Revista do TRT 10 v. 24 n.2

Page 91

Nada mudou até o início da década seguinte. Em “SÃO BERNARDO”, romance publicado em 1934, GRACILIANO RAMOS retrata a desesperança de pessoas humildes que, mesmo tendo razão em suas queixas, deixavam de procurar a Justiça porque ela “era cara” - e pouco confiável. O protagonista, Paulo Honório, conta, com orgulho, que se apossou de terras alheias por contra própria e que ninguém poderia lhe oferecer resistência. Gabava-se de suas façanhas à margem da lei: Mas agora é isto. E quem não gostar, paciência, vá à justiça. Como a justiça era cara, não foram à justiça. E eu, o caminho aplainado, invadi a terra do Fidélis, paralítico de um braço, e a dos Gama, que pandegavam no Recife, estudando direito. Respeitei o engenho do dr. Magalhães, juiz. (g.n). (RAMOS, 2014).

O enredo conta a história de Paulo Honório, homem ambicioso que, agindo à semelhança de um grileiro, acaba por se transformar num grande fazendeiro do sertão de Alagoas. Casa-se com Madalena, professora primária e filha do Dr. Magalhães, o distinto juiz da comarca. Incapaz de entender o humanismo de sua mulher, Honório tenta silenciá-la, valendo-se da força autoritária que o poder marital lhe conferia. Relendo São Bernardo, muito se poderia dizer sobre a questão agrária, o machismo estrutural ou sobre a família patriarcal. Neste artigo, interessa-nos, porém, a figura do Juiz, o Dr. Magalhães, a síntese perfeita de um leguleio alienado da realidade social que o cerca. O magistrado era um homem soberbo e que fingia uma absoluta neutralidade para favorecer os poderosos. Orgulhoso da própria ignorância, ele dizia: “Eu não gosto de literatura... Folheei algumas obras antigamente. Hoje não. Desconheço tudo isso. Sou apenas juiz, pchiu! Juiz.”(RAMOS, 2014). E, quando indagado sobre a corrupção da elite governante, Dr. Magalhães saía pela tangente, orgulhando-se de sua pretensa imparcialidade: Nunca leio política. Sou apenas juiz. Estudo, compulso os meus livros, pchiu! Acordo cedo, tomo uma xícara de café, pequena, faço a

91

barba, vou ao banho. Depois passeio pelo quintal, volto, distraio-me com as revistas e almoço, pouco, por causa do estômago. Descanso uma hora, escrevo, consulto os mestres. Janto, dou um giro pela cidade, à noite recebo os amigos, quando aparecem, durmo. (…) sou apenas juiz (RAMOS, 2014).

Dr. Magalhães refletia o espelho do magistrado solipsista: aquele que, enclausurado em seu universo particular, dizendo-se absolutamente neutro e técnico, ignorava a realidade social e fechava os olhos para as consequências práticas das suas decisões. Afinal, “ele era apenas um juiz”. Nesse mesmo ano de 1934, após a Revolução Constitucionalista de 1932, foi dado um grande salto evolutivo na universalização do acesso à Justiça para todos os cidadãos. Dizia a Constituição de 1934, em seu Título III, Capítulo II, art. 113, nº 32, que “a União e os Estados concederão aos necessitados assistência judiciária, criando, para esse efeito, órgãos especiais e assegurando a isenção de emolumentos, custas, taxas e selos”. Entretanto, essa vitória da cidadania não durou muito. Em 1937, Getúlio Vargas instalou a ditadura do Estado Novo e, inspirado em regimes fascistas que se multiplicavam na Europa, outorgou a chamada “Constituição Polaca”, suprimindo, novamente, diversas garantias constitucionais e dificultando o acesso ao Judiciário. Foi nesse contexto que, em 1938, Graciliano Ramos publicou outro grande romance, “VIDAS SECAS”, que retrata as aflições do sertanejo Fabiano e de sua família na luta contra a fome e a injustiça que grassava no Sertão abandonado pelas autoridades constituídas. Fabiano, Sinhá Vitória, O Menino Mais Novo, O Menino Mais Velho, e por fim, a cachorra Baleia, eram vítimas não apenas da aridez do clima ou do solo infértil, mas, sobretudo, da secura que habita nas almas dos homens que só agem de acordo com seus próprios interesses. GRACILIANO RAMOS expõe, de forma visceral, como a Justiça era sonegada aos mais pobres em um sistema coronelista que usava a lei como instrumento de

Rev. do Trib. Reg. Trab. 10ª Região, Brasília, v. 24, n. 2, 2020


Articles inside

Acordãos

1hr
pages 235-283

Eu tenho nome sabia? Fernanda Teodora Sales Carvalho

6min
pages 231-234

A MEDIAÇÃO EM TEMPOS DE CRISE: BREVES REFLEXÕES SOBRE A IMPORTÂNCIA DOS MÉTODOS DE RESOLUÇÃO ADEQUADA DE DISPUTAS ATRAVÉS DE MEIOS TELEPRESENCIAIS Natália Luiza Alves Martin

17min
pages 224-230

A DISCRIMINAÇÃO RACIAL, O CASO “MAGALU” E O DEVER DAS EMPRESAS DE PROMOVER OS DIREITOS HUMANOS Débora Penido Resende Laura Ferreira Diamantino Tostes

28min
pages 213-223

A APLICAÇÃO DA LEI 14.020/20 AO REGIME DO TELETRABALHO: UMA ANÁLISE SOBRE A REDUÇÃO SALARIAL NO CONTRATO DE EMPREGO Maria Gabriela Lopes de Macedo

35min
pages 199-212

TRABALHADOR DE PLATAFORMAS DIGITAIS: EMPREGADO OU AUTÔNOMO? Xerxes Gusmão

22min
pages 189-198

O CHAMADO PRESENTEÍSMO: CONCEITO, EFEITOS E DESAFIOS NO AMBIENTE LABORAL Liliana R. Bastos de Alendar Araripe

21min
pages 179-188

OS MUNDOS DO TRABALHO E O FENÔMENO CONTEMPORÂNEO DA UBERIZAÇÃO Maria Rafaela de Castro

18min
pages 165-171

O TRABALHO NA ERA DA ECONOMIA SOB DEMANDA: UMA ABORDAGEM SOBRE O TRABALHO EM PLATAFORMA DE MICROTAREFAS Wanessa Mendes de Araújo

15min
pages 172-178

DIREITO À DESCONEXÃO E TELETRABALHO: CONTRIBUIÇÃO DO DIREITO DO TRABALHO FRANCÊS. ESTUDO COMPARADO FRANCO-BRASILEIRO Rosane Gauriau

37min
pages 152-164

COMO AS TUTELAS PROVISÓRIAS DE URGÊNCIA PREVISTA NO CPC PODEM SER APLICADAS NO PROCESSO DO TRABALHO? Gislaine Cordeiro da Silva

11min
pages 140-144

CRÍTICA DOS PRECEDENTES JUDICIAIS À LUZ DA CIVIL LAW Jeorge Lucas da Silva Castro Gil César Costa de Paula

32min
pages 128-139

A LEI GERAL DE PROTEÇÃO DE DADOS PESSOAIS(LGPD) E A EXPOSIÇÃO DE DADOS SENSÍVEIS NAS RELAÇÕES DE TRABALHO Flavia Alcassa dos Santos

16min
pages 145-151

TRABALHO INTERMITENTE: A EXPERIÊNCIA INTERNACIONAL E A RUPTURA DE PARADIGMAS DO DIREITO DO TRABALHO BRASILEIRO Pedro Guimarães Vieira

55min
pages 106-127

A TOGA DE MARFIM: A ELITIZAÇÃO DA JUSTIÇA NA LITERATURA BRASILEIRA Renato da Fonseca Janon

30min
pages 87-96

O ADVENTO DA REFORMA TRABALHISTA E A PROTEÇÃO LEGAL DO TRABALHADOR EM MINAS DE SUBSOLO: O QUE MUDOU QUANTO À VIGÊNCIA DO ART. 295 DA CLT? Carlos Eduardo Andrade Gratão

24min
pages 97-105

A INDICAÇÃO DO TRECHO DA DECISÃO RECORRIDA QUE CONSUBSTANCIA O QUESTIONAMENTO DA CONTROVÉRSIA: UMA ANÁLISE À LUZ DA NATUREZA EXTRAORDINÁRIA DO RECURSO DE REVISTA Alekson Teixeira Lima

24min
pages 78-86

A TITULARIDADE DOS HONORÁRIOS SUCUMBENCIAIS QUANDO HÁ SUCESSÃO CAUSÍDICA NO PROCESSO DO TRABALHO Adriano Marcos Soriano Lopes Solainy Beltrão dos Santos

43min
pages 37-52

A COVID-19 COMO DOENÇA OCUPACIONAL: NEXO CAUSAL E CONCAUSAL José Antônio Ribeiro de Oliveira Silva

39min
pages 23-36

APLICAÇÃO DOS LIMITES DE EXPOSIÇÃO OCUPACIONAL A AGENTES INSALUBRES DA ACGIH (AMERICAN CONFERENCE OF GOVERNMENTAL INDUSTRIAL HIGYENISTS) NO DIREITO BRASILEIRO Roberto Wakahara

37min
pages 53-67

O CONCEITO CONTEMPORÂNEO DE TRABALHO ANÁLOGO À ESCRAVIDÃO À LUZ DA JURISPRUDÊNCIA DA CORTE E COMISSÃO INTERAMERICANAS DE DIREITOS HUMANOS Igor Sousa Gonçalves

24min
pages 68-77

Sumário

25min
pages 13-22
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.