Valeu Junho 2015

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Postais Perdidos III João Albuquerque Carreiras Selçuk, Turquia 12-X-2010

Meu caro

Quando deambulamos sem programa e nos deixamos seguir ao ritmo da viagem, encontramos os mais surpreendentes recantos. A chegada nocturna a Selçuk revelou uma cidade tranquila, aparentemente sem grande beleza ou interesse, com as esplanadas cheias de homens conversando ou jogando cartas e gamão. Cheguei aqui em busca das grandiosas ruínas de Éfeso e dos restos (muito poucos) do Tempo de Artemisa, uma as sete maravilhas do mundo, mas foram outros os motivos que tornaram esta cidade inesquecível. A chegada ao monte onde estão os restos da Basílica de São João, construída sobre o seu túmulo, foi feita ao crepúsculo, quando aquela “magic hour” nos dá uma luz divina. Esperavam-me as ruínas do que terá sido uma majestosa igreja bizantina, envoltas em vegetação e num silêncio só quebrado pelo vento. Em poucos sítios me senti tão bem e tão próximo de qualquer coisa superior como nesse momento. Pode ter sido a proximidade com o meu santo, a beleza das ruínas e o imaginar daquela igreja completa, a localização com uma vista soberba a toda a volta, ou pode ter sido a luz. Não sei se me interessa saber o que foi, mas sei que foi um momento absolutamente inesquecível, em que dei por mim a vaguear por entre capitéis e colunas numa sensação de total bem estar, até que a noite se aproximou e o segurança me chamou para sair. Ainda inebriado, entrei numa loja de tapetes - porque resolvi que queria comprar uma almofada -, onde permaneci até ao fecho, perto das onze horas, com uma pequena pausa para jantar. O Marco teria trinta e tal anos e, como bom turco, começou por meter conversa que, por qualquer estranha empatia, foi continuando e a almofada esquecida. Falámos da vida e ele falou muito, com grande interesse meu, do seu povo curdo, vindo de vez em quando à porta fumar cigarros e conversar um pouco com o seu irmão que tinha a loja em frente e que a certa altura tentava, de gatas e com uma mímica espantosa, explicar a um grupo de jovens americanas que os tapetes eram de lã de ovelha. Após o jantar tentei puxar o assunto da almofada, da qual me havia relembrado, mas ele continuou a conversar sem ligar muita importância a este facto, enquanto ia atendendo, em tom bastante displicente, alguns clientes estrangeiros. Nestas horas de idas à porta ia passando gente que parava para conversar e fiquei com a sensação de que com mais uns dias ficaria a sentir-me um local nesta pequena terra estranha e que no início tão pouco me havia atraído. No dia seguinte parti, passando ainda para me despedir e tomar o pequeno almoço com o Marco, o irmão e uma das americanas que aparentemente se tomara de amores por ele. Parti, mas apenas porque não era possível adiar a partida, porque Selçuk, que nada me disse quando cheguei, se tornou num local mágico. Por isso gosto de viajar e por isso gosto de o fazer sem planos, para que momentos como este possam acontecer. Grande abraço, João P.S. A custo, acabei por comprar a almofada. 54

Este texto foi mantido no original, seguindo as regras da ortografia utilizada em Portugal antes da introdução do acordo ortográfico.


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