interested in focusing the examinatios analysis in primary education of girls in Mexico City, by the ends of 19th century. We conclude that schooling examinations symbolize an important enrichment source of written culture history. Keywords: Mexico; modernity ideas; Schools examinations.

8


La escritura no sólo nos ayuda a recordar lo pasado y lo dicho: también nos invita a ver lo pensado y lo dicho de una manera diferenta. David Olson1

A finales del siglo XIX, México fue gobernado por el General Porfirio Díaz, quien impulsó un fuerte proyecto de modernización que impacto diversos planos de la vida nacional. Entre estos se encontraba la educación, a la cual otorgó especial atención, pues la consideró como el medio más adecuado para transformar a una sociedad de corte tradicional en moderna; para ello era necesario formar una nueva generación de mexicanos con una mentalidad liberal y científica. En este marco de modernización las prácticas escolares sufrieron cambios importantes, uno de ello fue la presentación de exámenes, para finales del siglo XIX, la autoridad educativa procuró normar todo lo relativo a la presentación de exámenes con el objeto de establecer estrategias uniformes para todas las escuelas de la ciudad de México. Así, se fueron transformando las prácticas que hacían uso casi exclusivo de los exámenes orales para dar paso a la elaboración de exámenes escritos; lo cual se explica como parte de las innovaciones pedagógicas que la modernidad imponía. Los exámenes tenían una importancia que no se limitaba sólo a la aprobación del curso, iba más lejos, las interrogantes que surgen sobre lo que aprendían los niños y cómo lo hacían y hasta donde solo eran los contenidos controlados por el maestro, son parte de las preguntas que guían este trabajo. Desafortunadamente se conservan muy pocos exámenes escritos de este período, los que se han logrado localizar en el Archivo Histórico de la Ciudad de México, me dan la posibilidad de presentar este artículo que tiene por objetivo analizar la

David R. Olson, El mundo sobre papel. El impacto de la escritura y la lectura en la estructura del conocimiento, Barcelona: Gedisa, 1998, p. 16 1

9


escritura de los exámenes escolares de las escuelas elementales de la ciudad de México entre los años de 1884 y 1912. Considero que aun falta mucho por conocer acerca de las prácticas y usos escolares de lo escrito durante el siglo XIX en México, de allí la importancia y necesidad de abordar temáticas como la que se presenta en este artículo.

Modernidad y Exámenes escolares La presentación de los exámenes representaba el momento en el que los estudiantes demostraban el aprovechamiento escolar que habían obtenido en el año; los profesores preparaban este momento con meses de antelación, puesto que el citado evento constituía la evidencia del éxito escolar. Este importante acto involucraba a diversos actores: autoridades locales, maestros, inspectores, niños, padres de familia y familiares de los examinados, y en algunas ocasiones se contaba con la presencia del propio presidente de la República; todos ellos se congregaban para ser testigos de los avances y aprovechamiento de los escolares que concluían un año de trabajo escolar. Si bien la presentación de exámenes fue una práctica permanente durante el siglo XIX, para finales de este siglo la autoridad procuró normar todo lo relativo a la presentación de exámenes con el objeto de establecer estrategias uniformes para todas las escuelas de la ciudad; así, todos los planteles debían realizar en tiempo y forma las evaluaciones finales. Al dar inicio el gobierno de Porfirio Díaz, en el año de 1877, la presentación de exámenes era guiada por los siguientes ordenamientos: 1.Las escuelas municipales debían elaborar con letra manuscrita un acta de examen, en donde se anotaban los siguientes datos: fecha, dirección completa de la escuela, nombre del jurado presente (ocho para este periodo y el regidor del Ayuntamiento preside), hora de inicio y término, alumnos premiados y firmas del jurado. 2. Se debía anexar un listado con 10


los nombres de todos los alumnos examinados por grado escolar, durante estos años sólo aparecían tres grados (primero, segundo y tercero). 3. Además de esta información se debían incluir los temas sobre los cuales bordarían los exámenes: para primer año, silabario, escritura, numeración, sumas y restas; segundo año, gramática teórica, aritmética, geometría y dibujo lineal; tercer año, lectura en prosa y verso, moral, escritura, gramática, aritmética, geometría, geografía, historia y dibujo lineal.2 En 1884 se publicó el Reglamento de las Escuelas Municipales de la Ciudad de México. En su capítulo IX se incluía el apartado "de los exámenes", que dedicaba 15 artículos al tema, los cuales destacaban la necesidad de que todos los alumnos de las escuelas de la ciudad se sujetaran a exámenes finales en los periodos y horarios que indicaba la autoridad correspondiente. Todos los exámenes deberían contar con su acta correspondiente por duplicado y firmada por la persona que presidía y por los miembros del jurado; también se indicaba la manera de calificar y los casos de alumnos reprobados.3 Archivo Histórico de la Ciudad de México (AHCM), Escuelas Elementales. Exámenes y Premios. núm. 2593, t. 5, exp. 183, 1877. 2

3

Los artículos que señalan estas indicaciones son los siguientes:

Art. 81. Los alumnos de todas las escuelas municipales se sujetarán á exámenes al fin de cada año escolar. Art. 82. Los exámenes comenzarán el día 15 de Octubre y terminarán, á lo más tarde, el 6 de Diciembre. La Comisión señalará los días en que haya de tener lugar el examen de cada escuela, y los profesores que deban formar cada jurado, en el concepto que en la de niños, el jurado se compondrá de tres profesores, y en las de niñas de dos profesores y una profesora. Art. 85. Los exámenes comenzarán á las ocho de la mañana y durarán el tiempo que el Regidor ó la persona que presida, oyendo al jurado, juzgue necesario, para persuadir del estado de los adelantos de los alumnos. Art. 87. Concluido el examen, se levantará por duplicado el acta correspondiente, firmada por la persona que presida y los miembros del jurado, haciéndose constar en ella lo que creyere justo el presidente, respecto del examen, del orden que

11


Este tipo de prácticas fue transformándose a medida que se fortaleció el proyecto educativo del régimen y se introdujeron innovaciones pedagógicas. Para la década de los 90, la información emitida por la escuela fue ampliada y se nutrió con algunos datos estadísticos de cada plantel que enfatizaban algunos aspectos, como el número total de alumnos por clase, promedio de asistencia al año (aquí se insiste en señalar el mayor y menor número de días asistidos a clase) y edad de los alumnos (tanto de los niños con menor edad como los de mayor), entre otros.4 Estos datos resultaban básicos observe en la escuela, y si los libros que previene la fracción VIII del Art. 53, han sido llevados por el director con la regularidad debida. Art. 89. Las calificaciones serán las siguientes: M (mal); R (regular); B (bien); M. B. (muy bien); P. B. (perfectamente bien). Estas serán dadas con la mayor equidad y justificación. Art. 91. El cursante de un año, que obtenga la calificación de M (mal), en algunos de los ramos que en él se comprendan, lo volverá á cursar, hasta que á juicio del director pueda pasar al año siguiente. Igual disposición se observará con los alumnos que no presenten completas las materias del curso. Reglamento de las Escuelas Municipales de la Ciudad de México, 1884, pp. 41-42 4

Algunos ejemplos de estos cambios se observan en las siguientes escuelas:

Escuela municipal No. 1 1er. Año. número de alumnos 29 la edad menor de alumnos inscritos 6 años y la mayor de 10 años el promedio de edades de los niños de este plantel fue de 8.4 el mayor número de días de asistencia a clase fue de 176 y el menor de 65 días. 2do. Año número total de alumnos 37 la edad menor de alumnos inscritos fue de 9 años y la mayor de 12 años promedio de edades fue de 10.29

12


para un gobierno que trataba de demostrar sus resultados por medio de las cifras; también eran utilizados para determinar el presupuesto asignado a cada escuela, pues si ésta no reportaba una inscripción y asistencia acorde con lo establecido por la ley, a dicho plantel se le asignaban pocos recursos. A partir de que el gobierno federal asumió en 1896 el control de todas las escuelas que estaban en manos de los municipios, el tema de los exámenes fue reconsiderado y la nueva organización continuó en su afán de control y uniformidad. Dicho afán se expresaba de diferentes maneras: en la papelería, ordenamientos, preparación de los alumnos y en los formatos modernizados en que se concentraba la información de los estudiantes que serían examinados. El papel que se utilizaba era membretado y los formatos eran escritos a máquina, incluso se elaboraron machotes especiales para ser enviados a cada escuela. Así toda la información recavada sería exactamente la misma y debía incluir los siguientes datos: número de la escuela, tipo de escuela (para niños o niñas), ubicación, nombre del alumno, edad en años (la cual debía estar el mayor número de días de asistencia a clase fue de 177 y el menor de 28 días 3er. Año número total de alumnos 7 la edad menor de alumnos inscritos 8 años y la mayor 12 años promedio de edades fue de 10.28 el mayor número de días de asistencia a clase fue de 176 y el menor 112 4to. Año número total de alumnos:1 edad del niño que asistió a clases 12 años el mayor número de días que asistió a clases 151 AHCM, Escuelas Elementales. Exámenes y Premios. núm. 2609, t. 21. exp. 313, 1895

13


entre 6 y 12 años; si era mayor de este rango debía indicarse en un rubro aparte la edad exacta), sexo, días que asistieron en el año, materias cursadas con su respectiva calificación, firmas del director, profesor titular del grupo y del jurado; además debía anotarse la asistencia promedio por mes y por el año correspondiente a cada grupo, total de alumnos inscritos, alumnos que concluyeron el año escolar, número de aprobados y de reprobados (señalaba la causa por la cual el alumno no aprobó), número del personal existente que laboraba en la escuela: director, ayudantes, profesores especiales, sirvientes, porteros, etc.5 Además 5

Un ejemplo de este tipo de información es la referente a las siguientes escuelas.

Dirección General de Educación Primaria Año escolar 1904 Enseñanza primaria oficial No. de Escuela 47 Carácter de la escuela. Primaria Elemental para niños Ubicación de la escuela; 2da. Calle de San Juan Año escolar 1909-1910 Alumnos que sustentaron reconocimiento en edad escolar – 266 Alumnos aprobados – 205 Alumnos que concluyeron su educación - 23 Año escolar 1910-1911 1er. Año grupo "A" 58 alumnos matriculados alumnos de menor edad 6 años alumnos de mayor edad 11 años (sólo 1caso) promedio de edades 7.3 años mayor número de días de asistencia al año 170 menor número de días de asistencia 32 alumnos reprobados 20

14


de toda esta información, se preparaba un informe de los alumnos que sostendrían examen en el año. Para los primeros años del siglo XX el tema de los exámenes continuó como acción prioritaria y se definieron algunas estrategias adicionales, por ejemplo la publicación con semanas de antelación del cuadro de exámenes de las Escuelas Primarias Elementales de la ciudad de México, que incluía número de escuela, ubicación, escuela que enviaría el jurado para las evaluaciones, días de exámenes y escuela que examinará. Estos cuadros llegaron a contar con varias hojas e información precisa sobre los exámenes a realizarse; también se publicaban los listados de los niños y niñas aprobados. Para 1911, la Dirección de Educación Primaria enviaba una circular con las instrucciones precisas para los reconocimientos finales de las escuelas nacionales primarias del Distrito Federal, que incluían los siguientes aspectos: trabajos preparatorios, tiempo de los reconocimientos, jurados, verificación de los reconocimientos y trabajos posteriores.6 Durante los últimos años del porfiriato, los avances en materia de evaluaciones resultaban significativos; además de la insistencia por parte de la autoridad de cuantificar todos los datos y cifras relativos a educación, también se avanzó en el terreno pedagógico al exigir los programas de las materias sobre las que versaría el reconocimiento final del año escolar; por ejemplo, para causas: 5 alumnos por llegar tarde 3 por juguetones 1 perezoso 3 enfermos 5 faltista 3 varios AHCM, Escuelas Nacionales del Distrito Federal, núm. 2556, exp. 2, 6

AHCM, Escuelas Nacionales del Distrito Federal, núm. 2556, exp.2, 1911

15


el cuarto año de educación elemental las materias de examen fueron lenguaje, aritmética, lecciones de cosas, geografía, historia patria, instrucción cívica, dibujo y gimnasia. Los exámenes debían ser formulados con base en los contenidos de los programas oficiales7 con el fin nuevamente de que los niños estudiaran y aprendieran los mismos temas. Los exámenes debían ser el reflejo de una educación cada día más uniforme y homogénea, de allí que las autoridades educativas incidieran en el control de los reconocimientos finales. Además de seguir los programas, se recomendaba que cada escuela formulara cuestionarios de los puntos desarrollados durante el año —que servían de base para el reconocimiento respectivo de cada materia— con el propósito de que los niños aprendieran los aspectos centrales de cada asignatura.8 Contenidos del programa de Historia Patria a considerar para los exámenes de 4to año elemental.

7

Acontecimientos que ocurrieron en la época colonial (a grandes rasgos). Cómo estaba organizada la sociedad en la época colonial. Don Miguel Hidalgo y Costilla., Morelos, Javier Mina. Guerrero e Iturbide. Estado de México, a raíz de la Independencia, civilizaciones y costumbres. República. Muerte de Guerrero, Guerra de Texas. Invasión francesa. Santa Anna. AHCM. Escuelas Elementales, núm. 2543, t. I. 1909-1910. 8

Algunos ejemplos de estos cuestionarios son los siguientes:

Escuela Elemental No. 47 Materia: Historia Grado: 3er. Año Peregrinación tolteca, puntos que tocaron y su establecimiento en Tolan. Monarquía: hechos notables de sus monarcas, industrias, costumbres y religión tolteca.

16


Los exámenes finales tenían una importancia que no se limitaba sólo al acto festivo, iba más lejos; la autoridad podía, de alguna manera, conocer el impacto de la educación liberal en los niños: qué aprendían, cómo lo hacían y finalmente cómo lo expresaban en la escritura de sus exámenes. Las respuestas a estas interrogantes reflejaban lo que estas nuevas generaciones estaban absorbiendo de los contenidos de los programas, de los libros de texto y de la manera en que los maestros enseñaban las diferentes materias; también expresaban un nuevo concepto educativo que exaltaba ciertos valores vinculados con la modernización. En este sentido la escritura de los exámenes expresaban como lo señala Antonio Viñao <<nuevos modos de ver y mostrar la realidad y, dentro e ella, al mismo ser humano>>.9 Pero esta cuestión será objeto del siguiente apartado.

Chichimecas: de dónde vinieron, por quiénes venían gobernados en su peregrinación, fundación de Teuyuacan, formas de gobierno que adoptaron, monarcas que se distinguieron. Aztecas su peregrinación, llegada al Valle de México, lugares que les designó Nopalzin para su estancia. Guerra contra los xochimecas, leyendas de la fundación de México. Establecimiento de su monarquía, tributos exigidos por Tezozomoc, monarcas que se distinguieron en los primeros años de la fundación de México, Ixcoatl reconquista del trono de Acolhuacan por Netzahualcoyotl, gobierno de Atzayacatl. Descubrimiento de América. Carácter de Moctezuma II y llegada de los eapañoles, conducta de Hernán Cortés y sus soldados,.Muerte de Moctezuma I y gobierno de Cuitlahuac y Cuauhtemoc. Conquista de México, el gobierno militar, gobierno de las audiencias, cuáles se distinguieron y virreyes más notables. AHCM, Escuelas Elementales, núm. 2543, t. I. 1909 Antonio, Viñao, Leer y escribir. Historia de dos prácticas culturales México, Fundación Educación, voces y vuelos,I. A. P., 1999, p. 127. 9

17


Los exámenes escolares y su escritura Durante el siglo XIX, la presentación de los exámenes escolares había sido una práctica más bien oral, los niños eran examinados por un jurado, integrado por el director de la escuela, el profesor y alguna autoridad educativa; el niño contaba con 5 o 10 minutos para dar respuesta a la serie de preguntas que se le formulaban. Sí bien esta práctica continuo durante muchos años, para la década de los 90 del siglo XIX se empezó a difundir la elaboración de exámenes escritos, y esto se explica por varias razones: la primera, el número de niños que asistía a la escuela se incrementó de manera notable por la apertura de nuevas escuelas; segundo el número de niños alfabetizados creció; tercero, el Estado impulso una política educativa moderna que favorecía la entrada de nuevos métodos pedagógicos para la enseñanza de la escritura y la lectura, tal fue el caso del método elaborado por el pedagogo suizo Enrique C. Rébsamen, para la lectura y la escritura y aplicado en las escuelas primarias de Orizaba, Veracruz y más tarde de todo el país. El método de éste pedagogo fue particularmente novedoso y a su vez exitoso, partía de la siguiente premisa <<se presenta una estampa con el dibujo relacionado con la palabra. Se comenta para despertar el interés del alumno. Se escribe y se lee la palabra, para pasar a la división de sus sílabas y finalmente se reconstruye>>.10 Este método no fue el único que apareció, para 1905, otro destacado pedagogo mexicano, publicó su método de escritura-lectura conocido como método Onomatopéyico, <<éste se basa en la simultaneidad, el fonetismo y la síntesis. La letra se menciona por su sonido o nombre onomatopéyico>>.11 Enrique C. Rébsamen, Método Rébsamen de escritura- lectura: Enseñanza de la lectura por medio de la escritura,Paris, Viudad de Bouret, 1905, p. 44 10

Gregorio Torres Quintero, Guía Metodológica para la enseñanza de la escritura – lectura en el Primer Año, Paris- México, Viuda de Bouret, 1912,p. 6 11

18


Cuarto, aunado a los nuevos métodos de lectura y escritura, se estimuló la lectura de libros de texto, con lo cual se estrecha el aprendizaje de la escritura con el de la lectura, como bien lo señala Antonio Viñao <<la historia de la escritura como tecnología o práctica, guarda una estrecha relación con la lectura>>.12 Quinto, el Estado porfirista despliega una política educativa que promueve la asistencia de los niños a las escuelas, para ello decreta que la educación primaria debe ser obligatoria y gratuita; para lograr su objetivo, ofrece diferentes incentivos con el fin de que los padres de familia envíen a los niños a la escuela; por ejemplo se dan desayunos escolares en las escuelas primarias, premios a la puntualidad, asistencia y rendimiento escolar y en general se difunde la idea de que la educación tiene un fin práctico. Todos estos aspectos incidieron de alguna manera en propiciar un cambio al interior de las escuelas, es decir las practicas escolares fueron alteradas y se orientaron a generar nuevas practicas como producto de la modernidad.13 La escolarización se amplió (obligatoria de los 6 a los 12 años) y se generaliza con lo cual la escuela se convirtió en el espacio institucional de aprendizaje de lo escrito. En este marco político y educativo, se promovió una cultura de lo escrito, todos los niños debían aprender a escribir correctamente; tanto la escritura como la lectura eran las materias básicas de la educación primaria, así que las autoridades educativas vieron con buenos ojos el que se fomentará la presentación de exámenes escritos, estos fueron desplazando poco a poco a los exámenes orales, la escritura se impuso como el medio de 12

Antonio Viñao, Leer y Escribir, op. cit. p. 288

Al respecto ver Rosalía Meníndez, Modernidad y Educación Pública. Las escuelas primarias de la ciudad de México, 1876-1911 (Tesis de Doctorado en Historia), México, Universidad Iberoamericana, 2004. 13

19


comunicación más conveniente para la escuela, como lo señala Domingo Tirado Brendi <<Lo escrito, la escritura, fue ganando terreno dentro del quehacer escolar. Adopto nuevas modalidades textuales y amplio sus exigencias hasta configurar un nuevo aprendizaje>>.14 El introducir cambios y alterar prácticas, siempre representa un proceso complejo, y esto se advierte en el caso de la escritura de exámenes, se denota la practica de la memorización de los textos o de los resúmenes dados por el profesor, los cuales se repiten lo más exacto posible, al respecto Antonio Viñao anota <<los usos escolares de la escritura, por más que se diga, sobre todo en la enseñanza primaria, que hay que prestar atención a los usos cotidianos y ordinarios de la misma, implican, en su casi totalidad, actividades de copia y de reproducción de lo memorizado>>.15 Son pocos los escritos de niños que han quedado, al parecer muchos de estos fueron desechados de las escuelas, por lo cual resulta difícil reconstruir los actos de escritura de los niños del México decimonónico. Afortunadamente se han localizados algunos exámenes escritos, con lo cual podemos adentrarnos en este espacio de comunicación tan diferente y necesario para ahondar en el conocimiento de la cultura escrita, pues como lo señala Jack Godoy, La importancia de la escritura radica en que crea un nuevo medio de comunicación entre los hombres. Su servicio esencial es objetivar el habla, suministrar al lenguaje un correlato material, un conjunto de signos visibles. De este modo, el habla puede trasmitirse a través del espacio y preservarse a través del tiempo; lo que la Citado por Antonio Viñao, "Del periódico a Internet. Leer y escribir en los siglos XIX y XX" en Antonio Castillo Gómez (coord.) Historia de la cultura escrita. Del Próximo Oriente Antiguo a la sociedad informatizada, España, 2001, p. 335 14

15

Antonio Viñao, Historia de la cultura escrita, p.336

20


gente piensa puede rescatarse de la transitoriedad de la comunicación oral.16

En este trabajo se muestran tres exámenes escritos por niñas que asistían a la Escuela Elemental No. 10 de la ciudad de México, cada uno de estos exámenes abordan temas de diferentes materias; la idea es presentar de manera textual los tres escritos, a fin de ver lo que estas niñas trataron de plasmar con su escritura, en otro momento vinculare lo escrito con el contexto y el entorno social, pues no debemos olvidar que la escritura parte de una base social. El primero es un examen de historia patria escrito por una niña 13 años, el tema a examinar fue la Conquista de México, me permito anexar el escrito completo: Señorita inspectora, compañeras:

Digna

Directora,

Queridas

Impresionada por las clases que he escuchado durante el pasado bimestre, relativos a la época de la conquista de México así como por el precioso drama que vimos en el Teatro Renacimiento; me permito consagrar algunas frases a la memoria de uno de nuestro héroes. Cómo mexicana de nacimiento y de corazón cuando como ahora voy a hacer el relato de los infortunios que ha sufrido nuestra patria siento que mis labios no puedan llenar su cometido o pareciéndome [sic] tanto más penosa esta tarea cuanto que mi humilde voz y mi pobre inteligencia no me permiten presentar los hechos con la delicadeza que requiere el patriotismo; sin embargo si difícil es mi empresa no temo a cometerla pues me olvidaba que cuento con vuestra indulgencia. Cuando el gran emperador Moctezuma se hallaba prisionero por los españoles el pueblo que sentía veneración por él, estaba indignado, y los conquistadores Jack, Godoy (copo.), Cultura Escrita en sociedades tradicionales, Barcelona: Gedisa, p. 12 16

21


temiendo un levantamiento por parte de los aztecas, obligaron a Moctezuma á que desde el alto palacio, hablara á sus súbditos, para que se sometieran a la obediencia; pero entonces aparece un joven y valiente jefe, al frente del pueblo, é indignado de ver cautivo á su emperador, y á su ciudad invadida por gentes extrañas, le arroja certera pedrada hiriéndole gravemente, é impulsa al pueblo azteca á la defensa. El valiente jefe que se puso al frente de la guerra fue Cuauhtémoc hijo del famoso y temible Ahizotl y esposo de Tecuichpoc hija de Moctezuma. Su nombre significaba águila que cae. En los ataques que los aztecas sostuvieron contra los españoles Cuauhtémoc fue el primero en la lucha, peleando con valor, queriendo acabar con el último de sus enemigos y arrancar de la prisión á los nobles aztecas. A la muerte de Cuitláhuac décimo emperador azteca subió al trono Cuauhtémoc el valiente, el inolvidable, el guerrero azteca que abrazó con entusiasmo la causa de la patria y se hizo cargo del gobierno en los momentos en que Cortés venía á invadir de nuevo la capital. Durante el sitio que Cortés puso a la ciudad, y que fue de 75 días, Cuauhtémoc supo defenderse, deseando sepultarse en las ruinas de su imperio, y a pesar de las proposiciones que le hizo el conquistador y del hambre que reinaba en la ciudad jamás quiso rendirse. Por último el conquistador se apoderó a viva fuerza de la ciudad contra la resistencia de los valientes mexicanos el día 13 de agosto de 1521. Entonces los sacerdotes y nobles aztecas aconsejaron a Cuauhtémoc que abandonara la ciudad, y a semejanza de Netzahualcóyotl se ocultara para después continuar la guerra contra sus enemigos. Cuauhtémoc emprendió la marcha en el lago de Texcoco, pero en el camino fue hecho prisionero en unión de su familia por García de Holguín y solicitando respeto para la emperatriz azteca y las otras damas que la acompañaban, para él no pidió gracias ni favores. Cuando Cuauhtémoc fue llevado a la presencia de Cortés le dijo

22


señalando al puñal que traía al cinto: toma luego ese puñal y luego mátame ya que no he podido morir en defensa de mi patria. Cortés se mostró con el noble prisionero, inhumano y cruel, mandándole dar tormento, quemándole los pies para que revelara dónde estaban los tesoros de la corona azteca, pero Cuauhtémoc fue más grande en el sufrimiento que sus vencedores en el triunfo y resistió heroicamente, pero cuando el rey de Tacubaya compañero de tormento daba muestras de dolor, Cuauhtémoc le dirigió una mirada de reconvención y le dijo ¿por ventura estoy yo en un lecho de rosas? Avergonzado Cortés mandó suspender semejante acto de barbarie. Siempre guardó Cuauhtémoc las viles señales de aquel tormento y enfermó y sin poder andar largo tiempo vivió en cautiverio rodeado de su familia. Tres años después cuando Cortés marchó a las Ibueras (América Central) llevó consigo al ilustre prisionero y a otros nobles aztecas; pero en el camino bajo el pretexto de que conspiraban lo mandó á ahorcar en unión del rey de Texcoco en un árbol de ceyba en un lugar llamado Izancnac el 26 de febrero de 1525. Cuauhtémoc llegó al suplicio sereno y altivo. Así acabó el último emperador azteca y con el imperio de aquella raza que hasta entonces había sido invencible. Niñas, a vosotras toca honrar la patria de este gran hombre y no olvidar nunca que jamás ni ante el sufrimiento ni ante sus enemigos se rindió. Niña Guadalupe Flores.17

Este examen da inicio con una especie de dedicatoria muy emotiva, dirigida a las autoridades y apegada a los estilos AHCM, Escuelas Elementales, Escuela No. 10, núm. 2535, t. 1, exp. 1, 1906 17

23


epistolares del siglo XIX. Por lo que respecta al lenguaje, es de respeto a la autoridad, se expresa adecuadamente y se vale de un vocabulario poco adecuado para su edad, el cual está lleno de expresiones de tipo poético además de aludir a formas de la oratoria; se denota que la alumna aprendió de memoria la información que ahora plasma en el examen. En cuanto al contenido, se da una constante exaltación del mundo indígena, en particular de los monarcas indígenas y para ello introduce frases elocuentes de características sobresalientes de dos emperadores mexicas Moctezuma y Cuauhtémoc, con lo cual deja ver una postura ideológica en favor del mundo prehispánico; al mismo tiempo, se advierte un rechazo para la figura del conquistador. Este escrito escolar expresa la visión de un mundo prehispánico aprendido en la escuela. La escritura de este examen nos permite observar, por un lado, la manera en que esta niña visualiza un tema histórico, como resultado de una información proveniente de los programas, libros de texto y enseñanza de los propios maestro; pero por otro nos permite intuir los valores, sentimientos y el tipo de formación que estos niños estaban recibiendo en las escuelas públicas y que reflejaban en el momento de escribir sus exámenes. Los dos siguientes exámenes que analizo, presentan dos temas diferentes; el primero aborda el área de las ciencias y el segundo el de la instrucción cívica: Señorita directora, compañeras.

señoritas

profesoras,

queridas

Ya que he tenido la honra de ser designada por mi amable directora para hablar sobre el tema que se me ha confiado, voy a ser lo posible por desempeñarlo lo mejor que pueda, pues aun que insuficiente y poco apta para hacerla quiero manifestar a mi inteligente directora que tomo empeño y tengo bastantes deseos de aprender y también quiero contribuir a que se realice el empeño y afán que toman por nuestra enseñanza.

24


Ruego a mis profesoras me de su indulgencia y espero de su benevolencia me dispen las faltas que tenga. Tema. 1. Los vientos son corrientes de aire mas o menos rápido 2. Los vientos reconocen como causa el cambio de la temperatura. Cuando el aire cuando esta en contacto que la tierra se calienta, tiende a elevarse y entonces el aire frío se precipita a ocupar el lugar vacío y de ese movimiento se forman las corrientes que se llaman vientos, lo mismo sucede cuando una nube desciende en forma de lluvia y el lugar que deja vacío lo quiere ocupar el aire 3. El experimento de Franklin consiste en colocar una pieza caliente una vela en la parte inferior y otra en la superior de una puerta que comunique con otra pieza menos caliente, al abrir la puerta se ve oscilar las flamas de las velas en sentido contrario. 4. Los vientos soplan en todas direcciones pero principalmente de N a S. 5. La dirección de los vientos se estima por medio de las veletas. 6. La velocidad de los vientos se estima por medio de n aparto que se llama anemómetro. 7. Un viento huracanado recorre 30 metros por segundo. 8. Un viento en calma recorre medio metro por segundo. 1. Los vientos se dividen en regulares, periódicos y variables. 2. Vientos regulares son los que soplan todo el año en la misma dirección y se llaman vientos alisios. 3. Vientos periódicos son los que soplan en todas direcciones y en las mismas estaciones y en las mismas horas del día como el simoun y la brisa. 4. Le llaman monzones los vientos que soplan seis meses en una dirección y seis meses en otra y estos se observan en China, en los meses de abril a octubre.

25


5. Se llama simoun un viento quemante que sopla en los desiertos de China y África. Se llama brisa un viento muy grato que soplan en las costas, durante el día va del mar hacia la tierra y durante la noche va de la tierra hacia el mar. 6. Las brisas reconocen como causa que en el día se calienta más que el mar, el aire que está en contacto con la tierra se elevan y viene entonces del mar una corriente y en la noche cuando la tierra se enfría más que el mar se produce el mismo fenómeno en sentido contrario. 7. La brisa del mar comienza poco antes que sale el sol aumenta hasta las tres de la tarde decrece y se cambia en brisa de la tierra, después de la puesta del sol. 8.Vientos variables son aquellos que soplan en una dirección ya en otra sin regla alguna. 9. Los vientos dominantes son los del N. 10. La velocidad media que tienen en México cuando es moderado recorren 2 metros por segundo, fresco si recorre diez maestros, fuerte si recorre veinte metros, tempestuoso si recorre de veinticinco a treinta metros y huracán si recorre de treinta a cincuenta metros por segundo. Epilogo Queridas compañeras: ya que las señoritas profesoras toman el mayor empeño en enseñarnos con entusiasmo y afán nosotras, compañeras, debemos corresponder con nuestra dedicación y aplicación a realizar sus afanes para que no sea infructuoso su trabajo al mismo tiempo démosles las gracias por la enseñanza que nos están inculcando y por la buena voluntad con que nos guían por el sendero de la ciencia. 18

Concepción Campos.

Dáse el nombre del Distrito Federal a la demarcación territorial ocupada por el supremo gobierno de la nación.

18

AHCM, Escuelas Elementales, núm. 2535, t. I, exp. 1, 1906

26


El Distrito se haya situado en la región austral del hermoso valle de México tienen de Norte a Sur treinta y nueve kilómetro de longitud y de este a oeste 32 kilómetros de anchura aproximadamente. El aspecto panorámico que ofrece el valle desde un punto culminante, sea el que fuese, es verdaderamente bello y majestuoso. Las eminencias del Ajusco y de las Cruces ofrecen puntos de observación desde los cuales se abarca con una mirada todo el valle con su grandioso conjunto de elevadas cordilleras y dilatadas campiñas que en sus extensos lagos reflejan el purísimo azul del cielo. El valle de México se haya rodeado de las montañas siguientes al norte la sierra de Guadalupe a cuyas espaldas se divisan las ricas sieas del Estado de Hidalgo, al sur la cordillera del Ajusco, al oriente la sierra nevada, el gran Popocatepetl y el magnifico Iztazcihuatl que buscan sus frentes coronadas por la nieve y al oeste en caprichosas curvas se abre el histórico monte de las cruces. El Distrito Federal tiene por limites al norte este y oeste al Estado de México y sur el Estado de Morelos. Se divide en trece municipalidades que son México, Guadalupe Hidalgo, Azcapotzalco, Tacuba, Tacubaya, Mixcoac, Cuajimalpa, San Angel, Coyoacan, Iztapalapa, Tlalpam, Xochimilco y Milpa Alta. La ciudad de México es la cabecera de la municipalidad de su nombre y tiene una población de 370,000 habitantes. La ciudad de México es la capital de la república mexicana y en ella residen los poderes de la federación. Esta circunstancia a contribuido al embellecimiento de la ciudad y al aumento de su población. Ignacia Uribe.19

En el segundo examen, nuevamente encontramos los agradecimientos a la autoridad ya sean maestras, directoras, etc. Se observa que los niños han aprendido el principio del respeto a 19

AHCM, Escuelas Elementales, núm. 2535, t. I, exp. 1, 1906

27


la autoridad tan difundido y promovido por el gobierno porfirista, el cual está vinculado con la aceptación sin cuestionamiento del régimen en el poder. La memorización de la información es otra de las constantes en ambos exámenes, se transcribe prácticamente la información de los libros de texto y muy posiblemente de los cuestionarios con los que se preparaban estos exámenes, pues como ya mencionamos en el primer apartado, el profesor elaboraba un cuestionario con todas las preguntas que se verían en los exámenes, el cual era supervisado por el inspector escolar, y los niños debían estudiar y memorizar el contenido de estos materiales. El discurso positivista también es notorio, el niño debe ante todo memorizar datos e información precisa. Otro aspecto interesante que sobresale, es el interés de las autoridades educativas en la enseñanza de la ciencia, el régimen de Díaz, trata de que México se convierta en un país moderno y de allí su interés en todo lo relacionado con la parte científica, racional y objetiva que ofrezca elementos a los niños para construir una mentalidad moderna. Sí bien el conocimiento científico es prioritario para esta educación, también lo es la formación cívica, la cual se muestra en el tercer examen que denota solo la memorización de los datos. La forma de escritura utilizada por estas niñas era la escritura a mano o manuscrita, Martín Guix la define como <<trazada por la mano del hombre sirviéndose de los útiles ordinarios: pluma, tinta, o, a falta de ambos, lápiz solamente, y papel>>.20 La letra es de caligrafía, bien trazada, sin errores ortográficos (los documentos presentados conservan la ortografía de la época), utilizan un papel fino apara la época, tamaño oficio (Dina 4), se utiliza tinta y ningún examen presenta manchas o borrones. Estos escritos son presentados siguiendo "al pie de la letra" lo estipulado por el maestro y las autoridades educativas, en 20

Citado por Antonio Viña, Historia de la cultura escrita,. p. 328

28


este sentido la escuela se convierte en el espacio que ordena, dirige y en donde se establecen las normas que deben ser aprendidas sin excepción ni cuestionamiento, al respecto Antonio Viñao señala <<La escuela-entendiendo este término en sentido amplio- tiene una doble finalidad difícilmente conciliable: es el lugar donde se interiorizan los límites de la escritura, los usos correctos e incorrectos, y donde, a la vez, hay que hacer lectores –no leedores y escritores-no escribientes ni copistas >>.21 El cuidado que expresan estos exámenes, no solo se observa en el trazo en las letras y en la limpieza, sino también en el contenido. Todo parece indicar que estos escritos fueron previamente corregidos, tanto en la parte del contenido como en la presentación; es decir el maestro cuido escrupulosamente las palabras y el sentido de las mismas, de manera que expresaran sólo lo que el maestro consideraba pertinente; así mismo se procuró que los exámenes tuvieran letra casi perfecta, limpios y con una estructura ordenada. Estos exámenes, sí bien eran escritos, también eran leídos; quienes estaban presentes al momento de la lectura eran: el director o directora de la escuela, el profesor o profesora, alguna autoridad educativa e inclusive podía estar presente el propio Ministro de Instrucción Publica y los padres de familia, de allí la importancia de presentar exámenes previamente revisados por el profesor. La escritura de estos exámenes nos permiten ver la fuerte influencia del contexto social, estas niñas aprenden las reglas y normas de la escritura pero no de manera aislada, sus pensamientos están impregnadas de una cultura que las rodea y las impacta; al respecto David Olson señala <<Los niños de cualquier cultura adquieren los modales de esa cultura, incluyendo las maneras de hablar y de pensar sobre el habla, la acción y sus consecuencias y los sentimientos>>.22 21

Antonio Viñao, Leer y Escribir. Historia de Dos prácticas culturales, p. 296

22

David R, Olson, op. cit, p. 277

29


Consideraciones Finales Uno de los grandes objetivos del proyecto educativo porfirista era el lograr que todas las escuelas, todos los maestros y niños acataran las disposiciones oficiales. El caso de los exámenes finales no era la excepción, muy por el contrario, tenían un lugar especial y prioritario en la legislación escolar. En este sentido la Ley de Instrucción Pública de 1896 es una clara expresión de los intereses que las autoridades educativas mantenían al respecto, pues justamente esta ley modificó los artículos referentes a exámenes y premios. Asimismo. el Reglamento Interior para las Escuelas Nacionales de Enseñanza Primaria abordó el tema y lo detalló en el capítulo V, destacando los artículos referentes al tiempo en que debían realizarse los exámenes, a la obligatoriedad de que todos los alumnos fueran examinados, a las características de los profesores que fungirían como jurados, a las calificaciones y a los premios otorgados a los alumnos sobresalientes.23 23

Artículos referentes al tema de los exámenes:

Art. 30. Los exámenes y los reconocimientos escolares se verificarán conforme a las prescripciones de la ley y las disposiciones de la Dirección General. Art. 31. Los exámenes de fin de cursos serán públicos, y conforme al programa adoptado en la escuela de que se trate; y los reconocimientos de acuerdo con lo dispuesto por la Dirección General. Art. 32. En las escuelas elementales y en las suplementarias para obreros, el tiempo que se emplee en la réplica, para cada materia, no será mayor de diez minutos, ni menor de cinco, respecto de cada alumno. Art.33. La duración del examen en las escuelas de instrucción primaria superior y en las complementarias para obreros no será menor de diez minutos ni mayor de quince. Art. 34. En las escuelas de instrucción primaria superior el examen se hará por medio del cuestionario que, formado por el profesor de cada grupo, sea aprobado por la Dirección General. "Reglamento Interior para las Escuelas Nacionales de Enseñanza Primaria", Revista De la Instrucción Pública Mexicana, núm. 1, t. II, 15 de marzo de 1897, pp.5 - 6

30


En los últimos años del régimen, el tema de los exámenes finales cobró mayor auge, a tal grado que se publicaron circulares muy estrictas y precisas que trataban de cubrir todos los espacios relativos sobre las evaluaciones escolares; más que circulares eran verdaderos reglamentos tanto por su contenido como por lo extenso de la información. En estos documentos sobresalen los siguientes rubros: tiempo en que deberán hacerse los exámenes, alumnos que deben presentarse a examen, formación de los jurados, formas y duración de los actos, calificaciones y actas de examen, propuestas para premios y prevenciones generales. Para el Estado porfirista resultaba indispensable dar a conocer a la sociedad y en particular a los padres de familia los avances alcanzados en materia educativa y los logros que cada niño en particular obtenía, de allí la existencia de las fiestas que se organizaban con tal objetivo. Al respecto Mílada Bazant comenta el caso de los exámenes practicados en las escuelas del Estado de México: <<para las autoridades locales era motivo de orgullo, porque con ello confirmaban que habían participado activamente en el difícil proceso de alfabetizar e instruir a los niños, presionando asimismo a los padres de familia y a los maestros para que cumplieran con sus respectivas obligaciones>>.24 Para el gobierno liberal los resultados y los datos eran indispensables no sólo para justificar su proyecto educativo y político, sino también para obtener credibilidad frente a las élites; al parecer había una respuesta positiva de parte de educadores y pedagogos, que difundían algunos artículos sobre la temática. Al respecto se publicó el artículo titulado Los exámenes, en el que se señalaba la importancia de éstos como factor en la organización de la enseñanza y de la sociedad, y se indicaba lo siguiente: […] Si, pues, los exámenes son el mejor procedimiento de selección, entre los individuos; si los programas de los exámenes

Mílada Bazant, En busca de la modernidad. México, Colegio mexiquense, 2002, p. 188 24

31


son guías buenas, las recompensas adjudicadas en vista del resultado de los exámenes, son estímulo.25 Por esta razón las autoridades procuraron ofrecer resultados, aunque en muchos casos fueron limitados y expresaron las dificultades que enfrentó la educación; el principal obstáculo era el ausentismo escolar; las razones variaban pero la realidad era que los niños faltaban a clase y llegaban tarde. Las autoridades educativas buscaron la forma de atraer población escolar y sobre todo de convencer a los padres de familia con resultados de que la educación era necesaria e importante. En este sentido la organización de fiestas para premiar el esfuerzo de los niños durante el año escolar y exaltar el trabajo de los mejores alumnos y por supuesto de sus buenos profesores fue una práctica que se convirtió en un verdadero ritual. Para la élite educativa este éxito representaba no sólo la nota aprobatoria, sino fundamentalmente la asimilación de valores, conductas y disciplinas que dieran como resultado la conformación de nuevas generaciones de ciudadanos. En este sentido la disciplina que imponía el sistema escolar priorizaba el ordenamiento mental del niño con el fin de que éste asimilara tiempos, movimientos, reglas y normas. Así, la vida del niño en el interior de la escuela debía ser altamente disciplinada y por supuesto regulada por tiempos precisos. Su éxito, como lo indica Foucault, <<se debe sin duda al uso de instrumentos simples: la inspección jerárquica, la sanción normalizadora y su combinación en un procedimiento que le es específico: el examen>>.26 Por tanto el examen era la expresión del conocimiento que el alumno había adquirido del maestro, de la escuela y de la autoridad.

La escuela moderna, "Los exámenes. Desde el punto de vista pedagógico", t. IV. Núm. 3, abril, 1893, p. 41 25

26

Michel Foucault, Vigilar y Castigar, México, siglo XXI, 1986, p. 175

32


Rosalía Méníndez Martínez. PhD en Historia por la Universidad Iberoamericana, México. Miembro del Sistema Nacional de Investigadores (Consejo Nacional de Ciencia y Tecnología). Profesor de tiempo completo para la Maestría en Desarrollo Educativo e Investigador en el Cuerpo Académico: Historia, Cultura y Educación, en la Universidad Pedagógica Nacional, México. Publicaciones recientes: "Los libros de Texto de historia utilizados en las escuelas primarias de la ciudad de México, 1877-1911" en Lecturas y lectores en la Historia de México, (2004), "El juego y la educación: una experiencia para las escuelas primarias de la ciudad de México, a finales del siglo XIX" en Memoria in Extenso CD, IX Encuentro Internacional de Historia de la Educación, Colima, México (2004), "Modernisation et emploi du temps dans les écoles primaires de la Ville de México, 1885-1911" en Paedagogica Historic, Internacional Journal of the History of Education, (2005), "Funciones Sociales de la Enseñanza de la Historia" en La Formación de una conciencia Histórica (2006) (en prensa). Dirección: Universidad Pedagógica Nacional, Carretera al Ajusco, 24, Héroes de Padierna, Tlalpan, C. P 14200, D. F. México. Eemail. rmenindez@upn.mx. Telf. (00 52 55) 56 30 97 00 ext. 1179. Fax: (00 52 55) 56 59 68 59

Recebido em: 10/04/2007 Aceito em: 15/11/2007

33


.


REFLEXÕES HISTÓRICAS EM TORNO DO (EVENTUAL) SUCESSO DA EDUCAÇÃO NOVA. O EXEMPLO DO INSTITUTO FEMININO DE EDUCAÇÃO E TRABALHO (1911-1942)∗ Joaquim Pintassilgo

Resumo Nas primeiras décadas do século XX encontramos referenciadas, na imprensa de educação e ensino, várias instituições escolares consideradas modelares, designadamente no que se refere à concretização de práticas pedagógicas inovadoras. O realce dado à sua exemplaridade tinha em vista, seguramente, a difusão de uma espécie de “boa nova” no seio do campo pedagógico. Pondo de parte a Escola Oficina Nº 1 de Lisboa quase sempre apresentada como um caso à parte no panorama educacional de então -, encontramos entre as mais emblemáticas das referidas instituições o Instituto Feminino de Educação e Trabalho. Procuraremos avaliar o carácter paradigmático desta instituição, analisando as referências que lhe são feitas, para além das opções pedagógicas aí assumidas, não deixando de ter em conta a complexidade da relação entre tradição e inovação. Aproveitaremos, também, para reflectir historicamente sobre as virtualidades e os limites, o sucesso e o insucesso, do projecto da Educação Nova, a partir do exemplo de uma instituição cuja longevidade, lugar na memória e resultados actuais nos remetem para uma “história de sucesso”. Palavras-chave: Educação Nova, Inovação, Sucesso Educativo HISTORICAL REFLEXIONS ON THE (POSSIBLE) SUCCES OF NEW EDUCATION. THE "INSTITUTO FEMININO DE EDUCAÇÃO E TRABALHO" (1911-1942) – AN EXEMPLE Abstract During the first decades of the XXth century references can be found in the educational and teaching press to various academic institutions ∗

O presente artigo resulta da adaptação da intervenção efectuada no Congresso da Sociedade Portuguesa de Ciências da Educação, realizado nos dias 26 a 28 de Abril de 2007 na Universidade da Madeira e subordinado ao tema «Educação para o sucesso: políticas e actores». Assim se compreende a ênfase colocada no tema do sucesso educativo, bem como a tentativa de reconstruir uma eventual história de sucesso educativo.


considered to be exemplary, namely with regard to the implementation of innovative pedagogic practices. The emphasis placed on their exemplarity was no doubt aimed at propagating some sort of “good news” in the heart of the pedagogic field. Leaving aside the “Escola Oficina Nº 1 de Lisboa” (Lisbon No. 1 School Workshop) – almost always presented as a case apart in the contemporary educational panorama – the Instituto Feminino de Educação e Trabalho (Education and Work Institute for Girls) was amongst the most emblematic of these institutions. Our aim is to evaluate the paradigmatic character of this institution, analysing references to it as well as the pedagogic options implemented there while bearing in mind the complexity of the relationship between tradition and innovation. We shall also take the opportunity to reflect historically on the virtues and limitations, the success and failure of the New Education project based on the example of an institution whose longevity, lasting reputation and current results reflect a “success story”. Keywords: New Education, Innovation, Educational Success REFLEXIONES HISTÓRICAS RESPECTO AL (EVENTUAL) ÉXITO DE LA EDUCACIÓN NUEVA. EL EJEMPLO DEL INSTITUTO FEMENINO DE EDUCACIÓN Y TRABAJO (1911-1942) Resumen En las primeras décadas del siglo XX encontramos referenciadas, en la imprenta de educación y enseñanza, varias instituciones escolares consideradas modelos, designadamente en lo que se refiere a la concretización de prácticas pedagógicas innovadoras. El realce dado a su ejemplaridad tenía en vista, seguramente, la difusión de una especie de “buena nueva” en el seno del campo pedagógico. Poniendo de parte la Escuela Taller Nº 1 de Lisboa - casi siempre presentada como un caso apartado en el panorama educacional del periodo -, encontramos entre las más emblemáticas de las referidas instituciones el Instituto Femenino de Educación y Trabajo. Buscaremos evaluar el carácter paradigmático de esta institución, analizando las referencias que le son hechas, para mas allá de las opciones pedagógicas allí asumidas, no dejando de llevar en cuenta la complejidad de la relación entre tradición e innovación. Aprovecharemos, también, para reflexionar históricamente sobre las virtualidades y los límites, el éxito y el no éxito, del proyecto de la Educación Nueva, partiendo del ejemplo de una institución cuya longevidad, lugar en la memoria y resultados actuales nos remiten para una “historia de éxito”. Palabras-clave: Educación Nueva, Innovación, Éxito Educativo

36


Nas primeiras décadas do século XX encontramos referenciadas, na imprensa de educação e ensino, várias instituições escolares consideradas modelares, designadamente no que se refere à concretização de práticas pedagógicas inovadoras. O realce dado à sua exemplaridade tinha em vista, seguramente, a difusão de uma espécie de “boa nova” (a que chamaríamos hoje “boas práticas”...) no seio do campo pedagógico. Pondo de parte a Escola Oficina Nº 1 de Lisboa - quase sempre apresentada como um caso à parte no panorama educacional de então -, encontramos entre as mais emblemáticas das referidas instituições o Instituto Feminino de Educação e Trabalho (nome por que foi designado, durante algum tempo, o actual Instituto de Odivelas). Procuraremos avaliar o carácter paradigmático desta instituição, analisando as referências que lhe são feitas, para além das opções pedagógicas aí assumidas, não deixando de ter em conta a complexidade da relação entre tradição e inovação. Aproveitaremos, também, para reflectir historicamente sobre as virtualidades e os limites, o sucesso e o insucesso, do projecto da Educação Nova (em particular se perspectivado na longa duração), a partir do exemplo de uma instituição cuja longevidade (independentemente das fases que atravessou), lugar na memória e resultados actuais nos remetem para uma “história de sucesso”. Neste estudo analisaremos com mais detalhe o período de vida da instituição correspondente à designação Instituto Feminino de Educação e Trabalho (1911-1942). É uma fase relativamente coerente, marcada pelo espírito “republicano” decorrente da reorganização de 1911 (espírito esse que se mantém para além da República propriamente dita) e pela gestão carismática do Coronel Frederico Ferreira de Simas (19191941). Utilizaremos como fontes documentos que balizam ou expressam a actividade da instituição, tais como regulamentos, relatórios, discursos do Director, etc., bem como os abundantes artigos sobre ela publicados na imprensa pedagógica. Procuraremos articular o presente texto com dimensões diversas do que poderemos entender por sucesso educativo, não 37


esquecendo a mais óbvia – o sucesso escolar das alunas -, mas incluindo outras, tais como o sucesso (ou não) de um projecto global de formação de jovens do sexo feminino em regime de internato, formação essa que deveria incluir as diversas dimensões da sua personalidade (tendo por referência o ideal de uma educação integral) e o sucesso decorrente da própria (e invulgar) longevidade do Instituto, a par da preservação de uma certa aureola de qualidade, em parte justificada pela permanência, mesmo em contextos menos favoráveis, de práticas alternativas no âmbito da educação da mulher.

1. Do Instituto Infante D. Afonso ao Instituto de Odivelas Os primeiros passos no sentido da constituição do actual Instituto de Odivelas foram dados em 1898 por um grupo de oficiais do exército. O Estatuto original, consagrando a denominação «Instituto Infante D. Afonso», foi publicado no ano seguinte1 e a inauguração ocorreu no dia 14 de Janeiro de 1900, contando com a presença (e a subsequente protecção) da família real, e passando a integrar 17 alunas em regime de internato (Silva & Leitão, 1990). Numa fase inicial, segundo o Estatuto de 1904, o Instituto – considerado “um estabelecimento de instrução e beneficência” - destinava-se prioritariamente “à educação gratuita de órfãs de oficiais do exército activo e da armada e dos quadros ultramarinos”2.

Secretaria de Estado dos Negócios da Guerra. Direcção Geral – 3ª Repartição (1899). Estatuto do Instituto Infante D. Afonso, aprovado por Decreto de 9 de Março de 1899. Lisboa: Imprensa Nacional. 1

Secretaria de Estado dos Negócios da Guerra. Direcção Geral – 3ª Repartição (1904). Estatuto do Instituto Infante D. Afonso. Decreto de 11 de Maio de 1904. Lisboa: Imprensa Nacional, p.5.

2

38


Desde o início que é visível a finalidade de contribuir, não só para a formação geral das alunas, mas, particularmente, para a sua formação profissional, de modo a poderem “angariar honestamente os precisos meios de subsistência”. Nesta fase existe ensino primário (de 1º e 2º grau), um “curso complementar” de 3 anos, obrigatório para todas as alunas, e cursos profissionais em diversas áreas – magistério primário, telegrafia, escrituração comercial, entre outras, sendo o Instituto considerado, para todos os efeitos, “uma escola de habilitação para o magistério primário e uma escola industrial elementar de comércio”3. O facto de ser um estabelecimento vocacionado, desde a sua origem, para a educação feminina faz com que sejam incluídas no currículo, entre outras matérias, a “economia doméstica” e a “costura, corte de roupa branca e vestidos, bordados, rendas e flores”. Além disso, “a todas as alunas será ministrado praticamente o ensino de passar a ferro e engomar roupa branca, rudimentos de cozinha e a maneira de dirigir o serviço doméstico”. O carácter prático de muitas das aprendizagens – que se tornará uma imagem de marca do Instituto – é algo que se esboça a partir dos primeiros momentos. Tendo iniciado a sua actividade num palacete da Estrada da Luz em Lisboa, o Instituto instala-se definitivamente, em Novembro de 1902, após a realização de obras, no convento de Odivelas, onde, de resto, ainda hoje se encontra. O Director foi, até Outubro de 1911, o General Luiz Augusto Pimentel Pinto. Em 1910 o Instituto possuía já 110 alunas, número que irá sempre crescendo: 157 em 1915, 391 em 1926/27 (Silva & Leitão, 1990). No período por nós estudado manter-se-á próximo das quatrocentas alunas: por exemplo, em 1932/33 eram 385 (sendo 337 internas e 48 externas) e em 1937/38 eram 438 (sendo 317 internas e 121 externas)4. 3

Idem., p.13.

Anuário do Instituto Feminino de Educação e Trabalho. Anos Lectivos de 1928-1929 a 1937-1938. Odivelas: I.F.E.T., pp.45 e 139. 4

39


A implantação da República trouxe ao Instituto um conjunto importante de transformações, tendo inaugurado uma das suas fases mais criativas e bem sucedidas. Ainda no ano de 1910 é-lhe atribuída a curiosa designação de Instituto da Torre e Espada - “demasiado bélica para um colégio de meninas”, segundo Ferreira de Simas, seu futuro Director -, logo substituída, em Agosto de 1911, pela designação, bem mais expressiva, de Instituto Feminino de Educação e Trabalho5. Os documentos regulamentares publicados em 1911, em 1915, em 1921 e em 1930, este já durante a Ditadura Militar, e que têm grandes linhas de continuidade entre si, sem porem em causa o espírito inicial, reforçam a dimensão profissional dos cursos. O Instituto passa a ser definido como “um estabelecimento destinado a educar e preparar para a vida prática indivíduos do sexo feminino”6. Procura-se, ainda, actualizar as concepções relativas à educação da mulher e introduzir um conjunto de inovações pedagógicas derivadas da influência da chamada Educação Nova. Para além do ensino primário e do curso geral dos liceus, vão funcionar, com algumas flutuações ao longo desse período, entre outros, cursos de empregadas de escritório e do comércio, de correios e telégrafos, de auxiliares de química, de artes e ofícios (em várias áreas). É também criado o curso de preceptoras, em substituição do magistério primário, que será retomado em 1930. Em 1919 tomou posse como Director do Instituto o Coronel Frederico Ferreira de Simas (1872-1945), já anteriormente ligado à instituição, figura de relevo do campo pedagógico português de então, antigo Director da Escola Normal Feminina de Lisboa, por duas vezes Ministro da Instrução Pública, membro activo da Sociedade de Estudos Pedagógicos, 5

Idem., p.133.

Secretaria da Guerra – Repartição do Gabinete (1915). Regulamento do Instituto Feminino de Educação e Trabalho. Decreto n.º 1.868, de 12 de Junho de 1915, publicado em 4 de Setembro de 1915. Lisboa: Imprensa Nacional, p.5.

6

40


entre outras funções (Nóvoa, 2003; Vilela, 1998). Ferreira de Simas manter-se-á à frente do Instituto até 1941 (ou seja: 22 anos) e marcará decisivamente pelo seu estilo de liderança, pelas concepções relativas à educação feminina e pelo projecto de concretização duma pedagogia experimental toda a vida e organização da instituição. Ferreira de Simas conseguiu, na difícil transição da República para o Estado Novo, adaptar-se ao novo contexto, preservando a coerência do projecto e mantendo a sua vitalidade e carácter inovador. Só em 1941 o regime salazarista decide dar por finda a etapa “republicana” do Instituto, demitindo o Director (substituído pela professora Aida Conceição) e aproveitando para proceder a uma reorganização geral - começando pela mudança do nome para Instituto de Odivelas -, que o equipara a liceu nacional e a escola industrial e comercial (com um currículo semelhante ao das demais escolas públicas) e lhe retira a vocação profissionalizante. A sua identidade decorrente do facto de ser um estabelecimento de educação feminina é preservada, ainda que a perspectiva seja agora mais conservadora (e marcada, de novo, pelo catolicismo). É, no entanto, muito interessante o facto de se terem mantido algumas das práticas inovadoras associadas à fase anterior e acrescentado outras. Ao contrário de muitas outras escolas emblemáticas, que não conseguiram resistir à passagem do tempo e às transformações políticas, o actual Instituto de Odivelas entrou incólume na democracia e chegou à actualidade, adaptando-se aos novos tempos ao mesmo tempo que conseguia manter alguns traços duma identidade mais que secular (Leitão, 1980; Saraiva, 1978; Silva & Leitão, 1990; Vilela, 1998).

2. A construção da imagem de uma escola modelo Nos últimos anos tem sido notada a presença regular do Instituto de Odivelas no topo das listas de escolas relativas às classificações obtidas nos exames nacionais do 12º ano, tendo 41


conseguido, por exemplo, segundo o escalonamento do jornal Público, entre 500 a 600 escolas, o 2º lugar em 2002, o 17º em 2004 e o 27º em 20037. Não vou, neste contexto, discutir o significado e a fiabilidade desse “ranking”, alvo já de um amplo debate e de alguma investigação (Melo, 2005). Apenas me interessa chamar a atenção para o facto do Instituto de Odivelas corresponder ainda, no que a este particular se refere, à imagem que foi construindo ao longo do seu já longo percurso vital – uma escola caracterizada pela qualidade do seu ambiente de trabalho, capaz de proporcionar às suas alunas um ensino e uma educação rigorosas, de as conduzir à obtenção de bons resultados nos exames e à assunção da identidade institucional, bem expressa na expressão «meninas de Odivelas». Maria de Lourdes Loureiro (1999) estudou, em dissertação recente, o «clima de escola» do Instituto, tendo por base entrevistas à directora, a professoras e alunas, tendo identificado diversos factores que contribuem para a compreensão dos resultados obtidos. Embora se refira ao presente da instituição, não deixa de ser uma pesquisa que permite, igualmente, lançar um certo olhar sobre o seu passado. Segundo a autora, “as alunas confirmam que escolheram esta escola porque pensam que as pode fazer distinguir, serem melhores e gostam de estar na escola por causa do seu ambiente, disciplina, calma, organização e por causa da qualidade de ensino” (p. 96). A directora confirma essa indicação ao afirmar: “as nossas alunas são, regra geral, … alunas de sucesso” (p. 98). A forte identidade institucional – o «espírito de corpo» -, assumida por todas as que partilham vivências naquela «casa», é sublinhada pela autora e expressa-se, por exemplo, nos valores por elas interiorizados e que são alvo de inquérito: Podemos concluir que os valores das alunas e das professoras vão de encontro aos objectivos da escola Público, 7 Outubro 2002; Público, 2 Outubro 2004; Público, 27 Setembro 2003. 7

42


enquanto organização. Tendo como preocupação principal a formação moral, intelectual e física das alunas, a escola pretende desenvolver o sentido do dever, da honra e dos atributos de carácter, em especial a integridade moral, espírito de disciplina e a noção de responsabilidade, além de pretender facultar os conhecimentos e cultura indispensáveis ao exercício das suas carreiras profissionais e ministrar cuidada educação física para o equilíbrio psicossomático das alunas. Portanto, a escola está organizada de modo a proporcionar uma educação completa (Loureiro, 1999, p. 111)

Esta citação é muito curiosa por nos remeter, em particular, para as grandes permanências que podemos encontrar no percurso histórico do Instituto, designadamente no que se refere às suas finalidades e aos valores que lhe estão subjacentes, que poderiam, sem dificuldade, ser expressos através de documentos pertencentes a momentos históricos bem diferentes. O carácter de instituição vocacionada para a educação da mulher também contribui para a sua identidade própria. Como no passado, o Instituto incorpora no currículo “disciplinas de Culinária e de Puericultura, que constituem frequência obrigatória e que são específicas da escola” (Loureiro, 1999, p. 112). Depois de duas notas mais contemporâneas, vejamos alguns exemplos mais de natureza histórica que procuram confirmar a seguinte ideia: o Instituto foi considerado, com frequência, uma das instituições de referência no panorama educativo português. Nos balanços que Álvaro Viana de Lemos faz, na transição dos anos vinte para os anos trinta, do movimento renovador português, em alguns casos para apresentação em congressos internacionais ligados à Educação Nova, o Instituto surge entre os exemplos apontados de escolas que se aproximam, de alguma maneira, do paradigma de Escola Nova. Aquando da preparação da visita de Adolphe Ferrière a Portugal, que viria a ocorrer, em condições complexas, em Novembro de 1930, Adolfo Lima, em carta ao citado Viana de Lemos, inclui o Instituto na 43


restrita lista de instituições que estariam em condições de ser visitadas por esse dirigente do movimento renovador (Nóvoa, 1995). A visita acabou mesmo por acontecer, como podemos comprovar, mais tarde, a partir de um discurso de Ferreira de Simas: A imprensa portuguesa muitas vezes se refere com elogio ao Instituto e temos com orgulho, num importante jornal inglês, um longo artigo sobre a nossa escola, escrito pela secretária geral da Associação das Professoras das escolas menageres inglesas, que nos visitou, bem como o pedagogo suíço Mr. Ferrière que, após a sua visita nos dirigiu uma elogiosa carta e presenteou as alunas com trabalhos seus.8

Outro exemplo é-nos dado pelo «Certame de Festas Escolares», organizado, entre Maio e Junho de 1914, pela Sociedade de Estudos Pedagógicos, em articulação com uma «Exposição de Arte na Escola» (que acabou por se realizar mais tarde). Esta iniciativa tinha como finalidade chamar a atenção para o importante contributo que a arte poderia dar à educação: “Queremos que a Escola seja atraente, que a Escola seja para a criança um lugar de prazer e de alegria… Para tal conseguirmos, devemos pedir à Arte um auxílio indispensável”9. Uma das estratégias mais importantes para atingir esse desiderato seria, na opinião da Sociedade, a organização de “festas escolares” pelas escolas que se inscrevessem no concurso, festas essas que seriam avaliadas por um júri, sendo premiadas as que mais se distinguissem. A ideia de “estabelecer um tipo de festa escolar educativa”, sem “quaisquer propósitos políticos”, tendo as crianças, e não os adultos, como protagonistas principais surgiu, Anuário do Instituto Feminino de Educação e Trabalho. Anos Lectivos de 1928-1929 a 1937-1938. Odivelas: I.F.E.T., p.136. 8

Crónica social. O Certame de Festas Escolares. Revista de Educação Geral e Técnica, Série III, Nº1, Julho 1914, p.57. 9

44


na sequência de vários debates sobre as frequentes festas cívicas, de cariz laico e republicano, que então ocorriam e que recorriam à participação infantil. Vários membros da Sociedade criticaram, em diversos momentos, o seu carácter político e a violência que acabavam por representar para as crianças. As festas escolares surgiam, em certa medida, como a alternativa pedagógica às festas cívicas e nelas poderiam utilizar-se “o teatro infantil, o canto coral, a prelecção, os cortejos, os jogos e danças escolares”10. Entre as escolas concorrentes ao referido certame estava o Instituto. A Acta da sessão do júri, datada de 11 de Julho de 1914, dá conta dos resultados: Depois da troca demorada de impressões sobre as festas presenciadas, resolveu-se conceder o 1.º prémio ao Instituto Feminino de Educação e Trabalho, o 2.º à Academia de Estudos Livres, e o 3.º ao Liceu de Pedro Nunes, além dos respectivos diplomas. Também se resolveu conceder diploma de menção honrosa aos Recreatórios Post Escolares, ao Asilo de D. Maria Pia, ao Pensionato das Laranjeiras, Instituto Luso-Germânico, Escola Nacional, Pupilos do Exército, e ainda à Escola Oficina N.º 1 e Escola Académica, embora não houvessem concorrido ao certame das 11 festas.

A lista anterior acaba por ser um bom roteiro de escolas da região de Lisboa que podem ser consideradas inovadoras e dá conta do prestígio que o Instituto já granjeava nos meios pedagógicos de então. Disso dão conta, igualmente, os frequentes convites para actuação das alunas em espectáculos desportivos ou artísticos. No ano lectivo de 1930/31, 60 alunas dos últimos anos foram a Leiria “fazer, no Stadium, uma demonstração de 10

Idem.

Arte na escola. Certame de festas escolares. Acta da sessão do júri. Revista de Educação Geral e Técnica, Série III, Nº2, Outubro 1914, p.189.

11

45


Ginástica e jogos e, no teatro, uma demonstração do seu aproveitamento literário”. Segundo o seu orgulhoso Director, “as alunas, como sempre, souberam manter elevado o nome do Instituto, conquistando fartos e entusiásticos aplausos”12. No ano lectivo de 1933/34, efectuou-se uma excursão ao Porto, para assistir à Exposição Colonial aí realizada. No liceu Carolina Michaelis foi apresentada “uma exposição de fotografias do Instituto e trabalhos escolares”, que “foi muito visitada e apreciada”, tendo um grupo de alunas executado “alguns números de ginástica rítmica que foram muito aplaudidos”13. Um outro exemplo, este referente ao ano lectivo de 1937/38, é-nos dado no respectivo relatório: Na educação física evidenciaram-se notavelmente as nossas educandas, pois que, no Concurso de Ginástica Educativa realizado este ano no Liceu Camões, por iniciativa do Ginásio Clube Português, obtiveram as duas melhores classificações e receberam as duas taças correspondentes.14

Outro bom exemplo é o constituído pelos relatórios dos presidentes dos júris dos exames realizados às alunas do Instituto, geralmente professores ou professoras liceais estranhas à instituição. As referências são, habitualmente, muito elogiosas. José Alves de Oliveira, professor do Liceu Passos Manuel, no relatório referente ao ano escolar de 1931/32, depois de reflectir com detalhe sobre o papel do Director, a selecção das alunas, o carácter de internato e sua organização pedagógica, conclui que “com esta organização não é de admirar que no I.F.E.T. fosse tão

Anuário do Instituto Feminino de Educação e Trabalho. Anos Lectivos de 1928-1929 a 1937-1938. Odivelas: I.F.E.T., p.30. 12

13

Idem., pp.78-79.

14

Idem., p.141.

46


lisonjeiro o êxito obtido pelas 11 alunas que fizeram exame do Curso Preparatório”15. No relatório correspondente ao ano lectivo de 1933/34, o professor J. Guerreiro Murta considera poder-se concluir “que os resultados dos exames, tanto do 1.º ciclo como do 2.º, foram brilhantes, pois das 62 examinandas, apenas uma ficou reprovada, havendo 5 distinções”. Na sua opinião, “as causas deste belo rendimento podem encontrar-se sem dificuldade” e são as seguintes: a organização pedagógica do Instituto; o regime de internato; a competência e dedicação do professorado; a selecção e avaliação rigorosa das alunas16. Nos seus relatórios anuais o próprio Director do Instituto faz questão de sublinhar o sucesso das alunas, apresentando os dados estatísticos que o comprovam. O que ele designa por “rendimento” ou “aproveitamento” escolar foi habitualmente elevado; só dois exemplos, no que se refere ao “rendimento geral” (incluindo os diversos cursos): 86% em 1932/33 e 84,4% em 1933/34. Mesmo assim, procura reflectir sobre a possibilidade de fazer diminuir as “perdas” em alguns cursos. Para Ferreira de Simas, “desde o seu início esta casa tem evolucionado constantemente, procurando ser uma escola do seu tempo”17. Noutro discurso fala do Instituto como “escola progressiva que sempre tem procurado ser” e dá o exemplo do sucesso na colocação profissional das antigas alunas e da excelência do seu desempenho: O facto de serem procuradas as nossas educandas para desempenhar as funções de preceptoras em casas particulares e colégios e a boa conta que de si dão as empregadas em casas comerciais e em laboratórios

15

Idem., p.41.

16

Idem., p.84.

17

Idem., p.69.

47


químicos, são também indícios seguros da eficácia do ensino aqui ministrado.18

Muitos outros exemplos poderíamos retirar da imprensa pedagógica ou da documentação decorrente da sua actividade para justificar a ideia de que ao longo da sua existência, e designadamente no período aqui destacado, o Instituto Feminino de Educação e Trabalho surgiu, tanto nos discursos produzidos no seu interior como nos produzidos no exterior da instituição, como escola “modelar”, “exemplar”, etc. Para além da eventual justiça da adjectivação, estes discursos não deixam de ser expressão de uma estratégia do campo pedagógico renovador para procurar fazer inflectir o nosso rumo educativo através da apresentação de bons exemplos, de escolas modelares, cujo carácter paradigmático deveria ser seguido por todas as outras.

3. Algumas reflexões em torno do projecto educativo do Instituto Feminino de Educação e Trabalho O Instituto praticou sempre o regime de internato, embora mantivesse regularmente alunas externas. Essa opção possuía uma já longa tradição nas instituições educativas religiosas e mesmo as experiências das chamadas Escolas Novas, então em desenvolvimento, privilegiavam o internato. As razões de umas e de outras não deixavam, certamente, de ter alguma proximidade. Como já vimos, em alguns dos relatórios de presidentes de júris de exames o internato surge como uma das razões para o sucesso das alunas. Os discursos e relatórios de Ferreira de Simas enfatizam também essa dimensão, como acontece numa das suas referências aos cursos de formação de professoras e preceptoras existentes no Instituto: “O internato para formação do professorado primário, como para a formação dos sacerdotes, é geralmente reconhecido 18

Idem., p.122.

48


como o melhor sistema educacional, pois é possível, quando bem organizado, criar o ambiente que desperta e fortalece a vocação”19. Não deixa de ser significativa a analogia feita entre o professor e o sacerdote, bem como a invocação do recorrente tópico da “vocação” associada ao magistério. Noutro passo do mesmo discurso, o Director reafirma a ideia de que “o Instituto é um internato onde se procura, e muito se consegue, atenuar os defeitos dos internatos”20. Esse esforço surge associado à consideração do Instituto como “uma grande família” e “um lar melhorado”, sendo um lar, para ele, “um conjunto harmónico de conforto, de ordem, de asseio, de trabalho e de mútua dedicação”21. O regulamento de 1921, por exemplo, considera que as educadoras representam, na instituição, “a família da aluna”22. Um dos presidentes de júris de exames – José Alves de Oliveira – afirma que, apesar de não desconhecer “as objecções que se fazem contra a educação de internato propriamente dito”, no caso do Instituto, e na sua opinião, “o internato só tem vantagens”. Entre elas encontram-se as seguintes: “a acção educativa é mais directa, regular e contínua, e por isso mais intensa e eficaz”; há um “incomparavelmente maior aproveitamento do tempo e energia”23. As citações anteriores são, a nosso ver, muito significativas no que se refere às razões da opção pelo internato. Através dele pretende-se influir, de forma mais eficaz, na formação global de cada uma e do colectivo das alunas, dirigindo e vigiando 19

Idem., p.28.

20

Idem., p.29.

21

Idem., pp.105-106.

Regulamento do Instituto Feminino de Educação e Trabalho. Ordem do Exército, 1ª Série, Nº3, 5 Março 1921, p.89. 22

Anuário do Instituto Feminino de Educação e Trabalho. Anos Lectivos de 1928-1929 a 1937-1938. Odivelas: I.F.E.T., p.40. 23

49


o seu quotidiano, reprimindo “vícios e defeitos” e incentivando “bons sentimentos e qualidades”24. Dessa forma as alunas estariam permanentemente mergulhadas num ambiente intencionalmente organizado para ser plenamente educativo e moralizador. Podia-se, assim, mais facilmente, obstar às influências nefastas do exterior (mesmo da família), no que diz respeito aos hábitos higiénicos e alimentares ou à disciplina das alunas. A organização detalhada do tempo no internato tornava quase natural a interiorização de valores como a ordem, o asseio ou o trabalho. A metáfora da família envolvia o colectivo num ambiente de afectividade fundamental para o êxito de qualquer projecto educativo e procurava atribuir-lhe um carácter orgânico, tornado mais necessário pelo facto de estarmos perante crianças e jovens raparigas prematuramente retiradas à família. Finalmente, uma organização tida por racional do trabalho era vista como decisiva para a obtenção de bons resultados escolares, para além de que, segundo outro relator, J. Guerreiro Murta, a Odivelas de então era uma “povoação tranquila, afastada do bulício da capital onde o estudo das alunas decorre com calma”25. Era essa mesma razão que levava a que as Escolas Novas procurassem estar preferencialmente localizadas no campo, ainda que perto de uma cidade (para aceder à suas actividades culturais), acrescidas de uma proximidade com a natureza, considerada fundamental nos projectos inovadores do tempo, muito marcados pelo naturalismo pedagógico, e claramente possível no Instituto de Odivelas que possuía amplos jardins e terrenos agrícolas. Podemos referenciar, em articulação com a opção pelo internato, a existência de um projecto de formação integral das jovens alunas a cargo do Instituto. A regulamentação minuciosa Regulamento do Instituto Feminino de Educação e Trabalho. Ordem do Exército, 1ª Série, Nº3, 5 Março 1921, p.89. 24

Anuário do Instituto Feminino de Educação e Trabalho. Anos Lectivos de 1928-1929 a 1937-1938. Odivelas: I.F.E.T., p.85. 25

50


de tudo o que se refere à vida e ao trabalho no Instituto designadamente os aspectos ligados à gestão do tempo, do espaço, do currículo e da disciplina, assim como de toda a organização pedagógica do estabelecimento - tinha subjacente a si a ambição de atingir as diversas dimensões da personalidade das educandas. O Instituto tinha como uma das suas metas proporcionar uma formação intelectual exigente e rigorosa às suas alunas. Como também já vimos, as actividades ligadas à educação física constituíam outra das imagens de marca da instituição. Segundo o regulamento de 1915 eram obrigatórios, funcionando paralelamente aos restantes cursos, os de “trabalhos manuais e economia doméstica”, “educação física”, “música, canto coral e instrumentos” e “educação moral”26. O diploma de 1911 considera que a educação física “tem por fim conservar não só uma boa saúde entre as alunas, mas também torná-las robustas, ágeis e graciosas”, nela incluindo “ginástica, jogos, dança e excursões”. O mesmo documento enfatiza, nesse contexto, o papel da educação estética: À educação tanto física como moral ligar-se-á a educação estética, que compreende: canto, recitação, desenho, fotografia, modelação, culto das flores e visitas aos museus de arte e outros lugares que possam servir de iniciação estética tendente a formar nas almas a aptidão para amar, compreender e distinguir o belo.27

Actividades que relacionavam as diversas dimensões educativas, designadamente “excursões escolares”, “passeios”, “festas” e “jogos de carácter educativo” eram, na verdade, muito frequentes. O relatório referente ao ano escolar de 1934/35, por

Regulamento do Instituto Feminino de Educação e Trabalho. Decreto nº1.868, de 12 de Junho de 1915, publicado em 4 de Setembro de 1915. Lisboa: Imprensa Nacional, p.6. 26

27

Ordem do Exército, 1ª Série, Nº19, de 28 de Agosto de 1911, p.1881.

51


exemplo, relata a realização de “33 visitas de estudo e excursões”28. O calendário anual incluía pelo menos três festas: a Festa do Trabalho, em Janeiro; a Festa de Beneficência pelo Carnaval; e a Festa das Flores em Maio29. Além disso, comemorava-se anualmente, no dia 14 de Janeiro, o aniversário da instituição em cerimónias solenes que contavam com a presença de entidades oficiais. Estas festas assumiam-se como rituais tendentes a fortalecer a identidade organizacional e a reforçar o prestígio externo da instituição. Aos domingos realizavam-se habitualmente sessões educativas com uma forte componente artística e cultural, que incluíam, entre outras actividades, música e canto coral, conferências sobre temas diversos e jogos. Em discurso proferido em Janeiro de 1929, o Director dá bem conta de qual a perspectiva predominante no Instituto a propósito da “educação integral da mulher”, expressão usada pelo próprio Ferreira de Simas: No entanto o Instituto, escola do seu tempo, não quer que as suas educandas se confinem nas suas casas, honradas com o pomposo mas duro título de anjo do lar à moda antiga, fiando o linho, raras vezes vendo o sol ou admirando o céu. Longe disso! O Instituto ministroulhes a educação física, iniciou-as nos desportos, pô-las em contacto com a Arte, e ensinou-as a amar o Sol benfazejo e o ar livre e puro.30

A existência de um projecto de formação integral das alunas - ainda para mais num contexto favorável a esse desiderato Anuário do Instituto Feminino de Educação e Trabalho. Anos Lectivos de 1928-1929 a 1937-1938. Odivelas: I.F.E.T., p.94. 28

Regulamento do Instituto Feminino de Educação e Trabalho. Decreto nº1.868, de 12 de Junho de 1915, publicado em 4 de Setembro de 1915. Lisboa: Imprensa Nacional, p.30. 29

Anuário do Instituto Feminino de Educação e Trabalho. Anos Lectivos de 1928-1929 a 1937-1938. Odivelas: I.F.E.T., p.11. 30

52


como era o de internato - fazia com que a educação moral fosse uma área de enorme centralidade. Segundo o Director, “a educação moral tem naturalmente merecido no Instituto cuidados não inferiores aos que lhe merece a instrução”. O que se pretende é fazer com que as alunas amem “o Bem e a Verdade” e isso será possível, em particular, mergulhando-as num “ambiente de bondade”, como é o representado pelo Instituto31. Além disso, seguem-se estratégias diversificadas que incluem o ensino directo da moral em sessões dominicais, a colaboração da família, o estudo atento do carácter de cada aluna, os louvores, os castigos ou a própria participação activa das alunas. É esta última situação que está na base dos vários projectos mutualistas e cooperativos desenvolvidos na instituição, que têm em vista, segundo o relatório de 1933/34, “incutir nas alunas os hábitos de previdência, do cooperativismo e da solidariedade que tem por base o trabalho, a justiça, a honra e a probidade”32, aproximando-se, assim, das iniciativas então concretizadas em Portugal na óptica do selfgovernment, de que são exemplo as associações estudantis conhecidas por «Solidárias». A estratégia mais valorizada é, no entanto, e numa linha aparentemente tradicional, a representada pelo exemplo pessoal do educador: O educador terá sempre presente que é como um modelo vivo que as alunas copiam constantemente... As professoras internas, especialmente, serão as companheiras e conselheiras das alunas em cada momento, e cabe-lhes, portanto, a missão de lhes formar o carácter, desenvolvendo e fazendo medrar os germes dos bons sentimentos e qualidades, extirpando radical, mas

31

Idem., p.123.

32

Idem., p.78.

53


cautelosa e prudentemente, os vícios ou defeitos que porventura apresentem.33

O enquadramento e a vigilância das alunas é, pois, uma constante, está presente a todo o momento, em qualquer espaço e procura atingir todas as dimensões das suas vivências e personalidades. É isso que permite ao Director declarar, de ano para ano, como em 1930, “a disciplina manteve-se como não podia deixar de ser”34. Em 1937 esse balanço optimista é um pouco mais detalhado e justificado: Pode dizer-se duma maneira geral que as alunas, a despeito da liberdade de que gozam e da forma paternal como são tratadas pelo pessoal educador, têm bom comportamento, demonstrando sempre que esse tratamento não exclui o respeito que devem aos seus educadores. O número de castigos publicados em ordem, aplicados no ano lectivo que terminou foi de 8 e o número de alunas castigadas, 6... As faltas são quase sempre a não comparência a um serviço sem motivo justificado, ou uma saída para fora dos recintos onde devem manter-se. Uma ou outra vez uma resposta impensada reclama a sanção correspondente que em regra não se faz esperar.35

De resto, desde o seu início que os regulamentos do Instituto determinavam, como acontece no de 1915, que “são absolutamente proibidos os castigos corporais e também os que

Regulamento do Instituto Feminino de Educação e Trabalho. Decreto nº1.868, de 12 de Junho de 1915, publicado em 4 de Setembro de 1915. Lisboa: Imprensa Nacional, p.29. 33

Anuário do Instituto Feminino de Educação e Trabalho. Anos Lectivos de 1928-1929 a 1937-1938. Odivelas: I.F.E.T., p.21. 34

35

Idem., p.115.

54


deprimem ou vexem as alunas ou afectem a dignidade”36. O apelo principal vai no sentido de uma gradual auto-regulação dos comportamentos das alunas por elas próprias. O controlo deve, em parte, revestir a forma de auto-controlo. Entre os deveres sistematizados no regulamento encontram-se os seguintes: “conviverem bem entre si, constituindo todas uma verdadeira família em que haja partilha recíproca de respeito, afeição, auxílio, sacrifícios, benefícios e trabalho”; “comportarem-se sempre por forma que honrem a instituição”; “concorrerem, no limite das suas forças, para a disciplina e para a ordem e arranjo do alojamento” e “declararem espontaneamente e sempre a verdade, ainda quando de tal declaração lhes possa vir responsabilidade ou castigo”. Às alunas mais velhas são atribuídas algumas “regalias” em troca de mais “responsabilidades”, tendo como objectivo “gradualmente as habituar a dispensarem tutela e vigilância”37. A aposta da instituição é, claramente, no que se refere à educação moral e à disciplina, e em consonância com os movimentos de renovação pedagógica, na aquisição, por parte das educandas, da capacidade para o “governo de si próprio”. Para se atingir esse estádio é necessária, nessa óptica, uma permanente vigilância e tutela por parte dos educadores, para além de práticas tendentes à construção de um forte sentimento de identidade tendo por referência os valores centrais da instituição. Elemento central do referido projecto é o conhecimento profundo das alunas que se aspira concretizar por via da realização de “testes mentais”, tendo em vista uma selecção rigorosa e a orientação profissional das alunas. No relatório relativo ao ano escolar de 1933/34 Ferreira de Simas desenvolve um conjunto de reflexões sobre esse assunto, articulando-o com os problemas Regulamento do Instituto Feminino de Educação e Trabalho. Decreto nº1.868, de 12 de Junho de 1915, publicado em 4 de Setembro de 1915. Lisboa: Imprensa Nacional, p.27. 36

37

Idem., p.24.

55


decorrentes da relação entre a escola e a família. Na sua opinião, a orientação profissional - na linha das recomendações aprovadas no “Congresso Internacional de Educação Nova em 1932” - deve ter por base um “exame completo da criança que vise todos os aspectos da sua personalidade fisiológica, psicológica, patológica e psiquiátrica”. Só a partir desse exame, que determinará o “valor intelectual” de cada aluna, ao qual se deverão juntar as informações das famílias sobre os seus antecedentes, a observação das suas “qualidades morais” pelas professoras e a “ficha sanitária” elaborada pelo médico da instituição, é que se poderá, a partir de uma formação geral, “fazer a rigorosa selecção para os diversos cursos”. Como nota a seguir o Director, “nem sempre as famílias se conformam com a opinião do Conselho Escolar”, o que está na origem de algumas controvérsias38. Bem na linha da pedagogia experimental, então em fase de apogeu, a instituição chega, aliás, a fazer experiências para determinar as causas do insucesso de algumas alunas, encaminhando-as depois para tratamento médico, como nos diz Ferreira de Simas: Baseado em experiências e estudos diversos, diz o Dr. [Faria de] Garção [médico de Coimbra] que não pode acusar-se cientificamente uma criança de preguiçosa, sem que se tenha feito um minucioso exame físico e mental da suposta mandriona. A maioria das vezes a correcção da preguiça ou da falta de atenção será mais obra do médico do que do pedagogo... Vejamos o que se passa com as nossas alunas. Vinte alunas do Curso Preparatório, cujos coeficientes de inteligência variavam entre 85 e 106, e cujo rendimento escolar não correspondeu àqueles graus de inteligência... foram observadas pelos especialistas de oftalmologia e de otorinolaringologia do Hospital da Estrela, tendo-se encontrado 16 com adenóides, algumas para operar

38

Idem., p.81.

56


imediatamente e uma com um defeito incurável da visão que explica também a sua falta de atenção.39

O controlo praticado pela instituição sobre os hábitos e o quotidiano das alunas, tendo em vista um projecto de educação integral, concretiza-se, na verdade, de modo muito particular na vigilância da sua saúde, higiene e alimentação. Dos relatórios anuais consta sempre uma avaliação do “estado sanitário” das educandas, bem como as medidas tomadas no âmbito de uma proclamada “cruzada de robustecimento das alunas”. Em 1934/35 considera-se “que as alunas gozam aqui de excelente saúde”, enumerando-se a seguir, como sempre, os tipos de doenças e o número de casos. Predominavam então “anginas”, “constipações”, “gripe”, “sarampo”, etc. Uma alimentação cuidada e programada, tendo por base “tabelas estabelecidas segundo os princípios da higiene alimentar” é a principal razão aduzida, em vários momentos, para a excelência constatada40. No relatório de 1932/33 Ferreira de Simas volta a destacar “o magno problema da alimentação”, afirmando que ele “merece tanto desvelo como a instrução ou a educação” e enumera os diversos autores por ele estudados para fundamentar as opções a tomar. Uma delas consistiu em fazer “entrar na alimentação as hortaliças e legumes em larga escala”41. Mais tarde, em 1937/38, detalha-se a explicação sobre a saúde das alunas: É que no Instituto procura-se não deixar adoecer as alunas. A ginástica, a vida ao ar livre, a alimentação sóbria mas substancial e racional, os tónicos, os fortificantes, receitados pelos clínicos do estabelecimento, os exames médicos periódicos a todas as alunas, impedem

39

Idem., pp.75-76.

40

Idem., p.96.

41

Idem., p.50.

57


ou pelo menos reduzem notavelmente o número de doentes.42

Todas as experiências desenvolvidas no Instituto são a expressão de um contexto que concede um grande protagonismo, no terreno da educação, aos contributos dos médicos e da medicina, em que o discurso higienista penetra profundamente o pensamento e as práticas educativas, em que o experimentalismo pedagógico conhece o seu auge e tudo isto no âmbito institucional de um internato que tem por meta a educação integral de um conjunto de crianças e jovens do sexo feminino e que pretende contribuir para a regeneração moral da sociedade. As perspectivas inovadoras e, mesmo, libertadoras, associadas, por exemplo, à importância da educação física, das actividades artísticas ou de uma alimentação racional, harmonizam-se, de forma mais ou menos coerente, com todo um conjunto de práticas educativas que privilegiam um controlo rigoroso sobre o corpo e a mente das educandas, designadamente através da vigilância constante por parte das educadoras, dos “testes mentais” ou de práticas rituais tendentes à inculcação de valores como a ordem, a disciplina, o trabalho, a família, a verdade, a solidariedade, entre outros. O projecto educativo do Instituto é, desse ponto de vista, e não obstante o seu carácter alternativo, um projecto fortemente integrador. Outro dos elementos mais interessantes desse projecto é o que se refere à concepção de educação feminina que lhe está subjacente e que está bem documentada no discurso proferido por Ferreira de Simas no 35º aniversário da instituição: Reconhecendo que a guerra veio mostrar que a mulher era capaz de bem exercer todas as profissões que até aí eram privilégio exclusivo dos homens, não podemos esquecer que os tempos vão sendo de reacção contra os factores que arrancam a mulher ao lar, para a lançar, a 42

Idem., p.142.

58


maior parte do dia, nas oficinas, nas lojas ou nos escritórios, favorecendo assim a desagregação da família, alicerce fundamental da constituição do Estado e natural centro de formação do coração e da razão dos pequeninos. Assim, se a organização com que a República dotou em 1911 o então Instituto D. Afonso, fez salientar a importância da preparação das futuras donas de casa, o Instituto de agora procura cada vez mais desenvolver e melhorar as condições desse ensino... Outros cursos se professam hoje no Instituto para uma emergência, para um caso em que a necessidade obrigue a um trabalho exterior; mas procura-se, sobretudo, incutir nas educandas o gosto pelo trabalho doméstico em todas as suas modalidades.43

Esta perspectiva, herdeira do pensamento dominante no republicanismo acerca da educação feminina, vai permear o projecto educativo do Instituto até à demissão de Ferreira de Simas e à reorganização de 1942, que torna prevalecente uma opção mais conservadora sobre o trabalho da mulher e sua função social, ao mesmo tempo que extingue a componente de formação profissional presente até aí no currículo do Instituto. Aquela era, mesmo assim, uma perspectiva marcada por alguma ambivalência. Embora se valorizasse a educação da mulher, o objectivo principal - pelo menos do ponto de vista retórico - era formá-la como mãe, esposa e dona de casa conscienciosa, competente e de uma moralidade irrepreensível. Pretendia-se, em particular, que as mulheres fossem as educadoras por excelência dos seus filhos e não apenas “a menina prendada de outrora”44. A preparação para uma profissão tinha em vista, segundo Ferreira de Simas, acorrer aos casos de necessidade e destinava-se, provavelmente, às alunas de menores recursos ou que não chegassem a constituir família. A preservação desta mesma família como instituição nuclear da sociedade - cuja estabilidade se acreditava ameaçada - era, de resto, 43

Idem., pp.69-70.

44

Idem., p.62.

59


uma das preocupações centrais deste discurso. Por isso, faziam tradicionalmente parte do plano de estudos áreas como a culinária, a puericultura, a higiene, a enfermagem, etc. Como já salientámos, o curso de economia doméstica e governo de casa era obrigatório para todas as alunas e paralelo aos restantes cursos. Além disso, insiste-se em vários momentos no facto de determinadas profissões serem mais apropriadas para o género feminino, como a relativa ao magistério primário, a de preceptoras, a de ajudante de farmácia e laboratório, a de modista, entre outras. A formação profissional feminina acabou por ser, mesmo assim, durante várias décadas, um elemento central da cultura de escola do Instituto e as práticas que lhe estavam associadas eram, em geral, muito marcadas pelas perspectivas da “escola activa”. As alunas mais velhas tinham, por exemplo, frequentes aulas práticas de puericultura e de culinária e o edifício do Instituto possuía todas as condições e os espaços adequados a essas práticas, designadamente creche, cozinhas, oficinas diversas, enfermaria, jardins e terrenos agrícolas, animais, etc. O Director, Coronel Frederico Ferreira de Simas, foi, durante o seu longo mandato de 22 anos, inquestionavelmente, o elemento dinamizador do original projecto educativo aqui descrito e da organização pedagógica que o corporizou e onde se procuravam harmonizar, de forma coerente e no contexto de um internato militar, práticas educativas inovadoras influenciadas pelas ideias da Educação Nova e da pedagogia experimental e perspectivas relativamente tradicionais sobre a função social da mulher e a especificidade da educação feminina na sua articulação com o “trabalho doméstico”. O papel central desempenhado por Ferreira de Simas foi bem notado por um dos relatores de exames nomeado para a instituição: O Instituto de Odivelas não tem vida rotineira. Nos seus serviços superintende um homem inteligente, culto e hábil, duma competência, como se diz numa palavra, que diz tudo.

60


A acção desse homem ali dentro é omnímoda, quer dizer, é contínua e abrange todos os serviços. O Director do Instituto, segundo ele próprio me declarou, pesquisa nos livros e nas opiniões das pessoas autorizadas as normas para se guiar na realização da sua obra. Inspira-se nas correntes modernistas cientificamente orientadas, sem abdicar da sua própria observação e experiência. Tudo o que ele vê, tudo o que ele ouve é passado pela fieira do bom senso, e só depois de posto à prova leva a marca legal de contrastaria.45

No caso do Instituto, sob a direcção de Ferreira de Simas, mas também nas igualmente longas direcções femininas que se lhe seguiram (protagonizadas por Aida da Conceição e por Deolinda Fonseca), fica bem claro o carácter decisivo de uma liderança forte e principal impulsionadora de um projecto educativo inovador, também ele bem nítido e preservando alguma da sua coerência ao longo do tempo, não obstante as mudanças de contexto e as diferentes fases por que passou a instituição. Registe-se aqui o facto do Instituto, e a própria acção de Ferreira de Simas à sua frente, terem conseguido transitar sem grandes convulsões da 1ª República para o Estado Novo. Na verdade, o projecto educativo (na sua versão republicana) mantémse intacto até à reforma de 1941-42. No discurso do Director mantêm-se, a partir da Ditadura Militar, os sinais de identificação com a República (termo que continua genericamente a usar) e, simultaneamente, de cumplicidade com o novo regime e alguns dos seus protagonistas, designadamente um dos Ministros da Instrução dessa fase, Cordeiro Ramos, várias vezes elogiado, e o Presidente da República, Marechal Carmona, presença habitual nas festas de aniversário da instituição. No relatório de 1936/37, Ferreira de Simas constata que “os homens do Estado Novo não têm ocultado a simpatia, o interesse que lhes merece o

45

Idem., p.39.

61


Instituto”46. A figura de Salazar não é referida nos seus discursos, mas o Instituto organiza, em 1938, uma homenagem ao governante (sem a sua presença), presidida pelo Director, “comemorando o 10º aniversário da sua posse do cargo de Ministro das Finanças de Portugal”47. No ano lectivo de 1937/38 a dirigente feminina do regime, Maria Guardiola, visita o Instituto, o que conduz à “inscrição das alunas na [recém-criada] Mocidade Portuguesa Feminina”48. No já referido relatório de 1936/37, as afirmações do Director parecem estar em consonância com o discurso já então prevalecente, ao considerar a escola “um santuário, um templo... em que se prega o amor da Família, da Pátria e o respeito pelas instituições vigentes e pelas crenças alheias e a sã moral, que é no fundo a moral cristã”49. A tese, glosada pelo regime, de que “Portugal não é um país pequeno” é por ele reafirmada, ao falar da Exposição Colonial do Porto50, e a “propaganda colonial” é, noutro momento, considerada uma “interessante propaganda”51. O culto da Pátria, que “quer continuar a ser grande e respeitada”, deve, na sua

46

Idem., pp.118-119.

Ministério da Guerra. Obra Tutelar e Pedagógica dos Exércitos de Terra e Mar (1938). Educação Cívica e Económica no Instituto Feminino de Educação e Trabalho. Homenagem do Instituto Feminino de Educação e Trabalho a S. Ex.ª o Doutor António de Oliveira Salazar, comemorando o 10º aniversário da sua posse do cargo de Ministro das Finanças de Portugal. Em 27 de Abril de 1938. Alocuções às alunas do Instituto pelo professor Tenente-Coronel José Ribeiro da Costa Júnior, em sessão a que presidiu o Director do Instituto, Coronel Frederico António Ferreira de Simas, e a que assistiu todo o corpo docente. Lisboa: Papelaria La Bécarre. 47

Anuário do Instituto Feminino de Educação e Trabalho. Anos Lectivos de 1928-1929 a 1937-1938. Odivelas: I.F.E.T., p.143. 48

49

Idem., p.117.

50

Idem., p.79.

51

Idem., p.52.

62


opinião, ser “a base da educação moral”52. Verdade seja dita que, se exceptuarmos o caso da “moral cristã”, estes já eram também alguns dos grandes valores da República. Não deixa de ser muito interessante (e nada linear) o caminho percorrido, nesta transição, por muitas das figuras do republicanismo e da Educação Nova. Nada disto obstou ao afastamento de Ferreira de Simas, em 1941, e à readaptação tardia da instituição que ele liderara aos novos tempos conservadores, agora com o novo nome de Instituto de Odivelas. No diploma de 1942, rascunhado pelo próprio Salazar (Vilela, 1998), justifica-se a reorganização, de forma algo injusta para a fase anterior, com os seguintes argumentos: Com o decorrer dos tempos e as vicissitudes da política os sãos princípios que presidiram à criação do Instituto foram sendo sucessivamente postos de parte... É manifesto que tal orientação, aliada à deficiente organização dos serviços e a um ensino sem finalidade ou de objectivo pouco desejável, não podia deixar de conduzir a resultados perniciosos. Mas é também evidente que, se se quiser continuar a assistir à educação das filhas dos servidores do Estado, a quem cabe a honra de assegurar a defesa da Pátria... têm de ser reintegrados no Instituto os princípios que presidiram à sua criação.53

Concluindo, e sistematizando, o enquadramento forte proporcionado pelo internato, um projecto educativo consistente, uma liderança carismática, práticas pedagógicas inovadoras e uma capacidade de adaptação aos novos contextos são algumas das razões que explicam o “sucesso”, em vários sentidos, do Instituto Feminino de Educação e Trabalho e a sua invulgar longevidade. O percurso desta instituição espelha, igualmente, o relativo sucesso (se perspectivado na longa duração) do conjunto de ideias e 52

Idem., p.117.

Reorganização do Instituto de Odivelas. Diário do Governo, I Série, Nº 301, 31 Dezembro 1942, p.1717. 53

63


práticas inovadoras que se desenvolveram na transição do século XIX para o século XX, sendo depois sistematizadas sob o rótulo da Educação Nova. Muitas delas - já que outras ficaram pelo caminho -, ainda que contextualizadas, fazem ainda hoje parte do património educativo a que nós, educadores, continuamos a recorrer no trabalho quotidiano com os nossos alunos.

Referências Leitão, M. N. (1980). Instituto de Odivelas. Esboço sobre a acção educativa do Instituto de Odivelas, ao longo dos oitenta anos da sua existência [s.l.: s.n.]. Loureiro, M. L. (1999). Clima de escola: o Instituto de Odivelas. Lisboa: Universidade Católica Portuguesa. Melo, B. P. (2005). Os circuitos da reflexividade mediatizada: apresentação de dados preliminares. Análise Social. Revista do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, XL (176), 3º trimestre 2005, 595-617. Nóvoa, A. (Dir.) (2003). Dicionário de Educadores Portugueses. Porto: Edições ASA. Nóvoa, A. (1995). Uma Educação que se diz Nova. In A. Candeias, A. Nóvoa, & M. H. Figueira. Sobre a Educação Nova. Cartas de Adolfo Lima a Álvaro Viana de Lemos (1923-1941) (pp.25-41). Lisboa: Educa. Saraiva, C. (1978). O Instituto de Odivelas: breve notícia histórica. Odivelas: Edição do Instituto de Odivelas. Silva, C. & Leitão, M. N. (1990). Instituto de Odivelas. Lisboa: [s.n.]. Vilela, A. M. (1998). O Instituto de Odivelas sob a égide do Estado Novo: continuidades ou mudanças na educação. 1926-1969. Lisboa: I.S.C.T.E. 64


Joaquim Pintassilgo - Centro de Investigação em Educação. Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa

Recebido em: 10/10/2007 Aceito em: 16/11/2007

65


.


EM DEFESA DO FILOSOFAR E DO HISTORICIZAR CONCEITOS CIENTÍFICOS Rochele de Quadros Loguercio José Cláudio Del Pino

Resumo Neste artigo, evidenciam-se alguns de nossos entendimentos sobre a utilização da História e da Filosofia da Ciência nas salas de aula de química tanto na escola básica quanto na formação inicial e continuada de professores. Pretende ser uma introdução de questionamentos nossos e de outros autores que trabalham com o ensino de química e ciências, bem como, um primeiro texto sobre as formas de trazer o conhecimento conceitual, histórico e filosófico para a sala de aula através da valorização do aluno, seus interesses e o ensino de química, buscando recuperar seu caráter narrativo e social. Palavras-chave: História e Filosofia da Ciência; Aula de Química. SUPPORTING THE PHILOSOPHIZING AND THE HISTORICITY OF SCIENTIFIC CONCEPTS Abstract This paper presents our understanding about History and Philosophy of Science in the chemistry classroom, both in school and in the initial and continuing teachers education. In this sense, this paper intends to: introduce questionings held by the author of this study and by other authors involved in chemistry and sciences teaching; and be a first insight on bringing the conceptual, historical end philosophical knowledge to the classroom taking into account the student's interests and the teaching of chemistry, aiming to retrieve its narrative and social characteristics. Keywords: History and philosophy of Science; Chemistry class. EN DEFENSA DEL FILOSOFAR Y DEL HISTORIAR: CONCEPTOS CIENTÍFICOS Resumen En este artículo, se evidencian algunos de nuestras comprensiones sobre la utilización de la Historia y de la Filosofía de la Ciencia en las aulas de química tanto en la escuela básica cuanto en la formación inicial y continuada de profesores. Pretende ser una introducción de cuestionamientos nuestros y de otros autores que trabajan con la enseñanza de química y ciencias, bien como, un primero texto sobre las formas de traer el conocimiento conceptual, histórico y filosófico para la clase a través de la valorización del História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, n. 23, p. 67-96 Set/Dez 2007 Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


alumno, sus intereses y la enseñanza de química, buscando recuperar su carácter narrativo y social. Palabras-clave: Historia y Filosofía de la Ciencia; Aulas de Química.

68


Considerações Iniciais A ciência em sua produção se constitui em diversas rupturas e descontinuidades, nosso artigo privilegia na própria escrita esse caráter não linear. Buscamos (re)conhecer algumas noções da filosofia e da ciência através das diferenças e semelhanças entre: escolas de pensamentos, tempos históricos ricos em rupturas e embates e momentos da sala de aula atual. Para tanto, utiliza-se como fomento às diferentes discussões aqui engendradas o pensamento grego. Os primórdios gregos da ciência têm aqui duas funções principais: mostrar o surgimento e as mudanças na ciência ocidental e, por outro lado, identificar o quanto o sistema escolar tal como se apresenta está próximo de uma escola de pensamento iniciada com Aristóteles e re-atualizada de modos diferentes, mas constante, em nossas salas de aula atuais. Cabe, enfim, explicitar a estrutura dos tópicos que se seguem, pois em cada um deles enfatiza-se um determinado aspecto da contemporaneidade das salas de aula ou da pesquisa em ensino tendo sempre como referentes excertos históricos que nos parecem significativos. Enfatiza-se no tópico Os objetos da filosofia da ciência a necessidade de inserção da História e da Filosofia da Ciência no currículo; segue-se em Tempo e Ditos sobre Filosofia uma pequena mostra das discussões que perpassam os porquês da própria filosofia; em A filosofia ocidental na/da Grécia antiga, destaca-se o nascimento desse saber junto às dificuldades dos professores para utilizá-lo em sala de aula; já em Difusão do conhecimento e verdades científicas, traz-se as relações de saber/poder constantes na ciência em todos os tempos; em Um abismo de 1000 anos, mostra-se a relação entre os diferentes processos de silenciamento na história e na sala de aula; no item A linguagem como ruptura e poder, busca-se evidenciar as dificuldades de romper e a importância dos saberes dos alunos; na discussão 69


"O" ou "Os" métodos científicos, se relativizam nossos saberes/poderes objetivados e, por fim, alguns tópicos sistematizadores em Buscando um processo de objetivação.

Os objetos da filosofia da ciência O ensino de química deixou por muitos anos de utilizar as contribuições da história e da filosofia das ciências na formação de alunos da Escola Básica e, também, na graduação de bacharéis e licenciados em química, cometendo assim um erro ao se manter na abordagem conteudista em detrimento da abordagem conceitual do conhecimento químico. Esse equívoco pode ter se dado no tocante ao entendimento, por parte de professores e curriculistas, sobre o valor que o conhecimento histórico e filosófico tem na abordagem de uma ciência, como a química, comprometida com o pensamento tanto ou mais do que a história e a filosofia. Como se deu esse distanciamento entre o currículo de química e o estudo de história e filosofia é algo perpassado por inúmeras questões, dentre elas uma cultura de aprendizagem voltada para a metodologia e o experimentalismo em ciência herdada dos primeiros movimentos na América Latina1 (década de 60) que se remetiam diretamente à pesquisa em ensino de ciências. Entretanto, não se esgota nessa cultura de aprendizagem, pois a mesma está associada a uma rede de discursos positivistas 1a. Conferência Interamericana de Educação Matemática (Bogotá, Colômbia, 1961) 1

1a. Conferência Interamericana sobre o Ensino de Física (Rio de Janeiro, Brasil, 1963) 1a. Conferência Interamericana sobre o Ensino de Química (Buenos Aires, Argentina, 1965) 1a. Conferência Interamericana sobre o Ensino de Biologia (São José, Costa Rica, 1965)

70


que datam de configurações epistemológicas e filosóficas de épocas anteriores. Isto é, o pensamento sobre o ensino de química voltado para o estudo do objeto e da metodologia científica é historicamente construído no próprio nascimento da ciência química e sua separação da mitologia e da narrativa. Nesse sentido pode-se voltar o olhar tal como faz Andery (1996) para o momento de clivagem primeiro entre a filosofia e as ciências que se deu no período helenístico2, separação de objetos e de espaço físico que só tendeu a se ampliar com o passar do tempo e com a definição de novos espaços disciplinares. No entanto, nunca houve tantos cientistas filósofos como agora e isso não se deve a uma evolução arbitrária do interesse intelectual (Santos, 2001, p. 30). A mecânica quântica resignificou o papel da ciência e voltou o olhar para um mundo em que o ato do conhecimento e o produto do conhecimento eram inseparáveis. Como coloca Santos, a ciência moderna legou-nos um conhecimento funcional do mundo que alargaram extraordinariamente as nossas perspectivas de sobrevivência. Hoje não se trata tanto de sobreviver, mas de saber viver (2001, p. 51). É entendendo essa nova positividade do saber que defendemos a inserção nas escolas de um espaço para filosofia que, como vimos, se recupera nas pesquisas científicas, e não apenas a filosofia da ciência, mas àquela que pensa a ética e o mundo. Para isso nos serve a história, para fundar a memória de um mundo que nunca foi contínuo e progressivo, mas múltiplo, fissurado e descontínuo. A distinção entre ciências sociais e naturais deixou de ter sentido e utilidade. Esta distinção assenta numa concepção Foi no período helenístico que talvez pela primeira vez assistiu-se à separação entre ciência e filosofia. Paralelamente ao corpo de conhecimento hoje denominado filosofia e, de certa maneira, independente dele, desenvolveu-se uma nova forma de organização do trabalho de produção de conhecimento...que começou a gerar um corpo de conhecimento que hoje se denomina ciência. Mesmo os centros de difusão foram diferenciados, como mostrao desenvolvimento de diferentes escolas filosóficas em Atenas, e o desenvolvimento das ciÊncias em Alexandria. (Andery, 1996, p. 98) 2

71


mecanicista da matéria e da natureza a que contrapõe, com pressuposta evidência, os conceitos de ser humano, cultura e sociedade. (Santos, 2001, p. 37) Com o intuito de recuperar a importância da filosofia e da história das ciências tem se tentado trazer através de inúmeras pesquisas (Adúriz-Bravo, A.; Izquierdo, M.; Estany, 2002; Aikenhead, G. & Ryan, 1992; Koulaidis, V. & Ogborn, J., 1989; Mellado, V. & Carracedo, 1993; Gil Pérez, D., 1993; e outros) como esse conhecimento histórico pode transitar nas nossas salas de aula propiciando sentido aos conteúdos e, mais do que isso, conceituando-os, pois há um melhor entendimento do conceito quando se conhece a forma do pensamento no seu tempo de emergência A História da Ciência e suas implicações no ensino tornaram-se uma linha de investigação e inovação em educação em ciências que hoje tem uma larga tradição. Inicia-se na universidade de Harvard por Conant com o estudo, por parte dos alunos de humanidades, de casos históricos, baseados na análise de processos chaves no desenvolvimento da ciência, com suas implicações filosóficas, sociais, etc. (Gil Pérez, 1993). Hoje se entende que estudos sobre a natureza da ciência constituem um outro conhecimento sobre a mesma, que transcende a análise epistemológica e amplia-se para um âmbito interdisciplinar perpassado pela filosofia, história, sociologia da ciência e pelo narrativo processo de conhecer os cientistas. No entanto, na maior parte dos currículos em que existem estudos históricos, procura-se dar conta de uma história de personagens com requinte de mistificações, gênios excêntricos ou obscuros taciturnos, legando uma visão de ciência e de cientista universal e totalmente desvinculada da sociologia. Refere-se a aspectos históricos "internos" da ciência, como biografias, anedotas, inventos técnicos, ou de alguma área conceitual específica como modelos atômicos (Azevedo, J. A. e outros, 2005). Além disso, estão ausentes em livros textos, e em geral, são ignorados os aspectos históricos na imagem da ciência que se 72


transmite, introduzindo tergiversações e erros. Como conseqüência disto, os alunos e os professores, em função das características formais de sua formação, têm uma imagem deformada de como se constituem e mudam os conceitos científicos. (Loguercio, Del Pino, Souza, 2002) Há possibilidade de que os estudos sobre a natureza da ciência tendam a proporcionar mudanças nas concepções de professores e alunos não apenas no entendimento da própria ciência e sua construção histórica, mas no entendimento do currículo de ciências, migrando daqueles que se centram nos conteúdos conceituais que se seguem pela lógica interna da ciência para currículos que abarcam conceitos constitutivos. Ou seja, sobre o como da ciência, seu funcionamento interno, externo, a construção e produção do conhecimento nos diferentes tempos históricos (ciência antiga, moderna, pós-moderna) e as naturezas das comunidades científicas. Aparte da desvinculação com o trabalho perfeitamente cotidiano e por vezes enfadonho (Foucault, 1998) das práticas científicas e dos seus pesquisadores muitas vezes brincalhões e também cotidianos, como coloca Hodson (1994), a história e a filosofia das ciências pouco figuram nos currículos como forma de entender o passado com o olhar do presente e tornar inteligível o mundo que construiu nossas práticas diárias de laboratórios e salas de aula.

Tempos e Ditos sobre Filosofia A Filosofia das Ciências, bem mais ausente do que a História das Ciências embora seja sua outra face, também pertence a um universo ignorado nas salas de aula. Pode ser interessante pensarmos que a filosofia das ciências perdeu em algum momento seu caráter glamouroso e se enredou nas próprias questões que propôs. Como discute Losee (1979) talvez não se tenha claro quais são os objetivos da filosofia das ciências, por sua 73


vez, Foucault (1996) coloca que uma disciplina para existir e configurar um espaço de poder/saber precisa dentre outras coisas de um corpo teórico e um número de objetos identificáveis aos quais se possa remeter. Cabe, portanto a questão de Losee, quais são os objetivos da filosofia das ciências? Ele acena com dois grandes objetos que seriam o estudo do processo científico e um estudo dos problemas de aplicação e confirmação. Aceitando-os é importante entender como são pensadas as abordagens desses problemas nas sociedades científicas. Quatro pontos de vista parecem interessantes de serem discutidos inicialmente: a) visões do universo, onde a filosofia das ciências tem o papel de mostrar a consistência de teorias científicas como visões do universo; b) uma associação sociológica, onde os filósofos explicitariam as pressuposições científicas (de baixa regularidade) como alicerçadas nas suas escolhas; c) uma disciplina, um lugar de análise e didatização da linguagem científica distante e difícil, e, por fim, d) uma disciplina de segunda ordem, onde se fazem criteriologias externas à própria ciência. Parece-nos que nenhum desses possíveis objetos traz a conhecer a filosofia das ciências como o que, no nosso entendimento, ela de fato é, um pensar do pensamento no tempo do próprio pensamento. As desestabilizações das verdades absolutas já supostas no item b, mas também uma análise criteriológica crítica como coloca o item d. A filosofia da ciência faz parte de uma discussão de Kant, retomada por Derrida, onde a filosofia teria o privilégio da liberdade de pensamento, a função da crítica exaustiva, mas teria com isso o ônus de estar fora do poder, jamais seria uma faculdade superior como o Direito, a Teologia e a Medicina; ou seja, em primeira ordem em termos de controlar e dizer a "verdade", mas em segunda ordem sobre o que poderia ser feito dela (Derrida, 1999). Cabe perguntar se a educação (como ciência crítica) re-atualiza esse discurso. (Loguercio, 2004, p. 4)

74


A filosofia ocidental na/da Grécia antiga Pode-se, certamente, trabalhar com os pensadores da filosofia das ciências desde que se entenda que eles são acontecimentos, atores de uma época que deram materialidade aos murmúrios de seus tempos. Se hoje separamos a Filosofia das Ciências da Ciência de maneira tão contundente não significa que sempre foi assim. O mundo antes de Cristo é rico de pensadores da filosofia natural como Tales de Mileto, o primeiro ocidental reconhecido por pensar a natureza das coisas do mundo monistamente3, a água de Tales obteve algum reconhecimento, mas o que ele trouxe de mais importante para a ciência ocidental foi a possibilidade de pensar o mundo material como material de pensamento. Essa possibilidade de pensar sobre a matéria acontecer na Grécia não foi casual e sim uma marca da cultura e geografia local. Uma cultura onde os deuses são humanos, semideuses, capazes de loucuras por amor, ciúmes, poder, deuses demasiado humanos, onde o erro e o pecado tinham um outro peso. O mundo dos deuses refletia o mundo dos homens e, pela racionalização dos deuses e dos mitos, estabelecia-se uma racionalidade para a vida humana. (Andery, 1996, p. 30) A ciência pode ser entendida de diferentes formas, mas uma de suas perspectivas é a busca dos porquês das coisas do mundo, e por esse ponto de partida podemos identificar as dificuldades de produzir algumas questões (De onde viemos? De que somos feitos? Para onde vamos?) em culturas onde suas respostas estão fortemente definidas pelas doutrinas que utilizam verdades e deuses incontestáveis. Na Grécia, pela sua própria Tales de Mileto foi um pensador que definia a construção da matéria a partir de um único elemento. Para Tales toda a matéria do universo era formada de agua, em diferentes estados de agregação. Outros pensadores monistas elegeram mais tarde o fogo, a terra ou o ar como elemento primordial e único, elementos esses incorporados por Aristóteles em sua teoria. 3

75


mitologia se pode perceber que a verdade e os deuses são questionáveis e, assim, a ciência tinha um espaço para o erro e para o acerto nesse lugar. Por outro lado, havia na Grécia uma confluência de povos que alteravam a cultura dos gregos e permitiam a gênesis de novas formas de pensar. Ao olhar os primeiros momentos ocidentalmente instituídos como os primórdios do que hoje entendemos por ciência4, podemos, como coloca Foucault, perceber que não se pode dizer qualquer coisa em qualquer lugar ou em qualquer positividade. É importante que existam condições de emergência dos saberes/poderes. O mundo grego possibilitou formas de pensamentos que mais tarde (na idade média) o continente europeu assumiria, mas que dificilmente aí teriam condições de emergir. O desenrolar da ciência com suas rupturas e continuidades sofreu, na idade média, a partir de Francis Bacon um processo de objetivação em contraposição à subjetivação, tão própria da filosofia: algo que a ciência em seu discurso insistentemente tenta minimizar é a existência desse sujeito [o pesquisador], e na busca de uma "objetividade", define objetivação como aquilo que ela não é, pois a objetivação é a construção de objetivos. Objetivação significa problematização, e isso não quer dizer representação de um objeto preexistente, nem criações através de um discurso de objetos que não existem (Loguercio, 2004. p. 5). A sistemática "objetivação" da ciência foi, em última análise, a higienização do conhecimento através do silenciamento do homem e sua relação com a emoção que durante esse período histórico era entendida como impeditiva da clareza da razão. Uma visão de conhecimento, homem e ciência cunhada no mecanicismo cartesiano e sobrevivente até os nossos dias, ainda que segundo Boaventura enfaticamente contestada (2001). Uma atividade social, um programa coletivo de conquista da verdade, e é isto mesmo que a distingue de qualquer outra forma do conhecimento. (Chrétien, 1994). 4

76


Voltando um pouco o olhar para a nossa sala de aula pode-se perceber que a história e a filosofia da ciência não têm lugar no mundo acadêmico e escolar da química de hoje, muito provavelmente porque somos constituídos por essa visão de ciência objetiva, não pensamos nossos conhecimentos como obra de humanos e insistimos em usar a linguagem codificada da química quase como o fizeram os alquimistas, para manter o status e o poder de saber um pouco mais do que outrem sobre o mundo. Nesse sentido, só por nos ensinar que um dos começos da ciência aconteceu num lugar onde as crenças eram direcionadas a semihumanos deveria se justificar a presença da filosofia das ciências no currículo. Talvez, nossa escola atual seja mais próxima do que Gaardner ficcionou através da voz de Sofia: Na escola a gente não aprende nada. A grande diferença entre um professor e um verdadeiro filósofo é que o professor pensa que sabe um monte de coisas e tenta enfiar essas coisas na cabeça de seus alunos. Um filósofo tenta ir ao fundo das coisas dialogando com seus alunos. (1995, p. 86). A frase cabe bem numa menina que está aprendendo a amar a filosofia, mas sabemos que talvez a "verdade" esteja mais próxima da idéia de que o professor sabe pouco e o espaço para fala questionadora implica em conhecer muito. Diversos diagnósticos têm mostrado a evidência de noções epistemológicas dos professores de ciências que não correspondem àquelas que atualmente são sustentadas pela filosofia da ciência, não estando sequer completamente adequadas a modelos formais elaborados durante a primeira metade do século XX, como por exemplo, o positivismo lógico. As idéias dos professores sobre a natureza da ciência estão próximas ao senso comum, ou seja, aquelas adotadas por um público não especializado, que se organizam em um sistema de baixa coerência interna, que não excluem ambigüidades e contradições. Neste contexto de diagnóstico, pode-se indicar quinze "mitos" sobre a natureza da ciência que estão profundamente arraigados na prática dos professores de ciências em todo o mundo. Entre eles, alguns são particularmente importantes por suas conseqüências negativas 77


sobre a imagem da ciência que se transmite na escola, por exemplo, a universalidade e rigidez do método científico, a objetividade a toda prova da ciência, a validade absoluta do conhecimento científico, o avanço do conhecimento e da ciência por acumulação, o caráter exclusivamente experimental da ciência e a posição realista ingênua. (Aduriz-Bravo, A. e outros, 2002) Para contrapor estas idéias equivocadas e construir uma visão mais complexa da ciência que ajude em seu ensino, defendemos a introdução de alguns conceitos da filosofia da ciência na formação inicial e continuada de professores, relacionando-os aos próprios conceitos da ciência e sua didática específica. Neste sentido, a filosofia da ciência cumpre um papel no currículo de ciência que tem diferentes finalidades, como: um valor cultural intrínseco análogo ao da própria ciência, que privilegia a aculturação científica (o conhecimento sobre o papel da ciência na história da humanidade) frente apenas a acumulação de conteúdos /conhecimento científico com perfil enciclopédico. Esta finalidade cultural está relacionada com objetivos tais como a democracia e a moral, que são aqueles nos quais a filosofia da ciência contribui para a tomada de decisão fundamentadas em críticas sobre o desenvolvimento científico e tecnológico das sociedades; a filosofia da ciência tem um valor específico em relação às reflexões teóricas (por meio de modelos) sobre a ciência. Este valor específico complementa e potencia àqueles dos conceitos da ciência, proporcionando uma imagem mais dinâmica e complexa, e menos normativa e dogmática, do empreendimento científico; a filosofia da ciência tem um valor instrumental intrínseco. E, por fim, a filosofia da ciência pode contribuir para a melhor compreensão dos próprios conceitos da ciência, funcionando como auxiliar em seu ensino e sua aprendizagem, no desenvolvimento curricular em ciências, e na compreensão e utilização em sala de aula de modelos didáticos atuais, tais como aqueles de natureza construtivista. (Mellado, V. e outros, 1993; Monk, M. e outros, 1997) 78


Difusão do conhecimento e verdades científicas Olhar para os primeiros pensadores Gregos implica em entender, desde os primórdios da ciência, as relações entre mídia, regulação e saber/poder. Aristóteles, Leucipo e Demócrito empreenderam uma das maiores discussões do homem, (de que somos feitos?) e cada um trouxe sua idéia de constituição. Embora Leucipo e Demócrito tenham pensado (literalmente pensado) a matéria como formada por partículas indivisíveis, enquanto Aristóteles criava um método para o pensamento científico baseado no indutivismo-dedutivismo, exigindo, portanto uma forma de "provar" o raciocínio, essa não foi a nosso ver a mais importante e definidora diferença de ambos, mas sim a questão dos porquês das coisas. Em Demócrito as transformações que aconteciam na natureza não significavam que algo "realmente" se transformava (Gaardner, 1995, p. 57), para os atomistas Gregos a constituição do "mundo real" era diferente em espécie do mundo que conhecemos pelos sentidos (Loose, 1979, p. 39) era, também intransigentemente materialista(...) os atomistas não deixaram lugar na Ciência para considerações de propósitos, quer natural quer divino (idem, p. 40), mas para um pesquisador consistente, observador, classificador como Aristóteles essa resposta era insuficiente, sua resposta era teleológica. Sócrates, Platão e Aristóteles estavam em busca de formas de ação que levariam o homem a produzir conhecimento, e todos propuseram métodos para isso (Andery, 1996, p. 59). A proposição de métodos para a produção do conhecimento objetivo possibilitaria a transformação da cidade (Atenas) para que essa fosse melhor e mais justa. Assim, Aristóteles concebia seu próprio método e trabalhava com a teoria das quatro causas: formal, material, eficiente e final. Um exemplo histórico bastante útil para entender o pensamento de Aristóteles diz sobre a aplicação das quatro causas ao camaleão: causa formal é o lugar que dá condições à mudança de cor do camaleão, como e onde acontece, a 79


causa material é a substância presente na pele que permite a mudança de cor, a causa eficiente é a transição acompanhada pelo processo de mudança de cor e a causa final é a capacidade de fugir de predadores5. Portanto, Aristóteles trouxe uma explicação muito inteligível sobre sua teoria, explicava não só o como, mas o porquê mesmo que não se soubesse diferenciar quais elementos incluir ou não no seu método de raciocínio. Demócrito e Leucipo estavam próximos e ao mesmo tempo distantes de Platão, pois enquanto este via o mundo como um reflexo do real, os atomistas viam o real como muito diferente do mundo que conhecemos. O materialismo tácito dos atomistas (distante de Platão) e a finalidade de Aristóteles se contrapuseram e o mundo optou pela explicação científica aristotélica. A ciência desde então se transformou numa agonística6 que de alguma forma traz de volta os mundos Gregos. Segundo Andery (1996, p. 96), Aristóteles constrói um paradigma marcado por uma concepção de conhecimento eminentemente contemplativo, que se refere a verdades imutáveis sobre um mundo acabado, fechado e finito. Um paradigma que capaz de dar conta de todas as áreas de conhecimento, caracterizou-se por se constituir na forma mais acabada de pensamento racional que o mundo grego foi capaz de elaborar. Como vimos em Boaventura de Sousa Santos essa parece não ser mais uma explicação possível no mundo atual, e mesmo no mundo moderno, no entanto nossas escolas e livros didáticos permanecem ensinando a ciência como a possuidora das verdades do mundo tão incontestáveis quanto perenes (Del Pino, Samrsla, Loguercio, 2001) e, nesse sentido, gestamos gerações e gerações de discípulos ao invés de possibilitarmos a capacidade da Causalidade e teleologia são tão antigas quanto os gregos e re-atualizadas em diversos discursos didáticos pedagógicos como os comportamentalistas, dentre outros. 5

Agonística que não deve ser interpretada como fato negativo, mas como a aceitação de que é no centro de debates que a razão se faz. Nas palavras de Popper, acreditar na razão é acreditar na razão dos outros. (Chrétien, 1994). 6

80


crítica já sonhada no mundo grego socrático. Não é culpa de Aristóteles, pois apesar da crença nesse mundo metódico e pronto para a "descoberta" foi ele quem disse: em geral a possibilidade de ensinar é indício de saber; por isso nós consideramos mais ciência a arte do que a experiência, porque [os homens da arte] a arte pode ensinar e os outros não. (Aristóteles, 2005)

Um abismo de 1000 anos e a chegada da Idade Média Há na história ocidental da ciência e da filosofia um abismo de 1000 anos, tempo esquecido nos textos ocidentais sobre o saber, lugar de pesquisa, um espaço para que possamos recuperar essa porção oriente da ciência que fomentou o pensamento. Enquanto esse vazio se faz na nossa história vamos passar a Idade Média e entendê-la junto ao tempo presente. A Idade Média, famosa por ser a era das trevas, pode ser repensada hoje como um lugar do pensamento, em plena era católica surgem as primeiras traduções de Aristóteles, cuja filosofia podia ser incorporada ao pensamento de então sem ferir o poder de um deus supremo, a causa final. Os instruídos da época eram os padres católicos, dentre eles Ockham, Roger Bacon, e Grosseteste, esses pensadores trouxeram novos elementos para a ciência que nascia e um dos mais relevantes foi a valorização da experimentação, o isolamento das causas, os estudos das causas. Eis uma retomada dos Gregos, mas já não mais o pensamento Grego de outrora, um outro, dentro de outra positividade7, o sistema de pensamento cristão, vinculado à disciplina dos corpos através da ação no pensamento, um Deus agora perfeito e único, como os gênios que a ciência ainda hoje procura. Positividade como um conceito foucaultiano é equivalente a episteme de uma época, refere-se a potencialidade de que algo possa movimentar outros saberes. A positividade de um saber é a potencialidade desse saber de transformar-se e produzir outros saberes e sua capacidade de dispersão. 7

81


Mas o que isso tem a ver com a ciência da escola e da academia? Pode-se pensar que são histórias literárias que cabem bem em livros como o Nome da Rosa, ou em filmes como Giordano Bruno, não fazendo diferença na aprendizagem de conceitos químicos. Se pensar o pensamento já não é suficiente motivo para aprender junto à química história e filosofia das ciências, talvez possamos usar o trabalho de alguns educadores químicos importantes que trazem dados "empíricos" que valorizam essa discussão. Na revista Química Nova na Escola8 em suas diferentes seções podemos perceber a retomada da filosofia e história da ciência para ajudar a entender as concepções espontâneas dos alunos (Mortimer, 1995; Lillavate, 1996; Justi, 1998; Rosa e Schnetzler, 1998). As teorias sobre os conhecimentos implícitos datam da década de 80, no Brasil, mas efetivamente chegaram aos cursos de formação de professores na década de 90 e ao chegarem revolucionaram um modo de ver o ensino, pois o aluno trouxe um saber novo, mas ao mesmo tempo antigo, para a sala de aula (Mortimer, 1995; Justi, 1998). Quando um aluno justifica uma reação entre determinadas substâncias usando a expressão por que estão a fim de, ele está trazendo para a sala de aula um pensamento que pode ser visto como uma bobagem infanto-juvenil de uma sociedade que produz estudantes apáticos e desinteressados, ou como a interpretação momentânea de um fenômeno desde um ponto de vista de um grande filósofo. Aristóteles também significava as coisas como a fim de, e não apenas ele mas tantos outros que se seguiram, como, por exemplo, Berzelius que explicava as reações químicas por um sistema dualístico dos compostos químicos, tendo por base sua visão de afinidade e sua Nos referimos aqui a Revista Química Nova na Escola em detrimento de outras publicações, por entendermos que essa é uma das poucas revistas que atinge com êxito o professor que está em sala de aula no ensino médio. É também nosso objetivo chegar a esse professor e trabalhar com ele os materiais que lhes são próximos. 8

82


teoria eletroquímica de atração de espécies químicas de cargas diferentes (Lopes, 1995) A diferença entre uma e outra explicação não inclui apenas um ensinamento de química, história e filosofia das ciências associadas, inclui um modo de ver o aluno, significa pensar toda a informação como importante, como válida, significa entender a sala de aula como um lugar de culturas diferentes e nossos alunos fazendo filosofia diretiva do mais alto nível. É um equívoco diante da química que conhecemos hoje, sim, mas isso cabe ao professor mostrar onde e de que forma essa diferença se fez e faz e, nesse sentido, a filosofia e história da ciência são importantes formas de informação e saber.

A linguagem matemática: uma ruptura A história e a filosofia da ciência nos trazem um outro relevante aprendizado, o de que nem sempre temos que dar continuidade e que às vezes é importante romper. Ou melhor, quando olhamos para o passado nos parece fácil assumir um desenvolvimentismo nas ciências, uma evolução, um progresso, sem que essas palavras tenham sentido definido, são como diria Laclau (apud Céli Pinto, 1999, p. 16) palavras tão gastas que se tornam significantes vazios. Um olhar para a história nos mostra as rachaduras, as rupturas, os momentos em que não bastava um saber complementar o outro, mas era preciso romper com o outro. A química é rica historicamente nessa polêmica, houve uma sistemática luta para romper com a alquimia e seus significados ocultos e criar um novo recorte de saber, da mesma forma a astronomia e a astrologia, e após o estabelecimento da química como ciência foi preciso romper muitas vezes com teorias sobre os elementos primeiros e poder retomar uma idéia de antes de cristo proposta por Demócrito e que por si só já explica muito bem grande parte do nosso mundo, para enfim considerar a matéria como composta por átomos, uma idéia nunca esquecida, 83


inúmeros cientistas a utilizaram antes dela se consolidar com Dalton, mas nunca tinha conseguido ser maioria num mundo onde a lógica era ainda finalista e cristã. A "ruptura" com o mundo aristotélico se deu com grandes atores da ciência, com o advento de um modo matemático de ver o mundo. Foi com Galileu e Copérnico que a ciência criou um novo mundo e uma linguagem nova para esse mundo, e desta forma o a fim de aristotélico deixou de ser científico. É bom lembrar que a igreja católica apoiava as idéias de Aristóteles e, portanto, essa ruptura não foi tranqüila, Giordano Bruno foi queimado na fogueira, Copérnico camuflou o seu saber e Galileu abjurou um "pouquinho" para sobreviver. O que nos faz pensar em quantas idéias diferentes das nossas podem aparecer numa sala de aula e suas expressões vão para a fogueira inquisidora de um saber de referência. É importante, de novo, observar que não foi coincidência que nesse momento histórico se pensassem em coisas e formas diferentes de mundo, porque o próprio mundo físico não cessava de se deslocar, o século XVI, foi o século dos descobrimentos; novos mundos se encontravam, o ocidente ganhava a América, o oriente estava mais próximo e nesse mundo se pode pensar diferente, mesmo pagando caro por isso (Losee, 1979). Numa rápida olhada pelo ano de 1600, o século XVII se iniciava, e estavam sobre a terra ativos e produtivos nada menos que Giordano Bruno (52 anos), Francis Bacon (39 anos), Galileu Galilei (36 anos), Descartes (6 anos e já pensando e existindo) para ficar só com os próximos das ciências exatas. Francis Bacon um dos maiores incentivadores de um novo método na ciência e que ainda hoje é re-atualizado foi também um conhecido crítico de Aristóteles que criou seu próprio método de pensar cientificamente, empirista-dedutivo. Regina Borges (1996) em sua pesquisa dispõe sobre a atualidade desse método no pensamento escolar contemporâneo, o que nos leva a importância de conhecê-lo. Para Bacon, pensar cientificamente era eliminar a presença do observador, o conhecimento não se 84


fazia pela observação não planejada e sujeita a subjetivações, mas pela experimentação controlada. Fez assim uma revolução no pensamento científico estabelecendo novas bases, foi um homem politicamente ativo e contumaz debatedor, importantes características para o mundo que a ciência começa a trilhar, o da comunicação do saber; vencidos os tempos de segredos alquímicos a informação passava a ser importante. Como coloca Strathern (2002, p. 135), Lord Bacon foi um grande propagandista, pois se a ciência é boa o bastante para um Lord, era boa para qualquer cavaleiro. A ciência tornou-se aceitável, até mesmo chique. O mundo ainda fortemente católico encontra a filosofia de Descartes, com uma lógica importante e dois pressupostos: Deus existe e eu penso, logo existo. Tal como Tales 2000 anos antes, Descartes achou um modo de pensar o mundo "apesar" de Deus, ou melhor para entender a Deus. Tudo podia ser pensado pelo homem, e assim a matemática e o pensamento científico se encontram mais uma vez, desta vez pela mecânica. Uma das ações cartesianas foi a idéia da extensão, nada acontecia sem pressão e contato, e, portanto, para ele o vácuo não existia, sua criação mecanicista do mundo incluía a intuição, como Aristóteles, Galileu e Bacon, a intuição era cara para Descartes pois ela lhe colocaria em contato com as idéias que Deus nos deu, o mundo mecânico intuitivo de Descartes, mas talvez a igreja não pensasse exatamente como ele e por isso seus escritos ficaram guardados para uma oportunidade melhor. O mundo de certa forma mudou, a epistemologia da ciência mudou, a positividade era agora outra. E nesse mundo novo que se busca e explica o mundo de maneiras concorrentes, divergentes, múltiplas e filosóficas surgem os nomes de Newton, Scheele, Boyle,...E por falar em Boyle, seguindo a nossa tentativa de fazer um texto entremeado com a sala de aula de hoje, é hora de voltarmos para a química e procurar entender o que esses movimentos têm a ver conosco na pragmática escolar. Destacamos anteriormente que a história e a filosofia da ciência têm ampla aplicação em sala de aula por possibilitarem um 85


resgate na auto-estima do aluno através da valorização do seu conhecimento implícito. A revista Química Nova na Escola e seus educadores e pesquisadores em educação em ciências trazem inúmeros artigos que associam idéias dos alunos a noções construídas por grandes cientistas. Pretendemos agora identificar um outro valor desse conhecimento histórico-filosófico em sala de aula no que concerne ao entendimento conceitual específico. Isto é, através da história da construção do conceito mostrar o quão ingênua pode ser a idéia que lhe permitiu emergir. Em alguns momentos o pensamento que levou o cientista a criar uma lei, que hoje parece tão difícil como a de Boyle porque nada significa além de um algoritmo, é capaz de mostrar a cotidianidade do conceito. O experimento de Torricelle, as medidas propostas por Pascal em alturas diferentes da terra, a proximidade desses experimentos simples e a construção das leis dos gases são tão compreensíveis para o nosso aluno quando narradas, quanto a explicação cotidiana sobre o porque o Brasil deve jogar mais preparado fisicamente na Bolívia onde o ar é mais rarefeito. A associação da construção do conhecimento com os saberes cotidianos dos alunos pode ser precursora, no nosso exemplo, de uma lei dos gases mais real e cotidiana e uma química que explica dentro de um outro modo de ver.

"O" ou "Os" métodos científicos No entanto, os professores e os próprios cientistas temem usar a história e a filosofia, pois parece que se perde tempo no currículo e na verdade ao não trabalhá-las estamos perdendo conhecimento. No entanto, essa talvez seja uma questão que deve ser trabalhada na perspectiva de entendermos o que para nós é ciência e como ela se faz, bem como quem a faz. Atualmente há uma visão mais ou menos consensual sobre os conteúdos mínimos da natureza da ciência que é conveniente incorporar em cursos de formação na área de ciências, 86


especialmente de professores. Esta posição se alicerça na Nova Filosofia da Ciência, desenvolvida na década de sessenta do século passado, e que é representada por filósofos como Thomas Kuhn, Stephen Toulmin e Imre Lakatos. Entre estes conteúdos se pode destacar, por sua importância central na aula de ciências, aqueles que se referem a tentativa de conhecimento científico, a pluralidade metodológica, a carga teórica da observação, as relações entre ciência e tecnologia, e a ciência como um empreendimento histórico e socialmente situado, que muda no tempo (Gil Perez, 1993). Esta proposição supõe uma ruptura com os problemas clássicos da filosofia da ciência positivista lógica, em cuja epistemologia espontânea de professores e alunos está intimamente ligada (Lederman, N., 1992; Hodson, D., 1985). Estas idéias básicas sobre a natureza da ciência podem ser levadas ao currículo de formação de profissionais da área de ciências, por uma série de atividades diversas, preferivelmente centradas nos conteúdos específicos da ciência, que permitam a reflexão crítica sobre a ciência, seu desenvolvimento e seu papel na sociedade. Nesse sentido, pensamos ser importante trazer aqui as problematizações sobre a ciência. O movimento racionalista de Kant talvez seja uma boa maneira de começar esse debate. Por muito tempo os sentidos foram o melhor e o pior das investigações científicas até que Kant trouxe a idéia de que o conhecimento empírico surge de impressões dos sentidos não está contido nestas impressões. O saber se faz através da razão. Kant soma ao Penso, logo Existo de Descartes a figura do sujeito, Eu Penso, logo Eu Existo, essa pequena diferença lingüística impõe uma riqueza e uma quebra epistemológica importante, pois ao assumir o Eu, Kant traz a figura do homem plural e seu contexto sócio-histórico, abrindo as portas para o racionalismo, a que mais tarde Bachelard somaria a psicanálise e o surracionalismo. Porém, foi o empirismo de Bacon e sua "descoberta" que mais atingiram a noção de ciência que se desenvolveu nas academias e escolas brasileiras por ter, entre outras coisas, servido de base para o positivismo, que, por sua vez, tornou-se a base da 87


ciência moderna (Losee, 1996) chegando a ser uma ideologia. Enfim, o conhecimento seria realizado tanto nas ciências sociais como nas exatas de forma independente do sujeito, isto é, o conhecimento é construído de forma neutra. O Círculo de Viena reforçou o positivismo lógico, onde o objetivo da filosofia deixava de ser o processo do fazer científico e passava a ser sua verificação (Borges, 1996). A força da filosofia do positivismo lógico é um dos nossos maiores "problemas" na escola, pois o conhecimento é entendido como único, onde a supremacia da lógica, da matemática e das ciências exatas se impõe sobre as humanidades e, nesse sentido, ao aceitarem como bons esses pressupostos positivistas em que o contexto não é importante para o conhecimento, torna-se bastante aceitável a idéia de nossos professores de que a filosofia das ciências e sua história ocupam tempo no currículo. Dado que trabalhamos com um currículo fundado ainda numa escola de pensamento surgida com Augusto Comte, no século XIX, pode-se inferir que boa parte das discussões do século XX é desconhecida ou aceita pelos professores. Vejamos por exemplo as questões sobre a verificabilidade ou falsacionismo popperiano, um conceito que a academia ainda discute e defende e que por vezes perde alguns dos demais posicionamentos de Popper sobre a ciência, como a teoria dos três mundos: o mundo material, o mundo mental e o mundo da cultura, produto objetivo da nossa consciência. Popper traz uma desestabilização do positivismo embora ainda esteja ligado a ele na busca de uma objetivação e verificabilidade. Da mesma forma, outros filósofos da ciência trouxeram problematizações ao universo empírico e asséptico proposto pelo positivismo lógico, alguns buscando entender a linguagem, como Hanson, outros buscando entender as arenas de luta, como Kuhn, outros ainda, indicando o anarquismo epistemológico da ciência e seus inúmeros métodos, como Feyerabend (Borges, 1996). Todos esses movimentos podem nos levar a entender melhor um universo científico que, como coloca Hodson (1994), é feito por pessoas reais que vivem em seus 88


universos discursivos e que não estão de forma alguma imunes as relações de poder/saber. Cabe, então, buscar onde e de que forma essas problematizações sobre a ciência e sua produção chegaram as escolas, se é que chegaram. Talvez devêssemos nos perguntar, como faz Maldaner (2000), se chegaram à formação de professores nas suas fases iniciais ou continuadas. O que sabemos é que no universo escolar as mudanças ocorrem muito lentamente, e de alguma forma são impostas por reformas curriculares e investimentos financeiros. Talvez um dos maiores investimentos na ciência escolar tenha se dado na década de 70, com os tratados realizados pelo Brasil com os EUA e com a UNESCO, MECUSAID, onde se investiu no experimentalismo no ensino de química e de ciências e onde se retomou o empirismo indutivo de Francis Bacon, com o hoje problemático método da redescoberta. As críticas dos educadores e as dificuldades de se trabalhar com a redescoberta na escola, ainda tradicional, forma condições de possibilidade para o movimento tecnicista que trouxe a supremacia da técnica sobre os conceitos, nesse sentido, passamos de um empirismo indutivo para um ensino enciclopédico e livresco, com a Lei 5692/71, o império dos livros didáticos com suas verdades absolutas se estabeleceu. O construtivismo, próximo passo na educação em ciências pouco chegou às escolas e possivelmente transformou-se num significante vazio, perdendo uma grande oportunidade de fazer diferença no ensino antes mesmo de fazê-la. O que significa então isso tudo, onde está o erro, como se educar e educar em ciências quando parece a todo tempo que tudo falha? Se nossa visão de ciências data do século XVII? Se nossas melhores teorias caem no significante vazio? Prefirimos trazer para finalizar essa discussão um dos mais importantes pontos das teorias pós-modernas e pós-estruturalistas que hoje parecem desestabilizar grande parte das nossas verdades: a capacidade de entender que esse mundo é plural, que construímos nosso saber a cada passo, que não há um caminho, ainda que torto 89


a percorrer, que o conhecimento se faz nas subjetividades dos sujeitos, e, por assim ser, devemos investir não num professor que assuma o nosso saber, mas num professor que assuma o seu saber, que se sinta ignorante por ignorar e que se valorize, pois se nós vamos à escola dizer o que deve ser feito, nós formadores de professores estamos assumindo que existe uma verdade e que se fizermos as coisas bem feitas ela aparecerá, o que nada mais é do que uma visão de ciência extremamente positivista, nós que tanto criticamos o positivismo. Talvez um pós-moderno radical como Lyotard possa nos dar o espaço de liberdade que precisamos para ser mais humildes quanto a nossa ação no mundo, pois Lyotard nos diz que para começar, o saber científico não é todo o saber; ele sempre esteve ligado a seu conceito, em competição com uma outra espécie de saber que, para simplificar, chamaremos de narrativo (Lyotard, 2000, p. 12). São esses saberes que vivemos nas escolas e a sua interpenetração pode nos ajudar a melhor conhecê-lo.

Buscando um processo de objetivação Uma forma de sistematizar um pouco do muito que misturamos nesse artigo é explicitar a nossa crítica à escola, ao currículo, aos modos de usar a filosofia e história da ciência. Em Foucault escrever uma história do presente é, assim, chamar a atenção para a constituição daqueles objetos e suas conseqüências (Rajchman, 1985). Os papéis que podem representar a filosofia da ciência no ensino da mesma são amplos, mas que convergem para modelos de ensino e aprendizagem por investigação, que interfaciam com outras áreas de conhecimento ou investigação como a epistemologia das ciências, os movimentos Ciência, Tecnologia, Sociedade e Ambiente - CTSA, a didática das ciências, a psicologia da aprendizagem, a sociologia das ciências. Um requisito essencial para qualificar a atividade de ensino é que o professor conheça profundamente a matéria a 90


ensinar, o que supõe não só conhecimento dos conteúdos, mas também dos aspectos metodológicos, da filosofia da ciência, das interações CTSA e dos desenvolvimentos científicos recentes. A apropriação dos papéis da filosofia da ciência pelo professor pode se dar em diferentes estratégias (Solbes e outros, 1996; Gagliardi, 1986). • enfocar o paralelismo entre as idéias/pré-concepções dos estudantes e as concepções vigentes ao longo da História da Ciência. Extrair da História da Ciência informações sobre as dificuldades dos estudantes a partir das resistências e obstáculos que se manifestam ao longo da História da Ciência. • favorecer a seleção de conteúdos fundamentais da disciplina em função dos conceitos estruturantes para introduzir novos conhecimentos e superar obstáculos epistemológicos. • permitir extrair da História da Ciência os problemas significativos e colocar o aluno em condições de abordá-los, promovendo situações de aprendizagem que permitam aos alunos vivenciar a construção de conhecimentos científicos. É possível evitar delineamentos experimentais de cunho empirista. • mostrar a existência de grandes crises no desenvolvimento do conhecimento científico/ou da física e da química, a ciência aristotélica, a escolástica, a clássica, a moderna, ou a mecânica newtoniana e a quântica, a teoria do flogisto e as proposições de Lavoisier sobre a combustão, do calórico a teoria cinética do calor, da natureza corpuscular a ondulatória da luz, numa constante mudança de paradigma. Isto pode favorecer as construções conceituais dos alunos, relacionando-os as grandes mudanças de conceitos, modelos e teorias. 91


• mostrar o caráter hipotético, tentativo da ciência e mostrar as limitações das teorias, os problemas pendentes de solução, apresentando para os alunos a aventura da criação científica evitando visões dogmáticas, de como se acumula o conhecimento científico, e a produção coletiva do mesmo. Pode-se mostrar a ciência como uma construção humana, coletiva, fruto do trabalho de muitas pessoas, para evitar a idéia de uma ciência feita basicamente por gênios, em sua maioria homens. Essa tentativa de objetivação, no sentido dado ao termo de busca de objetivos e não de assubjetivação, implica numa forma de explicitar nossos projetos para um ensino de química diferenciado, que privilegie o narrativo, trazendo para a sala de aula não apenas o produto do conhecimento, nem tampouco o processo de sua produção, mas sobretudo a humanidade do ato de conhecer e a possibilidade de humanização de nossas salas de aula. Arcando assim com o ônus de sermos humanos. Nossa forma de ver a humanidade não está próxima dos humanistas, nem mesmo platonicamente elimina o dionísiaco do ser humano, mas a busca dos diferentes matizes que se formam entre o bem o mal, entre o objeto e o sujeito, entre a história e o presente, enfim, entre a ciência e a arte de ensiná-la.

Referências Adúriz-Bravo, A.; Izquierdo, M.; Estany, A. Una propuesta para estructurar la enseñanza de la filosofía de la ciencia para el profesorado de ciencias en formación. Enseñanza de las Ciencias, 20(3), p. 465-476, 2002. Aikenhead, G. & Ryan, A. The development of a new instrument: Views on Science-Technology-Society. Science Education, 76(4), p. 477-491, 1992. 92


Andery, Para compreender a ciência: uma perspectiva histórica. São Paulo: EDUC, 1996. Aristóteles. Metafísica. São Paulo: Abril, Coleção: os Pensadores, 2005 Azevedo, J. A.; Vázques, A.; Martim, M.; Oliva, J. M.; Azevedo, P.; Paixão, M. F.; Marassero, M. A. Naturaleza de la Ciencia y la Educación Científica para la Participación Ciudadana: una revisión crítica. Revista Eureka sobre enseñanza e divulgación de las ciencias. V. 2, n. 2, 2005. Borges, R. Em Debate: cientificidade e educação em ciências. Porto Alegre: SE/CECIRS, 1996. Chrétien, C. A ciência em ação. Campinas: Papirus, 1994 Derrida. J. O Olho da Universidade. São Paulo: Estação Liberdade, 1999. Foucault, M. A Ordem do Discurso. Aula Inaugural no Collége de France, 5a. ed., Loyola, São Paulo, 1996 Gaardner, J. O mundo de Sofia. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. Gil Pérez, D. Contribución de la historia y de la filosofia de las ciencias al desarrollo de um modelo de enseñanza-aprendizaje como investigación. Enseñanza de las Ciências, 11(2), p. 197212, 1993. Hodson, D. Hacia un Enfoque más Crítico del Trabajo de Laboratorio. Enseñanza de Las Ciencias. 12(3), 1994, 299-313. Hodson, D. Philosophy of science, science and science education. Studies in Science Education, 12, p. 25-57, 1985. Justi, R.(1998) A afinidade entre as substâncias. Química Nova na Escola, 7, 26-29.

93


Koulaidis, V. & Ogborn, J. Science teachers' philosophical assumptions: How wel do we understand them? International Journal of Science Education, 17, p. 273-283, 1989. Laclau, apud Pinto, Céli Regina Jardim. Democracia como significante vazio. Porto Alegre, 1999. Pinto, Céli Regina Jardim. Democracia como significante vazio. Porto Alegre, 1999. Lederman, N. Students' and teachers' conceptions of the nature of science: A review of the research. Journal of Research in Science Teching, 29(4), p. 331-359, 1992. Lillavate, I: O papel mediador do professor no processo de ensino - aprendizagem do conceito átomo. Química Nova na Escola, n. 3, maio, 1996. Loguercio, R. Da Arquitetura dos Textos à Eloqüência dos Lugares. Revista Ensaio, Minas Gerais, v. 6, 2004 Loguercio, R.; Del Pino, J. C.; Souza, D. O.. A Educação e o Livro Didático. Educação (PUC/RS), Porto Alegre - RS, p. 183194, 2002. Áreas do conhecimento: Educação. Loguercio, R.; Samrsla, V.; Del Pino, J. C. A Dinâmica De Analisar Livros Didáticos com Professores de Química. Química Nova, São Paulo, v. 24, n. 4, p. 557-562, 2001. Lopes, A. Reações Químicas: fenômenos, transformações e representação. Química Nova na Escola, n. 2, 1995 Losee, J. Introdução Histórica à Filosofia da Ciência. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 1979 Lyotard, J. F. A Condição Pós-Moderna, José Olympo, São Paulo, 2000. Maldaner, O. A formação inicial e continuada de professores de química. Ijuí: UNIJUÍ, 2000. 94


Mellado, V. & Carracedo, D. Contribuciones de la filosofia de la ciencia a la didáctica de las ciencias. Enseñanza de las Ciencias, 11(3), p. 331-339, 1993. Monk, M. & Osborne, J. Placing the history and philosophy of science on the curriculum: A model for the development of pedagogy. Science Education, 81(4), p. 405-424, 1997. Mortimer, E. F.. Concepções Atomistas dos Estudantes. QUIMICA NOVA NA ESCOLA, v. 1, n. 1, p. 23-26, 1995. Rajchman, J. Foucault: a liberdade da filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985. Rosa, M. I. P. S.; Schnetzler, R. Sobre a importância do conceito transformação química no processo de aquisição do conhecimento químico. Química Nova na Escola, São Paulo, v. 4, n. 8, p. 31-36, 1998. Santos, B. S. Um Discurso sobre a Ciência, 12a. ed., Porto: Edições Afrontamentos, 2001. Solbes, J. & Traver, M. J. La utilización de la historia de las ciencias en la enseñanza de la física y la química. Enseñanza de las Ciencias, 1996, 14(1), 103-112. Strathern, Paul.O Sonho de Mendeleiev - A verdadeira história da química. Tradução por Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2002.

Rochele de Quadros Loguercio, mestre e doutora em ciências biológicas: bioquímica com ênfase em educação, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, pesquisadora da Área de Educação Química da UFRGS José Cláudio Del Pino, mestre em bioquímica, doutor em química da biomassa, professor da Universidade Federal do Rio 95


Grande do sul, coordenador da Área de Educação Química da UFRGS

Recebido em: 19/05/2007 Aceito em: 15/11/2007

96


DA "REVOLUÇÃO FRANCESA" AO "SÉCULO XXI": ALGUMAS NOTAS ACERCA DO SISTEMA EDUCACIONAL FRANCÊS Nilce da Silva

Resumo Este artigo - fruto das reflexões do Grupo de Pesquisa, Ensino e Extensão "Acolhendo Alunos em Situação de Exclusão Social e Escolar", certificado pela Universidade de São Paulo e que conta com o apoio do CNPq e da FAPESP, para trabalho de alfabetização junto a crianças, jovens e adultos em situação de risco social apresenta algumas notas que favorecem a reflexão acerca da história da educação francesa. Terá como ponto de partida a Revolução Francesa e, tratará da temática até os dias atuais. Tal texto mostra-se interessante, na medida em que, muitos nós temos tivemos como paradigma de escolarização o modelo francês, ditado pela escola pública surgida sob os auspícios da Revolução Francesa guiada pelas palavras: Igualdade, fraternidade e liberdade. E, conforme pretendemos demonstrar, longe de ser uma realidade educacional, tal sistema foi mi(s)tificado e a representação que dele apreendemos serviu como guia ideológico para muitos países. Palavras-chave: sistema educacional francês – modelo – representação. FROM THE "FRENCH REVOLUTION" TO THE "XXI CENTURY: SOME COMMENTS REGARDING THE FRENCH EDUCATIONAL SYSTEM Abstract This article - fruit of the reflections of the Group of Research, Education and Extension "Acolhendo Alunos em Situação de Exclusão Social e Escolar: o papel da insituição escolar",certifyd by the University of São Paulo and that counts with the support of the CNPq and the FAPESP, to work about literacy with children, youngers and adults in a situation of social risk - presents some notes that promove the reflection concerning the history of the French education. It will have, as starting point, French Revolution and, it will deal with this thematic one until the current days. Such text reveals interesting, in the measure that many between us have had as paradigm the French model, dictated for the public school appeared under the auspices of the French Revolution guided by the words: Equality, fraternity and freedom. And, as we intend to demonstrate, far of being an educational reality, such system was a História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, n. 23, p. 97-123, Set/Dez 2007 Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


"school my(s)thification" and its representation, that we learned, served as ideological guide for many countries. Keywords: French education system – model – representation. DE LA "REVOLUCIÓN FRANCESA" AL "SIGLO XXI": ALGUNAS NOTAS SOBRE EL SISTEMA EDUCACIONAL FRANCÉS Resumen Este artículo - fruto de las reflexiones del Grupo de Investigación, Enseñanza y Extensión "Acogiendo Alumnos en Situación de Exclusión Social y Escolar", certificado por la Universidad de São Paulo y que cuenta con el apoyo del CNPq y de la FAPESP, para trabajo de alfabetización junto a los niños, jóvenes y adultos en situación de riesgo social - presenta algunas notas que favorecen la reflexión sobre la historia de la educación francesa. Tendrá como punto de partida la Revolución Francesa y, tratará de la temática hasta los días actuales. Tal texto se muestra interesante, en la medida en que, muchos de nosotros tuvimos como paradigma de escolarización el modelo francés, dictado por la escuela pública surgida bajo los auspicios de la Revolución Francesa guiada por las palabras: Igualdad, fraternidad y libertad. Y, conforme pretendimos demostrar, lejos de ser una realidad educacional, tal sistema fue mi(s)tificado y la representación que de él aprehendemos sirvió como guión ideológico para muchos países. Palabras-clave: sistema educacional francés – modelo – representación.

98


"E se a primeira coisa – senão a única – a fazer fosse conseguir exorcizar esta vontade de poder total, esta negação de um outro autônomo que o ideal pedagógico esconde tão bem". Michel Exertier

Introdução Este artigo faz algumas considerações acerca da história da educação na França a partir da Revolução Francesa quando a mesma pretende-se laica, universal e gratuita. Iniciaremos com a proposta apresentada por Condorcet para o sistema público francês e as idiossincrasias desta época. Apresentaremos, assim, como eixo de articulação deste texto, a constituição de um "mito" em decadência, a partir do qual se construiu e se propagou o modelo educacional de ensino francês. Depois de Condorcet, ressaltaremos as idéias de Durkheim e Alain, considerados como os teóricos deste sistema educacional nascente, e ressaltaremos algumas de suas idéias mal compreendidas porque, talvez, mal veiculadas no meio educacional. Em seguida, com a obra de Freinet e, mais recentemente dos trabalhos vinculados à Pedagogia Institucional, mostraremos como as pequenas "rachaduras" de um modelo não igualitário de educação começam a aparecer. Mais fortemente, por meio das obras-denúncia de Michel Foucault e Pierre Bourdieu, deixaremos, de fato, à mostra a não possibilidade da existência da "igualdade, fraternidade e liberdade" na sociedade, nem no sistema educacional. Em seguida, faremos algumas anotações acerca da situação educacional do país em questão no século XXI. Finalmente, teceremos algumas considerações acerca do mito / modelo criado em torno do sistema educacional francês e a impossibilidade desta imagem continuar a existir justamente 99


porque tal modelo se fez às custas da colonização e, desde o seu início, foi excludente.

A queda da Bastilha e Condorcet A "Queda da Bastilha", 14 de julho de 1789, pode servir como marco a partir do qual o sistema educacional francês começa se estruturar enquanto público, universal e laico. Mais do que a libertação dos presos, a queda da Bastilha marca o final da era dos "reis-sóis" na França, numa Revolução que foi caracterizada pelos ideais "iluministas". Neste sentido, a proclamação da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 26 de agosto de 1789, é o seu principal símbolo. "Liberdade, Igualdade e Fraternidade" se tornou o lema que motivava as ações da nova ordem social deste país. O "Iluminismo", diga-se de passagem, foi defendido por filósofos como Voltaire, Jean-Jacques Rousseau, Denis Diderot, entre outros, procurou combater a intolerância religiosa e a vigorosa ligação entre Estado Absolutista e Igreja. Segundo Boto (2003), ao citar Leon Cahen, Os iluministas compreendiam que a instrução conduzia não apenas a um acréscimo de conhecimento, mas também à melhoria do indivíduo que se instrui. Diderot, por exemplo – segundo relata Cahen – compreendia que instruir uma nação equivale a civilizá-la.

"luzes",

E ainda, de acordo com a autora, neste período das O Estado era o maior interessado na formação dos indivíduos, até para que viessem a público os sujeitos mais meritórios; os talentos; as aptidões de cada um – o que conduziria a um aprimoramento geral da sociedade.

100


Apesar deste "aparente" uníssono, ressalta Boto que, contudo, nem todos os iluministas pensavam nesta disseminação da "cultura" para todos. Um dos temas mais fascinantes colocados pela Revolução foi a participação de Condorcet neste cenário. De certa forma, até hoje, os ideais deste filósofo, inspiram sistemas de ensino, escolas, práticas docentes, mesmo que, apenas, no âmbito do discurso. Dito de outro modo, o direito do acesso à mesma educação, independentemente do gênero; da pertinência à esta ou àquela etnia, religião; do nascimento ou da situação social constituem-se como o "sonho" de muitos educadores. Recomendável, neste sentido, é a visita virtual à Biblioteca Gallica (www.gallica.bnf.fr) em que diferentes documentos desta época poderão ser lidos e consultados. Dentre eles, destacamos: 1- O documento de 1291-1792 feito pela Assembléia Nacional Francesa, de Condorcet, apresentado em 20 e 21 de abril de 1792: Rapport et projet de décret sur l'organisation générale de l'instruction publique; e; 2- As Bases fondamentales de l'instruction publique et de toute constitution libre ou Moyens de lier l'opinion publique, la morale, l'éducation, escrito por François Xavier Lanthenas. Porém, de acordo com Silva (2004), na tentativa de destruir este mito que compõe nosso imaginário, gostaríamos de destacar que grande batalha foi travada entre os inacianos, oriundos da conversão de Constantino em 313 d.C. e a escola pública laica na França e em todo o mundo, situação esta ventilada sobremaneira nos currículos escolares de países católicos, como o Brasil. E ainda, com relação aos judeus, sabe-se que já na época romana houve dispersão deste povo pela Itália, França, entre outros países. E no que diz respeito aos islâmicos, no século VII, há diferentes registros acerca da entrada desta população na Europa pelo magrebe e, além disto, uma outra onda de migração, 101


no século VIII, quando os árabes chegam a este continente pelos Balkans. De acordo com Silva (2004), diferentemente do que se sabe e se divulga a respeito da presença e da expulsão dos jesuítas do Brasil, pouco se sabe a respeito da enorme presença de judeus e muçulmanos neste mesmo período na Europa. Sendo assim, pelo menos até onde conhecemos, na época da Revolução Francesa, a presença de muçulmanos, assim como a dos judeus, foi negligenciada, sendo inclusive subestimada pelos intelectuais da Revolução. Apesar desta situação, afirma Silva (2004), o livro de La Chalotais, pedagogo, apresentava a necessidade de se tornar o ensino uma atividade exclusivamente secular. Seu rapport inicia-se com a definição da publicização, da universalidade e da promoção da igualdade como pertinentes à educação revolucionária desta época: Oferecer a todos os indivíduos da espécie humana os meios de prover a suas necessidades, assegurar seu bemestar, conhecer e exercer seus direitos, compreender e cumprir seus deveres; assegurar a cada um a oportunidade de aperfeiçoar seu engenho, de se tornar capaz para as funções sociais as quais tem o direito de ser convocado, de desenvolver toda a extensão de talentos, que recebeu da natureza para estabelecer uma igualdade de fato entre os cidadãos e tornar real a igualdade política reconhecida pela lei (In: SILVA, 2004).

Entretanto, segundo o mesmo pedagogo, e outros pensadores da época - Voltaire, o padre Réguis, entre outros ensinar as letras aos operários, camponeses, alfaiates e bodegueiros seria um desvio da natureza das tarefas os mesmos exerciam na sociedade. Ou seja, ele defendia o ensino estatal para as classes abonadas e condenava os Frères Ignorantins, integrantes do baixo clero francês, que ensinavam os rudimentos do alfabeto aos trabalhadores e aos pobres em geral. 102


Dito de outro modo, a educação que nascia com esta Revolução seria básica para grande parte da população. Neste sentido, os estudos secundários eram destinados apenas às crianças que não necessitavam trabalhar para contribuir com o orçamento doméstico; e mais importante ainda, do ponto de vista deste artigo, a cultura muçulmana e a cultura judaica foram ignoradas pelo sistema educacional francês instaurado (SILVA, 2004). Apesar desta "exclusão", a idéia do sistema educacional francês laico e público difunde-se e, depois de 93 anos, em 1882, Jules Ferry institui a escola obrigatória. Desde então, a despeito das "diferenças" existentes no país e no continente europeu, a escola única francesa constitui-se como símbolo da democratização do ensino para muitos países, como o Brasil, por exemplo. Segundo Boto (2003), na Revolução Francesa, os princípios democráticos da escola pública, laica e gratuita encontram-se no relatório de Marquês de Condorcet – matemático nascido em 1743 e apresenta duas grandes preocupações: a- Unir as chamadas ciências morais com as ciências físicas, e; b- Oferecer educação para os pobres, para o povo. Em 1792, ele foi nomeado presidente do Comitê de Instrução Pública da Assembléia Legislativa Francesa, e, nesta ocasião, ele percebe uma oportunidade para colocar seus ideais em prática e, para tanto, elabora um projeto e um relatório que, no século XIX, foi usado como inspiração por Jules Ferry. No âmbito deste artigo, segundo Condorcet (1989), queremos ressaltar que foi justamente este seu documento Rapport et projet de décret sur l'organisation générale de l'instruction publique -que serviu como modelo para muitos países, inclusive para o Brasil, e que através dele, fez com que, para muitos de nós, o "modelo de educação francesa" significasse o "modelo do melhor" em educação. Isto porque o mesmo proclamava a constituição de uma escolarização laica, gratuita, pública, para ambos os sexos e para todos, ou seja, uma educação universalizada. Em suma, 103


Condorcet foi pioneiro neste sentido e, em seu documento afirma que: A- Há que se assegurar um bem-estar coletivo por meio do desenvolvimento pleno de cada indivíduo. B- O conhecimento deveria ser partilhado por meio da educação pública. C- A educação deveria ser igual para TODOS e TODAS, independentemente do gênero e da idade, isto é, homens e mulheres; crianças, jovens e adultos que, porventura, já tivessem deixado a escola ou que não tivessem tido oportunidade para freqüentá-la. D- A escola deveria ser gratuita e o Estado, por meio de um "sistema", seria o responsável por ela, portanto, ela seria totalmente laica. Em síntese, o que nos ensinaram sobre a Revolução Francesa, sobre os Iluministas, e o nosso conhecimento das idéias de Condorcet, mesmo sem saber que eram deles, provavelmente – símbolo defensor da escola pública, gratuita, laica e universal fizeram com que, aos nossos olhos, a França tornara-se o modelo de sistema educacional a ser seguido.

Século XX: as rachaduras aparecem; as fendas são abertas No início deste século, autores como E. Durkheim e Alain foram os grandes mentores intelectuais da discussão na França sobre a escola pública. Vejam, de modo sucinto, o ponto de vista de É. Durkheim (s/d), que durante muitos anos foi professor universitário de Pedagogia e Ciência Social – Faculté de Lettres de Bordeaux, 1887 a 1902- e depois, na Sorbonne, a partir de 1902, quando transforma a referida cátedra em Sociologia: Admitido que a educação seja função essencialmente social, não pode o Estado desinteressar-se dela. Não menos importante do que ele, porém, possivelmente, menos conhecido, Alain (1868- 1951), cujo nome era Émile Chartier, defendia a "humanidade" com como horizonte 104


de todo ato educativo. Para ele, segundo Châuteau (1978), educar significava tirar o homem da barbárie e levá-lo a conhecer seu próprio poder de governar-se a si mesmo, e de crer apenas mediante provas. E, ainda que a educação é a conquista de cada momento, é a conquista de si mesmo. Para Alain, a educação dirigir-se-ia a todos, entretanto, a preocupação de uma sociedade democrática deveria ser a educação dos mais lentos. Ou seja, todos os espíritos deveriam ser despertados. Ele, que é conhecido também como um dos defensores da Escola Tradicional, apresentou-nos a idéia de que se a um espírito mais lento for reservado apenas o ensino técnico, ocorrerá a preparação do escravo, e tal atitude será condenável. Além disto, afirmava que cada vitória deveria ser comemorada com os alunos, e mais ainda, de que não se aprende a ler e a escrever apenas ouvindo uma pessoa que fala bem ou vendo uma pessoa escrever bem. Há que se ter oportunidade de escrever. Passado este período de estruturação do sistema educacional francês, e da sua devida divulgação, acompanhada pelo uso e fruto da colonização, sobretudo das sociedades africanas, assistimos no final da segunda Guerra Mundial, o estabelecimento do Estado de Israel e assistimos a mais uma onda de imigrantes que se instalaram em diferentes países europeus, a partir dos anos 70 do século XX, primeiro pela necessidade de mão-de-obra que os mesmos demandavam, e depois, independentemente desta necessidade econômica européia. Inúmeros autores destacaram que os "esforços pela igualdade da Revolução Francesa" não se constituíram como pano de fundo do e para o sistema educacional francês, apesar de que, foi "vendida" a imagem de que a França era o modelo a ser seguido. Ou ainda, um dito ideal pedagógico soube esconder a perversidade deste sistema. Célestin Freinet (Gars, França, 1896 – Vence, França, 1966), foi um dos primeiros estudiosos da educação da França que percebeu a necessidade de um grande empenho de todos para 105


que a escola se vinculasse realmente ao povo, apesar de apenas ter iniciado o Curso de Magistério em Nice, pois o mesmo é interrompido quando ele se alista ao exército e participa da Primeira Guerra Mundial (1914–1918). Este professor, em oposição ao sistema educacional vigente na França, realiza inúmeros feitos. Dentre eles, citamos: a fundação de uma Cooperativa de Trabalho com os aldeãos da sua cidade paralelamente ao trabalho de docente; inicia as primeiras "correspondências entre as escolas" através das quais estabelece uma troca de experiências entre elas; cria a "imprensa na escola" e com ela a revista La Gerbe (O Ramalhete), com poemas infantis; e ainda, funda uma Cooperativa de Ensino Leigo. Na medida em que, por meio de sua prática pedagógica mais do que inovadora, diga-se de passagem, Freinet incomoda o status quo ou o staff do sistema escolar francês. Por isso, ele é exonerado do cargo de professor em Saint Paul de Vence. De acordo com as informações contidas no sítio da "Associação Brasileira para Divulgação, Estudos e Pesquisas de Pedagogia Freinet" (2006), mesmo assim, ele continua trabalhando na Cooperativa e, finalmente, "abre a sua escola: a "Escola de Freinet" - que é desativada quando se inicia a Segunda Guerra Mundial; e, juntamente com Romain Rolland, cria o movimento Frente da Infância. Entre os anos de 1947 e 1956, Freinet cria o "Icem", uma cooperativa educacional com mais de vinte mil participantes, e lança uma campanha nacional propondo uma reforma no número de alunos por classe — para ele, o número não deveria ultrapassar o de 25 alunos. A "Pedagogia de Freinet" tinha como objetivo modernizar a escola pública que ele considerava como a escola do povo e, portanto, deveria atender, na sua essência, às necessidades do povo por meio dos seguintes princípios: 1- Senso de responsabilidade. 2- Senso de cooperação. 3- Sociabilidade. 4Formação de julgamento pessoal. 5- Promoção da autonomia, da 106


expressão, da criatividade, da comunicação, da reflexão individual e coletiva, além da permissão e da demonstração da afetividade. Na mesma direção contestatória, Michel Lobrot, na obra "Pedagogia Institucional" (1967), também manifesta o mesmo objetivo transformador de Freinet e, para tanto, ele propõe uma prática pedagógica "não-diretiva" e "interventiva" concomitantemente, de modo que um aluno encontre um ambiente de prazer (relacional, intelectual, afetivo) também na escola. Na obra "Violência na Escola" (1989), de Colombier, Mangel e Perdriaul, mais uma vez, a "Pedagogia Freinet" e a "Pedagogia Institucional" são reforçadas na medida em que propõe o uso da palavra na escola ao invés da prática violenta, desnuda a violência na escola do sistema e educacional francês e, por isso, colabora para a destruição do mito da existência e da eficiência deste modelo de ensino. A "introdução" desta obra é muito significativa: Violência nos colégios... Quem já não ouviu contar sobre as atribulações de certos professores seqüestrados, espancados ou violentados, as brigas com faca na hora do recreio, as extorsões, as drogas? (....) Mas novas formas de violência aparecem no colégio, inexistentes há apenas quinze anos atrás. As agressões cotidianas, os atos de 'pequena' delinqüência se multiplicam (1989, p. 17).

O livro apresenta a situação dos muros, das paredes, do mobiliário destruído de muitas escolas. Além disto, retrata as relações "incivilizadas" entre os colegas de uma mesma escola; entre colegas de classe e seus professores; e entre as pessoas com elas mesmas. Todas, segundo os autores, configuram-se como relações de destruição. Ou seja, o cenário de violência é descrito em detalhes e este existe, sobretudo, nas escolas de periferia de Paris, nas quais realizaram suas intervenções. De modo mais alarmante ainda, é retratada a falta de desejo dos alunos estarem nestas salas de aulas, o caráter 107


insuportável de estar na escola – inclusive por parte dos professores – o esgotamento dos sujeitos fechados nestas paredes e, o mais preocupante, a falta de consideração que se observa frente aos menos favorecidos, precisamente com relação aos imigrantes de primeira ou segunda gerações, por direito, mas não de fato, muitas vezes, franceses. Sendo assim, tanto a "Pedagogia Freinet" como a "Pedagogia Institucional" já denuncia(va)m a falta da "igualdade, liberdade e fraternidade" nas escolas públicas francesas e apontavam caminhos para uma escola que reconhecesse a existência do "outro". Porém, do nosso ponto de vista, Michel Foucault e Pierre Bourdieu foram os pensadores que melhor desvendaram a representação ilusória a qual fomos submetidos acerca do sistema educacional francês como modelo educacional ou fonte de inspiração. Para Michel Foucault (1926-1984), a relação de poder é hierárquica no ambiente escolar. Ele revela como a disciplina dociliza os corpos e como os coage numa constante utilização, tal como o ambiente de uma prisão que, de mecanismos sutis e constantes de disciplinarização e vigilância. Dispomos da afirmação que o poder não se dá, não se troca nem se retoma, mas se exerce, só existe em ação, como também da afirmação que o poder não é principalmente manutenção e reprodução das relações econômicas, mas acima de tudo uma relação de força (FOUCAULT, 2003, p. 175).

E ainda: O poder deve ser analisado como algo que circula, ou melhor, como algo que só funciona em cadeia. Nunca está localizado aqui ou ali, nunca está nas mãos de alguns, nunca é apropriado como uma riqueza ou um bem. O poder funciona e se exerce em rede. Nas suas malhas os indivíduos só circulam mas estão sempre em posição de exercer este poder, são sempre centros de sua transmissão (FOUCAULT, 2003, p. 183).

108


Parafraseando Foucault na obra "Vigiar e Punir" (1977), temos que a escola, dentre outras instituições, possui mecanismos de controle atentos e minuciosos de cada movimento dos corpos, e, por meio destes, disciplina-os e fabrica "corpos dóceis". Ou, com suas próprias palavras a respeito da ação do poder: (....) captar o poder em suas extremidades, em suas últimas ramificações. Lá onde se torna capilar; captar o poder nas suas formas e instituições mais regionais e locais (...), e por conseqüência, analisar a escola como o lugar onde o poder disciplinar produz saber, mantém-se, é aceito e praticado por todos os membros da instituição escolar numa relação hierárquica (2003, p. 182).

Especificamente no que diz respeito às escolas, para este Mestre (1977), a sala de aula forma um grande quadro único; com entradas múltiplas, sob o olhar cuidadosamente 'classificador' do professor" (....) A exigência da distribuição das classes em fileiras, com alunos em ordem e uniformizados tem como objetivo garantir a obediência dos alunos, e uma melhor utilização do tempo. Cria espaços funcionais e hierárquicos (...) trata-se de organizar o múltiplo, de se obter um instrumento para percorrê-lo e dominá-lo, trata-se de lhe impor uma 'ordem' (FOUCAULT, 1977, p. 135).

Na mesma direção, a da falta de liberdade e de total controle, a construção dos prédios escolares favorece o "olhar panóptico", daquele que vê tudo da onde está e não é visto. A escola é, portanto, um espaço fechado e vigiado e, ainda: (...) uma máquina de ensinar mas também de vigiar, de hierarquizar, de recompensar (FOUCAULT, 1977, p. 134), por meio, inclusive, de mecanismos de prêmios e punições. Quanto ao controle do tempo, Foucault destaca que

109


Não basta apenas o cumprimento do horário por parte dos professores e alunos (...) procura-se também garantir a qualidade do tempo empregado: controle ininterrupto, pressão dos fiscais, anulação de tudo que possa perturbar distrair; trata-se de constituir um tempo integralmente útil (FOUCAULT, 1977, p. 137).

E, finalmente, a escola, longe de "elevar os espíritos", adestra e penaliza cada mínima "desobediência". Neste sentido, cabe ressaltar que a escola hierarquiza os alunos; hierarquiza as classes em que os alunos se encontram e, ainda, cada escola ocupa um lugar dentro do sistema educacional, sendo que, para tanto, as provas e os exames são os principais instrumentos. Pierre Bourdieu (1930-2003), um dos mais importantes sociólogos da nossa época, aos 28 anos publica seu livro "Sociologie de l'Algérie" (1958), no qual revela a relação entre colônia francesa e metrópole por meio de argumentações atuais para a compreensão dos nossos dias. Bourdieu nos faz (re)ver o referido "ideal pedagógico" e mostra-nos claramente a perversidade do sistema educacional francês em suas diversas obras. Para ele (2003, 2002, 2001), a instituição escolar é um espaço que contribui significativamente para a constituição do habitus dos agentes sociais, mediante a apropriação de determinados capitais sociais e culturais que podem ser mais ou menos valorizados na sociedade. Dessa forma, estes diferentes capitais sociais e culturais obtidos estariam influenciando nas diferenças sociais destes alunos na vida adulta e a escola por ter como referência a cultura, legitimada por agentes sociais das camadas médias e privilegiadas, possibilita a esses grupos sociais o acesso a estes conhecimentos que são reconhecidos por eles como legítimos e, ao mesmo tempo, este conhecimento escolar para as camadas da população menos privilegiadas torna-se inacessível e desprovido de sentido. Bourdieu ainda afirma que: 110


Da mesma forma que a riqueza econômica só pode funcionar como capital na relação com um aparelho econômico, assim também a competência cultural, sob todas as suas formas, só se constitui enquanto capital cultural nas relações objetivas que se estabelecem entre o sistema econômico de produção e o sistema de produção dos produtores (constituído, por sua vez, pela relação entre o sistema escolar e a família) (....) os diplomas escolares são para o capital cultural o que a moeda é para o capital econômico... (2002, p. 197 e 198).

E ainda: Connaissant la relation qui, du fait de la logique de la transmission du capital culturel hérité de la famille et le capital scolaire, on ne saurait imputer à la seule action du système scolaire (et, á plus forte raison, á l´éducation proprement artistique, de toute évidence presqu`inexistante, qu´il procurerait) la forte corrélation observée entre la compétence en matière de musique ou de peinture (et la pratique qu´elle suppose et rend possible) et le capital scolaire: ce capital est en effet le produit garanti des effets cumulés de la transmission culturelle assurée par la famille et de la transmission culturelle assurée para l´école (dont l ´efficacité dépend de l ´importance du capital culturel directement hérité de la famille). Par les actions d´inculcation et d´imposition de valeur qu´elle exerce, l´instituition scolaire contribue aussi (por une part plus ou moins importante selon la disposition générale et transposable à l´égard de la culture légitime qui, acquise à propos des savoirs et des pratiques scolairement reconnus, tend à s´appliquer au-delá des limites du scolaire, prenant la forme d´une propension désintéressée à accumler des expérience et des connaissances qui peuvent n´être pas directement rentables sur le marchè scolaire (BOURDIEU, 1979, p. 22).

Vale à pena citá-lo mais uma vez: O poder simbólico como poder de constituir o dado pela enunciação, de fazer ver e fazer crer, de confirmar ou de

111


transformar a visão do mundo e, deste modo, a acção sobre o obter o equivalente daquilo que é obtido pela força (física ou econômica), graças ao efeito específico de mobilização, só se exerce se for reconhecido, quer dizer, reconhecido como arbitrário (2003, p.14).

Sendo assim, concluímos que as fendas deste sistema modelo estavam desnudas.

Século XXI: Et maintenat? Com o ataque terrorista em Nova Iorque, e ainda, mais recentemente, com o atentado em Madri, não há pessoa que não se preocupar com a "diversidade", com o "outro", tendo em vista que "este" não se cala: SINAIS dos tempos do século XXI. Além destes acontecimentos brutais, temos visto, inúmeras vezes, conflitos entre israelenses e palestinos; invasões norte-americanas com apoio de países europeus; guerras interétnicas em pseudo-países na África; homens-bomba; carrosbomba. E assim, por estes e outros fatos, estas e outras causas, hoje a Europa abriga milhões de pessoas que saem de seus paupérrimos e destruídos países. De acordo com o Dossier de Éric Maurin de 2003, depois de mais de 200 anos de Revolução Francesa, este país apresenta a seguinte distribuição de renda: • 10% da população (os mais ricos) possui 44% da renda nacional; • 40% da população possui 47% da renda nacional; • 50% da população (os mais pobres) possui 9% da renda nacional. Neste sentido ainda, vem ao encontro do nosso raciocínio, a declaração de Luc Ferry, ex-ministro da Educação na França, à imprensa francesa de que 60.000 crianças abandonam 112


por ano a escola e 90.000 terminam o equivalente ao Ensino Médio no Brasil sem qualificação profissional, fato que, segundo a referida autoridade, dificulta-lhes a inserção profissional e social, e por isso, faz-se mister a implantação definitiva do ensino profissionalizante para boa parte da população, os mais pobres. Por isso, como que ironicamente, na França, é permitido que alunos de 14 anos façam estágios em empresas e "descubram" suas aptidões profissionais. Não menos importantes são as seguintes cifras: a- Os estudantes que concluem o equivalente francês ao Ensino Médio optam cada vez menos pelas prestigiosas universidades do país, apenas 39,2 % dos formandos. b- Prevalece hoje o sucesso das carreiras seletivas curtas tal como o Brevet de Technicien Supérieur (BTS) ou ainda, nas escolas baccalauréat (pos-bac) que costumam acolher egressos do Ensino Médio preocupados em tornar rentável o seu percurso de formação. c- Hoje, seis estudantes entre dez prosseguem a sua formação após terem obtido o seu Diploma Universitaire de Technologie (DUT). Esta tendência poderia ainda se reforçar com a implantação do sistema licença/ mestrado/ doutorado, uma vez que há o incentivo aos estudantes a obterem o nível da licenciatura. Em suma, tomamos a liberdade de inferir que Liberdade, Igualdade e Fraternidade; assim como, as idéias de Condorcet, não sobreviveram - talvez nem mesmo tenham nascido - neste contexto, apenas uma "representação" das mesmas, como tivessem ocorrido foi internalizada. A França, assim como, os demais países da União Européia têm um grande desafio pela frente, sobretudo no que diz 113


respeito ao sistema educacional existente, e nesta conjuntura, há diferentes posicionamentos, os quais pretendemos relatar a partir de dois eventos ocorridos neste país: A 7eme (2004) e a 8eme (2006) Biennale de l´Éducation et de la Formatión. Com relação ao primeiro deles, cujo subtítulo foi Apprendre soi-même, connâitre le monde, organizada pelo Institut National de Recherche Pédagogique (INRP) - de 14 a 17 de abril de 2004 – algumas preocupações merecem ser destacadas, pois se constituíram como "temas" de discussão e que corroboram vivamente com as afirmações que temos feito até agora acerca do modelo de ensino francês. A saber: 1- Como passar da aprendizagem social ao sentimento de eficácia pessoal. 2- A responsabilidade do Estado francês frente à diversidade étnica na França. 3- A relação entre sistema educacional e mercado de trabalho. 4- A relação entre escola na província, no Estado nacional francês e na União Européia. 5- A relação entre educação nacional francesa e educação na comunidade. 6- A integração das minorias e dos vencidos na história da República Francesa. 7- A necessidade da formação de professores. 8Conflito entre "comunitarismo" e "sistema educacional francês". 9- Reivindicação de identidade. 10- Das incivilidades à barbárie na escola. 11- Crianças e jovens em situações difíceis. 12- Do sofrimento de alunos e professores na escola. 13- Relação entre língua, identidade e cultura. 14- Línguas e mundialização. 15- A abertura de fronteiras, as diferenças lingüísticas e a escola francesa. 16- Diversidade cultural, conflito de civilizações ou diálogo intercultural. 17- criação de escolas específicas para migrantes. Passados dois anos da constatação da situação do sistema escolar na França, na 8eme Biennale de l´ Éducation et de la Formation realizada também no INRP em Lyon, entre 11 e 14 de abril deste ano, 2006, notamos, muito pouco avanço no que diz respeito às questões levantadas no evento anterior. E, pelo contrário, sentimos uma certa cautela, ou mesmo medo, frente a estes problemas expostos para o mundo todo via satélite. Parece114


nos que houve um movimento de recuo frente ao "outro", ou ainda, uma busca dos ainda privilegiados pelo sistema por seus pares. Passemos ao perfil deste evento para que, em seguida, construído por meio de diferentes fontes, para que argumentemos sobre nossas "impressões". Como se não bastassem os incêndios nas banlieus francesas no final do ano passado, o contexto deste evento foi bastante tenso na medida em que ocorreu no auge das manifestações dos estudantes universitários – que se vêem sem perspectiva de trabalho – e que lutavam para derrubar os Contrats Jeunes en Entrepise (CPE), que propunha uma situação de precariedade no primeiro e ou no segundo ano de trabalho dos jovens empregados em empresas. E, além disto, uma série de manifestações dos imigrantes ilegais em Paris, especialmente, que exigiam a sua legalização no país que, segundo o que é veiculado na mídia, não é, nem pode ser mais o promotor do bem-estar social. Neste contexto, o referido evento de caráter internacional foi organizada a partir do eixo: "Experiência(s), Saber(es) e Sujeito(s)". Este contou com, pelo menos, 500 contribuições de pesquisadores, estudiosos, estudantes de diferentes partes do mundo. De acordo com Max Buttlen, um dos organizadores do evento, estes três temas (experiência, saber e sujeito) mantém uma estreita relação entre si na medida em que "experiências" são adquiridas na escola, e, na mesma direção, constroem-se "saberes" que formam os sujeitos. E neste sentido, para Buttlen, atentemos para sua afirmação: a Europa anuncia uma sociedade do conhecimento que é cada vez mais desigual. Justamente, a professora convidada para a abertura deste evento, professora Michelle Perrot (professora emérita da Université Paris VII), de imediato, chamou-nos a atenção para uma das antigas marcas de uma sociedade excludente e da sociedade igualmente excludente: a relação entre homens e mulheres, na qual as mulheres estarem ainda em posição de 115


desvantagem. Perrot, ainda, convidou-nos a refletir acerca do silêncio ao qual tem sido submetidas as mulheres. Além destas questões, quando os pesquisadores neste evento se questionavam acerca das habilidades necessárias para o século XXI, apresentavam, em alto e bom tom, que 9% da população dos países industrializados não dominam as competências mínimas de leitura, escrita e cálculo para gerir com autonomia a própria vida em sociedade. Perguntamo-nos: neste quadro sócio-econômico e educacional, qual o "perfil", do nosso ponto de vista, deste encontro internacional? Vejamos. Segundo fontes oficiais do Evento, das 449 contribuições enviadas ao evento; 275 eram frutos de pesquisa; 95 foram caracterizadas como "inovações", 58 categorizadas como "reflexões" e 21 tomaram a forma de "performances" em que vídeos, por exemplo, eram apresentados aos interessados. Este número de trabalhos tratou dos mais diferentes níveis e modalidades de ensino: formal, não-formal; formação de professores, de animadores populares; aprendizagem a distância; preconceitos de diferentes naturezas; problemas de infinita ordens, e ainda, tímidas tentativas de soluções. A título apenas de exemplo, escrevemos a seguir alguns títulos presentes no evento: "A vertigem do saber"; "O exercício da autoridade na relação pedagógica"; "Ensinar a mundialização em um curso de Economia na seção de técnicos superiores"; "O impacto das novas tecnologias educacionais em instituições militares"; Pode se ensinar a moral na França: reflexões a partir de um exemplo na Bélgica"; "O teatro a serviço do ensino fundamental"; "O calendário geológico: meio informatizado para ensinar as Ciências da Terra", dentre outros variados títulos e temas. Além desta "hiper-super-diversidade", que do nosso ponto de vista, revela uma espécie de fragilidade, talvez da sociedade francesa como um todo, destacamos na mesma direção duas outras observações. 116


A primeira delas diz respeito a visível e majoritária participação de canadenses e suíços no evento tanto dentre os expositores principais como enquanto comunicadores apenas. Ressalto ainda a participação de um grupo de pesquisadores alemães do Instituto Pedagógico Internacional de Pesquisas, assim como, a facilidade de tradução simultânea do francês para o inglês. Desta forma, o "palco principal" do evento (os grandes anfiteatros do INRP e da UNESCO) foram ocupados por estas pessoas destas nacionalidades e, claro que, pelos franceses. Ou seja, no mesmo palco encenaram aqueles que "representam" "papéis" mais parecidos entre si. Sendo assim, o "palco principal" deste Evento foi ocupado por, em torno de, cem pesquisadores e autoridades de outras instâncias que não acadêmicas que tiveram, aproximadamente, 60 minutos para exporem suas idéias e que, de uma maneira ou de outra, são mais "iguais" dentre a totalidade dos participantes e, equivalentemente, representam países que ocupam posições do mesmo naipe seja em nível da Comunidade Européia ou em nível mundial. Com relação à segunda questão levantada logo acima, contra-face desta primeira, aproximadamente, 400 inscritos (dados oficiais) foram subdivididos em pequenos grupos (não aqueles divulgados na programação do evento, diga-se de passagem) e nestes ateliêrs discutiram "algo" sobre seus trabalhos em "minúsculas" salas de aula, nas quais, segundo comentários ouvidos de modo casual, a reunião se dava de modo artificial e sem a preocupação da "escuta" necessária ao diálogo. Ao integrarmos a primeira observação com a segunda, o evento em análise refletiu a composição e a situação social da França, e porque não dizer de outros países da Comunidade Européia, que se recusa a aceitar "a igualdade, a liberdade e fraternidade" para os não tão iguais. Aliadas a estas colocações, gostaríamos de pontuar algumas informações retiradas da Enquête sur l Éducation National" que foi publicada na revista Le Point de 13 de abril de 2006, por Jacques Marseille: a- Mais de um jovem em dez, depois 117


de 12 anos de escolarização, se encontra em uma situação de insegurança lingüística que obscurece seu horizonte cultural. Estes jovens, segundo o depoimento do professor Alain Bentolila (Universitè Paris V – Sorbonne) não serão bons em nenhum outro domínio dos saberes humanos. B- Apenas 38% dos diplomados em nível superior encontrarão um trabalho correspondente ao seu nível de estudo. C- Das 100 melhores universidades do mundo, apenas quatro são francesas, e a primeira delas aparece no posto de número 46. D- Para Jean-Hervé Lorenzi e Jean-Jacques Payan, na França, existe uma ensino superior para a "nobreza" (grandes escolas de Comércio e Engenharia); outra, para o "clero"; e outras para o "terceiro estado" que reagrupa as universidades e os institutos universitários de tecnologia. Não menos vistos e ouvidos, destacamos alguns dados percentuais exibidos no primeiro dos programas da série televisiva "A Escola na França", exibido em rede nacional no dia 13 de abril deste ano, na TF2: 1- A França possui o maior número de estudantes estressados dentre os países industrializados. 2- Ao final de seis anos de escolarização, 15% dos alunos têm sérias dificuldades para ler e escrever e destes 1/8 será de alunos fracassados permanentemente. 3- E finalmente, este primeiro programa, destacamos, termina com a seguinte pergunta: Será que a escola na França está em decadência ou os pequenos franceses estão geneticamente modificados? Sem querer nos deter nesta questão, deixo para o leitor a ambigüidade nela revelada: até que ponto o locutor do programa refere-se às ondas de imigração na França quando faz esta pergunta? O que ele quis dizer com isto? Feita esta exposição, "da Queda da Bastilha aos dias de hoje", passaremos agora a fazer algumas considerações sobre um possível processo em marcha que aqui e pelo momento chamaremos de "brasilianização" da França.

118


Considerações finais: "Brasilianização" da França Parece-nos claro que o ideal de Condorcet não se realizou plenamente e hoje, até mesmo a representação deste ideal se vê em destruição. É notório que na França, hoje, a educação que é oferecida para os pobres, não é a mesma que é recebida pelos mais favorecidos. E ainda, tendo em vista, a questão do desemprego neste país europeu, não se pode afirmar que exista o desenvolvimento pleno dos indivíduos. Em suma, não há, e provavelmente, nunca houve: Liberdade, Igualdade, nem Fraternidade. Com relação a Condorcet, brilhante, inspirador e lutador, sabemos que morreu de modo obscuro em um calabouço jacobino em 1794. Freinet, inspirador da Pedagogia Institucional, conforme demonstramos, percebeu as "fraquezas" do sistema educacional público francês, e ele, conforme ressaltamos acima, foi exonerado a bem do serviço público, quando começou a praticar suas "novas" técnicas de ensino como professor, e ainda, viu sua escola destruída depois da II Guerra. Foucault, que tão bem denunciou a sutileza do poder, inclusive nas instituições escolares, tentou várias vezes o suicídio, gostava do álcool e morreu de AIDS, na época doença que corroborava com o preconceito aos homossexuais, chamado "grupo de risco" e, por ironia do destino, foi um discípulo de seu pai – que tanto gostaria de tê-lo visto médico – que descobriu o vírus da AIDS, apenas dois anos antes da morte de Foucault: o cientista Luc Montagnier que fora aluno /discípulo do Dr. Paul Foucault. Bourdieu, mais do que lúcido sociólogo, de acordo com estudos de Sergio Miceli, grande estudioso do teórico francês, apresenta-nos um Bourdieu que viveu intensamente a sua obra. Ou seja, escreveu sobre tópicos que se referiam à sua vida como pessoa inserida em um mundo social excludente: o professor normalista, o iniciante sociólogo, o trabalho do vilarejo natal de 119


Béarn e na Argélia, o nascimento em uma família modesta no meio rural provinciano diante da burguesia parisiense. Para Miceli (2005), Bourdieu teve como companhia a relação entre a sua origem e os espaços sociais que o vieram aceitar tais como o Collège de France, em 1981, que obrigaram-no a sociologizar a própria vida e, muitas vezes, sentir-se desprezado por seus pares. Ou seja, Bourdieu viveu cindido entre o "ser professor do meio rural" e o "brilhante e badalado sociólogo da sociedade francesa". Assim, no auge dos anos 60, Bourdieu foi ousado e, conforme apresentamos acima, destruiu a imagem do sistema educacional, especialmente o francês que ele conhecera tão bem. Por isso inclusive, sentiu-se muitas vezes ansioso pela possibilidade de ficar isolado e abandonado, tanto pelos seus parentes como pelos seus pares. Infelizmente, todos estes homens – Condorcet, Freinet, Foucault, Bourdieu – que tentaram mostrar as questões mais graves que constituíam e ainda constituem o sistema educacional francês, tiveram um preço a pagar. Nós, neste artigo, unimo-nos, mui humildemente a eles, pois sabemos que a conjuntura atual do Estado francês não é mais a do "Estado de Bem-Estar Social" devido ao número elevadíssimo de imigrantes que recebe, especialmente, advindos de suas excolônias, e tal situação, fez com que, sempre do nosso modesto ponto de vista, o sistema educacional francês na Bienal fosse representado por uma 'explosão' de falas 'desorientadas' em e uma disposição "teatral" – em termos dos cenários usados e de seus respectivos atores - que ainda busca uma identidade na escola laica e republicana até pouco tempo também sustentada, ainda que em nível da representação e não do "ser", na França enquanto Estado Nacional. Dito de outro modo, a escola pública laica francesa, nascida da queda da Bastilha, percebe, dentre outros fatos, que no mundo muçulmano, o poder temporal e espiritual estão nas mãos da mesma pessoa, e que os seguidores do Corão têm uma relação 120


com o sistema educacional francês e dos demais países da União Européia, que precisa ser vista, compreendida e mediada; NUNCA, ignorada. Ou seja, faz-se o momento de perceber que muitos destes "outros", hoje que se confundem e se misturam ao grupo de imigrantes, clandestinos, ilegais, oriundos de ex-colônias européias não são tão "outros" assim; são parte de uma União Européia, atores da mesma história - ainda que em posições antagônicas e que juntos compuseram o monoteísmo e puseram fim ao politeísmo das civilizações antigas: gregos, romanos, egípcios, dentre outros. Em suma, a França tem que reconhecer esta falência do seu, antes, todo poderoso Estado de Bem-Estar Social e de uma representação de sistema educacional modelo para o mundo. Ela precisa ouvir seus próprios pensadores, e ainda muitos outros de outros países. E é neste sentido do reconhecimento da falência que consideramos que a França entra num processo de "brasilianização", pois, nós, em nosso país, salvo alguns discursos eleitoreiros, já percebemos nossa ineficácia no sentido de uma educação publica, universal e gratuita.

Referências BOTO, Carlota. "Na Revolução Francesa, os princípios democráticos da escola pública, laica e gratuita: o relatório de Condorcet" in Educação e Sociedade. v.24, set. 2003, vol. 24, n.84 Campinas, p. 755-768. BOURDIEU, Pierre (2003). O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. ________ (2002). A Produção da Crença: contribuição para uma economia dos bens simbólicos. São Paulo: Editoria Zouk. ________ (2001). A Miséria do Mundo. Petrópolis: Editora Vozes. 121


________ (2001) A Economia das Trocas Simbólicas. São Paulo: Editora Perspectiva. ________ (1979) La Distinction Critique Sociale du Jugement. Paris: Lés Editions de Minuit. CHÂTEAU, Jean (1978). Os Grandes Pedagogistas. São Paulo: Companhia Editora Nacional. COLOMBIER, Claire; MANGEL, Gilbert e PERDRIAULT, Marguerite (1989). A Violência na Escola. São Paulo: Summus. CONDORCET. Instrução Pública e Organização do Ensino. Porto: Educação Nacional, 1943. ________ (1989). Rapport et projet de décret sur l'organisation générale de l'instruction publique; présentés à l'Assemblée Nationale, au nom du Comité d'Instruction Publique, par Condorcet, Député du Département de Paris. Paris: Imprimerie Nationale, 1793. Enfance, Paris, v. 42, n. 4. DURKHEIM, Émile (s/d). Éducation et Sociologie. Paris, F. Alcan. (Tradução de Lourenço Filho). São Paulo, Melhoramentos. FOUCAULT, Michel (2003). Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal. ________ (1977). Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes. LOBROT, Michel (1967). La Pédagogie Institutionelle. Paris, Gauthier – Vilars. MARSEILLE, Jacques. "Enquête sur l Éducation National". In Le Point de 13 de abril de 2006. MICELI, S. (2005) In www.foroideasibero.cervantesvirtual.com/foro/data/1974.doc;jsessioni d=abc44ejQIHT-GtovgQ. Acessado em 24 de abril de 2006. 122


SILVA, Nilce da. Reflexões sobre a Bastilha, o 11 de setembro e a Educação. In Jornal da USP. 5 a 11 de julho de 2004. Ano XIX, n. 693, Opinião. Anais da 8eme Biennale de l'Éducation et de la Formation. Resume dês contribuitions. Lyon, lês 11, 12, 13 et 14 avril 2006. Sítio da Associação Brasileira para Divulgação, Estudos e Pesquisas de Pedagogia Freinet (ABDEPPF). Fonte: http://www.abdeppfreinet.com.br/ Acessado em 23 de abril de 2006. Capítulo I da série televisiva "A Escola na França", exibido em rede nacional no dia 13 de abril deste ano, TF2.

Nilce da Silva - Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. Endereço residencial: Rua Antonieta Leitão, n. 209. Ap. 12. Freguesia do Ó. São Paulo. SP. CEP: 02925-160. Endereço eletrônico: nilce@usp.br

Recebido em: 12/06/2007 Aceito em: 15/11/2007

123


.


O CONHECIMENTO EM DESENHO DAS ESCOLAS PRIMÁRIAS IMPERIAIS BRASILEIRAS: O LIVRO DE DESENHO DE ABÍLIO CÉSAR BORGES1 Gláucia Trinchão

Resumo O conhecimento em Desenho, que chegou aos alunos das escolas primárias públicas brasileiras no final do século XIX, foi analisado através do livro de Desenho de Abílio César Borges, o Barão de Macaúbas. A obra, como suporte de memória, preservou o processo de construção do conhecimento acadêmico, o processo de transposição do saber científico, do professor/autor, ao saber escolar e, ao materializá-lo em suas páginas, socializou as ações didáticas do educador e os conteúdos selecionados. O livro "Desenho linear de elementos de Geometria prática popular: seguido de lições de agrimensura, stereometria e architectura" - "Primeira Parte", editado em 1882, representa a segunda edição compilada da primeira versão publicada em 1878. A primeira se destinava às escolas primárias, normais, liceus, colégios, cursos de adultos, artistas e operários da indústria. A segunda representa o substrato da primeira, destinada às escolas primárias do Império brasileiro. Palavras-chave: Ensino de Desenho; Didática do Desenho; Transposição Didática; Livro Didático. THE KNOWLEDGE ABOUT DRAWING IN THE BRAZILIAN IMPERIALIST PRIMARY SCHOOLS: ABÍLIO CÉSAR BORGES'S DRAWING BOOK Abstract The knowledge in Drawing, that arrived at the pupils of the primary schools public Brazilians, in the ending of century XIX, was analyzed through the book of Drawing of Abílio Cesar Borges, the Baron of Macaúbas. The workmanship, as memory support, preserved the process of construction of the academic knowledge, the process of transposition of knowing scientific to knowing school, when materializing it in your pages, socialized the didactic actions of the

O presente artigo é uma versão ampliada e melhorada do artigo que foi apresentado no 12o Encontro Rio Grandense de Pesqusadores em História da Educação - ASPHE em 2006. 1

História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, n. 23, p. 125-147, Set/Dez 2007 Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


educator and the selected contents to be taught. The book "linear Drawing of elements of popular practical Geometry: followed of lessons of agrimensura, stereometry and architecture" - "First Part", edited in 1882, represents the second compiled edition of the first version published in 1878. The first destined to the primary and normal schools, secondary school and colleges, the courses of adults and for artists and laborers of any branch of the industry. The second represents the substratum of the first workmanship, destined only to the primary schools of the Brazilian Empire. Keywords: Education of Drawing; Didactics of the Drawing; Didactic transposition; Didactic book. EL CONOCIMIENTO EN DIBUJO DE LAS ESCUELAS PRIMARIAS IMPERIALES BRASILEÑAS: EL LIBRO DE DIBUJO DE ABÍLIO CÉSAR BORGES Resumen El conocimiento en Dibujo, que llegó a los alumnos de las escuelas primarias públicas brasileñas en el final del siglo XIX, fue analizado a través del libro de Dibujo de Abílio César Borges, el Barón de Macaúbas. La obra, como soporte de memoria, preservó el proceso de construcción del conocimiento académico, el proceso de transposición del saber científico, del profesor/autor, al saber escolar y, al materializarlo en sus páginas, socializó las acciones didácticas del educador y los contenidos seleccionados. El libro "Dibujo linear de elementos de Geometría práctica popular: seguido de lecciones de agrimensura, estereometría y arquitectura" - "Primera Parte", editado en 1882, representa la segunda edición compilada de la primera versión publicada en 1878. La primera se destinaba a las escuelas primarias, normales, liceos, colegios, cursos de adultos, artistas y operarios de la industria. La segunda representa el substrato de la primera, destinada a las escuelas primarias del Imperio brasileño. Palabras-clave: Enseñanza de Dibujo; Didáctica del Dibujo; Transposición Didáctica; Libro Didáctico.

126


Introdução Neste artigo o conhecimento em Desenho, que chegou aos alunos das escolas primárias públicas brasileiras, nas décadas finais do século XIX, foi analisado através do livro didático de Desenho de autoria do educador e inspetor de instrução baiano Abílio César Borges2. O Desenho está aqui compreendido enquanto campo de conhecimento3 e linguagem e o livro didático como suporte de memória, documento da história do conhecimento, aqui o de Desenho, e base empírica para essa pesquisa. Este artigo mostra como o conhecimento em Desenho chegou aos alunos das escolas primárias imperiais, como ocorreu o Nascido na Vila de Minas do Rio de Contas na Bahia – 9/ 9/824 e falecido 17/1/891 no Rio de Janeiro, Dr. Abílio César Borges era médico, contudo, sua maior contribuição ao país foi como educador. Em 1856, foi nomeado para diretor da Instrução Pública na Bahia. Fundou em 1857 o Ginásio Baiano. Em 1870, fundou o Colégio Abílio. Foi membro no Rio de Janeiro, do Conservatório Dramático, foi sócio efetivo do IHGB e do Conselho Diretor de Instrução do Município da Corte. Em Salvador, foi presidente da Sociedade Libertadora Sete de Setembro, que publicou o jornal O Abolicionista. Correspondente das Sociedades Geográficas de Paris, de Bruxelas e de Buenos Aires, da Sociedade dos Amigos da instrução Popular de Montevidéo, da Sociedade Parisiense para o desenvolvimento da instrução primária, fundador da Sociedade Propagadora da instrução do Rio de Janeiro, do Colégio Abílio, da Corte e do de Barbacena. Ver BORGES, 1882 2

Segundo Conne (1996, p. 245 - 247), conhecimento e saber são ordens distintas regidas por processos distintos. O entendimento do conhecimento se aproxima da forma, do geral e da situação de ação, e o entendimento do saber se aproxima do conteúdo, do específico e do conhecimento útil, utilizável, a utilizar. O trato do conhecimento pode ser de duas maneiras: para estudá-lo - e aí será feito pelas Ciências Cognitiva que procura respostas na psicologia da inteligência; ou para transformá-lo – e aí entra em jogo os mecanismos de Ensino – ensinar como forma de trabalhar o saber. Porém, tanto o estudo do conhecimento quanto o do ensino se fazem a partir de uma transposição de saberes - Didática. O estudo do conhecimento procede de uma transposição de saber. São estes saberes que controlam e organizam as aulas e a forma como elas são desenvolvidos.

3

127


processo de transferência do conhecimento acadêmico ao saber escolar e quais os conteúdos selecionados que estão materializados nos materiais didáticos, dentre eles, os programas e livros didáticos. Os estudos científicos abordam o tema do livro didático voltado para tópicos que envolvem questões de ordem política, econômica, de uso, além de histórico e de análise de seu conteúdo. O estudo sobre o Livro de Abílio César Borges filia-se à vertente histórica que visa identificar os saberes ensinados e os usos dos manuais ou compêndios. Busca identificar o conteúdo, os conceitos e concepções e modos de compreensão do Desenho e como esse campo de conhecimento foi ensinado e difundido. O autor/professor, também chamado de Barão de Macaúbas, era médico, mas, contudo, sua maior contribuição ao país foi como educador. Em 1856, foi nomeado para diretor da Instrução Pública na Bahia, onde fundou em 1857 o Ginásio Baiano e, em 1870, fundou o Colégio Abílio. A obra, o livro didático intitulado "Desenho linear de elementos de Geometria prática popular: seguido de lições de agrimensura stereometria e architectura" - "Primeira Parte", foi editada em 1882. Desenho linear, ou desenho geométrico, "é a arte de representar por meio de linhas os contornos das superfícies e dos corpos" das superfícies planas – formas planas - ou no espaço – formas dos corpos sólidos, define Borges (1882, p.5). O exemplar estudado representa a segunda edição compilada da primeira versão publicada em 1878, porém foi possível ter acesso ao exemplar editado em 1938, cujo corpo do livro contém as mesmas informações e distribuição de conteúdo da sua versão de 1878, variando apenas no tamanho e apresentando-se um pouco maior. Enquanto a primeira edição se destinava às escolas primárias e normais, nos liceus e colégios, nos cursos de adultos e por artistas e operários de qualquer ramo da indústria na corte, a segunda versão, aqui em estudo, representa o substrato da primeira obra e, segundo o próprio autor, foi destinada apenas às escolas primárias da Corte e de todo o Império brasileiro. A investigação se dá na segunda edição dessa obra e tem como partida a transposição do saber sábio – o saber científico do 128


professor/autor Abílio -, ao saber a ensinar – o saber escolar – que está materializada e socializada em seu livro. Como suporte de memória, este livro preservou o processo de construção do conhecimento acadêmico em Desenho e o processo de transposição dos saberes, ao materializá-lo em tuas páginas, socializou as ações didáticas do educador e os conteúdos selecionados a ser ensinado. Acredita-se na inevitabilidade da necessidade de manipulação do saber a ser ensinado, como uma forma de didatização do conhecimento científico que se quer fazer ser compreendido e apreendido pelo aluno. Assim como, que a transposição suscita a recriação, insinua o trabalho com o novo ou a renovação e o novo recria e insere no novo contexto o conteúdo a ser ensinado - a didatização. Na manipulação dos saberes, reforça Astolf (2002, p.1061) a evolução tecnológica, as políticas educacionais nacionais e internacionais e a dinâmica da economia, suscitam renovações que buscam, por um lado se aproximar do saber científico e, do outro, a legitimação do saber escolar (diferenciando do saber familiar), "a introdução do novo não conduz jamais a uma tabula rasa [...] eles persistem em criar o ensinável". Esses pressupostos vêm de uma teoria criada para o campo da Didática da Matemática, área a fim ao campo do Desenho, a Transposição Didática. Criada pelo francês Yves Chevallard(2000), em 1982, a Transposição Didática compreende dois tipos de manipulação do saber escolar: a lato sensu, que se refere ao estudo científico do processo de transposição representada pelo esquema: Objeto de Saber - Objeto a Ensinar Objeto de Ensino; e a stricto sensu, que se refere ao processo de transformação de um conteúdo de saber específico em uma versão didática desse objeto de saber - o qual eu denominei de rito de passagem que conduz o Saber a Ensinar - para o Saber Ensinado.

129


Parte-se do princípio que a produção bibliográfica faz parte da praxe4 acadêmica sendo uma forma de Rito de Passagem, nos mesmos moldes de qualquer ritual que assinalam a transição de um indivíduo de uma categoria ou estatuto para outro. Esses rituais acadêmicos estão registrados nos livros que, por sua vez, expressam os saberes e os indicativos dos programas de ensino. Os conteúdos dos textos didáticos, portanto, constituem o saber sábio, compondo-se de conteúdos que devem ser ensináveis e avaliáveis. O saber é colocado em um programa, indicando aquilo que o aluno precisa saber, aquilo que é importante e necessário que ele saiba. Os manuais didáticos materializam esses conteúdos escolhidos do saber sábio. Segundo Perreli (1996, p. 70), com base nos estudos de Arsac, são saberes ensináveis e explicitáveis de forma que os alunos possam aprender e permitindo, outras definições, características, funções e propriedades a serem controlados pelos pais, professores e instituições bem como pelos alunos. A análise do rito de passagem do saber em Desenho do saber sábio/científico ao escolar, considerando que cada professor/autor detêm um saber fruto de seus estudos e pesquisas sobre sua disciplina, consolida a idéia de que os conteúdos escolares têm origem em saberes científico de outra natureza, que por sua vez, legitimam as disciplinas escolares. Para a analise do rito de passagem expresso no livro didático de Abílio César Borges a 'Obra' foi investigada nos aspectos quantitativo, de apresentação e ilustrações. Já sobre o 'Autor', a análise se deu nos aspectos construção do saber e conteúdo. Os 'Itens', capa, índice, prefácio, nota introdutória, cartas enviadas ao autor, dedicatórias, citação ou referencias, bibliografia citada e notas do editor formaram o lócus das informações necessárias à análise do autor e da obra. Além desses, "Aquilo que habitualmente se faz; costume, prática, rotina. Ser a norma e, procedimento correto, ação, realização. Ver Dicionário Houaiss da Língua portuguesa, p. 2278. 4

130


foram observados as imagens e modo de descrição, os exercícios, sugestões de trabalho e comentários, lista de materiais para a execução dos exercícios e trabalhos, gradação e encaminhamento dos exercícios, comentários pessoais e entendimento dos processos didáticos. Assim como, as falas que indicam o destino do livro – se para professor, aluno ou ambos.

O Livro Didático como Suporte de Memória Escolar Enquanto suporte de memória, o livro didático de Desenho de Abílio César Borges se transformou em documento da história dessa disciplina, principalmente, da história da memória da cultura e do saber escolar, pois registra em suas páginas o que foi selecionado por quem o elaborou, mas tem um só fim, como salienta Oliveira (1986, p. 13-14), o de "ensinar e instruir" e "à transmissão de experiências". Educadores, pesquisadores e historiadores, em busca de vestígios do devir da humanidade, lançam mão de materiais escolares como documentos e trazem para o presente indícios do passado. O trato do Livro Didático, livro-texto ou livro de texto, livro escolar, livro de leitura em classe ou livro de classe, manual escolar e compêndio ou compendio escolar, como objeto de investigação o coloca como um vestígio material do saber que registra a História do Conhecimento e registra os vestígios dos processos de manipulação do saber, aqui, em Desenho. O livro didático como fragmento que persiste no tempo representa o que sobrevive e o fragmento, segundo Legoff (1994, p.95), "não é o conjunto daquilo que existiu no passado, mas uma escolha efetuada quer pelas forças que operam no desenvolvimento temporal do mundo e da humanidade, quer pelos que se dedicam à ciência do passado e do tempo que passa, os historiados". Porém, nesse caminho, o agravante de um livro perdurar no tempo por interesse comercial, conforme explica Choppin (2002, p. 21), reside "na sua longevidade" e "imobiliza efetivamente a realidade" e 131


a "lógica econômica não faz mais que acrescentar a diferença inerente a todo manual entre o saber sabido e o saber ensinado, entre a realidade social e a imagem que é apresentada". Salientasse, que o livro pode perdurar em seu uso também por falta de interesse por um determinado campo de conhecimento, como no caso do Desenho, cuja produção e inovação de seu conteúdo, até o presente momento, se apresenta com uma evolução lentíssima e de métodos e modelos repetitivos. O livro de Abílio César Borges lançado nas décadas finais do século de XIX, sobreviveu com organização e conteúdo intactos até a década de quarenta do século XX, sem que fosse modificada uma linha se quer. A terceira edição dessa mesma obra pode ser encontrada na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, com data de publicação para 1946. O livro didático como suporte de memória coletiva e visual materializam, registram, socializam e congelam no tempo, as praxes acadêmicas, entendidas como as ações educativas, os saberes ou os saberes a serem aplicados em sala de aula, e registram o rito de passagem na manipulação transpositiva dos saberes, ou seja, o conjunto das práticas didáticas realizadas durante a transposição de saberes com o objetivo de assegurar certo controle sobre o público.

O Rito de Passagem na praxe Acadêmica A análise segue na elaboração do Stricto Sensu, investiga a manipulação dos saberes em Desenho no rito de passagem do saber científico adquirido por Abílio César Borges ao saber escolar, a partir de sua materialização e socialização no, e através, do seu livro didático sobre Desenho Linear. Considero a representatividade desse livro enquanto objeto que materializa, socializa e registra as transformações do conhecimento do autor do âmbito da pesquisa científica, identificada aqui pelos seus interlocutores, para a sala de aula, e o Rito de Passagem que se 132


transforma em objeto de estudo da Transposição Didática em Desenho - compreende os motivos, as etapas, as ações, os modos das transformações do saber restrito ao âmbito dos especialistas autores e pesquisadores em Desenho, assim como, as etapas e fases de saberes selecionados e dosados de acordo com o grau de ensino. Na fala do 'Autor' registrada através da introdução e do prólogo, e as cartas de professores, identifica-se a Construção do saber: sua formação acadêmica, seus interlocutores, a que curso foi destinado à obra, e se houve outras produções e áreas de aplicação. As leis, os pareceres, as portarias oficiais, ajudam na analise do Conteúdo: na compreensão da disciplina, na observação dos métodos indicados, na identificação da lógica dos conceitos adotados, na formação das concepções e propostas. O rito de passagem - processo de transformação do conteúdo de saber específico de Abílio César Borges em uma versão didática desse objeto de saber, está aqui dividido em duas etapas: 1 - a passagem cuja transformação é externa à sala de aula: do Saber Científico a um Saber a Ensinar, vem organizada a partir de suas anotações e diálogos travados com seus interlocutores acadêmicos sobre o ensino do Desenho nas escolas imperiais. Esse diálogo é de responsabilidade da esfera de onde se pensa o funcionamento didático, a Noosfera5. E envolve o conhecimento dos colegas e profissionais universitários, pesquisadores e o profissional de educação, aqui no caso o professor/autor, entre outros, apresentam em suas práticas pedagógicas, na seleção de conteúdos e materiais didáticos relacionados com a educação, logo o ambiente onde se opera a didatização6 dos conhecimentos científicos. 2 - a que conduz do A Noosfera se constitui no conjunto de pessoas e grupos que têm a função de assegurar, de forma mais geral, a interface, a relação entre o sistema de ensino e a sociedade global e caracteriza-se pelo ambiente onde se opera a didatização dos conhecimentos científicos (Perrelli, 1996).

5

A didatização do saber "provoca construções novas decorrente de pressões de natureza bem diferentes daquelas da pesquisa. Na escola, as condições concretas 6

133


Saber a Ensinar para o Saber Ensinado, em que a manipulação é interna à sala de aula, e é de responsabilidade do professor. Para isso, o saber que, na primeira fase, foi colocado em um programa e que indica aquilo que o aluno precisa saber, aquilo que é importante e necessário que ele saiba, na segunda fase, será expresso nas práticas pedagógicas e nos materiais didáticos, aqui no caso os livros didáticos de Desenho que foram usados em sala de aula, estes por sua vez, materializaram e socializaram os conteúdos pré-escolhidos do saber científico. Na primeira etapa da análise do rito de passagem, observo que em seu livro Abílio não apresenta a bibliografia utilizada para construí-lo ou elaborá-lo, mas, "no intuito de comunicar a todos minha[sua] convicção de que o desenho geométrico" é uma "disciplina facil de ensinar e aprender", além da sua "incontestável necessidade para os progressos as nações civilizadas, grandes e pequenas", Abílio transladou para a Introdução da 1a edição do seu livro "algumas das notas" tomadas nas suas leituras "sobre este interessante conhecimento". Essa introdução, por sua vez, foi inserida na segunda edição como meio de fortalecer tuas convicções. Suas concepções refletem claramente a sua admiração pela "lições das cousas". Abílio defende que "o ensino do desenho geométrico póde e deve começar ao mesmo tempo em que o da escripta". Para ele, é tão fácil traçar as figuras geométricas quanto as letras do alfabeto, por isso os alunos devem saber tanto de desenho como de escrita, "isto é, escrever uma idéia ou um objeto por meio de linhas e sombras" pois "o desenho é uma escripta não abstracta". No que se refere à escola, essa não deve estar preocupada em formar artistas ou industriais ao ensinar o desenho, assim como, não se preocupar em formar calígrafos, literatos e sábios. Portanto os meninos deveriam aprender "a ler" e "escrever" um Desenho, ou de ensino vão determinar a colocação dos saberes em contextos que não tem como 'a priori' a fidelidade a sua construção pelo pesquisador", destaca Perrelli (1996, p. 66).

134


seja, "reproduzir os caracteres que reunidos exprimem um objeto, como escrevem uma palavra por meio das letras do alphabeto". Adepto do método intuitivo e das lições de coisas, defende a proscrição dos métodos usados na época de copia mecânica de modelos, como meio indispensável de se obter bons resultados, e propõe a substituição "por uma copia inteligente, que leva pouco a pouco o discipulo a exprimir suas proprias idéias". Então, explica como seria esse novo processo: "se executar em grande no quadro preto os traços das figura", de forma que os alunos vejam como são traçadas previamente pelo professor. Assim, o aluno perceberá o desenvolvimento do modelo (BORGES, 1882, Introdução, p.VI) O autor chama a atenção para as palavras de um dos seus interlocutores, o pedagogista Oriental Dr. Jacobo Varela, extraídas da sua dissertação lida no Congresso Pedagógico de Buenos Aires: "A geometria dá á mente do alumno um elevado conceito da applicabilidade das theorias scientíficas, ancaminhando-a e habilitando-a á raciocinação methodica e lógica, desapaixonada e tranqüila, que conduz a um effeito útil"(BORGES, 1882, Prólogo, s.n) Do professor de Desenho de máquinas da Escola polytechnica de Paris, M. Tronquoy, Abílio tira a crença em sua utilidade e, que o desenho deveria "fazer parte do ensino público em todos os gráos" e, diante da crescente exigência da industria, do progresso das maquinas e "das artes que teem connexão com as sciencias mathematicas, o conhecimento do desenho geométrico" é indispensável ao engenheiro, ao arquiteto, aos artistas e ao operário e "é útil pelo menos ao homem do mundo, que não quer ser completamente estranho ao desenvolvimento industrial de seu tempo" (BORGES, 1882, Introdução, p. VI) Já do M. Philbrick, superintendente de ensino em Boston, em um relatório de 1874, Abílio apreende a concepção de que "a natureza, o fim e a utilidade do desenho, como um ramo da educação, ainda são muito imperfeitamente compreendidos e apreciados neste pais". Segue dizendo que se tem feito esforços para espalhar esse conhecimento porque se começa a considerá-lo 135


enquanto "ramo essencial da educação geral em todos os gráos, e como a base de toda instrução technica ou industrial". Geralmente o Desenho é visto "como uma arte de prazer, de medíocre utilidade prática, permitida somente aos estudantes a quem resta algum tempo de uma instrução suficiente nas cousas mais úteis". Começa-se a perceber que o Desenho é útil para todos os ramos do trabalho e se constitui em "uma linguagem mais própria a representar aos olhos os objetos do que o fariam as palavras" além disso, "é o melhor meio de desenvolver a faculdade da observação, e de crear o gosto pelo bello na natureza e nas obras d´arte". Para esse interlocutor do Abílio, o desenho também é uma linguagem importante para o arquiteto, o gravador, o escultor, o mecânico e os operários. "emfim dá ao olho e á mão uma educação de que todos teem necessidade" (BORGES, 1882, Introdução, p.VII). M. Philbrick, por sua vez, se inspira nas concepções de Pestalozzi, que defende a idéia do desenho como "um auxiliar muito útil para se ensinar a escripta" e um auxiliar aos professores como um meio excelente "de tornar suas lições mais claras" e como um facilitador "o estudo das outras meterias" (BORGES, 1882, Introdução, p.VII). Com base em M. Walter Smith, Abílio insiste na "conveniência de encarregar os professores ordinários das lições do desenho, negando, portanto a idéia de que "era preciso ser artista para ensinar o desenho". Compreende o desenho como linguagem pela qual o homem exprime suas idéias por meio de linhas, sombras e cores, do mesmo modo que às exprimem por meio de palavras e frases. E acrescenta ainda que o desenho é na verdade "uma língua; língua da forma, tendo somente duas letras – a linha recta e a linha curva – que se combinam como se combinam os caracteres alphabéticos nas palavras escriptas". E no seguimento de suas explicações M. Walter Smith coloca que "o desenho e a escripta procedem da mesma faculdade, a faculdade da imitação; e o desenho, mais simples em seus elementos do que a escripta, é por isso mesmo de uma aquisição mais fácil". Segundo Smith, estudos vêm destacando que "toda pessoa que aprende a escripta 136


póde aprender o desenho; e que os dous conhecimentos se prestam mutuo apoio: - o sucesso em uma é indicação certa do sucesso da outra". Para Smith, a única forma de se difundir a instrução no Desenho industrial é "estender sua influencia sobre todos os productos, é ensinar o desenho elementar a todos os meninos sem excepção". Para aperfeiçoar o gosto em uma determinada cultura é necessário "desenvolver o amor do bello no espírito da infância". Além disso, Smith vê o Desenho Geométrico como "a única base verdadeira do desenho artístico ou industrial" (BORGES, 1882, Introdução, p.VII). Essas idéias são defendidas também pelo Presidente do Board of directors da cidade de S. Luiz, nos Estados-Unidos da América do Norte, M. Thomaz Richeson, quando diz para se fazer uma revolução nas manufaturas do país e elevar "de modo notável o valor dos productos nacionaes", é preciso considerar "a educação do olho e da mão" e o "desenvolvimento do gosto pelo habito do desenho". Esse deve ser "adquirido desde as primeiras idades nos jardins da infância" e "completados pelo ensino do desenho elementar nas escolas do primeiro gráo, e do desenho industrial nas escolas do segundo" (BORGES, 1882, Introdução, p.X). Nas palavras de M. Bouisson, registradas em relatório apresentado ao governo francês à respeito da exposição universal de Philadelphia, sobre a utilidade do ensino do desenho e sua difusão na França, é preciso fecundar um ensino primário bem concebido e "não basta possuir excelentes professores especiaes de desenho", nem "possuir bons cursos e boas escolas", além disso, "é necessario que todos os preceptores e todas as preceptoras estejam habilitados a dar a toda a população escolar o primeiro ensino do desenho", enfatizando assim a necessidade do ensino do Desenho nas escolas primarias. É preciso dedicação ao ensino do desenho "e retemperar suas forças produtivas nas fontes da arte". E com o "ensino geral da arte do desenho, abrem-se duas estradas: uma, que favorece o desenvolvimento do gosto e da habilidade artística, e outra, que torna o povo capaz de apreciar o bello em suas formas diversas". Desse modo, se criaria "a oferta e a procura - o público 137


que julga e o artista que produz" (BORGES, 1882, Introdução, p. XI). Os interlocutores de Abílio César Borges apostam na importância do Desenho tanto para o desenvolvimento das faculdades humanas, quanto para o progresso industrial de um país.

Análise do Livro Didático de Desenho de Abílio César Borges O pensamento que conduziu ao plano da edição do primeiro livro Geometria Prática Popular Abílio César Borges, teve como iniciativa "servir a difusão do ensino do desenho geometrico" e assim, difundir as "noções geraes das sciencias e artes que a ele se prendem" como a "cosmographia, a agrimensura, a stereometria e a architectura". Para isso o autor fez uma distribuição "methodica e gradualmente" dos materiais de forma que esse ficasse ao alcance das escolas primárias e normais, dos liceus e colégios, e de industriais, comerciantes, lavradores, operários com ou sem instrução completa. Dessa forma, o autor dedica a primeira parte aos dois primeiros anos da instrução primária e, a segunda e os dois primeiros capítulos da terceira parte ao terceiro e quarto anos da mesma instrução. Por isso, à segunda edição ficou destinado à socialização de parte do conhecimento em desenho: noções preliminares, uso dos instrumentos, posição das linhas retas, ângulos, polígonos, triângulos, quadriláteros, figuras formadas por linhas curvas, sólidos, poliedros – sólidos de arestas e redondos. Na segunda edição, Abílio tem a preocupação em conceitua e definir cada forma geométrica e seus componente, apresentando graficamente suas imagens e identificando seus elementos, sem apresentar descritivamente o processo de construção de cada uma delas. Todos os exercícios são em forma de questões e as respostas são verbais e não gráficas. São questões como "o que é corpo, ou sólido polyedo?", "o que é recta 138


perpendicular?" E "o que é ponto de convergência?". Em apenas uma nota de roda pé, Abílio (1882,p.87) destaca que "o professor deve possuir em cartão os desenvolvimentos dos diferentes sólidos", como meio de se fazer compreendido pelos discípulos ao ensinar a parte do conhecimento em desenho que refere aos sólidos geométricos. Acrescenta ainda que "sem taes modelos, é quase impossivel aos meninos a comprehensão dos desenvolvimentos dos sólidos". Porém, em nenhum momento o autor faz referencia á relação do Desenho com os demais campos de conhecimento os quais o título de seu livro se refere como a cosmographia, a agrimensura, a stereometria e a architectura. Apenas adverte que "no ensino da geographia considera-se a superfície da esphera terrestre desenvolvida em dous circulos planos, que tomam o nome de mappa-mundi. Esses dous circulos são chamados de hemisphéricos" (BORGES, 1882, p. 88). O seu saber científico sobre o Desenho foi organizado em seu livro em "marcha naturalmente progressiva, procedendo passo a passo, subindo docemente, como por degráos insensíveis, das idéias mais simples ás mais complicadas e usando de uma linguagem calculadamente concisa, singela e clara" (BORGES, 1882, Introdução, p.XII). Para Abílio César Borges, o Desenho tinha uma importância fundamental na instrução, principalmente a primaria. Era tão importante quanto qualquer outra disciplina, mais fácil de aprender, utilíssimo, "porque esclarece e dá tempera ao espírito sem fatigá-lo, enriquecendo-o com numerosissimas idéias exactas e constante applicação prática", desperta a "faculdade da observação, e, portanto o gosto de aprender" (BORGES, 1882, Introdução, p. II). O autor alega "as vantagens colhidas" pelos seus alunos, mesmo os analfabetos graficamente, ou seja, os analfabetos do estudo do Desenho, como responsáveis pela sua vontade de difundir esse conhecimento pelo Brasil, chegando a definir o sucesso de teus discípulos como a "razão principal do apparecimento do presente livro". Além disso, Abílio tem consciência de que o ensino do Desenho Linear, apesar de estar 139


consignado nos regulamentos da instrução pública de quase todas as Províncias do Império, não é ministrado "na generalidade das escolas" ou não alcança o efeito desejado, seja pela falta de habilitação dos professores, "seja porque aos habilitados falece a dedicação e o convencimento da importância de semelhante ensino", ou seja, principalmente, por "carência nas escolas de compêndios apropriados e em profusão" (BORGES, 1882, Introdução, p. III). A primeira edição completa do seu compendio, "Desenho linear de elementos de Geometria prática popular: seguido de lições de agrimensura stereometria e architectura" –, foi publicada em 1878, e teve como uma das forças motrizes à "convicção" da importância "da geometria para o desenvolvimento e para a tempera da intelligencia". Essa primeira edição foi elaborada para ser utilizada nas escolas primárias e normais, nos liceus e colégios, nos cursos de adultos e por artistas e operários de qualquer ramo da indústria na Côrte e nas demais províncias do Império. Porém, para atender "às sensatas observações de muitos professores, e de alguns Collegas educadores e Inspetores de instrução", sobre ser o seu "compendio de Geometria Popular extenso demais para ter a conveniente applicação no geral das escolas", o autor lançou, em 1882, a segunda edição com o sub titulo de "Perimira Parte". Movido pela mesma força o autor reduz o conteúdo de sua obra já que, para seus colegas, "só poderia ser regularmente utilizadas a primeira metade della", nas escolas primárias. Segundo informa o próprio autor no prólogo de sua obra, a segunda edição foi destinada apenas às escolas "primárias de todos os grãos" e "nas escolas das mais longínquas e menos favorecidas aldeias" do Império (BORGES, Prólogo,1882, s.n). Abílio insere também nessa segunda edição a "Introdução da Primeira Edição", alegando que é para dar "mais desenvolvimento sobre as vantagens deste ensino, ainda com meninos analphabetos". Em seu texto introdutório o autor deixa claro que o livro foi fruto de sua experiência acadêmica, "produto de uma convicção que data já cerca de vinte e dous anos isto é, 140


desde que comecei a estudar as questões relativas ao ensino da mocidade". Convicção esta que veio crescendo e se fortalecendo "com a própria experiência, e com o conhecimento das conquistas feitas pela sciencia pedagógica nos paizes mais adiantados". Ainda enquanto diretor Geral de Estudos da Província da Bahia, em 1856, Abílio organizou um projeto de lei para a reorganização do ensino na província, a pedido do presidente Álvaro Tiberio de Moncorvo e Lima, apresentado à Assembléia Legislativa. Nesse projeto, Abílio consignava "a rehabilitação geral do professor primário, a obrigação positiva do ensino de desenho linear ou geométrico em todas as escolas publicas", nas cidades, vilas e aldeias do Império. Suas convicções foram, em 1857, reforçadas em seu relatório ao presidente da província, Sr. Cansansão do Sinimbú, quando "discorre longamente sobre e conveniência de se propagar pelo povo o ensino do desenho". Suas teorias e convicções foram colocadas em prática quando diretor do Gymnasio Bahiano e mais tarde do Colégio Abílio, ao dar ênfase ao maior desenvolvimento ao desenho propriamente dito - o Desenho Geométrico (BORGES, Introdução, 1882, p. I-II). A segunda edição da obra de Abílio César Borges, aqui analisada, foi publicada no ano de 1882, pela editora Typographia e lithographia E. Guyot, em Bruxelas na Bélgica. O exemplar analisado é uma produção individual e não traz referencia à quantidade de exemplares que foram editorados e distribuídos. Foi apresentada em suporte de formato retangular medindo 11cm X 17cm, com 88 paginas com textos e ilustrações práticas, e 13 páginas de "exercícios graphicos". Impresso em papel, suas ilustrações acompanham todo o desenrolar do texto e são do tipo litografadas, o que caracteriza, conforme André Rebouças (BORGES, 1882, Cartas, p. XV), uma das grandes vantagens desse livro "a riqueza em figuras bem regulares lithografadas". São ilustrações de viés técnico - desenho com uso de instrumental na modalidade de Desenho Geométrico -, em preto e branco e com aplicações de fins decorativos e arquitetônicos, não há referências sobre o autor das lustrações. 141


Figura 01 - Exercícios graphicos O livro de Abílio traz 12 representações graphicas que são modelos e exercícios a serem copiados pelos alunos.

Figura 02 - Exercícios aplicados Desenhos das formas geométricas estudadas aplicadas à representação de elementos de decoração e do cotidiano. 142


Figura 03 - Exercícios aplicados Desenhos das formas geométricas estudadas aplicadas à representação de elementos arquitetônicos. O livro de Abílio, segundo Rebouças (BORGES, 1882, Cartas, p.XV), é uma excelente propaganda do ensino do Desenho e "ensina simultaneamente ao mestre e ao alumno". Segue Rebouças, "as séries de perguntas e os quadros synopticos em seguida a cada lição, mostrão claramente aos professores como devem ensinar". Para dar reforço ao ensino, destaca Rebouças, será necessário se buscar na França, nos Estados-Unidos, na Suíça, na Bélgica, e na Alemanha series de modelos para acompanhar todas as lições. O livro de Abílio é um verdadeiro manual de desenho geométrico, salienta seu amigo José de Bessa e Menezes, de Lisboa, ao relatar que um menino seu parente, de posse do "livrinho" e munido dos devidos instrumentos foi capaz de reproduzir, pelo processo indicado no livro, as figuras por ele solicitadas, comprovando o brilhantismo no método adotado no livro. Para Menezes, "O desenho linear é o ABC do belo" e todo homem deve saber os três meios de comunicar idéias: falar, escrever e desenhar (BORGES, 1882, Cartas, p. XXII). 143


Considerações Finais Através do livro didático de Abílio César Borges, o conhecimento em Desenho Linear foi socializado nas escolas primárias públicas brasileiras, nas décadas finais do século XIX. Como suporte de memória, por congelar o tempo e preservar em suas páginas o que ali foi materializado, o seu livro se transformou em documento da história do conhecimento em Desenho e desse enquanto disciplina escolar, socializou o processo de construção e transferência do conhecimento acadêmico ao saber escolar, os conteúdos selecionados, os conceitos, as concepções, os modos de compreensão do Desenho, as ações didáticas do educador e os conteúdos selecionados. Vários itens que formaram o lócus das informações para analise do rito de passagem expresso na 'Obra', da construção do saber e do conteúdo selecionado pelo 'Autor', foram investigados. Mas, dentre eles, aqui se destaca o prólogo, a introdução e duas cartas enviadas ao autor. O fato de ter dado voz ao autor, através desses itens preliminares ao conteúdo propriamente dito, trouxe conjecturas e criticas que permitiram, facilitaram e conduziram a pesquisa à concepção, à estruturação e à configuração didática da obra, informaram sobre o ritual de transposição e a satisfação ou insatisfação do autor com o entendimento que se fazia do Desenho na época, seus interlocutores e os métodos usados, já que o autor não apresentou a bibliografia consultada. A análise desses itens suscitou o entendimento do processo de didatização do saber, da necessidade de se 'disciplinarizar' o saber abordado no campo científico de forma integrada e reelaborá-lo ou recriá-lo em pequenas doses para se fazer entendido e absorvido pelos alunos dos mais variados níveis do conhecimento. Nesse sentido, a primeira edição completa do seu Livro de Desenho Linear, publicada em 1878, cujo conteúdo abrangia todos os níveis escolares (primário, normal, liceal e colegial) e a formação profissional de adultos (artistas e operários industriais), foi reduzido e direcionado apenas às escolas primárias, 144


pois o conteúdo era extenso demais para sua conveniente aplicação no geral das escolas. Abílio César Borges estabeleceu diálogos com estudiosos do Desenho das mais variadas culturas como Oriente, Europa (Portugal, França e Inglaterra) e América – do Norte (Estados Unidos) e Latina (Brasil). Seus interlocutores apostavam na importância do Desenho conhecimento e linguagem tanto para o desenvolvimento das faculdades humanas, quanto para o progresso industrial das nações civilizadas. Aperfeiçoando o gosto em uma determinada cultura se promovia a revolução nas manufaturas, elevaria o valor dos produtos e se criaria "a oferta e a procura - o público que julga e o artista que produz". Inspirados nas concepções de Pestalozzi, esses estudiosos defendiam a vulgarização do ensino de Desenho pelo ensino público em todos os graus, sem a pretensão de formar artistas ou industriais, por este ser o melhor meio de desenvolver a faculdade da observação, da criação e do gosto pelo belo desde a infância. Através da educação do olho e da mão o Desenho seria um facilitador tanto da escrita quanto da atuação profissional do educador, ao tornar as lições mais claras e facilitar o estudo das outras meterias. O aluno deveria saber 'ler' e 'escrever' uma idéia ou um objeto por meio de linhas e sombras como quem lê e escreve por meio das letras do alfabeto. O Desenho era visto como uma linguagem útil para a formação profissional (arquiteto, gravador, escultor, mecânico e operário). Mas, o fenômeno que ainda hoje se observa nas escolas brasileiras era também motivo de preocupação naquela época: não havia a consciência da importância da natureza, do fim e da utilidade do Desenho como um ramo da educação e base da instrução técnica e industrial, ainda visto como uma arte de prazer, permitida somente ao tempo livre dos estudantes. O ensino de Desenho Linear se fazia presente nos regulamentos da instrução pública imperial, mas não era ministrado em todas as escolas, e quando era, não alcançava o efeito desejado, seja pela falta de habilitação dos professores, seja, pela falência na dedicação 145


e no convencimento da importância desse ensino, ou seja, por carência de compêndios apropriados e em profusão.

Referencias ASTOLF, Jean-Pierre. 2002. Transposition Didactique. In: CHAMPYPHILIPPE. Dictionner encyclopedique de l'education e de la formation. Paris, Nathan, p.1060-1061 BORGES, Abílio César. 1882. Desenho linear de elementos de Geometria prática popular: seguido de lições de agrimensura stereometria e architectura – Primeira Parte. 2ed. Bruxelas, Typografia e Lithografia E. guyot. CHEVALLARD, Yves. 2000. La transposicion didatica: Del saber sabio al saber enseñado. Buenos Aires, Aiqui. CHOPPIN, Alain. 1997. O historiador e o livro escolar. Historia da Educação/ASPHE. FaE/UFPel, n.11. (Abril de 2002) – Pelotas: Ed. EFPel – Semestral. V.1, n.1, abril. CONNE, F. 1996. Saber e Conhecimento na perspectiva da transformação didática. In: BRUN, Jean (Org). Didática das Matemáticas. Lisboa, Instituto Piaget, p. 219-267. LEGOFF, Jackes. 1994. História e Memória. Trad. Bernardo Leitão (et. al). 3ed. Campinas, São Paulo, UNICAMP. OLIVEIRA, Alaíde Lisboa de. 1986. O livro didático. 3ed. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro. PERRELLI, Maria Aparecida de Sousa. 1996. A transposição didática no campo da industria cultural: um estudo dos condicionantes dos conteúdos dos livros didáticos de 146


ciências. Florianópolis - SC, Dissertação de Mestrado em Educação. Universidade Federal de Santa Catarina.

Gláucia Trinchão - Professora de Desenho na Área de Artes do Departamento de Letras e Artes da Universidade Estadual de Feira de Santana na Bahia - UEFS. Doutoranda do PPGEDUC da Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS. Bolsista Internacional da Fundação Ford. Endereço: Rua Barros Falcão n. 463/602 – Basílica. Matatu – Cep: 40.255-370 – Salvador – Bahia – Brasil – e-mails: gaulisy@hotmail.com; gaulisy@gmail.com; .

Recebido em: 10/04/2007 Aceito em: 15/11/2007

147


.


O SURGIMENTO DA COMISSÃO BRASILEIROAMERICANA DE EDUCAÇÃO INDUSTRIAL (CBAI) Mário Lopes Amorim

Resumo O trabalho procura compreender o contexto em que se situa a cooperação estadunidense na formação dos professores brasileiros de ensino industrial, com o objetivo de formá-los para atuar junto a seus alunos na perspectiva de preparação destes para a atividade industrial, pela aplicação de métodos específicos para tal, evidenciando seu caráter de racionalização produtiva. Desta forma, a disciplinarização pelo trabalho permanece na ordem do dia, ao lado da divulgação dos ideais do "american way of life" e da crescente influência estadunidense no Brasil, sob vários aspectos. Por fim, somando-se a isto o discurso, cada vez mais presente, da urgente necessidade da preparação de técnicos para atender as demandas do setor secundário da economia, cuja qualificação, além de permitir-lhes a garantia de emprego e de ascensão social, possibilitar-lhes-ia um papel fundamental na busca de superação da condição de país subdesenvolvido, até então ostentada pelo Brasil. Palavras-chave: CBAI; história da educação profissional; americanização; ensino industrial. THE RISING OF THE BRAZILIAN-AMERICAN COMMITTEE OF INDUSTRIAL EDUCATION (CBAI) Abstract This research looks for to understand the context where if it points out the american cooperation in the formation of the Brazilian professors of industrial education, with the objective to form them to act together its pupils in the perspective of preparation of these for the industrial activity, for the application of specific methods for such, evidencing its character of productive rationalization. Of this form, the discipline for the work remains in the order of the day, to the side of the spreading of the ideals of "american way of life" and of the increasing american influence in Brazil, under some aspects. Finally, adding it this the speech, each more present time, of the urgent necessity of the preparation of technician to take care of the demands of the secondary sector of the economy, whose qualification, besides allowing them guarantee it of job and social ascension, would make possible a basic paper to them in the search of História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, n. 23, p. 149-171, Set/Dez 2007 Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


overcoming of the condition of underdeveloped country, until then exhibited for Brazil. Keywords: CBAI; history of the professional education; americanism; industrial education. EL SURGIMIENTO DE LA COMISIÓN BRASILEÑAESTADOUNIDENSE DE EDUCACIÓN INDUSTRIAL (CBAI) Resumen El trabajo busca comprender el contexto en que se ubica la cooperación estadounidense en la formación de los profesores brasileños de enseñanza industrial, con el objetivo de formación para que estos profesores pudieran actuar junto a sus alumnos en la perspectiva de preparación de estos últimos para la actividad industrial, por la aplicación de métodos específicos para tal, evidenciando su carácter de racionalización productiva. De esta forma, disciplinar por el trabajo permanece en el orden del día, al lado de la divulgación de los ideales del "american way of life" y de la creciente influencia estadounidense en el Brasil, bajo varios aspectos. Por fin, añadiéndose a esto el discurso, cada vez más presente, de la urgente necesidad de la preparación de técnicos para atender las demandas del sector secundario de la economía, cuya calificación, además de permitirles la garantía de trabajo y de ascenso social, les posibilitaría un rol fundamental en la busca de superación de la condición del país subdesarrollado, hasta entonces, ostentada pelo Brasil. Palabras-clave: CBAI; historia de la educación profesional; influencia estadounidense; enseñanza industrial.

150


Propomos analisar neste artigo a contextualização da criação da Comissão Brasileiro-Americana de Educação Industrial (CBAI), um programa de cooperação firmado entre os governos do Brasil e dos Estados Unidos em 1946, com o objetivo de formar professores para atuar no Ensino Industrial, numa conjuntura em que o Brasil vinha experimentando um processo de expansão industrial, que se esboçava desde a década de 1930, aliada à crescente preocupação dos Estados Unidos com a América Latina, já observada durante a Segunda Grande Guerra, e ampliada com a irrupção da Guerra Fria. A CBAI pode ser tomada como um exemplo concreto da influência exercida por concepções educacionais elaboradas nos E.U.A. sobre a educação brasileira no pós-guerra, que apontariam para a superação do subdesenvolvimento na América Latina. Assim, podemos situar a criação da Comissão BrasileiroAmericana de Educação Industrial no contexto da chamada "Política da Boa Vizinhança", empreendida pelo governo estadunidense com seus vizinhos latino-americanos, durante a Segunda Grande Guerra. Tal política seria o instrumento para o projeto de "americanização" para o continente, cujo objetivo seria a adoção do chamado american way of life, tanto na América Latina, como posteriormente por todo o planeta. Para tanto, era extremamente importante a divulgação das vantagens da ideologia do americanismo para o subcontinente. De acordo com Antonio Pedro Tota, tal ideologia baseava-se nos ideais de democracia, progressivismo e tradicionalismo. A democracia estaria ligada "às idéias de liberdade, de direitos individuais e de independência". (TOTA, 2000, p. 19). O progressivismo seria o componente mais importante, pelo fato de estar relacionado com o racionalismo e com a capacidade produtiva do ser humano. A idéia é que o mercado podia oferecer em abundância vários produtos úteis e atraentes, criando uma nova forma de prazer: o prazer de consumir. Ora, como esses produtos estariam ao alcance de qualquer pessoa, independentemente da posição na sociedade de classes, a vida ficaria muito mais

151


fácil, agradável e enriquecedora. [...] A via era o mercado. (TOTA, 2000, p. 20).

E quanto ao tradicionalismo, aqui podemos fazer referência ao "enaltecimento dos valores familiares, a coragem dos indivíduos, o temor a Deus". (TOTA, 2000, p. 20). Estes seriam os parâmetros pelos quais a sociedade brasileira poderia basear-se para a sua modernização, destacando-se, como já mencionado acima, a idéia de progressivismo, que seria o principal fator capaz de promover o desenvolvimento. Graças a ele, estariam eliminadas as dificuldades da vida no mundo moderno, [...] também removidas as fontes de insatisfação social. Paz social alcançada pela generalização do consumo. Algumas palavras adquiriram um significado mítico na ideologia do americanismo: progresso, ciência, tecnologia, abundância, racionalidade, eficiência, gerenciamento científico e padrão americano de vida. (TOTA, 2000, p. 20, grifos do autor).

Assim, no processo de americanização do Brasil estão presentes tanto o progressivismo quanto o tradicionalismo, e ambos esses componentes do americanismo estão muitos presentes nos discursos dos integrantes da CBAI, sejam eles estadunidenses ou brasileiros, bem como nas falas produzidas sobre o ensino industrial ao longo do período em que a Comissão funcionou.1 Já quanto à democracia, esta passa a ser tida como o regime político ideal, principalmente com a derrota do nazi-fascismo no conflito mundial e a condenação do socialismo soviético. A convocação de Assembléia Constituinte em 1945, e a queda do Estado Novo reforçam essa situação, embora se trate de uma democracia que manterá muitos traços autoritários, característica que marca o governo Gaspar Dutra.

É certo que a maioria dessas palavras já apareciam nos discursos sobre o ensino industrial desde a década de 1930. Para tanto, ver AMORIM, 2004. 1

152


Portanto, podemos ressaltar o duplo objetivo do projeto de americanização: ao mesmo tempo visava a integração da América Latina ao mercado estadunidense, bem como o afastamento do subcontinente de influências socialistas e nacionalistas. Para tanto, fazia-se necessário combater a miséria e o subdesenvolvimento na região, com "a adoção de medidas que tornassem a economia latino-americana mais competitiva. A segurança da nação norte-americana dependia de uma estreita cooperação – econômica e cultural – com todos os governos das Américas". (TOTA, 2000, p. 48).

A crescente influência dos programas de cooperação e o surgimento do Ponto IV É neste contexto que vão se multiplicando as iniciativas estadunidenses para a América Latina e para o Brasil. Em 1940, ainda durante a guerra, é criado o Office for Coordination of Commercial and Cultural Relations between the Americas, que no ano seguinte mudaria de denominação para The Office of the Coordinator of Inter-American Affairs (OCIAA), comandado por Nelson Rockefeller. Os objetivos dessa agência não deixam dúvidas: [...] luta contra a expansão do nazismo, mas acima de tudo prevalecia a visão política do empresário que queria afastar da América Latina os produtos alemães que concorriam com os americanos. Ao mesmo tempo, as propostas socialistas – que salientavam o antagonismo capital-trabalho – poderiam ser combatidas com a propaganda do modelo americano: consumo de produtos maravilhosos, progresso material e bons salários. Por tudo isso, a industrialização no subcontinente deveria ser estimulada, interligada com a intensificação das relações comerciais. (TOTA, 2000, pp. 51-2).

153


Para tanto, a agência estadunidense trabalhou na divulgação do american way of life utilizando-se principalmente da imprensa e da propaganda. "Era necessário empregar todos os meios para consolidar a imagem do modelo a ser seguido, isto é, os Estados Unidos deveriam ser um paradigma. Liberalismo e democracia". (TOTA, 2000, p. 54). Assim, até o final da Segunda Grande Guerra, o Brasil sofrerá uma enxurrada de americanismo, basicamente através dos meios de comunicação2 e pelas iniciativas de cooperação econômica, cultural e educacional. O interesse estadunidense pela América Latina e especificamente pelo Brasil vem de encontro ao processo de substituição de importações vivido pela indústria brasileira. Como já frisado anteriormente, há todo um discurso, capitaneado pelo próprio governo Vargas, da necessidade da industrialização como caminho de superação da condição de subdesenvolvimento vivida pelo país. Nessa mesma direção seguiam os industriais, procurando caracterizar-se como a classe produtora por excelência, cujo discurso enfatizava "a necessidade de um Estado forte e promotor da integração do mercado interno, a necessidade de uma intervenção econômica por parte do Estado de modo a assegurar a proteção à produção nacional e o bem-estar social da Nação" (MENDONÇA, 1985, p. 20). De fato, tal discurso acaba tornando-se hegemônico, uma vez que é incorporado pelo próprio Estado como condição essencial para o desenvolvimento do país. O projeto da burguesia industrial para a industrialização compunha-se dos seguintes itens, na visão de Sonia Mendonça: a) a superação – via indústria – do grau de vulnerabilidade externa da economia brasileira face às oscilações e crises do mercado mundial; b) a condenação da exportação de bens primários como sustentáculo exclusivo da economia nacional; c) o estabelecimento da identidade entre industrialização e "grandeza nacional"; e d) a convocação Para maiores detalhes a esse respeito, ver TOTA, Antonio Pedro. O imperialismo sedutor. SP: Cia. Das Letras, 2000.

2

154


do Estado para a tarefa de implantação da indústria pesada, não apenas ampliando suas funções de coordenação econômica, como também aquelas de investidor nos setores de infra-estrutura básica. (MENDONÇA, 1985, p. 21).

A queda do Estado Novo não veio alterar tal situação. Se num primeiro momento o governo Gaspar Dutra rompia com a concepção varguista de nacionalismo econômico e intervencionismo, adotando o liberalismo econômico, logo tal política foi refutada, devido ao esgotamento das reservas a ao crescimento da dívida externa. Já a partir de 1947, adota-se um maior controle cambial e das importações, privilegiando-se alguns setores tais como a maquinaria, o que acabou beneficiando o setor industrial. Logo, os interesses do setor industrial já tinham sido objeto de políticas específicas havia alguns anos e os pleitos a favor da modernização da infra-estrutura, recorrentes ao longo da administração Dutra, são sinais inequívocos da consolidação do setor secundário como motor do desenvolvimento da economia nacional. (SARETTA, 1995, p. 123).

Ao mesmo tempo, redefinem-se as condições da dependência brasileira em relação aos E.U.A. Com o final da Segunda Grande Guerra e o advento da Guerra Fria, verifica-se uma mudança no processo de construção da hegemonia estadunidense junto aos países latino-americanos. De acordo com Maria Ciavatta, A preocupação dos Estados Unidos com a influência da União Soviética nos países europeus traduziu-se para a América Latina na Doutrina Truman, em 1947, a qual expressava a hostilidade americana face à expansão do socialismo. Entre outros aspectos, a Doutrina Truman indicava e justificava a interferência norte-americana em assuntos políticos internos das nações dependentes – orientação que será fortalecida nas décadas seguintes,

155


com o estabelecimento dos regimes ditatoriais em vários países latino-americanos. A Doutrina Truman é particularizada em um programa de assistência e cooperação para com as "áreas subdesenvolvidas", o Ponto IV, anunciado pelo Presidente Truman como um programa em favor da "paz e liberdade". (CIAVATTA, s.n.t., s.p.)

O novo governo identificava-se com a defesa dos "valores ocidentais", colocando-se claramente ao lado dos E.U.A. na polarização que se desenhava no mundo pós-guerra. Durante o conflito recém-findo, a colaboração brasileira para o esforço de guerra criou a idéia de uma relação "especial" entre os dois países, que se prolongaria mesmo após o final do conflito, garantindo a cooperação estadunidense aos projetos de superação das condições de subdesenvolvimento do país. De fato, mesmo com as preocupações dos E.U.A. com o Plano Marshall e com a situação no Extremo Oriente, não faltaram atenções para o Brasil. Talvez em nenhum outro continente, a avassaladora presença dos Estados Unidos se fazia sentir tão amplamente quanto na América Latina do imediato pósguerra. Pela primeira vez na história, adquiriam o virtual monopólio de influência na região, constituindo praticamente sua única fonte de capitais, da assistência técnica e militar e seu mais importante mercado. (MALAN, In: FAUSTO, 1984, p. 58).

É nesse contexto que se pode compreender o surgimento dos programas de cooperação entre E.U.A. e Brasil. No que concerne ao setor educacional, já em 1941 estabeleceu-se um programa de intercâmbio, onde jovens de países latino-americanos eram selecionados para estudarem nos Estados Unidos, inclusive na área da indústria. (TOTA, 2000, p. 81). Em 1943 realizou-se em Havana a I Conferência de Ministros e Diretores de Educação das Repúblicas Americanas, sendo aprovada no referido evento a Recomendação XV, intitulada "Escolas de Ensino Industrial e Técnico". Tal Recomendação considerava a importância cada vez 156


maior da formação de mão-de-obra especializada para as atividades de direção e execução do processo produtivo, o que demandará um número cada vez maior de escolas técnicas, desde que voltadas prioritariamente para as atividades práticas, com o objetivo de capacitação de trabalhadores capazes de contribuir para o desenvolvimento econômico de seus países; para que isso se concretizasse, recomendava-se que fossem multiplicados as escolas técnicas, incluídas aí as industriais, articuladas com a educação primária e secundária, e que visassem a preparação para o trabalho para uma melhor capacitação do trabalhador, sem prejudicar sua formação cultural, e ao mesmo tempo se estimulassem os serviços de orientação profissional para auxiliar no melhor aproveitamento dos indivíduos para o progresso social. (Apud FONSECA, C. S., 1961, pp. 562-3, v. 1). A mesma Conferência recomendava que os governos individualmente, ou por meio de convênios, tomassem providências destinadas a elevar o nível educacional, a estender facilidades educacionais e a melhorar, em geral, o papel da educação, como uma contribuição importante para o entendimento e a solidariedade interamericana. (FONSECA, C. S., 1961, p. 563, v. 1, grifo nosso).

Com base nesta Resolução, firmou-se um acordo entre o Ministério da Educação e Saúde e o Inter-American Educational Foundation Inc., órgão subordinado a The Office of the Coordinator of Inter-American Affairs (OCIAA), cuja cláusula IV estabelecia a criação de uma comissão especial que teria como função a aplicação do programa de cooperação educacional entre os E.U.A. e o Brasil: nascia a Comissão Brasileiro-Americana de Educação Industrial (CBAI). O programa seria dirigido por um superintendente brasileiro e um representante estadunidense. O brasileiro seria o titular da Diretoria do Ensino Industrial do Ministério da Educação, no caso Francisco Montojos, substituído em 1949 por Italo Bologna; em 1951, assumia o cargo Sólon Guimarães; este, por sua vez, foi substituído, a partir de 1953, por 157


Flávio B. Sampaio, sucedido em 1955 por Carlos Pasquale. Em dezembro do mesmo ano, retorna ao cargo Francisco Montojos, que permaneceu até fevereiro de 1961, quando foi substituído por Armando Hildebrand, coincidindo com a transição para o governo Jânio Quadros. No caso do representante estadunidense, vários engenheiros sucederam-se no cargo, sendo que o primeiro titular foi John B. Griffing. De acordo com Celso Suckow da Fonseca, o programa de ação da CBAI compunha-se de doze pontos: 1)

Desenvolvimento de um programa de treinamento e aperfeiçoamento de professores, instrutores e administradores;

2)

Estudo e revisão do programa de ensino industrial;

3)

Preparo e aquisição de material didático;

4)

Ampliação dos serviços de bibliotecas; verificar a literatura técnica existente em espanhol e português; examinar a literatura técnica existente em inglês e providenciar sobre a aquisição e tradução das obras que interessarem ao nosso ensino industrial;

5)

Determinar as necessidades do ensino industrial;

6)

Aperfeiçoamento dos processos de organização e direção de oficinas;

7)

Desenvolvimento de um programa de educação para prevenção de acidentes;

8)

Aperfeiçoamento dos processos de administração e supervisão dos serviços centrais de administração escolar;

9)

Aperfeiçoamento dos métodos de administração e supervisão das escolas;

10) Estudo dos critérios de registros de administradores e professores; 11) Seleção e orientação profissional e educacional dos alunos do ensino industrial;

158


12) Estudo das possibilidades do entrosamento das atividades de outros órgãos de educação industrial que não sejam administrados pelo Ministério da Educação, bem como a possibilidade de estabelecer outros programas de treinamento, tais como ensino para adultos, etc. (FONSECA, C.S., 1961, p. 565. v. 1).

Para a concretização do acordo de cooperação educacional, a Inter-American Educational Foundation Inc. empenharia-se em enviar especialistas para o desenvolvimento do ensino industrial no Brasil. Também professores e técnicos brasileiros iriam aos E.U.A. para realizarem treinamento na área. Comprometia-se ainda a entidade estadunidense com a preparação de material didático e recursos auxiliares para a formação de docentes. O Relatório do Ponto IV de 1957 estabelecia duas características básicas do Programa: a preparação de educadores e projetos para solucionar problemas educacionais que estão a entravar o progresso econômico brasileiro, e "estimular o conceito de 'companheiros de progresso', que se enquadra tão bem dentro do conceito do sistema interamericano".3 Observe-se o cuidado em colocar a relação de "companheirismo" entre as duas nações, e não a dependência de uma em relação a outra. Em outro texto, essa questão volta à tona, quando se destaca a harmonia que se nota neste empreendimento em que brasileiros e americanos trabalham ombro a ombro. [...] Foi uma agradável impressão ver que o Brasil e os Estados Unidos, através da CBAI, estão trabalhando por um sistema educacional mais de acordo com as necessidades locais.4

EXTRATO do Relatório de 1957 da USOM/B (Ponto IV). Boletim da CBAI, Curitiba, v. XIII, n. 1, p. 13, jan. 1959. 3

A COMISSÃO Brasileiro-Americana perante a indústria nacional e a Escola Técnica de Curitiba. Boletim da CBAI, Curitiba, v. XIII, n. 2, p. 8, fev. 1959. 4

159


Retornando ao já citado Relatório, destaca-se o entendimento entre os governos do Brasil e dos E.U.A. sobre a necessidade do Acordo de Cooperação, pois o mesmo atenderia os interesses de ambas as partes. Curiosamente, na seqüência é destacado apenas o benefício que o Programa traria para o Brasil, que seria a preparação de educadores para resolver problemas educacionais que obstam o desenvolvimento do país; em nenhum momento aparece qual seria a vantagem dos E.U.A. na participação do Acordo. A omissão, muitas vezes, pode ser extremamente esclarecedora... Segundo Celso Suckow da Fonseca, os recursos financeiros para o programa seriam da ordem de US$ 500.000,00 por parte do governo brasileiro, e de US$ 250.000,00 por parte da Fundação estadunidense, que deveriam ser aplicados entre 01 de janeiro de 1946 e 30 de junho de 1948. (FONSECA, C. S., 1961, p. 565. v. 1). Maria Ciavatta informa que no período mencionado, o orçamento para a educação industrial foi de US$ 5.135.000,00 aproximadamente. Isto dá uma idéia da importância que teve a CBAI no desenvolvimento do ensino industrial no Brasil. A Comissão recebeu o equivalente a quase 20% do orçamento total para a educação industrial. Inclui-se no orçamento total a manutenção das unidades escolares, pagamento de pessoal, material didático, etc. Logo, o equivalente a quase 20% deste total pode ser considerado um grande investimento. (CIAVATTA, s.n.t., s.p.).

De acordo com o item 12 do programa de ação acima citado, podemos observar que há uma clara tentativa de homogeneização das atividades referentes ao ensino industrial no país, não se restringindo apenas às Escolas Técnicas e Industriais oficiais mantidas pelo MES. Nenhuma instituição deveria fugir do padrão que se pretendia impor a esse ramo de ensino, caracterizando tal programa, e outros de cooperação internacional, como "instrumentos ideológicos, através dos quais se instauraria o 160


novo cosmopolitismo e se reforçaria a condição de dependência", com o objetivo de "reformar o ensino brasileiro e difundir os valores, as normas e os princípios da sociedade capitalista" (NUNES, 1980, p. 38). Em termos práticos, a CBAI iniciou suas atividades em 1947, com uma reunião de diretores de estabelecimentos de ensino industrial, realizada entre janeiro e fevereiro no Rio de Janeiro, cidade definida como sede do programa. Na II Reunião de Diretores de Estabelecimentos de Ensino Industrial, caracterizada como "um pequeno curso de especialização de dirigentes de estabelecimentos de ensino industrial" (FONSECA, C. S., 1961, p. 566. V. 1), os dirigentes de instituições de ensino industrial, ao participarem de conferências com especialistas estadunidenses, tomaram ciência do conteúdo e dos objetivos do programa. Estes, de acordo com Francisco Montojos, eram os seguintes: a)

promover o aperfeiçoamento de nossos diretores, ampliando-lhes os conhecimentos sobre administração escolar e suscitando e desenvolvendo neles novas atitudes e novas disposições em relação aos problemas do ensino industrial;

b)

assegurar uma unidade de orientação, de espírito e de diretrizes nas escolas de ensino industrial do país;

c)

assegurar à administração central de ensino informações sobre as escolas e sobre o campo industrial a que cada uma serve, de modo a contribuir para o esclarecimento da política a ser seguida na educação industrial;

d)

analisar a eficiência do ensino ministrado nas escolas e confrontar resultados;

e)

fornecer subsídios para o planejamento dos trabalhos escolares dos estabelecimentos federais no ano corrente de 1947;

f)

iniciar o levantamento de dados para a organização de um plano de melhoria e enriquecimento do equipamento e material didático das escolas federais

161


o qual será realizado em parte com os recursos da CBAI; g)

colaborar para que os diretores das escolas de ensino industrial melhor se conheçam mutuamente e, por esta forma, intensifiquem a troca de informações e de experiências e dêm (sic) início à formação de um desejável espírito de grupo;

h)

levar os diretores a melhor conhecerem as técnicas e processos em uso nas grandes organizações industriais do país;

i)

despertar o interesse das autoridades, dos industriais e do público em geral, para os problemas da educação industrial;

j)

servir com experiência e dar indicação da possibilidade e da eficiência da realização de reuniões nestes moldes;

k)

enfim, não é de se desprezar o fato de ter a administração central do ensino, com esta reunião, oportunidade de colher impressões e apurar seu julgamento sobre a formação de cada diretor, seu interesse e entusiasmo pelas coisas da educação em geral e, de modo particular, pelos problemas do ensino industrial. (MONTOJOS, 1949, p. 57).

Na programação do evento, além das reuniões de estudo sobre a situação do ensino industrial no Brasil, havia também a realização de trabalhos práticos, por parte dos diretores, bem como visitas a fábricas situadas nas proximidades. Como se pode observar, a idéia é a de se fazer um profundo diagnóstico da situação do ensino industrial, dentro de uma visão ainda marcadamente centralizadora, agora sob a batuta não só da Divisão do Ensino Industrial (DEI), mas principalmente da CBAI. Fica evidenciada a grande responsabilidade dos diretores das escolas técnicas e industriais, pois serão eles os responsáveis pelo encaminhamento as ações propugnadas pela CBAI para a preparação da força de trabalho ajustada às novas necessidades da racionalidade capitalista. No 162


dizer do então Diretor do Ensino Industrial do Ministério da Educação, reputo fundamental e decisivo o papel do diretor em um estabelecimento de ensino. Ele é que lhe imprime o caráter e lhe vitaliza as atividades: [...] Quer como agente do poder público juntos às comunidades, quer como representante da sociedade na tarefa ingente de orientar a educação das novas gerações e a formação da mentalidade técnica do país, quer ainda como chefe de uma empresa que dirige e administra, a tarefa do diretor é servir. (MONTOJOS, 1949, p. 58).

Também no mês de fevereiro de 1947, iniciou-se o primeiro curso voltado aos professores das escolas industriais federais. Tal curso dividia-se em duas etapas: na primeira, seriam os professores selecionados, concentrados na Escola Técnica Nacional, no então Distrito Federal, a fim de procederem a uma revisão de conhecimentos gerais e técnicos, estudo da língua inglesa e atualização e ampliação dos conhecimentos sobre a vida econômica e social do Brasil; a segunda parte constaria de aperfeiçoamento nos Estados Unidos, para onde seguiriam os professores das diferentes escolas, que se houvessem revelado capazes na primeira fase do curso. (FONSECA, C. S., 1961, p. 567. v.1)

Em maio do mesmo ano, os professores participantes do curso vão aos E.U.A., onde passam um ano, sendo seis meses de estágio em escolas profissionais locais, três meses em indústrias e outros três meses em um curso de formação pedagógica (FONSECA, C. S., 1961, p. 567. v. 1). Ainda em 1947, no mês de setembro, é a vez dos diretores de dez das escolas técnicas e industriais federais rumarem aos E.U.A. para freqüentar o curso de especialização. No Pennsylvania State College desenvolveu-se o curso, constando do respectivo currículo, análise do trabalho,

163


organização e planejamento de cursos, metodologia do ensino, organização e direção de oficinas, objetivos e organização do ensino industrial, administração do ensino industrial, supervisão do ensino industrial e métodos de inquérito, sendo os professores personalidades de destaque no ensino industrial americano. (FONSECA, C. S., 1961, p. 568. v. 1).

Os demais diretores vão fazer o mesmo curso nos E.U.A. a partir de fevereiro de 1948. Enquanto isso, ao longo do ano de 1947, cursos para professores são realizados no Rio de Janeiro, em São Paulo e em Recife, que servirão para a futura implementação dos cursos de férias, nessas mesmas cidades. O governo Gaspar Dutra, em sua Mensagem ao Congresso Nacional de 1948, reconhecia que "a rede de ensino industrial, [...] não obstante o seu gradativo desenvolvimento, ainda está muito longe de atender às necessidades da nossa formação econômica e da mão-de-obra qualificada, reclamada pela indústria brasileira". (BRASIL/MEC/INEP, 1987, p. 166. V.1). Sem sombra de dúvida, esse é o grande mote apregoado para a expansão do ensino industrial, que já vinha desde a década de 1930, e se estenderá ao longo da chamada República populista (1946-1964). No caso do período Gaspar Dutra, a questão centra-se na ampliação do espaço físico das escolas e na compra de novos equipamentos para as mesmas, aliadas à colaboração estadunidense via CBAI. Tal situação é explicitada na Mensagem do presidente Dutra ao Congresso Nacional, de 1949: [...] Não se limitou o Governo a construir novos edifícios ou ampliar os existentes. Melhora, renova e amplia as atuais instalações das escolas e adquire novos equipamentos. No exercício passado, cerca de Cr$ 8.000.000,00 foram despendidos na aquisição de máquinas operatrizes, aparelhos, utensílios de oficinas e de laboratórios e materiais diversos, a serem distribuídos pelas diferentes escolas.

164


Para 1949, estão previstas, entre outras, as seguintes providências: continuação do aparelhamento das oficinas e laboratórios escolares; organização de novos tipos de séries metódicas; e prosseguimento no programa de construções. (BRASIL/MEC/INEP, 1987, p. 180. V.1)

Em junho de 1948 encerrou-se o prazo de vigência do Acordo, que através de novo documento é renovado por um ano, e assim sucessivamente ao longo de todo o período de funcionamento da CBAI, até 19635. Em janeiro de 1949, em seu discurso de posse, o presidente dos E.U.A., Harry Truman, propôs quatro diretrizes para a política externa estadunidense, e uma delas, a quarta, especificava: "tornar o conhecimento técnico norte-americano disponível para as regiões mais pobres do mundo". (Apud MALAN, In: FAUSTO, 1984, p. 68). Essa linha de ação se concretizou num programa que se tornou conhecido como Ponto IV, e que estabelecia uma verba de US$ 45 milhões destinados aos países latino-americanos na forma de cooperação e assistência técnica. A partir de junho de 1950, quando o Congresso dos E.U.A. aprova o Ponto IV, a CBAI passa a se subordinar a esse programa.6 O Ponto IV pode ser considerado como um desdobramento, ainda que insatisfatório, dos trabalhos da Missão Abbink, constituída em 1948, que realizou estudos detalhados a respeito dos problemas da economia brasileira7, incluindo a insuficiência de mão-de-obra qualificada, e recomendando projetos As atividades da CBAI no Brasil se prolongarão até 1963, com a edição do Decreto nº 53.041, que considerava não haver mais conveniência na manutenção do acordo de cooperação. Tal Decreto foi uma resposta do governo brasileiro à participação do Ponto IV na conspiração contra o então presidente João Goulart. Ver AMORIM, 2004, p. 339. 5

Quando da aprovação do Ponto IV, a verba destinada ao programa reduziu-se para US$ 34, 5 milhões. Ver MALAN, In: FAUSTO, 1984, pp. 68-9. 6

Outros países latino-americanos tinham as suas Comissões específicas. Apud MALAN, In: FAUSTO, 1984, p. 69.

7

165


para a superação das várias dificuldades. (IANNI, 1977, pp. 95 e 99). De acordo com Gérson Moura, o Ponto IV era uma espécie de primo pobre do Plano Marshall; este era um plano que os Estados Unidos puseram em ação na Europa desde 1947, com a finalidade de recuperar a economia européia abalada pela guerra e se contrapor à influência da União Soviética. O contraste entre o Plano Marshall e o Ponto 4 era cruel: o primeiro dispunha de 3 bilhões e 100 milhões de dólares e o segundo, de apenas 35 milhões; o primeiro emprestava e doava com vistas ao reerguimento da economia industrial do 1º mundo; o segundo propunha-se a fornecer programas de assistência técnica e a desenvolver a exploração de matérias-primas nas áreas "backward"(atrasadas). No Brasil, o Ponto 4 interessou-se particularmente na assistência a programas de saúde e treinamento industrial. (MOURA, 1984, p. 80)

A disparidade verificada entre os valores dos recursos claramente indica a prioridade do governo estadunidense no momento, até pelo fato de a Europa ser considerada como área estratégica pelos E.U.A., nos embates da Guerra Fria. Mas a América Latina não ficou de fora das suas preocupações, como bem demonstram os acordos de cooperação firmados na época. Se considerarmos que o terceiro ponto do supracitado discurso de posse de Truman estabelecia o "fortalecimento das nações 'amantes da liberdade'" (Apud MALAN, In: FAUSTO, 1984, p. 68), podemos concluir que o conteúdo do Ponto IV subordina-se a essa lógica. Um exemplo da maneira como os E.U.A. encaravam a colaboração com os países latino-americanos a partir do pós-guerra é dado pelo supracitado John Griffing: Os Estados Unidos não aceitam a teoria antiquada de que algumas nações deveriam ser fortes e ricas e fabricar mercadorias para vender às nações mais pobres que só produzem matérias-primas. Eles reconhecem, pelo contrário, o princípio básico de que quanto maior for a

166


proporção de produção de alimentos e de artigos manufaturados pelo Brasil, maior será sua força como um aliado na defesa do hemisfério e seu valor como um comprador de produtos dos Estados Unidos em tempo de paz. É vantajoso para os Estados Unidos de qualquer modo, que a sua nação irmã, abaixo do Equador, faça o maior progresso em produção, industrialização, prosperidade e padrão de vida. Consideremos um exemplo específico. Há atualmente um movimento no Brasil para estabelecer uma grande fábrica nacional de tratores e maquinaria agrícola. De acordo com a atitude antiga, os Estados Unidos deveriam deplorar esta realização porque isto significa perda de venda de maquinaria. Por outro lado, uma visão mais esclarecida encontra na popularização de um trator nacional, mais barato e eficiente, um meio de criar uma fonte de riqueza que poderá determinar a aquisição de centenas de espécies de mercadorias.8

Ficam claros aqui alguns componentes do projeto de americanização da América Latina, destacando-se a ideologia do progressivismo, já que o representante estadunidense defende a necessidade de produção de bens manufaturados para o progresso econômico do Brasil, o que o tornaria um parceiro mais forte na luta contra a expansão do socialismo no continente. Nesse caso, também a ideologia tradicionalista, da defesa dos valores ocidentais, está presente. Por fim, o valor da democracia, aqui como expressão de uma soberania que o Brasil adquiriria através do desenvolvimento do setor industrial, que atingiria a todos sem exceção. Sob esse ponto de vista, para as camadas menos favorecidas da população o ensino técnico-profissional poderia ser visto como uma possibilidade de ascensão social, por isso a necessidade de promover a sua expansão, desde que de acordo com os parâmetros traçados pela CBAI. Clarice Nunes acrescenta, a GRIFFING, John B. Cooperação brasileiro-americana de ensino industrial. Boletim da CBAI, Rio de Janeiro, v. I, n. 1, p. 1-2, jan. 1947. 8

167


respeito dessa passagem, que também "estava presente a função ideológica de preparar pessoas ajustadas a suas respectivas responsabilidades, convencidas da racionalidade capitalista e da possibilidade de vigência de um regime democrático". Também não deixa de notar as novas relações de dependência a partir da criação de exigências de importação, bem como "a identificação dessa política com as necessidades de manutenção da coexistência pacífica". (NUNES, 1980, p. 42).

Conclusão A partir da nova conjuntura advinda com o pós-guerra, baseada na divisão do mundo em dois blocos opostos, e com o alinhamento do Brasil no bloco liderado pelos E.U.A., há um crescimento da influência estadunidense no Brasil, através da divulgação do american way of life, tão bem expressado na ideologia do americanismo. Tem-se assim que a política cultural instaurada com a redemocratização estava impregnada pelos valores do capitalismo central que, no intuito de reorganizar a relação dominadora, fornecia incentivo e apoio à industrialização brasileira, como também estimulava a reestruturação funcional do sistema de ensino nessa direção, com a finalidade de controlar as novas necessidades político-econômicas geradas no âmbito da sociedade dependente. (NUNES, 1980, p. 35).

No caso específico do ensino industrial, verifica-se uma grande ênfase no discurso da urgente necessidade da preparação de técnicos para atender as demandas do setor secundário da economia, cuja qualificação, além de permitir-lhes a garantia de emprego e ascensão social, possibilitaria ao país a superação de sua

168


condição de subdesenvolvido9. Portanto, há que se destacar a maior relevância dada ao ideal de progressivismo no âmbito de tal ideologia, mas ressaltando-se que não é suficiente apenas a vontade política de alcançar o desenvolvimento, é necessário que se conheçam os caminhos adequados para tanto. Esta será, pois, a missão da CBAI: a divulgação dos métodos e procedimentos baseados na racionalização científica como o percurso a ser percorrido na formação de professores para este ramo de ensino, e que posteriormente empregarão tais processos no trabalho docente.

Referências AMORIM, Mário Lopes. Da Escola Técnica de Curitiba à Escola Técnica Federal do Paraná: projeto de formação de uma aristocracia do trabalho (1942-1963). 2004. Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, São Paulo. BOLETIM DA CBAI. Rio de Janeiro: Comissão BrasileiroAmericana de Educação Industrial, 1947-1957. BOLETIM DA CBAI. Curitiba: Comissão Brasileiro-Americana de Educação Industrial, 1958-1961. BRASIL. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. INSTITUTO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS EDUCACIONAIS. A educação nas mensagens presidenciais (1890-1986). Brasília: INEP, 1987. V.1.

Tal discurso está colocado de forma muito clara e explícita nos exemplares do Boletim da CBAI, periódico editado para divulgação das atividades da CBAI, publicados a partir de 1947 até 1961. 9

169


CIAVATTA, Maria. A Comissão Brasileiro-Americana de Educação Industrial formando o trabalhador para a produtividade. S.n.t., mimeo. FONSECA, Celso Suckow da. História do ensino industrial no Brasil. RJ: Nacional, 1961. 2 v. IANNI, Octavio. Estado e planejamento econômico no Brasil (1930-1970). RJ: Civilização Brasileira, 1977. MALAN, Pedro S. Relações econômicas internacionais do Brasil (1945-1964). In: FAUSTO, Boris (dir.) História geral da civilização brasileira. Tomo III, 4. vol. SP: Difel, 1984. MENDONÇA, Sonia R. Estado e economia no Brasil: opções de desenvolvimento. 2. ed. RJ: Graal, 1985. MONTOJOS, Francisco. Ensino industrial. RJ: MES/CBAI, 1949. MOURA, Gerson. Tio Sam chega ao Brasil – a penetração cultural americana. SP: Brasiliense, 1984. NUNES, Clarice. Escola e dependência – o ensino secundário e a manutenção da ordem. RJ: Achiamé, 1980. SARETTA, Fausto. A política econômica brasileira (1946/1950). Revista de sociologia e política, Curitiba, n. 4 e 5, p. 113-129, 1995. TOTA, Antonio Pedro. O imperialismo sedutor. SP: Cia. Das Letras, 2000.

Mário Lopes Amorim. Endereço: rua Maximino Zanon, 345 – ap. 44B – CEP: 82510-250 Curitiba/Paraná. Endereço eletrônico: marioamorim@utfpr.edu.br. Instituição: Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR). Endereço da instituição: avenida Sete de Setembro, 3165 – CEP: 80230-901. 170


Curitiba/Paraná. Área de atuação: Programa de Pós-Graduação em Tecnologia (PPGTE), atuando como Professor Colaborador, ministrando a disciplina Contexto Sócio-Histórico da Educação Profissional.

Recebido em: 19/08/2007 Aceito em: 15/11/2007

171


.


A POLÍTICA EDUCACIONAL NO RIO GRANDE DO SUL E A QUESTÃO DA NACIONALIZAÇÃO DO ENSINO (1930/1945) Berenice Corsetti Dilmar Kistemacher Alessandra Vieira Padilha

Resumo Este trabalho aborda a política educacional implementada no Rio Grande do Sul, no período de 1930/1945. Tratamos aqui especificamente da questão da nacionalização do ensino, ingrediente dessa política que teve forte presença no cenário gaúcho desde a Primeira República, sobretudo pela presença das regiões coloniais. Procuramos evidenciar a postura adotada sobre o assunto pelo Estado e pela Igreja, cujas posições foram analisadas a partir do discurso percebido nas diferentes fontes históricas consultadas. A investigação até agora realizada revelou contradições e conflitos entre as duas instituições, mas também as mediações realizadas que consagraram a política educacional nacionalizadora implementada à época, com a preservação da posição da Igreja Católica em relação ao seu papel no campo educacional. Palavras-chave: Política educacional – Nacionalização do ensino – Rio Grande do Sul THE EDUCATIONAL POLICIES IN GRANDE DO SUL AND THE MATTER OF TEACHING NATIONALIZATION (1930/1945) Abstract The present work approaches the educational policies implemented in Rio Grande do Sul during the years 1930 to 1945. We address, more specifically, the matter of teaching nationalization, which is an ingredient from these policies that strongly appeared in the state scenario since the First Republic, especially in countryside areas. We aimed at putting in evidence the posture on this matter adopted by the State and the Church, whose positions have been analyzed based on the discourse collected from different historical sources. The investigation realized so far has revealed contradictions and conflicts between the two mentioned institutions. It has also revealed the achieved mediations that consecrated the educational and nationalizing policies implemented at that time, which preserved the Catholic Church position concerning its role in the educational field. História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, n. 23, p. 173-192, Set/Dez 2007 Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


Keywords: Educational Policies – Teaching nationalization - Rio Grande do Sul LA POLÍTICA EDUCACIONAL EN EL RIO GRANDE DO SUL Y LA CUESTIÓN DE LA NACIONALIZACIÓN DE LA ENSEÑANZA (1930/1945) Resumen Este trabajo aborda la política educacional implantada en Rio Grande do Sul, en el período de 1930/1945. Tratamos aquí específicamente de la cuestión de la nacionalización de la enseñanza, ingrediente de esa política que tuvo fuerte presencia en la escena gaucha desde la Primera República, sobretodo por la presencia de regiones coloniales. Buscamos evidenciar la postura adoptada sobre el asunto por el Estado y por la Iglesia, cuyas posiciones fueron analizadas a partir del discurso percibido en las distintas fuentes históricas consultadas. La investigación hasta ahora realizada ha revelado contradicciones y conflictos entre las dos instituciones, pero también las mediaciones realizadas que consagraron la política educacional implantada en la época con el objetivo de nacionalizar la enseñanza, con la preservación de la posición de la Iglesia Católica en relación a su rol en el campo educacional. Palabras-clave: Política educacional – Nacionalización de la enseñanza – Rio Grande do Sul

174


1. Introdução Neste trabalho pretendemos apresentar parte dos resultados alcançados através de uma investigação que vem sendo realizada sobre a política educacional implementada no Rio Grande do Sul, no período de 1930/1945. A pesquisa está sendo desenvolvida a partir de fontes primárias de largo espectro, ou seja, fontes oriundas dos setores executivo e legislativo, jornais de época, fontes da Igreja Católica e legislação do período. O estudo da política educacional rio-grandense adotada entre 1930 e 1945 envolve diversos aspectos das ações governamental e privada concretizadas à época. Interessa-nos, nesse momento, tratar especificamente da questão da nacionalização do ensino, ingrediente dessa política que teve forte presença no cenário gaúcho desde a Primeira República, sobretudo pela presença das regiões coloniais. Os demais elementos apenas serão abordados na medida do necessário para o esclarecimento do tema proposto. Diante do exposto, trataremos de evidenciar a postura adotada sobre a nacionalização do ensino a partir do discurso percebido em algumas das diferentes fontes históricas consultadas, que revelam a posição adotada sobre o assunto pelas distintas instâncias sociais investigadas, ou seja, o Estado e a Igreja.

2. Contextualizando o tema Entre 1930 e 1945, a história brasileira iniciou um expressivo esforço de construção de um projeto nacional baseado na industrialização, fundamentado numa política de substituição de importações. O modelo de desenvolvimento nacional constituído a partir de então se relacionou com a consolidação do poder central, que se esboçou em 1930 e se confirmou em 1937. 175


O país foi dotado de um centro de decisões com considerável autonomia, no contraponto aos grupos econômicos e políticos tradicionais. Diversas ações políticas foram desenvolvidas, caracterizando políticas públicas peculiares da época, tanto no campo econômico como social. O Rio Grande do Sul, entre 1930 e 1945, de forma distinta do processo que se desenvolvia a nível nacional, manteve sua economia baseada na agropecuária. É um período em que as atividades econômicas permitiam a seus dirigentes – homens de Estado, empresários e muitos outros – alimentarem-se de muito otimismo, frente à convicção de que uma industrialização diferenciada surgiria organicamente das forças econômicas sulinas. Na década de 1950, essa certeza deu lugar a dúvidas e ao pessimismo, o que reorientará a ação do Estado no campo econômico. Para os fins deste trabalho, iremos nos restringir á caracterização do período que é alvo de nosso interesse. Durante os anos situados entre 1930 e 1945, a economia política gaúcha caracterizou-se por atingir o apogeu de seu modelo histórico de desenvolvimento, construído ao longo de um século. A zona rural da pecuária e seus produtos históricos, o comércio, as cidades e as charqueadas e os frigoríficos; a zona rural marcada pela pequena produção agropecuária e seus produtos históricos, seu comércio, cidades, artesanatos e manufaturas, e a zona rural marcada pelas explorações relativamente grandes de arroz, trigo e gado e seus produtos históricos, fusionam-se por inteiro nesses anos, compondo a estrutura produtiva e de intermediação denominada de mercado sul-rio-grandense.1 O referido modelo histórico de desenvolvimento implicou num processo de acumulação de riquezas, de capital e de dominação política bastante própria, com características econômicas, políticas e ideológicas. O modelo histórico gaúcho foi 1

MULLER, 1979, p.363

176


composto por uma economia regional com linhas próprias, cujo eixo central esteve fundamentado nas atividades agropecuárias conectadas às atividades fabris e exportadoras. A ideologia de "democracia agrária", "desenvolvimento harmônico das forças produtivas" e a perspectiva do Estado depender sempre de suas próprias forças para avançar no seu desenvolvimento, completou o esse modelo. Evidenciou-se, assim, uma dinâmica econômica caracterizada por sua dependência das remessas para outras regiões brasileiras e da expansão dos mercados urbanos, bem como por encontrar, na organização agrária, um mercado pouco expressivo para seu crescimento. O papel do Rio Grande do Sul, no cenário nacional, restringiu-se, nesse período, o de ser uma área de abastecimento, sobretudo de matérias-primas para o exterior e de gêneros alimentícios para o mercado interno nacional. Em termos políticos, o período em questão foi marcado pelo governo de Flores da Cunha (interventor de 1914/1930 e governador de 1930 a 1937), bem como pela administração dos interventores indicados durante o Estado Novo: o coronel Daltro Filho (1937/1938), o coronel Osvaldo Cordeiro de Farias (1938/1943) e o coronel Ernesto Dornelles (1943/1945). Durante o período ditatorial, consolidou-se a intervenção estatal na economia, na política e na sociedade. O Rio Grande do Sul passou a aplicar uma série de medidas determinadas pelo governo federal. Foram extintos os partidos políticos, queimadas as bandeiras estaduais e eliminados os símbolos regionais. A campanha de nacionalização teve forte extensão no Estado, sobretudo nas regiões coloniais de origem italiana e alemã. As pesquisas que realizamos demonstraram o impacto das medidas nacionalizadoras implementadas no período, integrando a política educacional adotada à época, cujo conjunto de ingredientes estamos ainda investigando.

177


3. A nacionalização do ensino no Rio Grande do Sul no período de 1930/1945 A preocupação com a nacionalização do ensino é tema candente nas fontes históricas do período que investigamos, demonstrando sua importância como elemento constitutivo da política educacional do período. Para fins deste estudo, destacaremos alguns documentos que, por sua relevância, permitem perceber como a questão foi encaminhada no estado. Muito expressivo no tocante à importância da nacionalização para os dirigentes rio-grandenses é o relatório apresentado ao Secretário da Educação e Saúde pública, Coelho de Souza, pelo diretor da Seção Administrativa, encarregado dos serviços atinentes à nacionalização do ensino, em 10 de fevereiro de 1939. Constitui-se em rico documento, de doze páginas, cujos pontos principais passaremos a destacar a seguir. Afirmava então o referido diretor que, com o despontar do Estado Novo fazia-se necessário aplicar, fora do discurso, mas efetivamente na prática os ideais em prol da unidade nacional, para a consolidar um país unido e forte. Assim, era posto em prática o plano de nacionalização do ensino nas regiões de imigração, em específico no Rio Grande do Sul onde se cultivava a língua pátria e as tradições germânica e italiana, trazidas pelos imigrantes. A solidariedade forte entre os colonos e a vontade de manterem as suas tradições e a falta de investimento por parte do governo na instrução pública possibilitou a criação de associações e escolas comunitárias nas zonas de colonização. As aulas isoladas ou nos colégios foram influenciadas, de um lado, pelo Sínodo Rio-Grandense e sua Associação dos Professores Evangélicos, e de outro lado, pelos professores de formação católica, dirigida pela União Popular do Rio Grande do Sul. No interior, estas aulas, eram realizadas em língua estrangeira, alemã ou italiana, salvo algumas exceções, como por exemplo, nas escolas adventistas. Já nas grandes cidades e na capital o ensino era transmitido em língua estrangeira e em 178


português, as quais dispunham de professoras, de formação italiana, mantidas pelo consulado italiano. Nestas aulas percebeu-se a prática política e ideológica relacionada às idéias fascistas direcionadas às crianças. Devido às queixas foram criados dois Decretos nº 7212, de 08/04/1938 e nº 7247 de 23/04/1938, o primeiro obrigava às instituições a se registrarem junto ao órgão competente, sob pena de fechamento do estabelecimento, enquanto o segundo decreto estipulava o tempo de menos de uma hora de atividade, em sala de aula, em língua estrangeira, "[...] dando ao aviso a maior publicidade, que os estabelecimentos, que até 23 de maio não houvessem providenciado para o registro, teriam suas portas cerradas" 2 Nem sempre estas diretrizes, previstas nas leis mencionadas foram seguidas pelas escolas, como ocorreu nas escolas italianas que estavam estabelecidas na capital e nas grandes cidades, as quais não realizaram tais determinações, pois entendiam que elas se referiam em especial às escolas germânicas e não as de influência italiana, uma vez que o governo italiano gozava de uma excepcional relação com o governo brasileiro. A maioria dos professores não falava o idioma português. Tanto as salas de aula quanto os livros didáticos fornecidos gratuitamente eram "verdadeiras alavancas desagregadoras da mentalidade infantil", pois faziam referência a Mussolini e às idéias fascistas, principalmente nas zonas de colonização italiana. O não cumprimento da Lei, com o devido registro das escolas, implicou no fechamento das mesmas. Como aponta o relatório, As crianças cumprimentavam aos mestres com a saudação fascista e cantavam a giovinezza. [...] Na Escola Rosa Maltone, a professora do Estado quis inaugurar um retrato do Sr. Presidente da república, o que não lhe foi permitido senão sob a condição de que fosse suspenso

2

RELATÓRIO, 1939, p.2

179


debaixo da efígie do Sr. Mussolini [...].3 (Relatório, p.45).

Assim, diante do "flagrante" de desrespeito às determinações, em conformidade com a legislação, fora determinado o fechamento de escolas, as quais seriam reabertas mediante o registro junto à secretaria e a nacionalização, pelo menos do ambiente, acabando desta forma com os abusos que ocorriam em tempos anteriores, contra a nação brasileira. O Secretário, em visita às colônias alemães no interior, a fim de verificar a execução das leis de nacionalização do ensino, relata a predominância da cultura alemã e do uso do idioma alemão entre os colonos, os quais se identificavam como "alemães" e não como brasileiros, como o secretario expressa este sentimento quando da visita às colônias, "[...] Senti-me estrangeiro em minha própria terra"4 Alguns dos professores eram aqueles que melhor estavam preparados para lecionar, porém não tinham estes maiores conhecimentos do português. Assim, nas escolas paroquiais, tanto católicas como evangélicas, também se verificou o descumprimento de tais leis: "(...) em sua totalidade lecionavam em alemão, sendo o português tratado como uma mera disciplina e o que é pior, por forma não satisfatória dada a carência de conhecimento do vernáculo".5 No mesmo documento, o encarregado do serviço de nacionalização do ensino relata um episódio em visita às escolas nas zonas de colonização alemã, nas quais as crianças não se identificavam como brasileiras e sim como alemães, É profundamente doloroso ouvir de um pequenino teutobrasileiro de 3ª ou 4ª geração, nascido em Candelária, 3

Idem, p.4-5

4

Idem, p.7

5

Idem, p. 5-6

180


que era alemão, porque lá nascera e Candelária era território germânico. Na mesma aula desconhecem o presidente da República, mas o nome de Hitler lhes é familiar.6

Diante desse quadro junto às escolas, fora solicitado o apoio por parte das comunidades religiosas, "[...] pelo exato cumprimento das nossas disposições, que lhes demandavam muito maior esforço, apelamos às congregações religiosas, pedindo lhes o incitamento da boa vontade de seus filiados, o que nos prometido".7 (Relatório,1938, p.6). Contudo, a solicitação de apoio a estas comunidades não fora colocado em prática, já que "[...] a reserva, má vontade quando não a maneira hostil por que são recebidas as medidas do Estado pela família do aluno teuto, pelo professor e, seja licito afirmá-lo, pelas próprias confissões religiosas, posto que as últimas, ordinariamente, alardeiam o contrário" (Relatório, 1939, p.8). A fim de fazer cumprir as determinações previstas nas leis referentes à nacionalização do ensino e que se cumprisse de modo adequado tal exigência, foram designados cinqüenta professores públicos do curso normal e seis contratos especiais para lecionarem aulas de português, história, geografia e civismo, além de realizarem a fiscalização da nacionalização. Mesmo com a publicação das leis da colocação de professores do estado para realizarem a fiscalização da nacionalização do ensino, em diversos municípios, tanto nas comunidades religiosas, quanto na sociedade civil, foram os mesmo descumpridos e nalguns lugares estes professores foram "corridos" por realizarem o trabalho de fiscalização. "A Diretora do Grupo Escolar de Rolante, [...] fiscalizando o Colégio Sagrada

6

Idem, p.7

7

Idem, p.7

181


Família, foi três vezes vaiada pelo corpo discente, em presença de seus professores" (Relatório, 1938, p.10). O descumprimento por parte da comunidade pode ser claramente percebido: "[...] na igreja o sermão é feito em língua estrangeira e até para a primeira comunhão, os alunos que a falam tem preferência, realizando-se cerimônia à parte" (Relatório, 1938, p.10). Assim, segundo o redator, houve a necessidade de fazer cumprir a lei, uma vez que as determinações por parte do Estado não estavam sendo cumpridas, tendo em vista que "a experiência de um ano letivo, tal foi a vigência do Decreto 7212, mostrounos, que sem enérgicas medidas repressivas não haveria possibilidades de nacionalizarmos o ensino" (Relatório, 1939, p.10). A resistência, a burla, e ainda os abusos verificados nas escolas, contra as determinações do Estado, como o "encontro de desenhos com a cruz da suástica em cadernos de escolares" (Relatório, 1939, p.11) e a apreensão de documentos em poder de professores "alemães", os quais taxavam o Secretário da Educação e o Diretor encarregado do serviço de nacionalização de ensino, de "comedores de alemães" (Relatório, 1939, p.11) e diante de manifestações contrárias de cooperação com as autoridades estaduais, "[...] fez-se mister a decretação de uma lei mais enérgica, coibidora de todos os abusos: o Decreto 7614, de 12 de dezembro último, posto imediatamente em vigor" (Relatório, 1939, p.11). Esta medida tinha como objetivo por fim ao não cumprimento das leis anteriores de nacionalização do ensino. Contudo, o diretor salienta a necessidade de maiores investimentos, por parte do governo, tanto de fiscais quanto de recursos financeiros para a construção escolas públicas, "[...] para suprirem as particulares que forem fechadas por desistência da atividade escolar ou por determinação nossa" (Relatório, 1939, p.12). 182


Ao final do documento, o Administrativa registrou o seguinte alerta:

Diretor

da

Seção

[...] não devemos descurar que a nacionalização do ensino está intimamente subordinada à nacionalização da igreja, e que está última foge à nossa alçada, para ela, creio, cumpre-nos chamar a atenção dos poderes competentes, afim de que tenhamos maior amparo para a consecução do objetivo a que nos propusemos: a obtenção de um Brasil unido e forte.8

Esta consideração nos remete às informações que obtivemos no Arquivo Nacional, na documentação do Ministério da Justiça relacionada às Seções de Segurança Nacional, que demonstram a compreensão do governo da Nação sobre o assunto, e que revelam, no período, a repressão exercida sobre as regiões coloniais. Um dos setores onde se pôde perceber os reflexos da repressão estabelecida a partir do governo federal, no sentido de tolher os movimentos políticos locais, foi o da prática religiosa, onde as medidas cerceadoras determinadas pelo governo federal, em relação ao uso do idioma das nações do eixo, em lugares públicos, afetavam diretamente as práticas e atividades religiosas no Rio Grande do Sul. Diante dessa situação, em 13.12.1939, D. João Becker, Arcebispo metropolitano de Porto Alegre, junto com todos os bispos do Estado, D. Hermeto José Pinheiro, de Uruguaiana, D. Joaquim Ferreira de Mello, de Pelotas, D. Antônio Reis, de Santa Maria, D. José Barea, de Caxias do Sul, e D. Frei Cândido, de Vacaria, tentou intervir junto ao governo federal no sentido de eliminar as medidas repressivas e que afetavam a atividade religiosa no Rio Grande do Sul. Ao mesmo tempo em que afirmavam a boa vontade de todo o episcopado do Estado, no sentido de auxiliar o Relatório apresentado a Coelho de Souza pelo diretor da Seção Administrativa, em 10 de fevereiro de 1939, p. 12. 8

183


governo da República a nacionalizar tanto a pregação como o ensino em geral, bem como a implantar e difundir os autênticos sentimentos de brasilidade, apontavam os reflexos negativos resultantes da proibição governamental de exercer a pregação e o ensino do catecismo em língua estrangeira nos templos. Evidenciaram as autoridades religiosas as graves dificuldades e os inconvenientes, tanto de ordem religiosa, como social e política. Argumentaram, outrossim, que a possível ausência de nacionalização era decorrente, sobretudo, do descuido dos governos passados, que teriam deixado aquelas regiões coloniais quase em completo abandono, principalmente no que diz respeito à instrução pública. Colocando, também a contribuição oferecida pela população de origem estrangeira ao progresso material e espiritual do país, e se propondo auxiliares do governo, os bispos riograndenses propuseram a seguinte norma: o clero pregaria e ensinaria o catecismo sempre em português, usando a língua estrangeira apenas quando necessário para a devida compreensão dos fiéis, dos quais muitos ainda não conheciam o idioma do país. Finalmente, alertavam os signatários do documento que se o governo federal proibisse, realmente, a pregação e o ensino do catecismo em língua estrangeira, haveriam de acatar suas determinações, mas não poderiam assumir a responsabilidade pelas conseqüências daí resultantes que, a seu ver, viriam a ser graves, não apenas para a Igreja Católica como, também, para o Estado Novo.9 A partir de agosto de 1939, o Arcebispo de Porto Alegre distribuiu orientação ao clero de Porto Alegre, no sentido de realizar as práticas e os sermões e capelas em português, mas podendo repetir a sua falação no idioma das pessoas estrangeiras presentes à cerimônia religiosa, se o número delas fosse elevado e se o julgassem oportuno. Se num ou noutro núcleo colonial, os Correspondência dirigida por D. João Becker ao Presidente Getúlio Vargas, em 13.02.1939 –Arquivo Nacional - SPE-IJ9 1422. 9

184


fiéis ainda não soubessem bem o português, os sacerdotes depois da prática no vernáculo, estariam obrigados a repeti-la na língua dos referidos fiéis. Esse programa havia sido combinado com as autoridades eclesiásticas superiores do Rio de janeiro e o governo federal, e seria executado por ordem do governo do Estado do Rio Grande do Sul, de comum acordo com a Cúria Metropolitana de Porto Alegre.10 Apesar desse acerto entre as autoridades eclesiásticas e federais, o acordo não foi cumprido no Rio Grande do Sul, tendo o chefe de Polícia de Porto Alegre, Capitão Aurélio da Silva Py, baixado "instruções" relativas às prédicas ou sermões religiosos, segundo as quais somente eram permitidos os sermões em língua nacional, ficando a repetição dos mesmos, em língua estrangeira, apenas limitadas às vilas e núcleos coloniais afastados onde existiam estrangeiros de maior idade e em número bastante elevado, medida esta de caráter excepcional e temporário, ficando, além disso, a critério da Chefia de Polícia. Qualquer infração às disposições estabelecidas implicaria em penas respectivas, perdendo a faculdade concedida, devendo falar aos fiéis, exclusiva e obrigatoriamente, em língua nacional. Além dessas punições, pelas infrações não previstas até então, ficavam os sacerdotes ou ministros de culto sujeitos às sanções legais que no caso coubessem, de acordo com as circunstâncias.11 Os reflexos das medidas adotadas pelo Capitão Py, nos meios católicos regionais, foram significativos, tanto entre os dirigentes eclesiásticos como nas comunidades atingidas pelas disposições policiais. Assim, percebe-se a manifestação de D. João Becker ao Delegado de Polícia de Porto Alegre, denunciando o não cumprimento da combinação feita pelo Núncio Apostólico Circular expedida por D. João Becker, Arcebispo Metropolitano de Porto Alegre, em 02.08.1939 – Arquivo Nacional - SPE IJ 1 1422. 10

Instruções sobre prédicas ou sermões religiosos do Capitão Aurélio da Silva, em setembro de 1939 – Arquivo Nacional - SPE IJ2 1422. 11

185


Monsenhor Bento Aloisi Masella, Embaixador do Sumo Pontífice junto ao Governo Brasileiro, com o Cardeal D. Sebastião Leme, que fora explicitamente aprovado pelo Ministro da Justiça e pelo Presidente da República e que não estava sendo observada, na região.12 Nesse mesmo sentido, movimentaram-se as comunidades coloniais, enviando telegramas e abaixo-assinados, solicitando o fim dessas imposições que limitavam a prática religiosa nas regiões de colonização.13 A posição do chefe de Polícia é justificada ao Ministro da Justiça através da colocação de que o problema que se apresentava, em termos das instituições religiosas no Rio Grande do Sul, referia-se à Igreja Evangélica Alemã, que obedeceria à orientação política do Partido Nacional-Socialista. Segundo relatório, preparado pela Chefia de Polícia de Porto Alegre, 90% dos Pastores Protestantes, no Estado, eram alemães natos e na sua maioria membros destacados do Partido. O Pastor Hugo Kumer fora surpreendido, em Santa Cruz, pregando contra a orientação do governo. Tendo sido preso, em seu poder haviam sido encontrados além de material de propaganda nazista, regular quantidade de selos destinados à aposição na carteira partidária, mediante o pagamento da mensalidade, o que levava a crer fosse ele o encarregado desse serviço. Também o Diretor do Pró-seminário de São Leopoldo, Pastor Franzmeyer, era alto funcionário da Polícia Alemã, segundo havia sido apurado pela chefia de Polícia de Porto Alegre. De acordo o Capitão Aurélio Py, a língua havia contribuído preponderantemente para essa situação, pois, com ela, eram mantidos uma civilização e um espírito de raça muito saudável às teorias totalitárias. Em torno do idioma, iam se formando as comunidades de origem, que sempre haviam constituído campo Correspondência enviada por D. João Becker ao Capitão Aurélio da Silva Py, em 03.10.1939 – Arquivo Nacional - SPE-IJ1 1422. 12

13

Arquivo Nacional – SPE –IJ2 1422

186


fértil onde se enraizavam falsas e impatrióticas teorias políticas importadas de além-mar. Assim, a língua, na opinião da autoridade policial máxima do Rio Grande do Sul, havia sido a pedra angular dos processos de penetração estrangeira, no Brasil e, como tal, devia ser reprimida.14 Podemos, perceber, portanto, que a relação entre o Estado e a Igreja foi marcada por conflitos e contradições, mas também por mediações que integraram a política educacional do período estudado. Em 1942, através de Circular da Secretaria de Estado dos Negócios da Educação e Saúde Pública, podemos identificar o convênio assinado entre o Governo do Estado e a Arquidiocese de Porto Alegre, relativo ás escolas católicas. O texto, publicado pela UNITAS, esclarecia a necessidade da integral nacionalização do ensino, pelo qual vinham se batendo, desde a muito, ambos os pactuantes, bem como afirmava a utilidade social e nacional de uma perfeita harmonia e colaboração entre os poderes temporal e espiritual, assim estabelecendo: 1° - A Arquidiocese de Porto Alegre tem ampla liberdade e autonomia de fundar e manter escolas católicas, bastando que as mesmas se sujeitem às clausulas do presente convênio, para terem o amparo da lei e a proteção do Estado; 2° - A Cúria Metropolitana fornecerá á Secretaria da Educação a lista completa das escolas católicas da Arquidiocese, declinando qualquer responsabilidade pela conduta de todas aquelas que, embora de orientação católica, não se incluam na referida lista; 3° - A aprovação que se fundarem novas escolas católicas, as mesmas serão registradas na Secretaria da Educação, por intermédio da Cúria Metropolitana, a qual, igualmente, dará baixa das que deixarem de existir; Correspondência do Capitão Aurélio da Silva Py ao Ministro da Justiça, em 06.10.1939 – Arquivo Nacional - SPE-IJ1 1422. Relatório da Chefia da Polícia de Porto Alegre, sobre "Religião e Política Nazista", em 07.07.1939, Arquivo Nacional - SPE-IJ1 1422. 14

187


4° - A Cúria Metropolitana se compromete, sem prejuízo da completa autonomia administrativa e confissional das referidas escolas, a manter nas mesmas um ensino rigorosamente nacional, de acordo com a legislação federal e estadual atinente à matéria; 5° - A Cúria Metropolitana retirará da direção dessas escolas toda pessoa, eclesiástica ou leiga, que procure embarcar o espírito do convênio que ora se firma, de conformidade com a clausula; 6°- A Secretaria da Educação, reconhecendo a benemerência da Igreja Católica na difusão e nacionalização do ensino, retirará dessas escolas os professores fiscais que até agora ali mantêm; 7° - A Secretaria da Educação fará fiscalizar, mensalmente, por um professor designado para cada município, e trimestralmente, pelo Delegado Regional, as referidas escolas; 8°- A Secretaria da Educação se responsabiliza pela conduta cordial e animada de colaboração desses fiscais; 9°- Qualquer queixa ou reclamação que surgir a respeito das escolas católicas, será tratada, diretamente, entre os signatários do presente convênio e as averiguações sobre a procedência ou não procedência das mesmas far-se-ão por pessoa ou pessoas da inteira confiança de ambas as partes; 10°- Os pactuantes se comprometem a evitar atitudes de hostilidade entre os elementos responsáveis pela direção de suas escolas, embora essas funcionem no mesmo turno e nas proximidades uma da outra; 11°- As escolas católicas da zona rural não são obrigadas a observar o período de férias prescrito para as escolas públicas; 12°- Os pactuantes se esforçarão no sentido de que este convênio seja também firmado entre o Estado e os bispos sufragâneos; 13°- A violação consciente e deliberada de qualquer desses dispositivos, da parte de um dos pactuantes, acarretará o 188


rompimento do mesmo, assumindo cada um as responsabilidades, perante a sua consciência e perante os seus concidadãos.15 Nesse mesmo ano, estabeleceram-se as normas oficiais a serem observadas pelas Escolas Católicas da Arquidiocese de Porto Alegre. Dentre elas destacamos as que nos parecem mais expressivas para evidenciar a importância da questão da nacionalização e da mediação ocorrida entre o Estado e a Igreja Católica, sobre o tema. Além das normas relativas ao registro e inspeção das escolas, bem como sobre a forma de realizar os exames, as orientações sobre o culto cívico merecem destaque: 1) As escolas católicas devem cumprir, rigorosamente, as determinações de caráter cívico, emanadas da Secretaria da Educação. 2) Toda Escola deverá ter: a) uma Bandeira Nacional de tamanho conveniente e um mapa do Brasil em ponto grande; b) em todas as salas de aula um quadro com a Bandeira Nacional, e outro, com o verso: AMA COM FÉ E ORGULHO A TERRA EM QUE NASCESTE. 3) A atitude cívica será computada obrigatoriamente na apreciação da conduta geral de cada aluno. 4) São absolutamente proibidos: a) O emprego de idiomas estrangeiro, mesmo como língua auxiliar; b) Inscrições em língua viva estrangeira; c) Homenagens a nações estrangeiras, seus chefes e membros de governo, como colocação de retratos, bandeiras, etc. 15

UNITAS, 1942, N° 5-6, p. 138-139.

189


d) Saudações características estrangeiros.

de

partidos

5) Haverá cerimônias de culto cívico: a) No início do ano letivo; b) Aos sábados pela manhã; c) Nos feriados nacionais; d) Na festa da bandeira. 6) As datas nacionais: a) Serão celebradas no próprio dia; b) Coincidindo com domingo ou dia santo de guarda, serão celebradas na véspera, sempre que não haja determinação expressa em contrário; c) Devendo, por determinação expressa, celebrar-se em domingo ou dia santo de guarda, as cerimônias cívicas obedecerão a um horário, que não prejudique o cumprimento dos deveres religiosos dos professores e alunos. 7) As comemorações da "Semana da Pátria", da "Semana da Asa" e outras, obedecerão a instruções prévias da Secretaria da Educação. 8) Para as grandes comemorações em conjunto, aconselha-se aos colégios católicos entrar em entendimentos não só com os Grupos Escolares da localidade, mas também com as autoridades civis e militares, representantes da Liga de Defesa 16 Nacional, entidades desportivas, etc. Esta documentação é preciosa para se perceber a importância das medidas nacionalizadoras que atingiram as escolas católicas, consideradas foco de resistência à nacionalização pretendida pelo Estado brasileiro. A adesão da Igreja foi sendo 16

UNITAS, 1942, Nº 1-2, P. 17-18.

190


obtida, com a preservação de sua posição na disputa pelos espaços educacionais, assim expressa, em 1945, através de parte que selecionamos do Manifesto do Episcopado Brasileiro sobre o momento internacional e nacional: Só o Estado de tipo totalitário monopoliza o ensino e transforma as escolas em instrumento de propaganda de ideologias partidárias. O respeito à verdadeira liberdade de consciência das famílias exige que, na orientação espiritual da educação nas escolas, não se contrarie a orientação do lar, e que o professor não destrua o que constroem os pais.17

4. Considerações finais Os elementos que aqui apresentamos constituem parte dos resultados da investigação que vimos realizando sobre a política educacional no Rio Grande do Sul, no período de 1930/1945. Nossa preocupação, nesse momento, foi apresentar os aspectos mais significativos de um dos traços fundamentais dessa política, ou seja, a nacionalização do ensino. Como pudemos evidenciar através da documentação de época com a qual trabalhamos, a nacionalização do ensino foi ingrediente forte de contradições e até de conflitos, entre o Estado e a Igreja no Rio Grande do Sul. As regiões coloniais foram o "lócus" privilegiado do confronto ocorrido e que sofreram, de forma mais consistente, a ação governamental no período. Ao longo dos testemunhos históricos apresentados, pudemos perceber as mediações ocorridas, sobretudo entre o Estado e a Igreja Católica, com esta adotando a orientação nacionalizadora estabelecida pelo Estado, mas preservando a defesa de sua posição como protagonista importante no campo educacional.

17

UNITAS, 1945, Nº 7-9, P. 179.

191


Referências MÜLLER, Geraldo. A economia política gaúcha dos anos 30 aos 60. In: DACANAL, José Hildebrando; GONZAGA, Sergius (org.). RS: Economia e Política. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1979. RELATÓRIO, apresentado ao Secretário de Educação e Saúde Pública, J. P. Coelho de Souza pelo diretor da Seção Administrativa, encarregado dos serviços atinentes à nacionalização do ensino. Porto Alegre, 1939. UNITAS, Revista da Arquidiocese de Porto Alegre. Porto Alegre, 1942. _______ Revista da Arquidiocese de Porto Alegre. Porto Alegre, 1945.

Berenice Corsetti. Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação. Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS. e-mail: bcorsetti@unisinos.br Dilmar Kistemacher. Acadêmico do Curso de História da UNISINOS. Bolsista de Iniciação Científica. e-maill: kistemacher@yahoo.com.br Alessandra Vieira Padilha. Acadêmica do Curso de História da UNISINOS. Bolsista de Iniciação Científica. e-mail: nanda_padilha@yahoo.com.br

Recebido em: 08/06/2007 Aceito em: 15/11/2007

192


DAS SCHULBUCH (O LIVRO ESCOLAR), 1917-1938. UM PERIÓDICO SINGULAR PARA O CONTEXTO DA IMPRENSA PEDAGÓGICA NO PERÍODO Lúcio Kreutz

Resumo No início do século XX o processo educacional brasileiro foi favorecido pelos movimentos em favor do ideário liberal, pela crescente afirmação do Estado/Nação, pelo Projeto Republicano e pelas iniciativas da Igreja da Restauração. Estas tendências motivaram a mobilização em favor do processo educacional brasileiro, incentivando a produção da imprensa pedagógica. O presente artigo trata do periódico Das Schulbuch (O Livro Escolar), publicado pela Editora Rotermund, de São Leopoldo, de 1917-1938, salientando suas interfaces e contraposições com as tendências especificadas acima. Único periódico sobre o livro escolar conhecido até o presente, Das Schulbuch é muito pouco conhecido na história da educação brasileira e constitui-se em rica fonte de pesquisa sobre propostas pedagógicas da época, sobre a produção e uso de livros escolares, especialmente nas escolas da imigração. Palavras-chave: Imprensa pedagógica; livros escolares; história da educação. DAS SCHULBUCH (THE SCHOOL TEXT BOOK) 19171938. A PECULIAR JOURNAL IN THE PEDAGOGICAL CONTEXT AT THAT TIME Abstract In the beginning of the 20th Century the brazilian educational process was helped by the movements in favor of the liberal proposals, by the increasing affirmation of the Estate/Nation, by the Republican Project and by the initiative of the Church of Restoration. These tendencies motivated a movement in favor of the brazilian educational process, encouraging a production of pedagogic press. The present article deals with the periodic Das Schulbuch (The School Book), published by Rotermund Publishing Company of Sao Leopoldo, from 1917-1938, emphasizing its interfaces and counterpoints with the tendencies specified above. The only periodic about the school book known to this date, Das Schulbuch is not wellknown in the history of brazilian education and constitutes a rich research source about the pedagogic proposal of that period of time, História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, n. 23, p. 193-215, Set/Dez 2007 Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


concerning the production and use of school books, specially in the immigration schools. Keywords: Pedagogic press; school books; history of the education. DAS SCHULBUCH (EL LIBRO ESCOLAR) 1917-1938. UN PERIODICO SINGULAR PARA EL CONTEXTO DE LA IMPRENTA PEDAGOGICA EN EL PERIODO Resumen Al principio del siglo XX el proceso educacional brasileño fue favorecido por los movimientos en favor del ideario liberal, por la creciente afirmación del Estado/Nación, por el Proyecto Republicano y por las iniciativas de la Iglesia de la Restauración. Estas tendencias motivaron la movilización en favor del proceso educacional brasileño, incentivando la producción de la imprenta pedagógica. El presente artículo trata del periódico Das Schulbuch (El Libro Escolar), publicado por la Editora Rotermund, de São Leopoldo, de 19171938, destacando sus peculiaridades y contraposiciones con las tendencias especificadas arriba. Único periódico sobre el libro escolar conocido hasta el presente, Das Schulbuch es muy poco conocido en la historia de la educación brasileña y se constituye rica fuente de investigación sobre propuestas pedagógicas de la época, sobre la producción y uso de libros escolares, especialmente en las escuelas de inmigración. Palabras-clave: Imprenta pedagógica; libros escolares; historia de la educación

194


O presente texto é fruto de pesquisa sobre a imprensa pedagógica produzida para as escolas étnico-comunitárias da imigração alemã no Rio Grande do Sul. Trabalhando em equipe, com bom apoio institucional e recorrendo a diferentes estratégias de buscas, foi possível chegar a resultados bastante surpreendentes na localização de fontes abrangendo significativo leque de publicações relativas ao processo escolar desse grupo de imigrantes. Até o momento conseguimos localizar a coleção quase completa de dois periódicos das Associações de Professores da imigração alemã publicados entre 1900 e 1938, um conjunto de 167 livros didáticos elaborados e impressos para o uso nessas escolas étnicas e, para surpresa, uma revista sobre o livro escolar. Esta publicação parece-me algo muito singular para o período histórico em questão e é objeto do presente texto. Trata-se do Das Schulbuch (O Livro Escolar), 1917-1938. Publicado por imigrantes alemães no contexto da produção de material didático para suas escolas étnicas, objetivava adequá-las o mais possível à realidade brasileira. Com 52 números editados, apresenta como tema central, inclusive como título, o Livro Escolar. Entendo que é fonte promissora para, juntamente com outras, servir de referência de pesquisa sobre o processo educacional do período, especialmente em relação aos livros escolares. Por ser uma revista, esta fonte será de interesse especial para os pesquisadores voltados para a imprensa periódica na educação. E por ter como título, O Livro Escolar, sendo este o eixo central dos textos aí publicados, interessa igualmente aos pesquisadores que tem como objeto de atenção o livro didático. Portanto um periódico contemplando diretamente duas instâncias de pesquisa em relação às quais está havendo bastante atenção nos últimos anos por parte de pesquisadores em história da educação brasileira. No período histórico em questão, a imprensa pedagógica começava a ser considerada instância privilegiada de ação tanto pelas lideranças governamentais, buscando a instauração do Estado/Nação, como pela Igreja da Imigração, luterana e católica, reivindicando a definição dos princípios educacionais como 195


atribuição sua. Por isso desencadeava forte oposição ao avanço do ideário liberal que propunha a educação como função do Estado, com um sistema escolar laico. Das Schulbuch foi editado nesse contexto de disputa pelo processo educacional, considerado estratégico para os objetivos de ambas as instituições. O escopo do presente texto é apresentar esse periódico aos pesquisadores na área, salientando os objetivos de seus editores e as tensões que envolviam sua publicação no momento histórico em que o direito sobre o processo escolar provocava tensões e disputas entre Estado e Igreja. Trata-se igualmente de momento histórico em que havia freqüentes tensões entre poder público, voltado à formação do Estado Nacional, e os imigrantes, concentrados predominantemente em comunidades rurais bastante homogêneas, afeitos à língua de origem e às demais expressões culturais do respectivo grupo étnico. Hobsbawm (1984 e 1900), Guibernau (1997), Gellner (1988) e Anderson (1997), ajudam a perceber que nesse momento histórico a dinâmica sócio-cultural se desenvolveu em profunda inter-relação com a questão do nacional e que o processo identitário não se desencadeava apenas a partir das diretivas de governos e de agências oficiosas, mas que também contemplava aspirações e interesses populares. Isso provocava um movimento contraditório de interesses gerando tensões e alianças, com reflexos no processo social, político e, principalmente cultural. Por isso o periódico Das Schulbuch e toda a literatura escolar dos imigrantes têm profundas interfaces com a formação do Estado Nacional no Brasil e sua relação com a Igreja da Imigração. Daí sua importância para a história da educação.

O periódico Das Schulbuch A editora Rotermund de São Leopoldo, RS, editou 52 números do periódico Das Schulbuch. Organ zum Ausbau der Schulbuchliteratur in Brasilien, entre 1917 e 1938. Trata-se de um periódico sobre o livro escolar (Das Schulbuch), com o objetivo de 196


fomentar reflexões relacionadas com a concepção, a elaboração, a impressão e a difusão da literatura relativa ao livro didático no Brasil (Organ zum Ausbau der Schulbuchliteratur in Brasilien). Com número bastante reduzido de páginas - média de dezesseis a vinte não é exatamente um periódico na concepção atual. Mas é significativo para seu período histórico e contexto de produção. No frontispício de cada número aparecem junto ao título, e em destaque, três informações: - A redação está nas mãos de pedagogos renomados; todas as colaborações devem ser enviadas à Editora Rotermund e Cia., São Leopoldo. - Será enviado, gratuitamente, a todos os professores e interessados. - Editado segundo a necessidade, trata dos diversos aspectos que envolvem o trabalho pedagógico. Aceita-se, gratuitamente, o anúncio de procura e de oferta de vagas para professor.

Todos os números foram impressos em alemão, letra gótica. Os três primeiros apareceram respectivamente em julho, agosto e setembro de 1917. Sobre os números quatro e cinco ainda não se obteve informações. Houve interrupção de sete anos na publicação do mesmo, reaparecendo com o número seis em outubro de 1925. Esse intervalo na publicação do periódico devese à proibição da imprensa alemã no Brasil, logo após a Primeira Guerra Mundial, de 1917 a 1919, significando duro golpe para a Editora Rotermund que vinha imprimindo desde 1880 todo um conjunto de impressos para os imigrantes alemães em sua língua materna. Entre esses impressos estava um jornal (Deutsche Post), livros didáticos, anuários, boletins, folhas dominicais e um almanaque do professor. A editora havia sido alvo de reações, sofrendo sérios prejuízos durante o período de guerra, motivo que a levou a suspender por mais tempo as publicações. O editorial do número seis, em 1925, enfatiza que, em função da mudança dos tempos, devem seguir-se também 197


transformações na ação pedagógica. Realça que não se pode depender de manuais escolares impressos em outro país e outra realidade. O editor ainda faz um apelo para que os professores divulguem o periódico e colaborem com artigos referentes a seu trabalho escolar, com relatos sobre suas reuniões, locais e regionais, e com troca de informações sobre a oferta e procura de vagas para professor. O periódico dispunha-se a ser um instrumento de formação e informação para os professores. Até o presente foram localizados exemplares no acervo Mentz, Porto Alegre, no acervo Rotermund, São Leopoldo e no acervo Martius Staden, São Paulo. Dos números editados (52 ao todo), falta localizar o número quatro e cinco, como foi dito acima. Em trabalho conjunto com Izabel Cristina Arendt, do Acervo Documental e de Pesquisa (ADOPE) da UNISINOS e com o apoio de bolsistas de Iniciação Científica fizemos contato com os acervos acima citados e, com o apoio do CNPq, realizamos a microfilmagem e posterior edição digital dos cinqüenta números já localizados, disponibilizando uma cópia para os acervos que concorreram com originais. A concepção do periódico deve-se a Wilhelm Rotermund (1843-1925), fundador da Editora Rotermund em 1880, considerado uma das principais lideranças na fundação do Sínodo Riograndense. É lembrado como pastor luterano, professor, editor, liderança muito envolvida na dinâmica sócio-cultural e comunitária dos imigrantes. Nasceu na Alemanha, fez os primeiros anos de escola com seu pai, professor. Formou-se em Teologia e fez o doutorado em Filosofia. Trabalhou alguns anos como professor e como pastor na Alemanha e, em 1874 veio a São Leopoldo, tornando-se uma liderança muito respeitada entre imigrantes alemães. No contexto de envolvimento com a dinâmica sócio-cultural dos imigrantes na função de pastor, de professor e de editor, centrou sua atenção de forma especial na elaboração e impressão de livros didáticos. Em 1878, imprimiu, de sua autoria, em alemão, uma cartilha para as escolas de imigrantes alemães no Brasil. Preocupado com a pronúncia do português nessas escolas, 198


publicou em 1879, também de sua autoria, A orthoepia da língua portugueza em exercícios para as escolas alemãs no Brasil". Continuou a dedicar-se a este objetivo. Ao todo Rotermund é autor de 16 livros didáticos para as escolas de imigração, dos quais cinco foram escritos em português. Além dos 16 manuais de sua autoria, com sucessivas reedições, também editou significativo número de manuais escolares de outros autores. Até o momento identificamos 38 desses manuais, boa parte reeditada sucessivas vezes. Na década de 1930, a Editora Rotermund já havia editado e reeditado acima de 50 títulos de manuais escolares, vários com mais de 10 reedições. Em alguns casos ocorreram profundas reformulações na decorrer das 15 ou mais reedições. Em 1931, havia vendido 160.000 exemplares de Praktischen Rechenschule (Das Schulbuch, 40, 1932, p.5). Estas informações sucintas ajudam a entender a liderança da Editora Rotermund em relação aos livros escolares, e já apontam para algumas dimensões do contexto e da dinâmica na qual e a partir da qual foi editado o periódico Das Schulbuch. O periódico Das Schulbuch foi precedido praticamente por um século de presença dos imigrantes alemães no Brasil. Não tendo escolas públicas à disposição, abriam escolas étnicas, em condições precárias. Na falta de material didático, produziram algumas cartilhas manuscritas.Em 1832, oito anos após o início da imigração alemã no RS, foi impressa a primeira cartilha para suas escolas no Rio Grande do Sul, sob o título: Neuestes ABC Buchstabier und Lesebuch zunächst fiir die Kolonie von S't Leopoldo. Porto Alegre, gedruckt und zu haben in der Buchdruckerey von C. Dubreuil und Cia., 1832. Além do título, a folha de rosto ainda tinha a epígrafe: Was Hänschen nicht lernt, lernt Hans nimmermehr, isto é, o que Joãozinho não aprende, João não aprenderá mais (HJ,1924,p.410). Afora estas informações sobre o material didático no início da imigração, sabe-se pouco sobre o mesmo nas décadas subseqüentes, até 1870. A partir de então a questão da elaboração do material didático para as escolas da imigração começou a ter 199


incentivo especial da parte da coordenação do projeto das igrejas, luterana e católica. Com estas instituições a apoiar o projeto escolar, entende-se porque houve, pelo menos parcialmente, uma produção de material didático que, especialmente em temas relativos à religião e valores ético-morais, mantinha conotação confessional. No entanto, em relação ao ensino da língua, da matemática, da história e geografia, o material didático usualmente era comum a católicos e luteranos. A Editora Rotermund, de São Leopoldo, normalmente publicava o material didático dos luteranos. Os católicos recorriam mais à Typographia do Centro e à Livraria e Editora Selbach, ambas em Porto Alegre. Para situar melhor a Wilhelm Rotermund, mentor e editor do Das Schulbuch, no contexto nacional de produção de livros escolares, é muito valiosa a tese de doutorado de José Luís Félix (2004) sobre "As gramáticas dos imigrantes alemães para aprender o português: índices de brasilidade lingüística". No estudo ele compara as gramáticas elaboradas por Rotermund (RS), Damm (SC), com as de Júlio Ribeiro e João Ribeiro, considerados clássicos no período, entre 1890 e 1910. Na pesquisa Félix conclui que os dois autores de gramáticas para ensinar o português aos imigrantes alemães apresentam considerável índice de brasilidade e que estavam bem informados a respeito das discussões sobre o tema, tanto no Brasil quanto em Portugal e na Alemanha. Por isso o Das Schulbuch e seu editor não podem ser pesquisados de modo isolado, reduzindo-os apenas ao horizonte da literatura escolar dos imigrantes alemães no Brasil. Para pesquisar esse periódico é necessário ficar atento para as interlocuções com as discussões pedagógicas em nível nacional e mesmo da Europa e é preciso, principalmente, buscar as interlocuções e/ou contraposições com movimentos político-sociais e religiosos. Rotermund estava assessorado por professores de boa formação acadêmica, ele mesmo era doutor em filosofia, e com suas iniciativas no processo educacional visava objetivos religiosos, sociais e mesmo políticos bastante amplos. 200


Os destinatários do Das Schulbuch Quando a Editora Rotermund começou a publicar o periódico Das Schulbuch, em 1917, o número de escolas da imigração alemã no Rio Grande do Sul era de 787 (sendo 365 de confissão luterana, 310 católicas e 112 mistas). Havia também expressivo número das mesmas em outros estados, especialmente em Santa Catarina. No entanto, o Rio Grande do Sul foi o estado que sempre teve o maior número de escolas étnicas, até a proibição das mesmas a partir de 1938. Segundo levantamento das Associações de Professores dos imigrantes alemães havia no Brasil, em 1937 – vinte anos após a fundação do periódico Das Schulbuch – um total de 1579 escolas da imigração alemã, com a seguinte distribuição por estado: RS, com 1.041; SC, com 361; ES, com 67; SP, com 61; RJ, com 16 e outros estados com 33 (Kreutz, 2000, p. 356/7). O periódico sobre o livro escolar estava inserido em contexto de ampla publicação de jornais, almanaques, revistas e folhas semanais destinadas aos imigrantes alemães do Rio Grande do Sul. Em 1938 este conjunto somava 37 títulos diferentes. E como a escola era uma das instâncias básicas para o projeto de comunidade desses imigrantes, é fácil entender que nestas publicações se tratasse quase que ininterruptamente desta temática. Por isso todas essas publicações são fontes importantes para a pesquisa sobre o processo escolar. No entanto, destaco a imprensa pedagógica destinada especialmente para os professores. Além do Das Schulbuch, foram publicados ainda dois outros periódicos e um almanaque do professor. Respectivamente: a) Mitteilungen des katholischen Lehrer- und Erziehungvereins in Rio Grande do Sul, 1900 a 1940. A partir de 1907 passou para o título Lehrerzeitung. Vereinsblatt des katholischen Lehrervereins in Rio Grande do Sul. Trata-se da revista da Associação de Professores da imigração alemã católica do Rio Grande do Sul. Impressa em 201


alemão, normalmente em letra gótica, sua edição foi mensal, com raros casos em que era expedida de dois em dois meses. Sua edição foi suspensa de novembro de 1917 a janeiro de 1920, em conseqüência da Primeira Guerra Mundial. A Associação de Professores da Imigração Alemã Católica (Leherverein) foi fundada em 1898. Dois anos depois, em 1900, iniciou a edição do Jornal do Professor, com o objetivo de promover a escola comunitária (paroquial) de acordo com a perspectiva católica. Dava prioridade para a formação dos professores, para a garantia da obrigatoriedade escolar mínima de quatro anos, para um currículo comum e, especialmente, para a elaboração e impressão de material didático para as escolas da imigração. b) Allgemeine Lehrerzeitung für Rio Grande do Sul. Vereinsblatt des deutschen evangelischen Lehrervereins in Rio Grande do Sul. Trata-se da revista da Associação de Professores Evangélicos de Imigração Alemã do Rio Grande do Sul, publicada de 1902 a 1938. Os objetivos deste periódico são semelhantes, na perspectiva evangélica, aos do congênere católico, explicitado acima. c) Lehrerkalender. Trata-se de um Almanaque do Professor, editado pela editora Rotermund, na década de 1930, com o objetivo de informar aos professores os eventos importantes, apresentar a oferta de livros didáticos, comentários a respeito dos mesmos e trazer informações úteis para o dia a dia do professor, ao estilo de uma agenda. Das Schulbuch estava em sintonia com esses periódicos, mas sua especificidade era a proposição de reflexões teóricas sobre a prática pedagógica e, principalmente, as informações relativas aos livros didáticos específicos das escolas da imigração. Até o momento conseguimos localizar e microfilmar 167 desses livros escolares, tendo informação de vários outros, mas ainda não 202


localizados. Isto nos leva a entender que se formara uma rede de publicações em torno da questão escolar, considerada de máxima prioridade para os imigrantes. Nas Assembléias Gerais de Professores, nas reuniões regionais e locais das Associações de Professores, o tema do material didático era uma constante. Esta prioridade aparece claramente no Jornal do Professor de cada Associação e também no periódico Das Schulbuch. Registra-se, aí, a preocupação dos professores e das diretorias de escola com a edição de manuais especialmente adaptados às escolas comunitárias. Havia consenso quanto à necessidade de provê-las com bom e adequado material didático. Os manuais escolares eram tratados, recomendados ou criticados nas assembléias de professores, em que se discutia a teoria vinculada à prática, sendo que o relatório dessas avaliações era publicado nos periódicos. Era costume convidar para as assembléias os autores ou os defensores dos manuais para fazerem aulas demonstrativas junto aos alunos da localidade a partir do respectivo manual ou da teoria em discussão. Depois iniciava o debate. As conclusões eram publicadas num ou nos dois periódicos de professores e, especialmente, no Das Schulbuch. A seqüência de críticas e sugestões facultava a reelaboração dos manuais, com as incorporações e modificações sugeridas. Os manuais didáticos não foram impostos. Em cada área de estudo havia os mais consagrados. Dizia-se que sempre seria útil ao professor, por mais experiente que fosse, ter um manual e um roteiro de aula, ainda que não o seguisse integralmente. As duas Associações de Professores afirmaram reiteradamente que uma de suas principais atribuições era o zelo pelo material didático para as escolas comunitárias. Estimularam sua elaboração e procuraram editá-lo e vendê-lo ao preço mais acessível. O periódico Das Schulbuch, embora com objetivos também comerciais, abordava igualmente e de modo enfático as questões teóricas e os diversos aspectos que envolvem o trabalho pedagógico, como estava anunciado no frontispício de cada número. Os autores de artigos eram professores com formação 203


pedagógica, muitas vezes de nível superior, atuando em escolas urbanas. Também eram publicados artigos de renomados educadores de outros países, principalmente da Alemanha. Mas o Das Schulbuch é um periódico praticamente desconhecido na historiografia da educação, excetuando-se algumas referências rápidas ao mesmo. O fato de haver sido impresso em língua alemã, letra gótica, de difícil acesso, certamente contribuiu para isto. No entanto, trata-se de uma fonte preciosa para entender o debate sobre os livros didáticos e as políticas educacionais no Brasil, no período histórico em questão.

O contexto da produção do periódico Das Schulbuch O Das Schulbuch foi produzido em momento histórico de intensa mobilização pelo direito para gerir o processo educacional, numa disputa entre Estado e Igreja, envolvendo também a autonomia comunitária e de instituições civis sobre o processo escolar. A imprensa pedagógica começou a ser considerada como instância privilegiada para a caracterização e para a definição de valores ético-morais e para a formação da cidadania, em momento histórico de crescente afirmação da nacionalidade. Por isso, importa examinar o contexto histórico no qual a literatura pedagógica começou a ser de interesse crescente entre as instituições que disputavam a influência na formação da opinião pública, com especial atenção para as organizações de acentuado caráter étnico-cultural dos imigrantes. O século XIX caracterizou-se pelo avanço na formação dos Estados/Nação que, para tentar consolidar-se, investiram fortemente no processo escolar. As igrejas cristãs entenderam-no como perda de seu direito para gerir a educação, reagindo no espírito da Restauração Religiosa. O processo escolar e a imprensa pedagógica tornaram-se, neste contexto, eixo de atenção e campo de disputa. Os livros escolares de fato já foram sendo bastante difundidos desde a Reforma Protestante e a Contra-Reforma, 204


especialmente em países de influência protestante. Seu uso na escola era entendido como um complemento do processo de ensino e não como seu centro. Bünger (1898) identifica a década de 1840 como o momento histórico em que se começou a tomar os manuais didáticos como base para o ensino escolar, especialmente em países europeus nos quais a maior parte da população já freqüentava a escola. É importante entender que a difusão dos impressos pedagógicos, entre os quais os livros escolares, sempre estiveram vinculados a processos político-sociais e culturais mais amplos de estruturação das sociedades. A partir do momento histórico da formação do Estado-Nação, a escola e, junto com a mesma, o livro didático, foram vistos como instância privilegiada para a formação e legitimação de novas estruturas político-sociais. Trata-se de um processo que não teve uma linearidade de tempo e de políticas públicas entre os diversos países. No Brasil, com a crise econômica e política de 1870, acentuou-se o debate em torno de novos horizontes. O projeto político republicano foi tomando corpo. Neste contexto, no debate das décadas subseqüentes, a escola e a imprensa pedagógica começaram a ser entendidos como um apoio promissor para as novas propostas. A igualdade, a fraternidade e a justiça, sob a perspectiva laica da Ilustração, eram enfatizadas como valores referenciais do ideal republicano, em frontal oposição aos da Restauração política e religiosa. Sem tradição escolar mais consistente no Brasil, a escola pública começou a ser defendida pelos ideais republicanos como a "instituição da Nação" por excelência. Em A Formação das Almas, Carvalho (1993) afirma que, tendo sido praticamente nula a participação popular na instituição da República no Brasil, começava-se a entender como fundamental uma ação incisiva sobre o imaginário social para a instituição simbólica da Nação. Também Nagle (1974) realça a importância que a liderança republicana atribuía à educação escolar e ao livro didático. Igualmente Lajolo (1998) salienta que a partir do período republicano houve maior produção de livros 205


didáticos, visando-se especialmente a educação moral e cívica. Olavo Bilac e Manoel Bonfim começaram a se distinguir como autores de livros didáticos procurando incutir valores cívicos e morais, o respeito à Pátria e suas instituições como língua, família e escola. De 1899 a 1911 Olavo Bilac publicou sete livros didáticos com acentuada motivação patriótica. Esses livros tiveram sucessivas reedições. A Editora Francisco Alves foi se firmando como uma referência na publicação de livros escolares. Mas se o período republicano iniciou uma política pública em relação ao processo escolar tratando a produção de impressos pedagógicos como elemento essencial na formação do Estado/Nação, é preciso reconhecer que esta ação teve maior reflexo sobre a elite do que na efetiva difusão de escolas para a camada popular. Em todo caso, para a elite certamente ajudou a fundamentar um discurso propositivo, inspirado nos ideais da Revolução Francesa (Kreutz, 2002, p. 102/3). Considero de suma importância a percepção de que o projeto republicano com ênfase na escolarização e nos impressos pedagógicos não se deu em espaço vazio de interesses conflitantes (Valle, 1997). Ao contrário, foi em momento histórico de agudas contradições e estranhamentos. Concomitante ao projeto republicano, e em parte contra este, ocorreu também uma rearticulação da Igreja Cristã. Acuada pelo avanço do ideário liberal e da proposta de um Estado laico, a Igreja Cristã, católica e luterana, reagiu em perspectiva de Restauração Religiosa, tomando os princípios religiosos como a referência maior para a organização político-social e cultural. Valores como solidariedade humana e comunitarismo deveriam ser prioritários na institucionalização político-social. Nos diversos países da Europa a Igreja cristã havia perdido muito espaço, pois o capitalismo crescente abalava estruturas. A hierarquia da igreja católica ensaiou sua oposição ao avanço do ideário liberal sob o Papa Pio IX. Com as encíclicas Quanta Cura (1864) e Sylabus (1864), condenava os rumos liberalizantes do mundo moderno, a autonomia do laico e os princípios democráticos, propondo um reordenamento espiritual, 206


centralista e hierárquico da sociedade. Sob esta perspectiva a igreja católica reagiu ao avanço do "liberalismo ateu", investindo fortemente no processo educacional. Como o liberalismo avançava mais no contexto urbano, a Igreja da Restauração buscava seu espaço mais no modelo agrário. Era das comunidades rurais que provinham os candidatos para a ampliação e renovação de seus quadros e era neste meio que ela investia fortemente no associativismo, com a abertura de escolas e com amplo leque de imprensa para apoiar o processo como um todo. A igreja luterana teve perspectivas próprias na reação ao liberalismo considerado ateu, mas para as ações junto aos imigrantes do Rio Grande do Sul havia bastante similaridade com as da igreja católica. No Rio Grande do Sul a Igreja Cristã, católica e luterana, seguia os princípios da Restauração religiosa e política, embora não de forma unívoca, encontrando junto aos imigrantes europeus, especialmente os de área rural, um terreno fecundo para sua ação pastoral. Neste sentido é possível caracterizá-la como Igreja de Imigração (Kreutz. 1991). Sua preocupação não era somente o avanço do Estado laico. Havia um "perigo" maior que se encontrava entre os próprios imigrantes alemães.Tratava-se de imigrantes de inspiração liberal, sediados especialmente em Porto Alegre. Eram denominados "Brummer", isto é questionadores da ordem. Parte deles era de formação acadêmica superior à maioria dos imigrantes. Os Brummer haviam participado dos protestos e do movimento revolucionário na Alemanha, em 1848 e haviam sido contratados pelo governo do Império para lutar na guerra contra Rosas. Distinguiram-se pela sua posição crítica aos princípios do conservadorismo político e religioso. Tendo vindo ao Rio Grande do Sul na década de 1850, começaram a exercer crescente influência entre os imigrantes por meio da imprensa e também do magistério.Um dos expoentes desse grupo, Koseritz, editor e articulista de jornal, criticava o conservadorismo religioso, despertando a reação da Igreja da Imigração. Rotermund, fundador do periódico Das Schulbuch e liderança no Sínodo Riograndense, afirmou que nesta situação específica a igreja 207


católica e a luterana deveriam esquecer suas divergências para combaterem conjuntamente a influência do ideário liberal desse grupo dos "Brummer" sobre os demais imigrantes (Kreutz, 1991). Em sua ação pastoral, a Igreja da Imigração também investiu profundamente no processo educacional/escolar, privilegiando os impressos pedagógicos e a organização de escolas comunitárias de caráter também confessional. Católicos e luteranos começaram a reconhecer que, frente ao avanço do ideário liberal, laico e freqüentemente anti-religioso, era fundamental amenizar suas diferenças confessionais. E começaram a investir na criação de estruturas sócio-culturais que lhes permitissem liderança na sociedade. É neste contexto que lideraram junto aos imigrantes a organização de um processo escolar étnico com a produção de impressos pedagógicos adequados a seus objetivos. O exame destes impressos leva-nos a perceber imediatamente que foram concebidos a partir desse contexto. São impressos pedagógicos que retratam determinada concepção de sociedade e de valores, pedagogicamente adequada aos objetivos e às peculiaridades das forças sociais em disputa de espaço. Em perspectiva de história cultural, podemos dizer que a imprensa pedagógica foi tomada como um poderoso instrumento para "ajudar a conformar determinado modo de sociabilidade, sendo posta em convergência com outras estratégias políticas e culturais" (Chartier, 1990; Benito, 2000). O periódico Das Schulbuch inseria-se nesse contexto de relações de poder.

Interlocução entre autores de livros didáticos e do Das Schulbuch No Brasil, os livros de leitura praticamente não existiam nas escolas até meados do século XIX. Estudos como os de Bittencourt (1993), Batista (1998), Munakata (1997), entre outros, realçam que a história inicial do livro didático tem a ver com a tardia implantação da Imprensa Régia, a partir de 1808. 208


Até então os materiais de leitura eram pouco disponíveis tanto nas raras escolas quanto na sociedade como um todo. O brasileiro era um povo predominantemente não-escolarizado. Batista (1998) e Soares (1996) explicitam que já a partir da primeira metade do século XIX foram se tornando mais freqüentes os discursos sobre a necessidade da escolarização do povo e que isto ocorria em várias esferas da sociedade. As Assembléias Provinciais mobilizavam-se em torno da elaboração de textos legais para ordenar a instrução formal, escolar. A legislação sobre o livro, sobre sua escolha e sua utilização, ficava a cargo das Províncias. Se houve avanço em termos de discurso e de legislação, a prática efetiva de difusão de escolas e de impressos educacionais ainda era muito lenta, marcada fortemente pela herança do Brasil Colônia. Os escravos continuavam proibidos de freqüentar a escola e para as meninas o mais importante era uma educação geral, dirigida para o bom desempenho das atividades domésticas. Batista (1998), também ressalta que até meados do século XIX, os livros didáticos usados nas escolas brasileiras haviam sido produzidos prevalentemente em contexto não brasileiro. Tratava-se de livros importados de Portugal. A gradativa institucionalização da escola e de produção de material didático fez-se mais perceptível a partir da segunda metade do século XIX. Abílio César Borges, com o seu Primeiro Livro, em 1868, destinado ao aprendizado da leitura e da escrita, iniciou uma das séries mais editadas no período. Também Felisberto de Carvalho lançou a publicação de uma série de livros de leitura, ainda no século XIX, obtendo grande aceitação até metade do século XX. No entanto o livro didático foi objeto da política governamental de forma mais sistemática apenas a partir da década de 1930. Para Guy de Holanda (apud Freitag, 1987) o livro didático nacional é uma conseqüência direta da Revolução de 30. Segundo este autor, a queda da nossa moeda, conjugada com o encarecimento do livro estrangeiro provocado pela crise mundial, permitiu que o livro didático brasileiro, que antes era mais caro 209


que o impresso no exterior, especialmente na França, competisse com o mesmo. A partir do estudo de Félix (2004), citado acima, sabemos que as principais lideranças na questão do livro escolar entre imigrantes acompanhavam de perto a discussão sobre o assunto no Brasil. De 1900 em diante eram usados com freqüência cada vez maior os livros didáticos em português, não elaborados para uso específico nas escolas da imigração. Em publicação anterior (l994) apresento uma relação bastante significativa desses manuais. Tratava-se especialmente de livros de leitura, de matemática, de história, geografia e ciências. Na medida em que as políticas governamentais exigiam maior adaptação das escolas da imigração com o contexto nacional, aumentava o uso desses livros em português. O periódico Das Schulbbuch e os periódicos das duas associações de professores da imigração apresentam freqüentes referências a este tema. Ainda não foi realizado estudo específico sobre o diálogo e a inter-relação entre autores de livros didáticos e de periódicos da imigração com os considerados como nacionais. Estudos como os de Bastos (1994; 1997); Peres (1999); Peres e Tambara (2003); Tambara (2003); Trindade (2001; 2002); Barreto (1986) e Félix (2004), tratando da imprensa pedagógica do Rio Grande do Sul, poderão ajudar neste sentido. Mas é importante lembrar que havia uma certa concorrência e em vários momentos tornaram-se perceptíveis fortes tensões entre as políticas públicas relacionadas com escola e imprensa e as iniciativas dos imigrantes. Sob alguns aspectos os objetivos eram bem diferentes e até contraditórios. Por isso, a inter-relação e o diálogo existiram em situações e momentos mais específicos, mas também não foram poucos os momentos de fortes tensões, culminando com a proibição da imprensa pedagógica em língua alemã no final da década de l930. No entanto, o resultado mais positivo foi a massiva escolarização dos imigrantes no estado. Mais de mil e duzentas comunidades rurais do Rio Grande do Sul, com população predominantemente de imigrantes alemães, 210


tiveram índice baixíssimo de analfabetismo nas décadas de 1920 e 1930. É admirável, também, como os imigrantes investiram na imprensa pedagógica, tanto em periódicos como em livros escolares. E o que chama mais atenção é o fato de haverem editado um periódico específico sobre o livro escolar, de 1917 a 1938, e pela pesquisa até o momento, foi o único periódico sobre este tema até o presente. Considero-o um caso singular, significativo para a história da educação brasileira. A disponibilidade de todas estas fontes (periódicos e livros escolares) em publicação digital realizada pelo nosso grupo de pesquisa, com cópias disponíveis no Acervo Documental e de Pesquisa (ADOPE) da UNISINOS, poderá incentivar variadas pesquisas a partir das mesmas.

Referências ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas. Reflexiones sobre el origen y la difusion del nacionalismo. México Fondo de Cultura Económica, 1997. BARRETO, Abeillard. Primórdios da Imprensa no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Comissão Executiva do Sesquicentenário da Revolução Farroupilha. Subcomissão de Publicações e concursos, 1986. BASTOS, Maria Helena C. O Novo e o Nacional em Revista: a Revista do Ensino do Rio Grande do Sul (1939-1942). São Paulo, FEUSP, (tese de doutoramento),1994. ________. As revistas pedagógicas e a atualização do professor: a Revista do Ensino do Rio Grande do Sul (1951-1992). In: CATANI, Denice Bárbara; BASTOS, Maria Helena Câmara. Educação em Revista. A Imprensa Periódica e a História da Educação. São Paulo: Escrituras, 1997 a, p. 47-76.

211


BATISTA, Antônio Augusto. Textos impressos e livros didáticos. In: CAMPELO, BS; CALDEIRA, P.T.; MACEDO, V.A.A. Formas e expressões do conhecimento: introdução às fontes de informação. Belo Horizonte: Faculdade de Biblioteconomia da UFMG, 1998, p. 217-247. BENITO, Augustín Escolano. Los Comienzos de la Edición escolar Moderna en España. El Libro y la educación: Anele Associación Nacional de Editores de Libros y Material de Enseñanza, España, 2000, p. 15-57. BITTENCOURT, Circe Maria F. Livro didático e conhecimento histórico: uma história do saber escolar. São Paulo, Departamento de História da Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da USP, 1993. (Tese de doutorado). BÜNGER, F. Entwicklungsgeschichte des Volksschullesebuches. Leipzig. CARVALHO, José Murilo A formação das almas. São Paulo, Companhia das Letras, 1993. CHARTIER, Roger. A História cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1990. DAS SCHULBUCH. Organ zum Ausbau der Schulbuchliteratur in Brasilien. São Leopoldo: Rotermund, 1917-1938. DEUSCHE POST. São Leopoldo: Rotemund, 1880-1928. FÉLIX, José Luís. As gramáticas dos imigrantes alemães para aprender português: índices de brasilidade lingüística. São Paulo: Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas? USP, 2004, (tese doutorado). FREITAG, Bárbara et alii.O estado da arte do livro didático no Brasil. Brasília: INEP/REDUC, 1987.

212


GELLNER, Ernest. Naciones y Nacionalismos. Madrid, Alianza Editorial, 1988. GUIBERNAU, Montserrat. Nacionalismos. O estado nacional e o nacionalismo no século XX. Rio de janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997. HOBSBAWM, E.J. A Invenção das Tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984. . Nações e nacionalismo desde 1780: programa, mito e realidade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990. HJ = HUNDERT JAHRE DEUTSCHTUM in Rio Grande do Sul, 1824-1924. Porto Alegre: Typographia do Centro, 1924 (provável autoria de Theodor Amstad). KREUTZ, Lúcio. O Professor paroquial. Magistério e imigração alemã. Porto Alegre: Ed.Da UFRGS; Caxias do Sul: Ed. Da UCS e Florianópolis: Ed da UFSC, 1991 _______. Material didático e currículo na escola teuto-brasileira. São Leopoldo: Ed. UNISINOS, 1994. _______. Literatura escolar dos imigrantes alemães no Rio Grande do Sul: fonte inexplorada na História da Educação. In: CATANI, Denice Bárbara; BASTOS, Maria Helena Câmara. Educação em Revista. A Imprensa Periódica e a História da Educação. São Paulo: Escrituras, 1997, p. 111-126. . A educação de imigrantes no Brasil. In: LOPES, E. M. T.; FARIA FILHO, L. M.; VEIGA, C. G. (orgs). 500 anos de educação no Brasil. Belo Horizonte: Autêntica, 2000, p. 347370. ________. KREUTZ, Sophia. Impressos pedagógicos, afirmação do Projeto Republicano e contraposição (1870-1920). História da Educação. Pelotas, ASPHE/UFPEL, v. 6 (11), abril 2002, p. 97-116. 213


LAJOLO, Marisa; ZILBERMANN, Regina. A formação do leitor no Brasil, 2 ed. São Paulo: Ática, (1998). LZ = LEHRERZEITUNG. Vereinsblatt des deutschbrasilianischen Lehrervereins in Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Typografia do Centro, 1900-1939. (Anteriormente, de 1900 a 1906, chamava-se Mitteilungen des katholischen Lehrerund Erziehungsvereins in Rio Grande do Sul). MUNAKATA, Kasumi. Produzindo livros didáticos e paradidáticos. São Paulo: Pontifica Universidade Católica de São Paulo, 1997. Tese (Doutorado em História e Filosofia da Educação). NAGLE, Jorge. Educação e Sociedade na Primeira República. São Paulo: EPU/MEC, 1974. PERES, Eliane Terezinha. A produção e o uso de livros de leitura no Rio Grande do Sul: Deves Ler? E Quero Ler. In: História da Educação, ASPHE/FAE/UFPel, Pelotas (6): 89-103, out. 1999. ______. TAMBARA, Elomar (org.), Livros escolares e ensino da leitura e da escrita no Brasil. (séc. XIX e XX). Pelotas: Seiva, 2003. SOARES, Magda Becker. Um olhar sobre o livro didático. Presença Pedagógica, Belo Horizonte, v. 2, n. 12, p. 52-63, nov./dez. 1996b. TAMBARA, Elomar. Trajetórias e natureza do livro didático nas escolas de ensino primário no século XIX no Brasil. Revista História da Educação. Pelotas: Editora da UFPel, 2002, p. 2551. TRINDADE, Iole Maria Faviero. A invenção de uma nova ordem para as cartilhas: ser maternal, nacional e mestra. Queres ler? Porto Alegre: Faculdade de Educação da UFRGS, 2001. Tese (Doutorado em Educação).

214


__________. A adoção da cartilha Maternal na Instituição Pública gaúcha. In: História da Educação. ASPHE/FAE/UFPel, Pelotas (12): 67-86, set. 2002, p. 67-86. VALLE, Lílian do. A escola e a nação. São Paulo: Editora Letras e Letras, 1997.

Lúcio Kreutz. Universidade de Caxias do Sul – UCS. lkreutz@terra.com.br

Recebido em: 10/07/2007 Aceito em: 15/11/2007

215


.


RESENHA


.


HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO Cláudia Regina Costa Pacheco Elomar Tambara

Resenha do livro: VEIGA, Cynthia Greive. História da Educação. 1. ed. São Paulo: Ática, 2007. 328 p.

A primeira edição do livro "História da Educação", de Cynthia Greive Veiga, publicada neste ano de 2007, vem contribuir para as reflexões sobre o campo da História da Educação. A obra se constitui numa importante fonte de formação e referência para os pesquisadores na área. Trazendo como foco principal a educação como projeto civilizador das sociedades ocidentais, desde o século XI até a atualidade, a professora Cynthia Veiga relaciona as alterações do âmbito escolar com as transformações políticas, sociais e econômicas. Desta forma, a autora apresenta a trajetória do ensino e do aprendizado, das primeiras universidades da Europa Medieval à realidade brasileira hodierna. A pesquisa da historiadora e professora doutora em História e mestre em Educação se propõe sintética, porém não reducionista. De modo bastante didático são traçados os caminhos diversos pelos quais passou a educação brasileira. Dividida em seis capítulos, que se alternam entre aqueles que tratam a educação de maneira mais geral do Ocidente e aqueles que abrangem a história da educação no Brasil de modo mais pormenorizado, a obra apresenta além da parte dos conteúdos históricos, sociais e políticos, algumas sugestões de atividades associadas a bibliografia geral e específica recomendadas. Iniciando sua análise pela criação das universidades na Europa, Veiga dá continuidade ao seu trabalho examinando o História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, n. 23, p. 219-223, Set/Dez 2007 Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


contexto do Brasil Colônia. Aliado a isso, discute a questão da educação estatal nos diferentes países do Ocidente, abrangendo a institucionalização da educação pública brasileira. Apresenta ainda uma reflexão sobre a sociedade do trabalho e os movimentos por uma nova escola. Para finalizar a autora traz o contexto republicano e suas influências no campo educacional até as reformas do regime militar. Partindo do pressuposto de que o ato de educar se dá de diferentes formas e que a escola, embora seja protagonista, não é o único espaço no qual a educação se processa, a autora concebe a história da educação como um "campo de pesquisa e de saber sistematizado de um conjunto de problemas proposto pelos historiadores relativos à educação no passado" (p.10). Para Veiga é fundamental conhecer os processos e as práticas históricas de educação para ampliar a compreensão das maneiras como, em tempos e espaços distintos, a humanidade organizou e organiza seus modos de aprender e transmitir seus fazeres e saberes. Nessa perspectiva, a autora instiga a reflexão sobre o acúmulo das experiências do passado no sentido de ponderar as experiências do presente de maneira a ter condições de apresentar soluções mais promissoras para a superação dos problemas da atualidade. A partir das memórias de Cora Coralina descritas no poema "Escola da mestra Silvina", Veiga introduz seu trabalho examinando as muitas formas de educação, derivadas, sobretudo, da diversidade cultural e histórica de cada um dos elementos essenciais da educação nas diversas sociedades, tais como: sujeitos, espaços, tempos, objetos, saberes e práticas. No primeiro capítulo, intitulado "Universidades, colégios e saberes (séculos XII a XXIII)", é abordada a organização dos colégios como instrumento de distinção social no curso do processo civilizatório. Destacam-se neste capítulo os movimentos comunais e a proliferação das corporações de ofício, as chamadas universitates. Na retrospectiva histórica de Veiga vão sendo apresentadas as reformas, principalmente as religiosas, que vão 220


alterando radicalmente o cenário educacional. Os colégios passam a se configurarem como locais essencialmente de aprendizagem por meio da definição de tempos e espaços escolares específicos, influenciando, sobretudo, o contexto das universidades. Enfatizase, nesta perspectiva, a crise do modelo escolar do Antigo Regime e a crítica de Rousseau. Já no segundo capítulo, denominado "Circulação de conhecimento e práticas de educação no Brasil colonial (séculos XVI a XVIII)", de forma mais pormenorizada, são apresentados elementos referentes à educação brasileira após a chegada do portugueses. Neste sentido, são examinadas a ação expedicionária e colonizadora dos portugueses e a ação civilizadora dos jesuítas. A intervenção da Companhia de Jesus se sobressai tanto nas missões de catequização dos indígenas quanto nas atividades praticadas nos colégios jesuítas. Além disso, são discutidas também outras práticas educativas existentes que não estavam relacionadas à forma escolar, estavam vinculadas ao aprendizado de ofícios, artes e educação doméstica. Em a "Educação estatal em diferentes países do Ocidente (meados do século XVIII e século XIX)", título do terceiro capítulo, o foco está no processo de estatização do ensino e na institucionalização da escola elementar extensiva a toda a população, apresentando caráter leigo, público e obrigatório. Neste capítulo são analisadas as associações entre as significativas mudanças sócio-político e econômicas, bem como as transformações culturais. A difusão do liberalismo e do Iluminismo se fazem presentes, além da (re)discussão do ensino secundário, a organização das escolas normais, a profissionalização e feminização do magistério. No quarto capítulo - "A institucionalização da educação pública no Brasil (meados do século XVIII e século XIX)" - as atenções estão voltadas para o Brasil Colônia e ao aparecimento da escola pública. Partindo das proposições do marquês de Pombal e da sua continuidade na organização do império e da monarquia constitucional do Brasil tem-se várias iniciativas para a difusão da 221


escola tanto elementar quanto secundária e, ainda a criação de cursos de nível superior Surge neste momento a perspectiva inclusiva da escola pública elementar orientada para a população pobre, negra e mestiça. São características deste contexto a proliferação das aulas e colégios particulares, bem como o ensino doméstico, além da ênfase na formação de uma sociedade brasileira civilizada. O penúltimo capítulo, denominado "A sociedade do trabalho e os movimentos por uma nova escola (final do século XIX e início do XX)" estabelece conexões com a história da educação geral, discutindo as relações entre as dinâmicas do trabalho na sociedade industrial, os elementos referentes à elaboração da intervenção científica na escola e a proposição de novos procedimentos pedagógicos no intuito de possibilitar uma maior eficácia em relação as práticas pedagógicas anteriores. A Escola Nova é abordada destacando-se as suas ações e ideários, bem como as repercussões que ela apresenta ainda para a atualidade. O último capítulo, intitulado "República e educação no Brasil (1889-1971)" vem debater a redefinição de métodos, tempos e espaços escolares. O contexto do Brasil República é marcado pelo crescente processo de profissionalização da educação, implantação do ensino leigo e redimensionamento político e cultural da escola. Em consonância com outros países ocidentais, o Brasil enfrentou, neste período, inúmeras transformações nos âmbitos político social e econômico. Tais mudanças tiveram repercussão no campo educacional, sobretudo nas discussões referentes à produção de um sistema nacional de ensino com centralização política no Ministério da Educação e à questão da democratização da escola. Nestes seis capítulos Veiga apresenta um amplo panorama da educação desde a Idade Média até o ano de 1971. Alternando entre contextos gerais e específicos, a historiadora possibilita um entendimento da trajetória que a educação brasileira 222


foi percorrendo, bem como as influências recebidas de outros países. É justamente essa alternância entre os contextos Ocidental e brasileiro que enriquece o trabalho de Veiga. Na obra, a autora vai traçando uma linha de raciocínio de fácil compreensão, sem perder o rigor e a cientificidade de sua pesquisa, muito bem fundamentada nos documentos e bibliografia por ela utilizados. O livro de Veiga nos desafia a (re)pensar a História da Educação como possibilidade de refletir sobre a humanidade e o projeto de civilização através de uma imaginação histórica. Enquanto pesquisadores da História da Educação precisamos conhecer nosso processo histórico, discutir nosso presente para constituirmos as bases de um futuro que nos torne cada vez mais "humanos". Aceitemos, então, o desafio.

Cláudia Regina Costa Pacheco é pedagoga, especialista em Metodologia da Práxis Pedagógica do Ensino Médio e Superior, Mestre em Educação (UFSM), Doutoranda em Educação, NA Linha de Pesquisa de História da Educação da FaE/PPGE/ UFPel e pesquisadora do CEIHE (Centro de Estudos e Investigações em História da Educação). Email:claudiareginapacheco@gmail.com Elomar Tambara é professor titular de História da Educação da Faculdade de Educação da UFPel. Pesquisador CEIHE. Publicou vários livros, dentre eles: "Positivismo e educação" e "Introdução à História da Educação do Rio Grande do Sul". E-mail: tambara@ufpel.tche.br

Recebido em: 30/10/2007 Aceito em: 15/11/2007 223


.


DOCUMENTO


.


APRESENTAÇÃO: O CENTRO REPUBLICANO CONSERVADOR E A REFORMA DE ENSINO PROPOSTA POR TAVARES DE LYRA - 1907 Elomar Tambara

As primeiras décadas da República são caracterizadas por muitas reformas em termos de educação. Dentre as quais se destacam a reforma Benjamin Constant, 1891, a Rivadavea Correia, 1911 e a Carlos Maximiliano, 1915 Em todas elas podese observar intensa luta entre diversos segmentos sociais com interesses divergentes em relação à Educação. De modo especial os positivistas sempre tiveram uma especial atenção em relação às reformas educacionais. A rigor, os maiores expoentes do positivismo no Congresso Nacional eram os parlamentares gaúchos devido, principalmente, à ascendência do ideário Castilhista sobre os mesmos. Entretanto, havia outros segmentos positivistas que também exerciam pressão sobre o congresso no sentido de impor suas concepções. Entre eles destaca-se o Centro Republicano Conservador de São Paulo cuja manifestação, por ocasião do trâmite da reforma "Tavares de Lyra" publicamos nesta seção "Documentos". Em 1907, o Ministro de Estado da Justiça e Negócios Interiores, Sr. Tavares de Lyra, apresentou ao Presidente Affonso Penna uma exposição sobre a reforma do ensino público. Em sua mensagem de 23 de junho de 1907, ao Congresso Nacional, o presidente submeteu à apreciação a referida reforma e, em sua exposição, o Ministro Tavares de Lyra iniciou apresentando a tese adversária, isto é, a posição positivista contrária à intervenção estatal, caracterizada pela posição do jurista João Barbalho, secretário de Benjamin Constant, que o substituiu no Ministério da Educação. História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, n. 23, p. 227-239, Set/Dez 2007 Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


Se o Estado não há de ser professor, também não é possível admitir-se a União-docente; si a funcção do Estado quanto ao ensino deve ser simplesmente cooperativa e supplementar da acção individual, não se poderia pretender mais para a União. Por mais preciosas que sejam as vantagens da instrucção pública, é certo que em absoluto não é ella interesse directo e immediato da nação; neste sentido, não é o assumpto nacional e escapa por isso ao Governo Federal. Toca-lhe, porém, incontestavelmente, a attribuição de crear e manter institutos technicos para o preparo do pessoal destinado ao serviço militar de terra e marinha, porque esse serviço é inteiramente nacional. (Documentos, V.2, p.4).

Entretanto, a posição do Ministro era diametralmente oposta. Entendia como atributo da União a ingerência no ensino público. A posição em si, na verdade, é bastante tímida e busca, de certa forma, criar mecanismos de intervenção indireta no sistema escolar brasileiro. Não sou dos que pensam que a União está impedida de manter escolas primárias. Seria absurdo que não pudesse fazer, quando à associações e a simples particulares se concede amplamente o exercício desse direito. O que se poderia, quando muito, era exigir que se subordinasse ao regimento que o Estado houvessem estabelecido para as escolas livres. Actualmente julgo bastante que os poderes federaes estimulem a iniciativa particular e robusteçam os esforços dos Estados entrando si assim entenderem em acordo com elles. Aliás, a doutrina de que a União deve procurar esse acordo já está consignada em nossa legislação como se evidencia do dispositivo constante no art. 7 da lei n 1.617 de 30 de dezembro ultimo. Augusto tavares de Lyra. (Documentos, V.2, p.6).

Na sessão de 11 de setembro de 1907, entrou em tramitação o projeto que autoriza o governo a reformar o ensino secundário e superior e a promover o desenvolvimento e a difusão do ensino primário. 228


Nesta mesma sessão, a Comissão de Instrução Pública da Câmara Federal apresentou seu parecer sobre o referido projeto, no qual criticou a forma pela qual se estabelecia a divisão de atribuições com relação ao ensino, e culpou a esta divisão pela situação caótica na qual se encontrava a instrução pública no Brasil. O que, então, nesses estados se passou todos sabem: a crise foi medonha. Municípios pobres sem recursos para fazer face às despezas que a constituição lhes commettera, crearam duas ou três cadeiras muito distantes umas das outras, quasi sempre entregues a incompetentes, desde que professores habilitados não se sujeitavam a perceber o mesquinho ordenado de 30$ e 40$ o mais que podiam pagar muitas municipalidades do interior! (Idem, p.31).

O importante a ressaltar em termos de política pública é a interpretação que a Comissão dava sobre as atribuições da União com relação à instrução pública. Segundo ela, continuava vedada ao Poder Federal a intervenção no ensino primário. Como agir de modo pratico e vantajoso se a Constituição federal cometeu ao Estado a direcção do ensino primário, reservando para a União o encargo do secundário e do superior, porém não privativamente, o que tem dado origem a creação de academias em vários Estados da Federação? (Idem, p.36).

As soluções propostas pela Comissão derivaram para a implantação efetiva da instrução obrigatória. A instrucção obrigatória é uma necessidade imperiosa e inadiável, é urgente arrancar dos braços da ignorância a mocidade que se vae formando, cega a luz da intrucção, carecedora de todos os recursos da intelligência, analphabeta, ignara vasta sementeira aos vicios abjectos, ao proletariado, à mendicidade, à vagabundagem e até o crime. (Idem, p.38).

229


A Comissão atacou um dos institutos mais questionados na organização escolar brasileira que é a questão dos equiparados, e que sempre constituiu motivo para polêmica. Neste sentido a Comissão questionou: Há reforma possível dentro do regimen actual, mantendo-se a perniciosa instituição dos equiparados, à conta da qual se vão catalogando todos os males e a decadência mesmo do ensino secudário? Não são elles a gafeira desse ramo de instrucção nacional? Ano falta quem pense assim, atribuindo todo o prejuízo e desorganização do nosso ensino de 2 grao a creação dos equiparados já tendo apparecido na câmara um projeto restringindo-lhes as prerogativas: mas justos não são em absoluto, esses conceitos nem verdadeira essa afirmação. (Documentos, v.2, p.72).

Em verdade, não foram poucos os projetos apresentados à câmara, no sentido não só de controlar o processo de equiparação dos estabelecimentos de ensino ao Colégio D. Pedro II, mas também da supressão pura e simples deste instituto. Desde 1899, quando da instituição do sistema de equiparação, nota-se que, paulatinamente, se vão afrouxando os mecanismos de controle desse processo o que, aos críticos do sistema consistia no grande problema de educação no Brasil. Mas, segundo a Comissão de Instrução Pública, de forma alguma se podia culpar esta instituição da situação de precariedade da instrução no Brasil. A creação dos equiparados se nos afigurou sempre uma necessidade. Em um paiz de tamanha extensão territorial, sempre fáceis e promptos meios de comunicação em todos os sentidos, carecendo de facilitar o mais possível a todo mundo os conhecimentos mais úteis e precisos que a instrucção do 2 grao ministra, quando o Governo não pode manter em cada cidade um instituto modelo dessa categoria, a fundação de gynasios dirigidos por particulares ou associações equiparados aos officiaes e sujeitos a directa fiscalização do poder público, nos

230


assumptos mais importantes do ensino é um dos mais poderosos instrumentos de civilização e de progresso. Nem descuidado andou o legislador, quando regulando as equiparações, precreveu que nenhuma seria concedida, sem que o instituto, que se propuzesse a gozar das regalias requeridas, provasse – a posse de um patrimônio nunca inferior a 50.000$ representado em prédios ou apolices da dívida federal; a freqüência média de 60 alumnos, durante dous annos antes da concessão; a instalação de gabinetes e laboratórios para o estudo prático das sciencias; a observancia dos programmas e regimen do Gymnasio Nacional; impondo-lhe ainda depois da equiparação, a fiscalização directa de um agente do poder público. (Documentos, v.2, p.73).

Quando do início da discussão, a posição da Comissão de Instrução Pública foi questionada. A corrente de pensamento que defendia a intervenção da União não aceitava as restrições colocadas pela Comissão que, de certa forma, endossou a visão tradicional sobre o tema. A questão instrução pública assume maior importância nesta época, em decorrência, sem dúvida, das transformações sócio-econômicas da República Velha, principalmente das mudanças no perfil do mercado do trabalho. Nós vemos agora pelo debate que encetamos, pela importância que elle assume na imprensa e na tribuna, que o ensino é questão capital actualmente, tão grave que chega a affectar a própria ordem na República. Nós não podemos ser uma Republica de analphabetos simplesmente porque a Commissão não autorize a União a fundar escolas. Porque vamos exigir a interpretação restricta deste ponto da constituição na esperança de que os Estados cumpram seu dever? Acho que a respeito, este rigor de constitucionalista é a corda de enforcar das próprias aspirações nacionaes. (Idem, p.84).

231


Apesar de defender a participação da União no ensino primário, o deputado Castro Pinto também entendia que não era possível pretender que a defesa do ensino oficial significasse, na verdade, a prevalência do ensino leigo sobre o religioso, pois esta não passaria de uma questão inexistente. O ensino oficial leigo é uma grande mentira e o professor não é uma machina de que se faça parar certa peça, que é a consciência do individuo para reproduzir mecanicamente o programma official. (Idem, p.88).

Em sua crítica ao projeto, o deputado pelo Rio Grande do Sul Pedro Moacyr, afirmou que ele "principia por violar flagrantemente a constituição, ingerindo a União na questão de ensino primário, que é privativo dos estados e municípios" (Idem, p.94). Na sessão seguinte (26 de setembro), o deputado Afonso Costa voltou a defender o projeto do Governo no qual foi prontamente refutado pelo deputado Pedro Moacyr, como demonstra este pequeno excerto desta sessão. O Sr. Afonso Costa: O primeiro ponto, pois, que devemos firmar, de modo inequívoco, é este: a União deve intervir, já e já, em matéria de instrucção primária nos diferentes Estados da República. A intervenção é pois necessária (apoiados) O Sr. Pedro Moacyr. Perfeitamente inconstitucional. (Idem, p.155).

Na continuação da sessão, Afonso Costa reiterou seu posicionamento, por entender que não era mais justo, nem conveniente, abandonar, à simples iniciativa dos Estados, a manutenção de escolas e difusão do ensino primário. Entretanto, o deputado Augusto de Freitas questionou a fala de Affonso Costa, mormente no que dizia respeito à

232


possibilidade, aventada por este último, estabelecimentos de ensino particulares:

de

fechar

os

O Sr Augusto de Freitas: Mas pergunto ao nobre Deputado, tanto confio na lealdade de sua consciência, na superioridade de suas convicções, si é efficaz esta fiscalização, si sob a superintendência do fiscal, a instrucção secundária ou superior, nos estabelecimentos equiparados, vae ser uma verdade, porque fechar as portas dos collegios particulares dos estabelecimentos de ensino superior, fundados por particulares ou associações? (apoiados). (Idem, p.215).

Na sessão de 3 de outubro de 1907, o deputado Carvalhal pediu que fosse publicada no Diário do Congresso a representação dirigida à Casa pelo Centro Republicano Conservador (São Paulo), acerca da reforma da instrução pública. Esta representação constitui, sem dúvida, uma das peças mais representativas do predomínio positivista nas organizações republicanas em geral. Os elementos caracterizadores da República eram identificados com as propostas defendidas pela ortodoxia positivista. A principal diretriz defendida pelo Centro era a da identificação da República "com a mais completa liberdade espiritual". Considerava que "os privilégios concedidos pelo poder civil aos adeptos de qualquer doutrina, além de iníquos, por um lado, e humilhantes por outro, sempre têm servido para retardar o natural advento das idéias e opiniões legítimas que precediam a regeneração dos costumes." A separação entre Igreja e Estado não se referia apenas às Igrejas teológicas como a Católica, mas também à separação do Estado com relação à "igreja metafisica e scientificas como os colegios, lyceus, gymnasios, academias e quaesquer outras instituições da mesma natureza" (Idem, p.278). O Centro Republicano Conservador apontava como modelo a ser seguido pela União, em termos de Instrução Pública, o Rio Grande do Sul, que interpretou de forma adequada a 233


Constituição Federal, transferindo sua Carta Magna a reafirmação da liberdade profissional1. É importante notar a assunção da abdicação provisória do positivismo, no sentido de admitir a intromissão estatal no ensino elementar: Como substituto temporário da mãe de família e mesmo como seu auxiliar o Estado deve manter o ensino primario, porém, mantel-o sempre leigo e nunca obrigatório que o contrário seria impor doutrinas, systemas de educação, tornar-se despótico, antirepublicano. (Idem, p.280).

As principais reivindicações do Centro Republicano Conservador eram: O Centro Republicano Conservador entende: • Que deve ser abolido todo ensino official, superior e secundário; • Que a Constituição não permittindo essa medida radical, se pode contudo preparal-a desde já, limitando a funcção do Estado nesta matéria, a de simples auxiliar da iniciativa privada; • Que os institutos officiaes sejam equiparados aos estabelecimentos particulares, concorrendo com estes, em completa igualdade de condições, para a distribuição do ensino; • Que deve ser permittido a qualquer cidadão no gozo de seus direitos civis e politicos, estudar, ensinar ou aprender, livremente nas escolas ou academias officiaes, mediante, apenas, o pagamento de uma taxa "Contudo, há um ensino que o Estado tem de manter provisoriamente até que a família se regenere e as mães possuam o preparo moral e intellectual para minstra-o aos filhos: é o ensino primário. Deixar á livre concurrencia dos particulares a instrução secundária e superior, e manter apenas o enisno primário, é conseqüência prática dessa liberdade espiritual que a Constituinte republicana proclamaou em 7 de janeiro de 1891" (Idem, p.280). 1

234


afixada e a responsabilidade pelos prejuizos materiaes causados; • Que os atestados, certificados, diplomas e outras provas de habilitação, fornecidas por professores ou corporações docentes officiaes ou particulares, não gozarão de privilégio algum perante o Estado; • Que os cargos públicos devem ser providos por concurso nos graos inferiores, antiguidade e excepcionalmente mérito, nos graos médios, e livre escolha nos graos superiores, sem que se exijam como prova de capacidade para exercel-os, diplomas ou titulos de qualquer especie; • Que, para auxiliar o ensino technico sejam creados sem privilégios estabelecimentos práticos de agricultura, manufactura, commercio e indústrias conexas; • Que o ensino primário deve continuar a ser mantido pelo Estado, mas auxiliado pela União e permanecer leigo, gratuito e não obrigatório. (Idem, p.287-8).

Nota-se claramente que as principais aspirações dos positivistas estão contempladas: a liberdade espiritual, a liberdade profissional, a abolição do ensino superior e secundário oficial e a equiparação entre institutos de ensino particulares e oficiais. Nas sessões onde houve a terceira e decisiva discussão do projeto número 242, que autoriza o Governo a reformar o ensino secundário e superior e promover o desenvolvimento e a difusão do ensino primário ocorreu um acirramento nos debates entre os "oficialistas" e os positivistas. Na sessão de 17 de outubro, o deputado José Bonifácio lembrou que, em relação ao ensino superior, já de uma feita, em 1898, surgira uma emenda ao orçamento do Interior que autorizava as faculdades a se emanciparem, convertendo-se em sociedades de ensino científico livre e leigo. Era a desoficialização do ensino superior que havia de trazer, no seu conceito, a ruína, o desaparecimento, a queda desse ramo do ensino. Este mesmo deputado criticou o posicionamento positivista sobre a questão, 235


argumentando com premissas oriundas da própria ideologia positivista, principalmente das posições "revisionistas" de Little, que entendia como conveniente a atividade estatal na área de instrução. Em verdade, o objetivo do deputado José Bonifácio (em oposição aos positivistas) era caracterizar a precária situação dos colégios particulares e, particularmente, do processo de mercantilização do ensino que, segundo ele, estaria ocorrendo a partir da facilitação dos processos de equiparações, os quais consistiam, junto com as idéias positivistas, em verdadeiros inimigos do ensino oficial. Outro inimigo perigoso, tenaz e ousado, que se ri dos governos e despreza soberanamente a eli, está nos collégios particulares e equiparados. Malsinada, desde a origem, fundando-se em uma disposição emxertada no regulamento, assim se exprimiu o Sr. Dunshee de Abranches, a equiparação de collegios particulares havia de desacreditar-se e deixar bem patente aos olhos de todos que o Estado não deve em um paiz, como o Brazil, despojar-se em favor de instituições particulares, de prerrogativas que só a elle devem competir, que as de conferição de diplomas, validade de exames etc. (Documentos, v.2, p.308). Sr. José Bonifácio (continuando) Aos abusos desses collegios, que substituiram o devotamento do ensino pela ganancia do lucro, devem se juntar como causas que concorreram para o mal, a desidia dos ficaes e a inércia dos governos. (Idem, p.310). Dirá talvez alguém que há completo cerceamento da liberdade de ensino. O orador contesta a procedência dessa affirmação e declara que ninguém mais que elle defende essa liberdade como deve ser entendida em uma sociedade bem organizada. (Idem, p.311).

Em sessão de 29 de outubro de 1907, o deputado Gracho Cardoso contestou a posição do positivismo gaúcho, e referiu-se explicitamente a Pedro Moacyr, entendendo que a 236


instrução primária "não estava nem podia estar fora da alçada do Governo da União"(Idem, p.430). Entretanto, diferenciando-se de certos posicionamentos que defendiam a participação da União na intrução, entendia que "a gratuidade com o caracter absoluto de que se reveste no projeto, não me parece proficuamente adoptável" (Idem, p.432). Compreendia o orador que da obrigatoriedade do ensino elementar decorreria, quase que naturalmente, a gratuidade, "com a latitude porém, que lhe empresta a honrada Commisão de Instrução Publica somente em raros paizes se encontra radicada". Note-se que, em termos ideológicos, os congressistas possuíam posições bastante ecléticas, pois o mesmo Gracho Cardoso aproximava-se da posição positivista em outras questões. Afirmava ele, utilizando João Barbalho. O fim da constituição foi, inilludivelmente, banir da escola a cathequese, a depndência, o privilégio confessional, a intolerância e o fanatismo. Instituição de caracter temporal, secular, diz o eminente Sr. Dr. João Barbosa, o Estado não tem na sua missão a catechese e a propaganda religiosa! (Idem, p.433).

O posicionamento favorável à intervenção da União na instrução pública foi emitido pelo deputado Virgílio de Lemos, que se posicionou contra a posição da Comissão de Instrução, defendendo a idéia de que o governo era competente para promover diretamente, não só nos territórios federais, como também nos Estados, o desenvolvimento e a difusão do ensino elementar, criando, fundando, organizando como bem lhe aprouvesse, os institutos escolares que reportasse necessários, à realização daquele nobre, generoso e patriotico desideratum (Idem, p.442). No prosseguimento da discussão (31 de outubro), o deputado Pedro Moacyr retomou a crítica ao projeto. Ressaltou primeiramente "que a câmara entende que o assunto continua a não merecer sua atenção" (Idem, p.474) e destacou um aspecto 237


caro a algumas correntes do positivismo, que é atribuição do desmantelo do ensino "a certos defeitos de nossa raça". A questão dos equiparados retornou à Câmara (6 de novembro), quando o deputado Passos de Miranda defendeu a permanência desta instituição. Segundo o autor, a crítica aos equiparados provinha de setores vinculados ao ensino oficial "que não olhavam para a própria cauda e não viam com bons olhos a clientela que lhes fugia da exploração pedagógica das aulas particulares, fora do Gymnasio" (Idem, p.478). A campanha contra a iniciativa particular no ensino fazia parte de um posicionamento corporativo dos lentes oficiais, preocupados em garantir privilégios. Segundo o deputado, os abusos que eventualmente alguns colégios apresentavam, decorriam "menos delles próprios que da nossa legislação pedagógica incongruente, da pilheira da fiscalização, da inércia dos governos" (Idem, p.484). Precizo se torna, portanto, que recorramos à iniciativa privada e que também a estimulemos com elementos de vida e expansão. Ora, isto só terá eficácia, dando-se-lhe proteção mais ou menos idêntica a que se concede ao collegios governativos, em face da extensão do território, das difficuldades de locomoção da deficiência de pessoal idoneo da insuficiência pecuniária das famílias brasileiras, da falta de estabelecimentos proporcionaes ao preparo da totalidade dos jovens aptos para o estudo e accommodados às necessidades evolutivas da cultura intellectual da nação. (Idem, p.485).

Quando, em novembro, a discussão chegou ao final, o deputado Pedro Moacyr denunciou, na Câmara, que a mobilização dos congressistas ao discutirem os problemas da instrução pública pouco resultou de positivo, pois a "Comissão de Instrução Pública" julgou-se no direito de rejeitar quase a totalidade das emendas e substitutivos. Segundo o deputado, isto ocorreu porque a instrução era colocada como uma questão menor, de tal forma que, frequentemente, a própria comissão não tinha todos os seus cargos ocupados (Idem, p.568). 238


No caso específico da tramitação deste projeto, as dificuldades na composição foram sempre muito sérias como denunciou o deputado pelo Rio Grande do Sul Pedro Moacyr: Pois bem; o projecto não teve primeiro e segundo relatores para defendel-o; não teve agora, por occasião da votação, um relator ad hoc pertencente à Commissão de Instrução Pública; não teve a seu favor o prestígio de uma questão governamental ou questão política, ou questão de pensamento da maioria da câmara. É, portanto, um projecto perfeitamente abandonado, engeitado à porta da Câmara. (Não apoiados. Trocam-se apartes) (Idem, p.547).

Evidencia-se, que neste período havia uma guerra de posições muito bem definida e que os contendores se utilizavam de todos os argumentos e artifícios possíveis para fazer prevalecer o seu entendimento sobre a matéria. De outra parte, é fundamental perceber a necessidade de resgatarmos os documentos que dão sustentabilidade material aos posicionamentos que cada doutrina propugnava e de que lócus o fazia. É neste sentido que a publicação deste documento do Centro Conservador Paulista é merecedor de todos os elogios.

Elomar Tambara é professor titular de História da Educação da Faculdade de Educação da UFPel. Pesquisador CEIHE. Publicou vários livros, dentre eles: "Positivismo e educação" e "Introdução à História da Educação do Rio Grande do Sul". E-mail: tambara@ufpel.tche.br

Recebido em: 30/10/2007 Aceito em: 15/11/2007

239


.


DOCUMENTO ENVIADO PELO CENTRO REPUBLICANO CONSERVADOR AO CONGRESSO NACIONAL - 1906

Srs. Membros do Congresso Nacional – O Centro Republicano Conservador, sociedade politica, installada nesta Capital em 21 de abril de 1906, no cumprimento do seu programa que ora vos envia, vem por seus directores provisorios,abaixo nomeados propôr-vos uma solução para o magno problema que ides discutir na actual sessão legislativa – a reforma do ensino publico. Não de hoje a necessidade palpitante de reorganizar a instrucção publica, quer no Brazil quer em França e em outros paizes occidentaes, proncipalmente latinos. Esta reorganização, porém, tão ardentemente desejada, debalde será proseguida emquanto novas opiniões, novos habitos, novos costumes, uniformes e geralmente espalhados, não fizeram surgir uma doutrina commum, acceita por todos, cuja influencia seja devida unicamente a seu proprio prestigio. Só assim se poderá realizar a verdadeira reforma do ensino publico. Comtudo, até que se attinja este futuro remoto, convém tratardo presente e estabelecer as condições que melhor se adaptam á realizaçãodo ideal vindouro e satisfazem as necessidades actuaes. Com este intuito e tendo em vista propriamente nossa Patria, tal como se acha organizada no seu codigo politico, o problema da reorganização do ensino deve ser estudado e resolvido. A questão comprehende duas partes: a reforma pedagógica em si mesma e o papel do Estado em semelhante forma. Destas só trataremos da ultima, cuja solução depende de vós e dos outros orgãos do poder civil. Para mostrar qual tem sido a peoccupação do governo nesta materia, citemos, sem querer remontar a outras épocas e a História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, n. 23, p. 241-260, Set/Dez 2007 Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


outros documentos, os tópicos da ultima falla do thorno e da recente Mensagem presidencial, em que, a seu modo, os Chefes do Executivo solicitam providencias ao Poder Legislativo: O Sr. D. pedro II, assim exprimia-se em 3 de maio de 1889: "Entre as exigencias da instrucção publica, sobresae a creação de escolas technicas adaptadas ás condições e conveniencias locaes; a de duas universidades, uma ao sul e outra ao norte do Imperio,para centros do organismo scientificos e proveitosa emulação, de onde partirá impulso vigoroso e harmonioso de que tanto carece o ensino, assim como a de faculdades de sciencias e lettras, que, apropriadas ás Provincias, se vincularizem ao systema universitário, assentando tudo livre e firmemente na instrucção primaria e secundaria." (Diario de Pernambuco, de 6 de maio de 1889, pág. 3.) O Sr. Affonso Penna, actual Presidente da Republica, escreve em sua Mensagem inaugural, de 13 de maio deste anno: "Reina a mais absoluta tranquilidade em toda a Republica, que, fôra de agitações que poderiam pertubar seu progressivo desenvolvimento, procura – dentro da ordem e á sombra das leis – encaminhar com segurança a solução dos problemas que entendam com o seu engrandecimento moral e material... Dentre esses problemas, um dos mais importantes é, sem duvida, o da instrucção publica, que nos últimos annos, forçoso é dizel-o, tem vivido em um regimen de vacillações e incertezas, cujas deploraveis consequencias avultam e se accentuam cada dia. Normalizar esse ramo do serviço publico é uma necessidade que se impõe; e eu espero e confio que para isto não poupareis esforços, discutindo e votando uma reforma séria e capaz de satisfazer as exigencias do ensino moderno. Devemos cuidar com attenção do ensino profissional e technico, tão necessario ao progresso da lavoura, do commercio, industria e artes." (Diario Official, de 4 de maio de 1907; pág. 3. 071.) 242


Comparando a falta do throno com a Mensagem presidencial, vê-se que na esphera governativa, já se progrediu, embora muito mais lentamente do que a situalção comporta. Ao passo que o ex-Monarcha aconselhava ao Pariamento a instituição retrograda de universidades, a creação de faculdades de sciencias e lettras, verdadeiras fabricas de bachareis e doutores, o actual Presidente pede ao Congresso particular attenção para o ensino industrial, base do desenvolvimento economico do paiz. Não obstante, tanto na falla como na Mensagem, persiste o erro fundamental – recurso a meios politicos para resolver problemas moraes. Em ambas, predomina a falsa noção de sanar males sociaes, aperfeiçoando a instrucção mantida pelo Estado. Esta doutrina, sociologicamente errônea, si era compativel, até certo ponto, com o governo monarchico, tornou-se inexplicável a contradictoria depois da fundação da Republica. Nas Monarchias, a separação dos poderes é apenas uma aspiração; o Estado não só mantém a ordem mas ainda pretende dirigir as consciências; as opiniões e os costumes são impostos pela força que é mais ou menos oppressoraconforme se affasta ou se approxima da franca liberdade. É assim que, entre nós, pelo Codigo Penal e pela Constituição do Imperio, o atheu devia ser punido e o catholicismo era imposto como religião do Estado. Nas Republicas, taes como resultam da philosophia da historia, a separação dos poderes é o seu caracter distinctivo; as autoridades que andam devem ser diversas das autoridades que aconselham; aquellas impedem ou consentem os actos materiaes contrários ou compativeis com a ordem; as outras dirigem as consciências que, sem constrangimento, se lhes subordinam. É por isso que a Republica Brazileira, pela Constituição de 24 de fevereiro, estabeleceu a liberade religiosa, separando a Igrja do Estado, e a liberdade Profissional, não exigindo diploma para se exercerem profissões de qualquer natureza moral, intellectual e industrial. Dada a nova situação politica, inaugurada revolucionariamente em 15 de novembro de 1889, os problemas 243


que a Monarchia aspirava resolver no seu regimen retrogrado, devem ser resolvidos de accôrdo com o regimen progressista da separação dos poderes. A Constituição Federal lançou, ainda que incompletamente, as bases fundamentaes da nova éra politica, já proclamadas de modo categórico, cerca de dous mezes antes da promulgação daquelle codigo, na seguinte notável Mensagem, que o principal director de nosso Centro, Demetrio Ribeiro, então Deputado no Congresso Constituinte, apresentou a esta assembléa, em 7 de janeiro de 1891: "Considerando que a política republicana se baseia na mais completa liberdade espiritual; <<Que os privilégios concedidos pelo Poder civil aos adeptos de qualquer doutrina, além de iníquos, por um lado, e humilhantes por outro, sempre teem servidopara retardar o natural advento das idéas e opiniões legitimas; que precedem a regeneração dos costumes; <<Que e, face da crise espiritual que caracteriza a phase actual da sociedade, é inútil e vexatoria a attitude tutelar do poder publico em relação ás concepções theoricas, theologicas, metaphysicas ou scientificas; <<Que nas reformas políticas devem ser ponderadas as condições materiaes em que se acham os serventuários das funcções que forem eliminadas; O Congresso nacional, reunido em sessão, no primeiro anniversario do decreto que instituiu a separação da Igreja do Estado, resolve louvar aquelle acto governa mental, affirmando desta arte sua effectiva solidariedade com o principio politico da completa separação entre o espiritual e o temporal e suas consequencias prayicas." (Diario do congresso, de 8 de janeiro de 1891, pág. 57.) Aprovada por grande maioria, pelos mesmos que, 47 dias depois, decretaram a Constituição da Republica, esta noção é o voto expresso, a interpretação fiel e insophismavel do texto constitucional, que já em 7 de janeiro, estava discutido e 244


approvado no que se refere justamente ás garantias de ordem e de progresso as quaes os legisladores constituintes chamaram – declaração de direitos – segundo a formula consagrada pela Revolução Franceza. Reconhecida constitucionalmente a separação dos poderes, a plena liberdade espiritual e suas conseqüências praticas, o Poder Imperial, sob sua tríplice fórma de Executivo, Legislativo e Judiciário póde intervir apenas em negocios relativos á manutenção da ordem material. Qualquer outra intervenção é abusiva e despotica, contraria aos principios republicanos, incorporados á Constituição de 24 de fevereiro. A moção de 7 de janeiro, que os vossos antecessores de 91 approvaram, depois que já tinham feito relativamente ao § 24, art.72, - que assegura a liberdade profissional – refere-se igualmente á separação da igreja e do Estado e á eliminação de toda tutela do poder publico ás concepções theoricas, metaphysicas, ou scientificas. É lógico, pois que a Constituição aboliu tanto os provilegios acclesiasticos como os escolásticos ou academicos;não separou o Estado das igrejas theologicas, como a Igreja Catholica, mas tambem das igrejas metaphysicas e scientificas, como os collegios, lyceus, gymnasios, academias e quaesquer outras instituições da mesma natureza. No Brazil, pela Constituição da Republica, o Estado não reconhece, ou não privilegia mais, nem padres, nem bacharéis, nem doutores, nem mestres theologicos, nem professores metaphysicos e scientificos. A formula celebre – A igreja livre no Estado livre – é applicavel a todas as igrejas, a todas as crenças, a todas as doutrinas; sejam pregadas por padres, ou diplomados de qualquer espécie; em nome de Deus, das entidades ou das leis naturaes. Eis o que verdadeiramente resulta da nossa Constituição politica, interpretada pelo espirito republicano. Eis o que os proprios constituintes explicaram votando a moção de 7 de janeiro de 1891. Além disso, vós o sabeis há um estado da Republica, o glorioso rio Grande do Sul, onde o grande lemma da política 245


moderna foi positivamente adoptado, em toda sua plenitude, de maneira clara e decisiva, a qual não permitte que uma hermenêutica sophistica venha apoiar interpretações retrogradas. Deixai que vos recorde o admiravel texto da Constituição do Rio Grande do Sul. Lê-se no seu art. 71 § 5º: "Não são admittidos no serviço do Estado os privilegios de diplomas escolasticos ou academicos, quaesquer que sejam, sendo livre no seu território o exercicio de todas as profissões de ordem moral, intellectual e industrial." O Estado de Minas acaba de reconhecer tambem praticamente os mesmos principios liberaes, pelo orgão do seu Presidente. A liberdade profissional e conseqüente abolição dos privilegios ecclesiasticos, escolasticos ou academicos, é portanto, um facto legal, uma conquista positiva da politica republicana no Brazil, apezar de opiniões adversas de ordinario só recommendaveis pelo numero e nunca pelo valor; filhas do interesse individual e jámais oriundas da dedicação ao bem publico; nascidas, quasi sempre, não da alma republicana, espontaneamente contraria a todos os privilegios, mas inspiradas em doutrinas pseudo-liberes de muitos, que julgam ser a nossa Republica uma monarchia sem a dynastia de Bragança. Si a plena liberdade espiritual é a base, o alicerce da Republica Brazileira, si sua consequencia praticaé a abolição dos primeiros envolve a extinção do ensino theologico, a abolição dos ultimos abrange a eliminação do ensino metaphysico e scientifico, ministrado pelas escolas e academias. Em todos os casos, o ensino é o fundamento dos deveres. O padre e o doutor, o mestre enfim, fornecem aos alumnos as theorias da ordem que constituem o guia da vida privada e publica. Ora, é claro que a vida privada e a vida publica modificam-se, tranformam-se atravez das épocas. A familia e a cidade antigas são as mesmas da idade média; a doutrina que imperava entre os greco-romanos differe muito da que é o credo 246


dos catholicos; os deveres de uns divergem dos deveres de outros. Nas épocas de fé mais ou menos unânime, os povos por ella congraçados podem receber de mestres mantidos pelos governos as noções da ordem universal, o ensino de doutrinas que são geralmente acceitas e constituem a razão dos actos privados e publicos. Mas nos periodos de revolução, nas éras, como a nossa, em que as opiniões se dividem, em que predominam as doutrinas mais controvertidas e contradictorias, até em principios fundamentaes do saber, como os conhecimentos mathematicos, nessas phases desordenadas da civilização, os Governos mantendo o ensino, privilegiam naturalmente a doutrina ou doutrine especiaes a que porventura adhiram. Si tal acontece, esses Governos se tornam mais ou menos despoticos, impondo ou protegendo a propaganda de similhante doutrina. O regimen de liberdade, inaugurado com a Republica e, melhor do que em nenhuma outra,com a Republica Brazileira, é o que deixa o ensino á livre iniciativa de individuos e associações independentes do Estado. Então os fieis das diversas igrejas, os adeptos das varias doutrinas, irão espontânea e livremente receber dos mestres de sua escolha, ou indicados por pessoas de sua confiança, as noções indispensaveis á vida, necessarias ao cumprimento dos deveres pessoaes, domesticos e cívicos. Comtudo, ha um ensino que o Estado tem de manter provisoriamente até que a família se regenere e as mães possuam preparo moral e intellectual para ministral-o aos filhos; é o ensino primário. Formando um dos elementos da educação domestica, a sabedoria universal assignalou a competencia das mães para realizal-o. Só ellas podem conhecer sufficientemente a natureza das crianças cuja vida lhes é comum durante o melindroso período da gestação e continúa inteiramente ligada a dellas nos primeiros annos da infancia e meninice. Só a ellas compete guiar a intelligencia infantil, pondo-a em serviço dos sentimentos generosos e dos actos dignos. 247


Como substituto temporário da mãe de família e mesmo como seu auxiliar, o Estado deve manter o ensino primario, porem, mantel-o sempre leigo e nunca obrigatório, que o contrario seria impôr doutrinas, systemas de educação, tornar-se despotico, anti-republicano. Deixar á livre concurrencia dos particulares a instrucção secundaria e superior, e manter apenas o ensino primario, é a consequencia pratica dessa liberdade espiritual que a Constituinte republicana proclamou em 7 de janeiro de 1891. Todos estes principios republicanos aprendidos incontestavelmente nas lições de Augusto Comte e nas dos seus discipulos em diversos gráos, não constituem, todavia, uma aspiração exclusiva do positivismo, para que entendam taxal-as de sectários, no sentido do termo. O Centro Republicano Conservador, que ora vos dirige esta representação, é um exemplo disso. Si conta entre seus membros correligionários sympathicos á causa positivista, possue tambem outros que não commungam as mesmas crenças. Convém lembrar, pois, que ha diversos autores de grande nomeada entre os intellectuaes do Occidente, defensores de idéas semelhantes por meios differentes. Sem citar muitos publicistas, indicamos o celebre autor da Reforma social, o illustre Frederico Le Play, cuja escola, sem romper com a espiritualidade antiga, manterão as tradições catholicas, invocando o Decálogo e o Evangelho e firmando-se ao mesmo tempo, na observação minuciosa dos diversos povos, defende victoriosamente os dogmas mais adiantados da politica scientifica, as applicações mais racionaes da politica republicana. Permiti, legisladores, que reproduzamos alguns topicos interessantes da obraadmirável de Le Play, a respeito do papel do ensino em si mesmo e particularmente ao ensino official, primário, secundário e superior. <<Ensino primário. – Os verdadeiros principios do ensino estão demonstrados desde muito tempo pela pratica universal dos povos prósperos. Entretanto são regados pelos 248


innovadores contemporaneos, que não apóiam em nenhuma competencia pessoal suas pueris e perigosas invenções. Conforme uma opinião espalhada, exixtiria um meio seguro de mudar o que é imperfeito ou vicioso na tendencia actual das sociedades: seria aperfeiçoar o estado intellectual da juventude. As pessoas collocadas neste ponto de vista querem formar opportunamentegerações que applicarão mais tarde idéias novas que a autoridade não póde inculcar aos homens feitos sem levantar resistencias insuperáveis. Pensam que o legislador deveria retomar certas tradições excepcionaes da antiguidade e crear com todos os elementos uma nova ordem social. Pretendem preparar educadores segundo "a doutrina do progresso" e substituil-os por via de constrangimento aos chefes de familia, para a direcção intellectual e moral das crianças. Esta maneira de ver repousa em uma confusão de idéias e leva até ao erro o exagero de uma verdade. Vou provar por motivos tirados da razão e da experiencia que jámais se fundará uma sociedade prospera sobre um systema de ensino, mesmo quendo este seja levado ao mais alto gráo de perfeição... <<A mais elevada expressão e a mais legitima representação de uma sociedade se acham sobretudo em duas classes de pessoas: nas que cultivam com superioridade as profissões liberaes; nas que, dirigindo com proveito as principaes operações das artes usuaes, têm sob suas ordens immediatas a massa da população. Ora, se se recorre ao auxilio desses homens de escol para procurar a origem das idéas justas e da sã pratica que fazem o exito delles, remonta-se sempre por esta investigação a duas causas primarias: as faculdades excepcionaes que esses homens devem á bondade divina; ao desenvolvimento que tomaram essas faculdades pelo governo da familia, o exercicio da profissão e a pratica dos deveres públicos. Os homens de sentimento esclarecido que tiveram a bondade de fazer diante de mim esta revista retrospectiva de sua vida raras vezes puderam atribuir ao ensino recebido nas escolas a acquisição de uma parte essencial de seu saber... 249


<<A inferioridade relativa do papel do ensino é mesmo sensível para a infancia e a juventude, e se se applicasse sómente á vida do escolar a analyse que acabo de assignalar para uma existencia inteira, chegar-se-hia á mesma conclusão. É preciso collocar no numero das acquisições mais úteis da primeira idade a iniciação nos afectos de familia, o amor do torrão natal e da patria, as crenças religiosas, o apêgo ás tradições nacionaes e ás relações sociaes da raça, enfim certa intelligencia do mundo physico. Nos povos modelos, esta aprendizagem constitue o grande ensino social. Dá suas principaes forças aos jovens, lettrados ou illettrados. Excede muito, por sua importância, ao ensino escolar propriamente dito... <<Em resumo a instrucção de cada em se compõe de duas partes distinctas: o ensino escolar, que sempre faltou a uma porção considerável da especie humana, e que jámais excedeu limites muito estreitos; a educação social, que é dada a todos os homens desde o berço até ao tumulo pela pratica da vida, e que em todos os tempos tornou famosos homens cujo ensino escolar fôra desprezado. Enganaram-se, pois, quando, confundido dous elementos tão distinctos,affirmamque um governo, apoderando-se da direcção das escolas, elevaria seguramente uma raça de homens acima de todas as outras. Em principio, para attingir este fim seria precizo que o governo se apoderasse além da vida dos cidadãos. De facto, esta dupla usurpação, commetida em um povo rico e poderoso, teria sempre como resultado definitivo uma abominável degradação... <<O dominio do ensino é determinação em todos os povos pelas mesmas condições. Comprehende os conhecimentos que podem ser inculcados pelas lições do mestre mais efficazmente que pela pratica da vida. Ainda é precizo notar que a educação intervem nesse dominio por uma grande parte, mesmo no que concerne aos conhecimentos mais elementares; e tal é o caso quanto á lingua materna. Seguramente as escolas têm grande aptidão para completar em um tempo bastante limitado a intelligencia da linguagem. auxiliam até muito o desenvolvimento 250


do espírito, sobretudo quando aos primeiros elementos o estudo de uma lingua extrangeira. Mas seriam inhabeis em dar á criança esta primeira iniciação que é o resultado de uma maravilhosa aptidão das mais. E, como a língua materna resume com uma força incomparável as idéas, os interesses e os sentimentos de uma nação percebe-se que estes são partilhados por todos os membros de uma raça, até pelos illustrados que não os completam por um ensino methodico... <<Os que esperam reformar nossa época pelo ensino escolar não percebem as difficuldades que oppõe a seu systema a própria natureza do escolar; ou antes gabam-se de obvial-as pelo ascendente do mestre. Conforme seu thema favorito, este ultimo é chamado a reagir sobre a intelligencia e os interesses civis nações modernas por um sacerdocio analogo ao que o padre exerce na ordem mo ral. Mas os factos não justificam de modo algum essa assimilação; e a opinião de todos os povos desmente as esperanças que com esforço recommendam. Resulta destas considerações que os governos tenteariam em vão imprimir um vivo impulso ás sociedades tomando por ponto de apoio o ensino da infancia. Sua impotencia a este respeito resulta ao mesmo tempo da propria natureza do serviço, da raridade dos educadores capazes de exercer a alta funcção que se pretende lhe confiar, e da resistencia passiva dos escolares. Mas se a observação desmente as esperanças exaggeradas que certas escolas políticas e sociaes propagam a respeito, põe em evidencia os bons resultados que uma judiciosa pratica pode dar. É digno de nota que as regiões onde o ensino primário se mostra mais fecundo são precisamente aquellas em que jamais se tentou eleval-o acima do papel modesto que lhe atribue a natureza das cousas... <<Ensino secundario – A suppressão de toda intervenção do Estado seria ainda aqui o ponto de partida da reforma. No que concerne ao preparo para as profissões usuaes, cessar-sehia de obstar a fundação dos estabelecimentos privados, que são os unicos a se adaptarem a uma multidão de necessidades especiaes. No que concerne á preparação do ensino superior os habeis 251


professores de nossos lyceos e de nossos collegios continuariam em melhores condições o serviço que lhes é confiado. Uns creariam a titulo privado pequenas emprezas urbanas ou ruraes. Outros reunir-se-hiam em corporações livres e dirigiriam grandes externatos... <<Ensino Superior – o vicio do regimen reside sobretudo na intervenção do Estado, que submete o ensino, como tantos outros ramos de actividade, a uma burocracia, isto é, a funccionarios que são os únicos a ter o privilegio de alliar a realidade do poder á ausência de responsabilidade. Não tendo contacto algum directo com os alumnos, esses funccionarios não podem detel-os no caminho da desordem, e, entretanto, attribuindo-se a autoridade, isentam nesta materia os professores de deveres de vigilância. Por uma ingerencia inopportuna, nossas burocracias universitarias destruíram as relações naturaes de respeito e de affeição que essa vigillancia faz nascer. Tem dado assim á nossa juventude lettrada um espírito de insubordinação, cujo vestigio não se encontra nas universidades livres das Ilhas Britannicas e da Scandinavia. Nossos governantes successivos não se inquietam com essa desordem, mas conservando a universidade organizada pelo Imperio fomentaram o espirito revolucionario que a todos destruio. <<A substituição do estado ás corporações livres não é menos funesta ás sciencias e ás lettras do que aos alumnos e aos mestres. É muito natural que o nível dos conhecimentos humanos se abaixe nas sociedades em que se pagam menos as altas notabilidades que as cultivam. As sciencias positivas, que fazem agora tão grandes progressos, tendem cada vez mais a se tornarem cosmopolitas. Concentrar-se-hão em grandes fócos de ensino nos povos que gozam melhor organização universitaria. Já o estado de equilibrio que reinava, há um seculo, manifestamente rompeu-se em detrimento de nosso paiz. não se vêem mais, como no tempo de Christina e Frederico II, nossos scientistas dirigindo academias nas capitaes extrangeiras. Os que adquirem fama por seus primeiros trabalhos são breves detidos em seu esforço por nosso 252


systema burocratico. Não podendo se elevarem ás grandes posições que a sciencia proporciona em outra parte, abandonam a carreira para procurarem a fortuna e a influencia nas altas funcções de administração e de política. Este genero de imigração, especial a nosso pais causa a sciencia incauculaveis damnos, sem levantar muito os serviços publicos, aos quaes affluem estes scientistas em busca de melhor situação. << A solidariedade estabelecida fóra de proposito entre o Estado e certas corporações é sobretudo compromettedora para as sciencias sociaes. O erro, que ahi se torna bem claro demasiadas vezes, não é para temer quando se produz sob os auspicios de uma corporação privada que as instituições rivaes podem livremente combater. Esta inspecção reciproca é particularmente efficaz nas corporações de ensino quando se realiza entre leigos e clerigos. Tal era o regimen de ensino sob o qual se formaram em França tantos homens illustres durante a primeira metade do seculo XVII. Ao contrario, o erro toma um caracter realmente perigoso quando é subvencionado pelo Thesouro Publico. Protegendo os conhecimentos que não repousam sobre axiomas indiscutiveis, o Estado se acha invencivelmente conduzido a fazer policia. Mas a opinião publica, neste ponto muito suspeitosa, ergue-se quasi sempre contra elle, ainda quando protege a verdade: e só este facto bastaria para condemnar o regimen actual. Dahi os inextrincaveis embaraços que se manifestam em nosso alto ensino; dahi as destituições que dão o prestigio da perseguição a más doutrinas; dahi enfim em tristes debates que muitas vezes têm aggravado o antagonismo social no seio dos nossos corpos politicos... << É mortificante pensar que as paixões políticas e os habitos de uma centralização exaggerada nos impeçam de perceber as verdades que tinham um caracter de evidencia para nossos grandes estadistas do seculo XVII. É assim que a opinião do Cardeal Richelieu se acha nitidamente expressa nos termos seguintes: "Já que a fraqueza de nossa condição humana requer um contrapeso em tudo, é mais razoavel que as universidades e os 253


Jesuitas ensinem á porfia, a fim de que a emulação lhes aguce a virtude". (Testement Politique, ire partie, ch. II section II.) << Aquelles que acreditam que o Estado póde reivindicar utilmente o patronato das sciencias, das lettras e das artes perceberão o perigo desse erro, quando se derem ao trabalho de observar a este respeito a situação relativa das diversas regiões. Constatarão em breve que nas sociedades enriquecidas pelo commercio e pela industria, as universidades livres creadas pelos dotes e legados dos particulares se mostram cada vez mais superiores ás universidades regidas pelo Governo e sustentadas pelo imposto... "Em resumo a unica situação digna para as sciencias e as lettras, para os corpos docentes e para os alumnos, é a que os colloca sob a autoridade das corporações livres, ciosas de conservar sua independencia estimuladas ao mesmo tempo pela concurrencia de suas rivaes em assegurar-se do erro ou do relaxamento que lhes faziam perder a confiança do publico..." (La Reforme sociale em France, I, chapitre V.) Herbert Spencer, o autor de Systema de Philosophia Synthetica, e chefe da chamada Escola Evolucionista, o escriptor cujo prestigio encheu o seculo XIX, é tambem um advogado famoso da eliminação do ensino official. Ainda uma permitti alguma citações. Na sua Extatistica Social, publicada em 1868, escreve Spencer, entre outros, o seguinte trecho sobre o assumpto em debate: "Assim no presente como em outros casos observamos a regra da lei abstracta, fortalecida por considerações secundarias. O allegado direito da educação pelo Estado torna-se insustentavel: primeiro como logicamente apoiando-se em outras pretenções demasiado absurdas e ainda como incapaz de definição. Todavia pudesse estabelecer-se a pretenção, isso implicaria o dever do Governo fortificar despoticamente seu Systema de disciplina e o dever do governado submeter-se. Essa educação não deve ser tratada do mesmo modo que outras cousas, porque, neste caso, o 254


'interesse e o juízo daquelle que aproveita não constituem sufficiente segurança para as vantagens do proveito'; é um meio com os mais suspeitosos antecedentes tendo sido muitas vezes empregado em outras circunstancias e muitas vezes reprovado. Nada é a presunpção implicita de que 'o interesse e o juizo' de um governo devem constituir uma sufficiente segurança admissivel. Ao contrario, a experiencia prova que os interesses de um governo e de todas as instituições que elle pode crear, são directamente oppostos á educação de espécie mais importante. Dizer ainda que o ensino official é necessario porque outro tem falhado, pressuppõe uma deploravel vista estreita sobre o progresso humano; e além disso, envolve o extranho sceptismo de que, embora as forças naturaes tenham elevado o cultivo do espirito humano até a sua presente altura e breve o vão augmentar de incomparavel valor, ellas não o servirão mais por muito tempo. "A crença de que a educação é um preventivo do crime, não tendo fundamento algum em theoria nem nos factos, não póde tambem ser invocada como pretexto parainterferencia..." (social Statistics), chapiter XXVI § 11). No seu ultimo livro, publicado 34 annos depois da Estatística Social, livro em que parece, aliás, arrependido da sua obra philosophica, Spencer mantém, tudo, as mesmas idéas sobre a educação ministrada pelos governos. "Muito cedo na vida, diz elle, succedeu achar-se em minoria, uma minoria quase sempre tão pequena que se reduzia ás vezes a uma minoria de um só. Numa época em que a educação pelo Estado era discutida mais como materia de interesse especulativodo que como materia de política chamada pratica, achei-me em opposição quase com todos, exprimindo uma desaprovação que dura até agora comquanto se tenha tornado um axioma político para o maior numero, que um governo é responsável pela cultura mental de seus cidadãos..." Faites et commentaires, trad. de Aug. Dietrich, 2éme ed. pag. 94). Como vêies, legisladores, além dos positivistas com Augusto Comte, ha os catholicos com Le Play e os livres 255


pensadores com Spencer, que, systematica ou empiricamente, de modo mais ou menos completo e decisivo defendem um dos grandes lemmas da verdadeira politica moderna: a abolição do ensino official. Este principio é hoje um artigo de fé republicana; um dogma das sociedades livres, que não foi inteiramente respeitado pela nossa Constituição, mas nella se acha contido de modo implícito, dado o espírito liberal que presidio a sua elaboração. No entanto, explicitamente o estatuto federal formulou as seguintes disposições. "Art. 34 Compete privativamente ao Congresso Nacional... n. 30 – Legislar sobre a organização municipal do Districto Federal, bem como sobre a policia, o ensino superior e os demais serviços que na Capital forem reservados para o Governo da União. Art. 35 Incumbe outrosim ao Congresso, mas não privativamente... 3º Crear instituições de ensino superior e secundário nos Estados; 4º prover a instrução secundaria no Districto Federal." Assim, enquanto pelo §24 do art. 72 ficam extinctos os privilegios escolásticos ou academicos, inherentes aos diplomas dados pelas escolas de ensino secundario e superior, pelo art. 34, n. 30 e art. 35, ns. 3 e 4, o estado deve prover taes ensinos. Ha uma antinomia nessas disposições. Mas póde ser attenuada se se meditar sobre os próprios termos do texto constitucional. A Constituição, incumbindo ao Congresso a função de legislar sobre o ensino secundario e superior provel-o e crear institutos correspondentes, não não o obrigoa, nem podia obrigalo, á vista do § 24 do art. 72 a manter os privilegios dos diplomas fornecidos por taes institutos. Sendo assim, o Estado póde ministrar o ensino como qualquer particular; as escolas ou academias officiaes se tornam apenas auxiliares das escolas ou academias particulares sem possuírem nenhuma prerogativa especial. 256


Portanto, congressistas, podeis legislar sobre o ensino secundário e superior, provel-o, crear estabelecimentos do gênero, limitando a intervenção do Governo ao simples auxilio da iniciativa privada cujo estado actual é insufficiente e precario. Deste modo, o Estado prepara gradativamente o regimen de completa abstinção official, permittindo que o esforço individual desenvolva espontaneamente a instrucção indispensavel a todos os cidadãos e a peculiar ás diversas profissões. Para facilitar e preparar o advento desse regimen, o Governo póde e deve admitir em seus institutos a docência livre. Assim, qualquer cidadão, em pleno gozo de seus direitos civis e políticos, poderá ministrar o ensino, dispondo do material das escolas ou academias officiaes, mediante apenas o pagamento de uma taxa previamente fixada e a responsabilidade pelos prejuízos materiaes causados. Então os privilégios dos diplomas despparecem totalmente. A' opinião publica compete reconhecer quaes os homens de verdadeiro valor mental, de valiosa cultura de espirito, os verdadeiros doutores, independentemente de qualquer titulo. Em taes condições, aos vários cargos do Estados podem concorrer quaesquer cidadãos, sem que mereçam mais vantagens na concurrencia os que apresentarem attestados, certificados, diplomas ou outros títulos, fornecidos por professores ou corporações docentes. Quanto ao chamado ensino technico ou profissional, ao ensino propriamente destinado a fazer agricultores, fabricantes, commerciantes, industriaes enfim, o Estado deve principalmente prover, auxiliando sempre a iniciativa privada, já pela concessão de subvenção, já por meio de premios aos diversos productos agricolas, ás manufacturas e industrias dignas de ser mantidas e aperfeiçoadas. Como os officios se aprendem não ouvindo discursos e lendo dissertações, mas executando o trabalho, o Estado poderá instituir não só escolas mas officinas, campos de criação, fazendas modelos, exposições permanentes, e outras instituições 257


congêneres, onde, sem privilegio algum, os que puderem e quizerem, possam achar estimulo para se consagrarem á aprendizagem dos trabalhos industriaes. Mantendo este apoio á industria, e abolindo os privilegios theoricos, as vocações praticas, que são as mais numerosas, não serão desviadas paras as carreiras lettradas em busca de um vão titulo. Só irão consagrar-se ao estudo das profissões mais elevadas as almas verdadeiramente capazes de seguil-as, aquellas que se dedicam ao seu árduo e nobre officio sem ambicionarem rendosas posições materiaes, e que se contentam apenas com a satisfação do dever cumprido, alliando uma vida sobria e modesta ao prestigio intelectual e moral. Além do clericalismo, legalmenteabolido pela Constituição da Republica, ficam por este modo também eliminados os dous vícios não menos funestos – o bacharelismo e o medicalismo – pragas que infestam a sociedade contemporânea, como o clero, a nobreza e a realeza decadentes infestavam a sociedade anterior á Grande Revolução. Inspirado em todas estas idéas, sem as quaes a Republica não passa de uma monarchia disfarçada, convencido e persuadido de todos esses princípios, que são axiomas de um verdadeiro regimen de liberdade e responsabilidade, o Centro Republicano Conservador vem offerecer ao vosso juízo considerandos e theses conseqüentes sobre a reforma da instrucção publica, esperando que vos mostreis dignos das funções de que fostes investidos, e que estaes animados do mesmo espírito de ordem e de progresso, que assignalou os primeiros legisladores da Republica, os constituintes de 91, aquelles mesmos que approvaram a celebre moção de 7 de Janeiro. Assim, Considerando que a plena liberdade espiritual, com suas consequencias praticas, é a base fundamental do regimen republicano; Considerando que a Constituição de 24 de Fevereiro, inspirada nesse grande principio da política moderna, estabeleceu a 258


liberdade religiosa pela separação da Igreja do Estado, e abolio os privilégios de diplomas escolásticos ou academicos, assegurando a liberadade profissional. Considerando que a plena liberdade espiritual não se coaduna com a manutenção do ensino official, que se tem de basear forçosamente em principios religiosos, quer theologicos como o ensino catholico, quer metaphysicos ou scientificos, como a instrucção acadêmica; Considerando, no entanto, que a Constituição deu ao Congresso Nacional a attribuição de legislar sobre o ensino superior no Districto Federal, crear instituições de ensino superior e secundario nos Estados e prover a instrucção secundaria no Districto Federal; Considerando ainda que a antinomia dos preceitos constitucionaes, mantendo o ensino de Estado e abolindo os privilégios dos diplomas escolasticos ou acadêmicos, não póde ser resolvida no sentido verdadeiramente republicano senão por um Congresso Constituinte; Considerando que é necessario conciliar quanto possivel as disposições constitucionaes com o principio da liberdade espiritual, reduzindo ao minimo a intervenção directa do Estadono ensino publico e facilitando a concurrencia das instituições particulares; Considerando que o ensino technico é, depois do primário, o que deve merecer maior solicitude, como destinado a preparar aptidões praticas, de que tanto carece o progresso econômico do paiz; Considerando, enfim, que, devendo competir ao Poder Publico, actualmente, ministrar o ensino primário, essa attribuição póde e deve, nas circunstancias actuaes, ser exercida pela União e pelos Estados concurrentemente, e sem embaraçar a iniciativa individual e das mãis de familia; O Centro Republicano Conservador entende: 1º Que deve ser abolido todo ensino official, superior e secundário. 259


2º Que, a Constituição não permittindo essa medida radical, se póde contudo preparal-a desde já, limitando a funcção do Estado, nesta materia, á de simples auxiliar da iniciativa privada. 3º Que os institutos officiaes sejam equiparados aos estabelecimentos particulares, concorrendo com estes, em completa igualdade de condições, para a distribuição do ensino. 4º Que deve ser permitido a qualquer cidadão no gozo de seus direitos civis e políticos, estudar, ensinar ou aprender, livremente nas escolas ou academias officiaes, mediante, apenas, o pagamento de uma taxa fixada e a responsabilidade pelos prejuizos materiaes causados. 5º Que os attestados, certificados, diplomas ou outras provas de habilitação, fornecidas por professores ou corporações docentes, officiaes ou particulares, não gozarão de privilegio algum perante o Estado. 6º Que os cargos publicos devem ser providos por concurso nos grãos inferiores, antiguidade e excepcionalmente mérito, nos graos médios, e livre escolha nos graos superiores, sem que se exijam com prova de capacidade para exercel-os, diplomas ou títulos de qualquer especie. 7º Que, para auxiliar o ensino technico, sejam creados sem privilegios estabelecimentos praticos de agricultura, manufactura, commercio e industrias connexas. 8º Que o ensino primário deve continuar a ser mantido pelo Estado, mas auxiliado pela União e permanecer leigo, gratuito e não obrigatório. Pelo Centro Republicano Conservador: Dr. José Eduardo Teixeira de Souza. – Herculano Inglez de Souza. – Dr. José Frederico de Almeida Fagundes. – A. Miranda Freitas. – Paulino van Erven. – Antonio dos Reis Carvalho. – Orlando Corrêa Lopes. (*)

260


ORIENTAÇÕES AOS COLABORADORES

A revista História da Educação aceita para publicação artigos relacionados à história e historiografia da educação, originados de estudos teóricos, pesquisas, reflexões metodológicas e discussões em geral, pertinentes ao campo historiográfico. Os textos devem ser inéditos, de autores brasileiros ou estrangeiros, em português ou espanhol. A revista publica, também, trabalhos encomendados e traduções de artigos que possam contribuir significativamente na área da História da Educação. Possui, ainda, duas outras sessões: resenhas e documentos. A primeira apresenta o conteúdo e comentários sobre publicações recentes ou reconhecidas academicamente. A sessão documentos publica material importante e de difícil acesso que possa servir de fonte para a pesquisa histórica. Os artigos e as resenhas são submetidos aos membros do Conselho Editorial e/ou a pareceristas ad hoc. A seleção dos artigos para publicação toma como referência sua contribuição à História da Educação e à linha editorial da revista, a originalidade da temática ou do tratamento dado ao tema, a consistência e o rigor da abordagem teórica e metodológica. Os originais devem ser encaminhados para publicação por e-mail ou em CD-ROM identificado, acompanhado de uma via impressa em papel A4, digitadas em editor de texto Word for Windows ou compatível, fonte Times New Roman, tamanho 12. A extensão máxima para artigos e ensaios (sem contar o resumo) é de 45.000 caracteres (contando espaços) e para a resenha é de 17.000 caracteres (contando espaços). Os resumos em português, inglês e espanhol devem ter no máximo, cada um deles, 790 caracteres (contando espaços).

História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, n. 23, p. 261-262, Set/Dez 2007 Disponível em: http//fae.ufpel.edu.br/asphe


O trabalho deverá conter: a) título do trabalho em português, inglês e espanhol; b) nome do(s) autor(es); c) resumo em português, inglês e espanhol, bem como palavras-chave nas três línguas; d) os artigos devem ser apresentados dentro das normas vigentes da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT). Quando for o caso, as ilustrações e tabelas devem ser apresentadas no interior do texto, na posição que o autor julgar mais conveniente. Devem ser numeradas, tituladas e apresentarem as fontes que lhes correspondem. As imagens devem ser enviadas em alta definição (300 dpi, formato TIF). Ao final do artigo o(s) autor(es) deve(m) fornecer, também, dados relativos à instituição e área em que atua(m), bem como indicar endereço(s) e e-mail(s) para correspondência com os leitores. Os artigos devem ser enviados para: REVISTA HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO Caixa Postal 628 CEP 96001-700 – Pelotas – RS. Fone/Fax: (53) 3278.6908 e (53) 3278.6653 Ou para os seguintes endereços eletrônicos: E-mail: tambara@ufpel.tche.br A correção gramatical dos artigos é de inteira responsabilidade de seus autores. Da mesma forma os artigos representam a expressão do ponto de vista de seus autores e não a posição oficial da revista História da Educação. A colaboração é inteiramente gratuita, não implicando retorno de espécie alguma por parte da revista.

262


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.