

´ Revista Tr emembe
REVISTA TREMEMBÉ
Publicação Trimestral
Volume 1 | No 1 | 2020
Os direitos sobre os trabalhos publicados nessa revista pertencem aos seus respectivos autores
Editor-chefe
Alexandre César Mendes Araújo
Editora-adjunta
Amanda Maria dos Santos Silva
Revisão e Capa
Lennon Marques dos Santos
Uma publicação

Editora Tremembé
Parnaíba, Piauí
SUMÁRIO
Nasce a primeira edição da Revista Tremembé!
Uma iniciativa independente que traz no nome a memória e o símbolo de resistência dos índios Tremembés que habitaram dentre outras regiões, o litoral do Piauí, lugar de onde surge essa iniciativa que pretende ser trimestralmente um espaço para escritoras e escritoras, publicando textos em português tendo acesso livre e circulação nacional. Assim, surge diante da necessidade de reafirmar a arte e toda a manifestação expressiva do ser humano como direito inalienável e ferramenta de caracterização identitária que dá validade aquilo que se constrói como cultura, em um momento que se percebe a tentativa de subjugar e censurar esse direito. Nessa edição, você acompanha uma entrevista com o escritor Salgado Maranhão falando sobre sua trajetória e vivência literária, além de conferir o trabalho do Coletivo Ágora Chaval que está revolucionando o modo de se fazer cultura no município cearense. Além é claro da nossa seção com os trinta poemas selecionados para compor a edição entre mais de setecentas submissões.
Desejamos aos leitores uma ótima experiência. Sejam bem vindos à Tremembé!
Entrevista

José Salgado Santos, ou simplesmente Salgado Maranhão, é um poeta e compositor brasileiro nascido no Maranhão, no povoado de Canabrava das Moças. Vencedor do Prêmio Jabuti de 1999, com a obra “Mural de Ventos” dentre outros prêmios. E é com muito prazer que a Tremembé recebe e agradece a colaboração do autor.
RT. Poesia e notoriedade. Você poderia destacar alguns dos momentos mais importantes na sua trajetória?
S.M São incontáveis os momentos de satisfação que a poesia tem me proporcionado, aqui no Brasil e no exterior. Mas, entre tantos, vou elencar duas situações que carrego na coração com muito carinho: a homenagem que recebi de uma universidade americana, do estado Pensilvânia, onde, durante uma semana meus poemas foram espalhados em vários lugares do Campus, dentro da programação de um famoso festival com representantes de vários países, entre os quais, a Alemanha, a Rússia, a Turquia e a Espalha. A outra, foi a inauguração de uma biblioteca com o meu nome, no povoado de Nazaré do Bruno, município de Caxias(MA), minha terra natal. Esse evento me comoveu, particularmente, porque, eu fui salvo para a
literatura por uma biblioteca pública.
RT. Com as novas tecnologias digitais surgem novas formas de divulgação e novos conteúdos no cenário cultural nacional, como você avalia o panorama cultural brasileiro em especial na poesia?
S.M Há meu ver, todas essas novas maneira de veicular a poesia e a literatura em geral são muito válidas para fazê -las chegar ao público leitor. No entanto, a construção de uma nova estética pouco tem a ver com os meios de difusão. O essencial da criação artística está no talento individual de cada artista, tenha ou não instrumentos adequado para expressá-lo. Para a maioria de nós, ter um violino stradivarius(o mais famoso do mundo) de nada adianta. Já o grande percussionista Naná Vasconcelos tornou-se um lendário instrumentista tocando berimbau, um instrumento de
RT. Existe vocação para a poesia? Onde fica o limiar entre inspiração e transpiração no ofício da palavra?
S.M Sim. Qualquer coisa que se queira fazer com excelência, precisa haver aptidão, quanto mais para um gênero literário como a poesia, que é necessário comover. Porém, apenas vocação não basta, é preciso muito estudo e dedicação apaixonada, sem paixão e entrega não se consegue realizar nada extraordinário.
RT. Poderia nos falar sobre sua visão acerca da representatividade da literatura negra produzida no país e no nordeste?
S.M Nenhum segmento da literatura brasileira evoluiu tanto quanto a literatura feita por negros, sobretudo a poesia. E por que? Porque, com todas as restrições sofrida por essa comunidade após a Lei Áurea, o acesso
Tremembé - v.1, n.1/Dezembro 2020 pouquíssimos recursos.
ao livro lhe trouxe oportunidade de resgatar sua voz por séculos silenciada, soterrada de conteúdos. O domínio da norma culta deu ao negro o instrumento que faltava para expressar com arte sua duríssima realidade. A poesia, em geral, beneficia-se das agruras da existência, dos confrontos reais.
RT. Qual a importância da influência da literatura negra e regional na sua formação?
S.M Quanto à minha influência no que toca à poesia negra, posso dizer que sou um dos próceres desse movimento dos da minha geração que trouxeram essas novas vozes que hoje se afirmam no debate. Em 1978, fui organizador do Ebulição da Escravatura, o primeiro livro a publicar 4 autores negros, numa antologia de 13 participantes.
RT. Existe apesar da visibilidade crescente de novos
artistas e nichos antes segregados, um público interessado e preparado para consumir essas produções?
Qual é a cara do leitor brasileiro da atualidade?
S.M Na verdade existe o que sempre houve em relação à poesia: um público pequeno porém altamente qualificado. Essa é a compensação. Ainda assim, creio que está aumentando, devido às várias formas de se alcançar o público, sobretudo, pelas novas plataformas digitais, que tudo mundo tem acesso hoje em dia.
RT. Em uma entrevista você destacou que um de seus objetivos com relação a linguagem é “resgatar palavras que perderam o brilho”. E que sua poética trabalha “no limítrofe do significante”, poderia comentar a respeito dessa exploração no tecido linguístico?
S.M Tenho quase uma obstinação em fugir do lugar
comum. Quero usar sempre as palavras para alargar a percepção do leitor que, acostumado à linguagem repetitiva do cotidiano é utilitária e sem brilho e tem dificuldade de compreender qualquer resquício da língua culta. Na condição de poeta, tenho o dever de trazer, não de maneira forçada, vocábulos que esse leitor desconhece, mas que dizem a mesma coisa que ele expressa corriqueiramente, porém com muito mais força do espírito. A poesia tem compromisso com a beleza até quando fala da dor.
RT. “A poesia precisa de confrontos reais”. Palavras de Salgado Maranhão, você poderia comentar sobre a intertextualidade do mundo presente na poesia e como essa acepção se desdobra no âmbito político, social e cultural da atualidade no Brasil?
S.M A poesia é um gênero literário que se compraz do
corpo a corpo com o real que se projeta na linguagem. Não o real ipsis literis, mas, malhado à moda do ferreiro na forja. Pode-se representar essa metáfora de outra forma: o catador de lixo(Baudelaire dizia que o poeta é como o gari que fuça o lixo da cidade para transformá -lo em ouro) que recolhe ferro velho, sobras de uso humano para construir sua escultura. Esta recolha é feita pelo seu olhar perscrutador, enxerido, que desconfia do óbvio. Uma vez o objeto alcançado, ele será transformado em linguagem simbólica para representar não apenas o que aconteceu, mas, o que poderia ter acontecido. Nosso existir no mundo não pode, de modo algum, ser dissociado da política. Porém, a poesia não deve ser instrumentalizada com esse fim. Ela deve abordar esse assunto de um modo humanístico e universalizante, não de maneira redutora, partidária. Todo poeta que se torna cambono da políti-
ca circunstancial, sua obra fica datada.
RT. Com relação aos projetos, existe algum trabalho na literatura ou na música em andamento?
S.M Estou sempre com muitos projetos em curso, tanto no âmbito do livro quanto das canções. No momento estão saindo livros meus na Espanha, em Portugal e nos Estados Unidos. E também canções minhas com alguns artistas, entre os quais Alcione e Zeca Baleiro.
Revista Tremembé - v.1, n.1/Dezembro 2020
No Terreiro apresenta iniciativas culturais autônomas coletivas desenvolvidas pelo Brasil. Convidamos a todos e a todas para conhecer o Coletivo Ágora Chaval.

Mais sobre o Ágora
Instagram: @coletivo_chaval
Facebook: Coletivo Ágora Chaval
Blog: https://coletivoagorachaval.blogspot.com/
ENTRE PEDRAS E MARÉS
SURGE UMA ESPERANÇA
Chaval, abraçada pelas águas do rio Timonha e Ubatuba e enfeitada pelos monólitos, é uma cidade interiorana cearense que faz divisa com o Estado do Piauí, possui aproximadamente 13 mil habitantes. (IBGE, 2020). O território Chavalense é conhecido como “Cidade das Pedras” por causa de seus gigantes monólitos, como reza seu hino: “Entre as rochas de grande beleza / Banhadas de sol e de sal / E com brisas que sopram constantes / Nasceu nossa querida Chaval”.
Nesse cenário, surge um grupo de jovens1 debatendo ideias debaixo de uma tamarineira2 centenária, plantada no centro da cidade ao lado da Igreja Matriz, núcleo habitacional mais antigo. Os jovens dialogam sobre a cidade e como ela os instiga a pensar sobre os diferentes aspectos que influenciam sua existência, tais como: política, cultura, educação e sustentabilidade. Dos contínuos encontros surge um coletivo: Ágora Chaval que, unidos ao pensamento de Gandhi, queria ser a mudança que desejavam ver no mundo.
“A partir de uma inquietação, nos reunimos para fundarmos algo que pudesse ser útil para a nossa cidade. Algo que pudesse fazer a diferença e dar espaço aos jovens artistas.” afirma o artista e universitário Antônio Neto.
1 Não se refere a idade, mas sim a espírito jovem. Alma jovem.
2 Árvore do Norte e Nordeste Brasileiro que pode chegar a 25 metros
◆ Revista Tremembé - v.1, n.1/Dezembro 2020
Ágora era o nome que se dava às praças públicas na Grécia Antiga. Nessas praças ocorriam reuniões onde os gregos, principalmente os atenienses, discutiam assuntos ligados à vida da cidade (polis). Partindo deste prisma, o Coletivo Ágora Chaval busca pensar e discutir Chaval em suas várias vertentes, promovendo o debate e o exercício da cidadania, da educação e da cultura, com foco na juventude, porém aberto também aos demais públicos.
As ações do Coletivo se baseiam em quatro pilares: Cidade Educadora (Leitura, livros e biblioteca); Cidade Criativa (Cultura, cidadania e juventude); Cidade dos Encontros (Turismo comunitário e empreendedorismo social) e Cidade Verde (Ecologia e sustentabilidade). Tais pilares foram pensados tendo como base a visão dos jovens sobre e para a cidade, buscando potencializar as riquezas existentes no território e de-
senvolver novas formas de se relacionar com a cidade. Colocando em prática esses pensamentos alicerçados nos sonhos e protagonismo jovem, o coletivo realizou seu primeiro encontro no dia 09 de setembro de 2018 com nome “Luau Inteligente”, unindo música com debates sobre política, democracia e representatividade social. Para a assistente social Vitória Veras “Nesse luau tinha vários jovens reunidos cheios de vontade. Houve falas sobre variados temas, inclusive com a participação do padre. Lembro das músicas cantadas pelo Neto de acordo com a temática”.
De lá até então foram inúmeros encontros realizados pelo coletivo na cidade de Chaval/CE. Todo sonho tem sua cor, e para representar esse sonho coletivo a cor escolhida foi laranja, uma cor vibrante e cheia de energia, o laranja retrata ânimo e isto é o espírito do coletivo Ágora Chaval que nasceu para sair do discur-
so e partir para ação. Para a historiadora e produtora cultural Neycikele Sotero, o coletivo é “Um lugar para, de forma conjunta, construir projetos que impactem de forma positiva a vida das pessoas, além de ser uma incubadora de sonhos.” Sentimento compartilhado por demais membros como a educadora Suzy Rocha que afirma que o Ágora a ajudou sair da inércia “e que com pequenas ações podemos fazer a diferença”, para o professora Ticiana Gomes o coletivo representa “a esperança no amanhã, é o respiro em meio ao caos da sociedade. É refúgio para a mente. É ação”.
Numa outrora inércia, o Ágora passou para ação.
Realizou a primeira “Caminhada fotográfica de Chaval”, onde jovens munidos de câmeras e celulares registraram o cotidiano da cidade e a partir disso, refletiram sobre as imagens captadas.
No “Percurso Ecológico 3Rs” (Reduzir, Reutilizar, Reciclar) o coletivo visitou os pontos turísticos de Chaval com o objetivo de conhecer e divulgar esses espaços turísticos; recolher resíduo sólido (lixo) existentes nos locais citados e revitalizar quando necessário e possível, e assim fez inúmeras vezes durante esses dois anos. Na ação “Árvore do Livro” os jovens se deslocavam aos bairros periféricos de Chaval e dialogavam com os moradores, encontravam uma árvore e montava ali um espaço de leitura, com livros suspensos em árvores, como frutos cheios de deliciosas histórias, a meninada logo chegava para ler, ouvir histórias e brincar. No CineÁgora era vez de cinema a céu aberto, normalmente numa praça pública onde se distribuía também lanche ao público, maioria crianças.
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PARCERIAS
Em diálogo com comerciantes, o coletivo conseguiu doações de tintas e garrafões vencidos de água que seriam descartados no lixo e os transformam em lixeiras ecológicas. Ao pé da centenária tamarineira, os jovens dialogam enquanto confeccionam as lixeiras e em seguida invadem a cidade instalando-as pelos logradouros públicos aos olhos curiosos dos que passavam.
A cidade passou a “ver” o coletivo, dar ouvidos e colaborar com as ações. Ágora teve apoio da Igreja Católica em algumas ações como na coleta de livros para uma futura biblioteca comunitária. Foi parceiro da Prefeitura de Chaval e Sebrae/CE na realização do Festival de Pesca Artesanal Rota das Emoções em 2019. Dialogou com os artesãos locais e realizou a I Feira Colaborativa Remar em 2019. Auxiliou a Secretaria de Educação e Cultura de Chaval na apli-
cação da Lei Aldir Blanc em Chaval em 2020, bem como realizou um mutirão chamado “Ocupa Biblioteca” com o objetivo de revitalização do espaço para realização de encontros, tendo como o primeiro encontro a Oficina de Bordado realizada em março de 2020. Buscou auxílio da Escola Estadual Monsenhor Carneiro e realizou o “Rolê Cultural” que consistia em oficinas de arte e cultura.
MEMÓRIAS E ACONCHEGO
No projeto “Memória Afetiva de Chaval” o coletivo busca ouvir e gravar as memórias dos anciãos da cidade para entender a construção social e cultural do local na versão deles, e a partir disso criar um documentário com previsão de lançamento para 2021.
Coletivo Ágora Chaval é um ambiente de diálogo e aconchego que acolhe pessoas e ideias. “Cheguei ao co-
letivo através da minha filha” diz a artesã Ana Lúcia e continua: “Ágora é um grupo de cidadãos que cumprem seu papel de buscar, fazer e pensar no que podem fazer para melhorar a cidade”. A escritora e artesã Rosinha Maciel chegou ao coletivo depois de uma oficina de cordel realizada pelo Ágora e ministrada pelo escritor Marcello Silva. Segundo Rosinha “Vi que é um grupo de pessoas em busca de melhoria para o meio em que vivemos”.

Para a artesã e educadora Iolanda Nogueira o que mais a atrai ao coletivo é “A importância que cada um dos participantes tem, dá às ideias e ouvir outro e, também, o empenho que o grupo tem quando bota uma ideia em prática”. A estudante e ativista cultural Maria de Lourdes disse que seu interesse em fundar o coletivo veio “por meio das inquietações que sempre tive com as desigualdades que nos cercam, encontrei em outros ecos e o coletivo nasceu. Estive desde o começo.”


Acervo Ágora Chaval
PANDEMIA
Nesse momento de isolamento social que o mundo passou ou está passando, o Coletivo Ágora Chaval se reinventa e passou a realizar o projeto “Rolê Cultural” em forma virtual através de lives nas suas redes sociais. “Trouxe temas muitos ricos para serem dialogados nas redes virtuais, além de aumentar sua rede de relações com outras pessoas que ajudam a fortalecer os ideais de luta.” afirmou
Neycikele Sotero. Para Antônio Neto “O Coletivo está se ressignificando através das mídias sociais e, modéstia parte, está se saindo muito bem. Existem alguns infortúnios nesse caminho dependente da Internet, mas o Coletivo está conseguindo, a sua maneira, se adaptar.”
AO INFINITO E ALÉM
Assim, segue o Coletivo Ágora Chaval com seus objetivos de auxiliar a juventude chavalense na sua conscientização socioambiental, cultural e no seu exercício de cidadania, através de discussões, debates e ações. A caminhada convida a pensar Chaval sobre todos os aspectos e a partir desta análise, identificar formas de atuação que auxilie no desenvolvimento do processo de cidadão de cada um, bem como no desenvolvimento da cidade como um todo. Ágora é uma esperança que surge entre pedras e marés com o sonho de escrever com as próprias mãos a sua história e ser a mudança que deseja ver.
Marcello Silva Escritor
Membro do Coletivo Ágora Chaval
Poemas Nossos autores e autoras
Ailana Monteiro Mogi-Guaçu/SP
Atlas Hutton Itabaiana/SE
Bruno de Sousa Viseu/Portugal
Cesar Casella Inhumas/GO
Claucio Ciarlini Parnaíba/PI
Gabriela Fujimori Paranavaí/PR
Israel Almeida Niteroi/RJ
Joana Ferrarini Salvador/BA
Aírton Porto Parnaíba/PI
Bárbara W. Curitiba/PR
Caio Balaio Fortaleza/CE
Cínthia Fragoso Guanambi/BA
Elis Ferreira São João del Rei/MG
Guilherme Brasil São Paulo/SP
J.P Schwenck Rio de Janeiro/RJ
José Luis Rocha Rio de Janeiro/RJ
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Poemas Nossos autores e autoras
Júlia Azzi Porto Alegre/RS
Juliana Ponciri Brasília/DF
Lucas Grosso São Paulo/SP
Maria Clara Martins Pindamonhangaba/SP
Rafael Silva Fortaleza/CE
Rita Lavoyer Araçatuba/SP
Rosangela Mariano São Leopoldo/RS
Simião Mendes Goiânia/GO
Luciene Farias Limeira/SP
Osvaldo Duarte Vilhena/RO
Rafaela Hipólito Calaça Icó/CE
Roberto Vinicio Parnaíba/PI
Samara Belchior São Paulo/SP
Thamires Andrade São Paulo/SP
Ter você numa noite fria
Ailana Monteiro/SP
As baixas temperaturas são um convidativo
Para que embaixo das cobertas nos entoquemos
Os carinhos e beijos são lenitivos
Para que no decorrer deles nos entreguemos
Ao que de melhor o amor tem a proporcionar...
Tremulando devido à friagem, você percebe meu inquietar
E me abraça de lado, o colo oferecendo
Escuto seu coração a palpitar
Relaxo e o desejo vai se perfazendo
Mais uma vez estaremos completamente a sós...
Talvez você seja para sempre o cobertor
Aquele que fica comigo nas tempestades
Para essa dedicação eu dou valor
Quero retribuir na mesma quantidade
Pois relação só se mantém com equilíbrio...
Torço até para fazer mais frio
Pois assim a tendência é a aproximação
Andar de braços dados no meio fio
Encapotados, a troca de calor será em profusão
Corpo a corpo num combinar de duas almas...
A noite gélida chega mais uma vez
As portas e janelas permanecerão fechadas
Repetindo o que dantes a gente já fez
As juras foram reiteradas
Não sabemos mais quem é quem
Numa noite fria, sem nenhum talvez.
Peidos de deus
Aírton Porto/PI
Você vê pela janela do teu carro crianças adultos e velhos maltrapilhos e abandonados negros pobres e desdentados te pedindo uma migalha.
Você fica louco que o sinal abra quer pisar no acelerador fechar os vidros de fumê seu filho criança diz pai olha um pobre você responde fazer o quê.
Você senta na lanchonete para deliciar um hambúrguer vem uma pedinte desejando a tua comida você tem enjoo o sangue sobe a tua cabeça você não ver gente não ver barriga.
Nas portas de farmácias nos semáforos e praças sob viadutos e alambrados habita uma população fora do mercado.
São os desgarrados excluídos favelados inviáveis indesejáveis legiões de esfomeados que crescem como ratos são os peidos de deus.
Transas Linguísticas
Atlas Hutton/SE
conversas sinestésicas à beira das extinções das vírgulas, dos pontos, comendo toda a pontuação lentamente, escorrendo entre os tópicos, e teu olhar de exclamação me faz morder os acentos
percorro tuas linhas para namorar teus verbos lamber teus sinais circunflexos dedilhamos a tudo em tom de metáfora
por isso, acabamos à mesa chupando figuras de linguagem; nós dois tirando fonemas, rimas e passando da poesia à prosa
como se nada coubesse numa frase. o ar denso engole o hífen, e agora me faltaespaçoparapontuar te busco cheio de cólera, me deixa ser teu advérbio de intensidade que confesso que as paixões são o everest de deus;
quero uma vida de primeiras vezes, quero tuas palavras nuas
que se encaixam tão bem em mim, quero teus nudes intelectuais
você ofega adjetivos, te enforco as conjunções e só sobra, gemido eco e hiato agora tato, olfato e paladar falam
você pode me ter como um animal como a última xícara de café do mundo vamos saqueando e brincando de recursos poéticos.
enfim, te digo que essa paixão por tu, é colossal, preciso ser dois para te ter, e ainda assim bebo teu mel, tuas conjunções e todas tuas filosofias... mas, sempre peço bis.
Geladeira
Bárbara
W./PR
A caixa de e-mail
É minha geladeira
Abro sem pensar
Naquele segundo de bobeira
Em que se busca um refúgio
Para sacodir a pasmaceira
Um alimento inédito
Um alento pro tédio
Uma guloseima
Uma mensagem esperada
Uma ideia aprovada
Um convite,
Uma proposta
Qualquer novidade
Que sacuda a tarde parada
Fecho a porta
Fecho a janela
Estômago vazio
Nada em negrito
Nem Negresco, nem Nabisco
Volto à tela
Nenhuma caloria em minha tigela
Nenhum projeto, nenhum rabisco
Daqui a pouco a fome
Atiça e ataca
Vontade que só petisco
De palavra mata.
O regresso nem sempre é uma vinda
Bruno de Sousa/PT
O regresso nem sempre é uma vinda
Que torna ao lar que o abraça.
Há saudades de amor que o tempo lassa
E que permanecem ainda e ainda.
A ida para uma fuga que nos prende
Faz-nos ficar tristes e sorumbáticos,
Como se o vento, nos seus coices acrobáticos,
Nos ciciasse que a compra também se vende.
E a solidão alastra e aborrece,
Porque sabe que não é voluntária.
Mas, o coração é teimoso e pária
E nas recordações lembra o que viesse.
O regresso nem sempre é uma vinda
E um escape não soluciona a solução
Que está nas mãos de uma só mão
Que é tão simples como uma chuva linda.
Pichação
Caio Balaio/CE
quando me colocaram contra a parede me revistaram, me apontaram, como você gostaria de escrever? eu gostaria de rascunhar no presente em todos os tempos verbais eu gostaria de resenhar em minúsculas todas as palavras iguais eu gostaria de vasculhar no meu corpo, no seu corpo, fluir nosso sangue, nosso suor, nossa lágrima eu gostaria de rasgar em coro no palco, no topo de um salto, descalço, em pé, um coletivo dois coletivos, três coletivos eu gostaria de regravar o barulho, a zuada, o estrondo, o papoco, o estalo eu gostaria de espanar o mofo, o velho, escancarar janelas, arrombar armários, desarmar portas eu gostaria de adiar voos, eleições, calar presidentes, eleger nossas vozes, corpear continentes, segurar nossas mãos eu gostaria de falar fino, palavra gestual, frases afetadas, desejo movimentado eu gostaria de levantar, atirando a primeira pedra, ateando fogo, ocupando ruas, misturando línguas, matando o silêncio de fome é assim que eu gostaria de escrever, tô liberado?
Uma Parada Militar
Cesar Casella/GO
[Ao som da Marcha Fúnebre]
E vem lá o desfile!
Zeroum vem primeiro, opríncipe herdeiro, e é pura bile. Depois vem o Zerodois, omesmo feijão com arroz. Fechando o abre alas vem o Zerotrês, com perfil de burguês.
Na ala das baianas, vem a primeira dama, a mãe e a avó, desfilam com gana girando, girando, com ginga de dar dó.
Na bateria vem o baixo clero, sem lero-lero, sempre do ritmo do quero-quero.
Pensando que é o bamba, oQueiroz atravessa o samba...
E enfim vem o rei. Quem vai dizer? –nem sei –Mas é preciso fazer: O rei está nu!
Poesia Templo
Cínthia
Fragoso/BA
Você é sagrada demais para espalhar os seus retalhos No vendaval mulher osol nasceu e sim, mostrou tuas cicatrizes e suas curvas hieráticas
acostumou-se a juntar suas cinzas, desnudou-se sozinha recompôs-se e fez canção de fênix. acalma, é preciso ser forte, nessa alma feroz e viajante. se queres espalhar-se: recobra teu perfume, gira, girassol perfumado. és tua: inteira. cicatrizada das dores daqueles dias tempestivos. agora dança, queima, e ama.
28 ◆ Revista Tremembé - v.1, n.1/Dezembro 2020
Desumanos
Tempos
Claucio Ciarlini/PI
Quando não mais restar amor nenhum
E o mundo de ódio for estabelecido,
Os anos de escuridão nos fará relembrar
Do tempo em que os valores humanos
Ainda possuíam certa relevância.
Quando não mais restar amor nenhum
E o cristianismo radical for a lei,
Os castigos aos diferentes farão lamentar
Toda uma massa que hoje jaz moribunda
Por promessas nascidas da ignorância.
Quando não mais restar amor nenhum
E o vil metal for definitivamente adorado
O brilho intenso e cruel nos fará enxergar
Os milhares de escravos acorrentados
Presos pelo vício, destinados à subserviência.
Quando não mais restar amor nenhum
E a escolha das formas de se apaixonar for restrita
As perseguições aos hereges farão sangrar
Até mesmo aquele que hoje com os olhos condena
Pois também verá dos seus, a queimar por desobediência.
Quando não mais restar amor nenhum
E o ensino novamente nos tornar zumbis,
O angustiante som da palmatória fará clamar
Por dias em que o diálogo seja de novo uma opção
Prevalecendo o lúdico e o afeto, ao invés da violência.
Quando não mais restar amor nenhum
Que Deus então nos perdoe,
Pelo esquecimento de tudo que um dia ele pregou.
O Tombo
Elis Ferreira/MG
Pura, crua, nua
A poesia safada na calada da noite
Bêbada, caída, esgotada.
O olho roxo de um soco do próprio punho
A porta de prata, a mata, a gata
A hora do sol me come
A noite verto neblina brilhante ao céu
Arranho as paredes com as unhas cortadas rente e isso
me sangra os dedos.
Um feixe de luz verde
Um ramalhete de arbustos grossos difíceis de carregar
Raramente me contento
Me empenho em achar razões
Mesmo sabendo do miolo podre da fruta
Me disponho ao dedo na ferida
E choro com o cabelo entrando na boca
A dor que mela o rosto
O gosto do vômito
O incômodo
Nas pernas o roxo das pancadas
Sigo tropeçando a quebrar dentes nas calçadas
Cortes nos braços me rabiscam de dor
Eu estou a andar e andar e andar
A correr e correr e correr
De repente, uma pancada na cabeça
O impacto, o chão, a queda
Embaça-me a visão
Tombada
Na turva imagem ainda posso ver minhas pernas correndo sozinhas.
Seu João e os meninos
Gabriela Fujimori/PR
Madrugada e seu João já partia.
A garrafa d’água na garupa,
As mãos grossas segurando firme o guidão.
Os olhos miravam o céu em súplica:
“Nossa Senhora estou indo,
Me ajuda na labuta, que é pra móde eu trazer o pão”.
Os meninos, ainda tão pequenos, ficaram em casa.
Tinha só um bocado de comida na panela
Mas tanta alegria inocente, que no pai chega era doída:
“A bença, pai. Corre pra chuva não te moiá todinho”.
Nem sabiam que já chovia muito dentro de seu João
Que ía levando um bocado de lágrimas engolidas.
Rumo
Guilherme Brasil/SP
Quando não há mais o que chorar
Quando não há mais o que dizer
Resta a poesia
Quando o suspiro vira um trovão
Ecoando pela noite
E a tempestade está a ponto de estourar
A fina janela que temos no peito
(torvelando nossos estilhaços inconsequentes)
Resta a poesia
Quando o amor é tanto
Que as palavras se tornam inconvenientes grãos de areia
grudados nas pernas
Lavadas num mar sem fim
Resta a poesia
E o que é o poeta, se não um desesperançado?
Se lhe falha o mundo
Lhe falham os planos
As ideias
Explicações
A própria razão?
Resta a poesia
Como a luz por baixo da porta
Como como se dar conta de que o sol está nascendo
Como a luz amarelada que vem depois da chuva da tarde
Ou como a própria chuva, depois de uma longa estiagem
Resta a poesia, meu amigo,
Resta a poesia.
O pássaro em cima da grama
Israel Almeida/RJ
O pássaro em cima da grama.
Debaixo do sol, em cima da grama.
“-Avoa, passarinho!”
Ele não avoa.
Se queda parado, paradinho como estátua, em cima da grama, debaixo do sol.
Deixa que dou um jeito!
Pego ele na imaginação, com todo cuidado nas conchas das mãosque parece, foram feitas pra isso –e o levo para o meu quarto.
O pássaro agora em cima da cama.
Debaixo do teto, em cima da cama...
Eita, que ele está mais paradinho que antes...
Triste ficou minha imaginação...
Ara, sossegue, desassossego! ...
Pronto, me veio a idéia!
Abro a janela.
Abro mais.
Mais ainda!
E fica assim, um janelão!
“- Avoa, passarinho!”
Ele não avoa...
Minha imaginação vem de novo, com docilidade dobrada,
mãos em concha rodeando o passarinho, colocando-o de mansinho no beiral do janelão.
O pássaro no beiral, olhando para fora...
E percebo que ele tá olhando mesmo! Ufa, tá vivinho!
Ele está levando seus olhos do beiral para fora, espiando um pássaro em cima da grama, debaixo do sol.
Abre as asas e canta e o canto alegra minha imaginação.
“-Avoa, passarinho!”
E ele agora avoa, pra sua companhia.
Então, sacodem as asas e voam juntinhos debaixo do sol!
(Um poema-homenagem ao mestre Manoel de Barros)
Geometria da Vida Ferida
Joana Ferrarini/BA
Vida
Segue ferida
Na dor compartida
Em cada foto e curtida
Quando a felicidade real é esquecida
E por uma grande falsidade é substituída!
Mas quando a mentira é enaltecida
E a tristeza é escondida
Por gente crescida!
Segue ferida
Vida
O altivo Ivo
E a enfraquecida
Cida
Jose Luis Rocha /RJ
O cara domina a mina
Porque ela em seu drama, ama
Ele na primeira demanda, manda
Ela pacata, acata
E um tanto fogosa, goza
Ele a deixa confusa, usa
Depois se distrai, trai
Sem compromisso, omisso
O inclemente, mente
E não debate, bate
Também não socorre, corre
Que na masmorra, morra
Cida com a surra, urra
Ainda alquebrada, brada
No chão continua, nua
E como se encontrava, trava
Sua alma suspira, pira
Sofrendo ela chora, ora
Cida impoluta, luta
Resignada, nada
O mal que a consome, some
Ela se revolta, volta
Sai da redoma, doma
Sobe no pódio, ódio
Já fortalecida, Cida
O golpe que desfere, fere
Então o passivo, Ivo
Não convencido, vencido
Como um covarde, arde
Ela vence a disputa, é forte
Feira de Bebês Gigantes
J.P Schwenck/RJ
E morre a cidade
Nos cantos da noite um choro em ai
Um choro em ui
Uma clave de dó, um fá, um só no sol no céu, uma soli-
dão
Um gemido no pórtico
Algo fora do mapa
E talvez de ordem
Algo em parte, desordem.
Há um gosto de noite que não cai bem ao estômago
E no céu, estrelas
Que jazem ao dia, um cenário espesso e escasso
Há uma lua, e uma bandeira no espaço.
O mundo inteiro cheirando a talco
Um planeta com medo do navio pirata
Sou homem morcego, vadio fantasma
Sou homem aranha, sou homem do mundo.
Navegando em águas misteriosas
No fundo do oceano, procurando as respostas.
Febre tifóide deu no jornal de domingo
Andaimes e becos escuros, o que há por trás deles?
E em contaste um tom florescente
Que há de ser bendito
Que há de ter clorofila ou corante feito a base de gente, na sala de estar os tapetes nus de pele humana ou será só mais um dia, um passeio tranquilo pelo Centro?
E há quem diga que não há amor em SP.
Quando você levar uma lampadada na cara e for sair
cambaleando, enquanto vai tirando os pedacinhos de cacos de vidro que se misturam com o melado do sangue que escorre pelo rosto e cai, manchando sua roupa
O mesmo sangue que chora e que borbulha e que desmancha
E se renova - não como água
A sua dor vai lhe mostrar que não, não é engano.
Nunca é engano.
E enquanto você compra mais um celular da moda contribuindo com a obsolescência programada vigente, mais um menino agoniza nos braços da fome
Escondido aonde sua cobertura não alcança.
E morre a cidade
No parapeito do pleito eleitoral
Se jogando pra sair da vida
Pra entrar pra história
Pra envelhecer nos livros
E pra guardar memória.
Já foi-se pó
E desse sonho eu faço o cais e o nó
Eu rondo o porto e peço socorro.
E nasce um dia
E um embate, um punhal no umbigo de um fascista.
Um sorriso de bom dia cresce
Girassois de Van Gogh iluminam a poesia
Enquanto chocolate escorre no asfalto de todo o dia.
É um banho de lama que vamos ver
É mais uma selva humana que vamos ver
De encarte jaz o antes
Sempre sejamos mutantes
Já está montada a feira de bebês gigantes
É o sol, o cio da cidade
O nosso bem viver.
38 ◆ Revista Tremembé - v.1, n.1/Dezembro 2020
Cavalo
Júlia Azzi/RS
o cavalo de Alexandre dará nome a uma cidade o cavalo de Alexandre terá honras marciais em um grande funeral por ora ainda é o meio da batalha ele não sabe disso, sabe pouco: recuar e avançar na hora exata e, corpo mítico aguentando dores (mais duas feridas no flanco esquerdo outra no pescoço), continuar – teimosia e garra, diriam todos
o cavalo de Alexandre persiste (não sabe o que é não persistir) o que sabe, em algum lugar do lombo é que vive, e que em volta como sempre cavalos guincham, dobram, tombam, morrem e ele, olhos abertos no cavalo em frente, avança o enorme corpo como pode
o cavalo de Alexandre vai dar nome a uma cidade o cavalo de Alexandre sequer sabe que tem nome já não sabe mais de nada ao ver o cavalo em frente recebendo, quente, a lança e abrindo o corpo em sangue
ocavalo de Alexandre assiste à última queda e o corpo denuncia algo que desconhecia mas que já estava ali sente os puxões no pescoço ouve os gritos agressivos ficarem baixos, fracos até serem inaudíveis
tomba pequeno entre os cavalos e o seu nome vai dar nome a uma cidade que é parte de um império luminoso como o homem que como todo grande homem enfia lanças em cavalos
Noturna
Juliana Ponciri/DF
Arco-íris de noite?
Há tempos não fazia.
Chuva que goteiras sou Molhados rituais
Dança do ventre de fora:
Água que ondula meu olhar
E minha cintura
Erma criatura que soa e sacode a música
Melodia de tons cintilados
Atalho
Me acho
Boca aberta que céu
Sou da boca que vou
Véu da terra cegou
Recebo a precipitação
Sede que molha
Em cima e em baixo do quê da coisa
Saliva alisa meus bocados
Arrepio em bailarinos ensaiados
Acordes soam harmônicos sem ensaio
Palco aplaudido, cálido, fausto
Exausto êxtase
Ser suspenso no espaço
Dilatada eloquência.
Poema para minha filha
Lucas Grosso/SP
O que será isso minha filha que eu deixo para você?
O que é ou será esse mundo que você recebe?
O que estarão construindo os futuros arquitetos?
Que doenças curarão os próximos médicos?
Qual o gosto das frutas futuras o gosto do feijão cozido por outras mãos?
Como estarão as flores e elas estarão em vasos canteiros?
Que cor terão as casas no dia em que eu morrer?
Quantos serão os cartórios?
Quem se lembrará de Mozart?
Quem publicará os livros?
E as moedas ainda existirão?
Minha filha como é doloroso saber que hoje existem só: eu e a dúvida sobre você. Como é triste saber que um dia não estarei pronto para ouvir e para te responder... como é triste triste saber que você terá que descobrir sozinha e sozinha responder.
Por isso é que eu pergunto e sofro: Que mundo será esse que você vai ver?
“As palavras”
Luciene Farias/SP
Uma homenagem ao mito Clarice Lispector
Continuo sendo as palavras…
Represento parte dos pensamentos alheios, e confesso,
Minha adorável Lispector,
Sinto falta de ti!
Nossa parceria era perfeita,
Eu era as palavras dentro das suas palavras, criando formas
Através do seu mais íntimo e misterioso pensamento.
Lembro-me, no silêncio da madrugada, a sala fria,
A máquina de escrever era apenas nós duas.
Eu te entendia!
Nas suas tristezas e nas suas alegrias;
No fogo que aquecia seu coração e na frieza da sua solidão!
De repente, uma pausa é dada;
O cigarro aceso, seus pensamentos estão de um lado para ooutro…
Continuo sendo as palavras, e na minha essência
Digo-lhe, sinto falta de ti…
Hoje sou transformada por autores anônimos ou renomados,
Às vezes estou em uma folha de papel, ou sendo teclada por um
Aparelho digital, seja como for, continuo sendo
As palavras…
E na minha nostalgia de não mais tê-la, me sinto vazia.
Minha doce Lispector,
Estou semeando o que me definem,
Porque sou apenas as palavras…
Mas meu dicionário sente falta de ti!
Rotina
Maria Clara Martins/SP
Rotina...
Acorda todo dia às cinco da matina
pra poder sustentar sua menina
Busão lotado, gente apressada pra todo lado
É um inferno esse traslado
Quando chega no trampo
Já não é de seu espanto
Que encontre alguma colega escondida aos prantos
O ambiente de trabalho é hostil
Pois se você não é macho, seu emprego sempre tá por um fio
Ganha menos e trabalha mais
E reza sempre pra que um dia tenha paz
O assédio é constante
Pois se já não bastasse as situações humilhantes
Dar um pouco de prazer pro chefe “não” é algo preocupante
Preocupante é se não der
Porque aí, garota, você vai ter que meter o pé
O fim do expediente chegou
Parabéns pra quem firme e forte aguentou
Agora é ir pra casa na esperança de que no caminho
Não encontre aquele seu vizinho
Que te diz palavras indecentes
E acha ruim se você diz que é melhor que ele se oriente
E é assim todo dia
Essa trágica sina
Da maldita rotina feminina!
Fantasma
Osvaldo Duarte/RO
(se dos escombros da insônia irrompe, sempre em desespero, um verso corcunda)
apalpo palavras no escuro, limpo seus gestos rudes, o visco das feridas sem nome.
como um pescador regressado, escolho as escamas; letra por letra, até descarnar o idioleto da lógica.
— e o amor, a inspiração, ironiza o verso corcunda. espano a página com ira e atiro
: letra por letra, até que a última frase se ar-ras-te, escrevendo linhas de sangue no chão sem poema.
Poema de Samsara
Rafael Silva/CE
Esse é meu começo oficial
Que acontece aqui onde estabeleço um fim.
Meus amigos,
Estou indo embora e não, eu não penso em voltar.
Se penso em voltar, é porque não quero ir.
E eu quero ir!
Mas não pensem, caros amigos, [jamais!] que vos esquecerei.
Levá-los-ei, comigo, na memória e no coração.
Eu não sabia, mas eu estava morto.
E vocês também não sabiam,
Mas bebiam e dançavam com um cadáver.
Esse é meu começo oficial
E já sinto a vida, em meu peito, vibrar.
Quero chorar de tanta alegria!
Saudarei alegre as novas paisagens
E felicitar-me-ei quando os revir
E então beberemos e dançaremos: todos vivos!
Esse é meu começo oficial
Aqui, onde morro, renasço.
As necessidades inúteis e as dores sem fim, deixo para trás.
Deixo-vos, também, pois, um recado:
Que não tenham medo de começar.
Que a vida é assim:
Quanto menos morremos, mais mortos nos tornamos.
Então, morram, meus amigos queridos.
Morram e, novamente, tratem de nascer.
Esse é meu começo oficial.
Adeus.
Olá!
Poema sem Tema
Rafaela Hipólito Calaça/CE
Inusitado eu escrever um poema.
Soube que é preciso rimar e conter um tema
Busquei o coração para me ajudar na composição
Já que o sucesso de antemão não seria pelo viés da razão.
Queria que tivesse rima, sentimentalidade e coesão
Amor, fidelidade e compaixão
Tudo o que um poema de fato precisa, para despertar uma grande paixão.
No desespero da invenção, uma crise de negação:
- Não consigo criar! - É preciso agradar!
Baita ilusão essa de seguir a emoção.
Enganada por sentir no peito, uma sensação de aperto
A tão famosa frustração me ativou o desespero.
Ou tento a ridicularização ou faleço sem saber se mereço
Um pouco de atenção nesse palco de pré-textos.
Não sabia eu que a razão me ajudaria a compor
Um texto que falasse como é difícil falar de amor
Na tentativa da criação, me perdi nos versos da composição
Nas curvas do poema, nas regras e na observação.
Esqueci-me da razão que me permite expressar o sentimento
O mesmo que é difícil expressar quando há outro para amar
Finalizo os versos com a inusitada certeza de que fiz um poema
Que por ventura não se chegou ao tema
Mas a ti te entrego quase feliz
O poema que fiz sem tema.
Quando a senhora velhice vier me visitar
Rita Lavoyer/SP
Estou preparando meu terreno para quando a senhora Velhice vier me visitar. Caso eu esteja viva, vindo ela bater-me à porta, permitirei que entre. Quem sabe formaremos par...
Eu a conduzirei por todos os recantos dos meus tempos: (nos amplos que ela encontre minhas histórias, nos estreitos que ela reconheça minhas faces), permitindo a esta Senhora que os tempos sinta, e queira com minhas fases conviver.
Colocarei tapetes em minha sala de estar para lhe dar a melhor acolhida. Sorvendo um café passado naquele agora, conversaremos, enlevadas, por horas...
Nesta minha sala, deixarei que ela reconheça nos porta-retratos, sobre os móveis, e nos quadros pendurados nas paredes, as pessoas de outrora, com expressões imóveis.
Acho que a senhora Velhice reconhecerá todos os meus queridos: meus pais, meus sogros, meu esposo, meus filhos, meus netos e, nosso xodó de hoje: meu bisnetinho.
Estou preparando o meu terreno para quando a senhora Velhice chegar para uma visita. Não quero ser pega de surpresa.
Por isso, preparo minha sala...
Amacio meus estofados e...
Se eu estiver viva até lá, (a senhora Velhice chegará, certamente!) serei gentil com ela, tão juntas, tão imersas, seremos como irmãs siamesas.
Se ela quiser eu a levarei comigo aos encontros que já agendei para... enquanto estiver viva. Porém, se ela não quiser me acompanhar, coloco-a para dormir, com carinho, porque lhe tenho respeito. Mas não ficarei para lhe fazer companhia, pois tenho muito que aproveitar antes que a senhora Velhice, ao partir, queira me levar ...
E o preto? No centro!
Roberto
Vinicio/PI
Não há mais potência no que me fala!
Não há voz, Que passa pelos teus lábios!
Eu não te escuto, como escutava
Não me recolho, como desejas
Não me calo, como prefere
Não me acovardo, como necessitas
Não faz mais sentido manter o silêncio
No meu corpo corre o sangue dos meus ancestrais
Uma resistência incansável à liberdade
Ocuparemos o que nos foi negado
Povoaremos os centros
Enfeitaremos as cidades
Marcaremos em nossos corpos, nossas vidas roubadas
Em min, habita cada vida negra, interditada pela escravidão, genocídio e exclusão
Por eles gritarei em alto e bom tom: A vida do povo preto importa!
50 ◆ Revista Tremembé - v.1, n.1/Dezembro 2020
A arma do Conhecimento
Rosangela Mariano/RS
A arma que silencia o ar eufórico, Usa recomendações emocionantes na demora.
A única delícia que começa com uma semente, É comedida pelo agradecimento e pelo elogio.
A suavidade da confiança para, No contar de sempre do conhecimento.
Do que a boca precisa
Samara Belchior/SP
A boca não pode ter tudo. Da mania do cigarro amargo, a boca precisa da fumaça que embota o cheiro do feromônio do beijo. Do beijo úmido apaixonado a boca precisa da ponta da língua que desliza pegajosa olábio condescendente.
A boca semi-aberta meio espantada, precisa do direito da fala quer morder os silenciadores mesmo que não reste dente.
A baba escorre no canto pelo choro teatral, a boca precisa de palco. Maior que o mundo engole o ego desce rasgando o engasgo.
A boca precisa vomitar palavras novas, novos meios de organizar obocejo dos tempos nublados. A boca não pode ter tudo, mas mastiga silenciosa toda imagem que o olho faz.
Rios secos
Simião Mendes/GO
Meus olhos falam por mim
Quando me calo, Num embalo de algo que abala
A minha calma.
Meus olhos, os da alma, Possuem noventa e nove anos.
Quase um século de secura, De acidez e aridez.
Criaram raízes numa eterna falta
Que bate às seis horas da tarde, Ou que me invade
A cada vez que sonho.
Esses olhos, perplexos.
São reflexos do que me tem acometido Internamente, e que só piora, Com o que também enxergam por fora.
Meus olhos, rios secos, Carregam o cheiro guardado
Em um frasco da memória, De dias que foram felizes, De dias que foram embora.
Elefantes
Thamires Andrade/SP
elefantes têm presas de fazer brincos de marfim e morrem ao perder os molares eu não sei onde foram parar os meus caídos aos seis ou sete anos de idade quando ainda não usava brincos
elefantes furiosos a depender de seus níveis de testosterona podem matar um humano algo que também posso facilmente fazer nas quedas de estrogênio (ou que pelo menos desejo)
homens matam elefantes para fazer teclas de piano eu achava chique ter piano em casa mas agora não acho mais e não sei tocar nem parabéns a você
elefantes têm amortecedores nas patas como esses dos tênis que uso pra evitar as dores nos joelhos da idade e vivem em média setenta anos mas eu pretendo ainda passar um pouco disso por isso também quero evitar os impactos nas articulações
elefantes de cinco toneladas são bons nadadores enquanto eu com setenta e dois quilos nunca aprendi,
mas só três vezes morri afogada fêmeas elefantas gestam bebês por 22 meses e eu que nem nunca engravidei ou amamentei um filhote por cinco anos nem sei se alguma vez vi um elefante de perto penso obsessivamente nas carcaças secas sozinhas dos elefantes mortos misteriosamente em Botswana posso ouvir os gritos o choro de suas mães parindo a dor das mães elefantas que não velaram nem enterraram seus filhos cobrindo seus corpos com terra e grama como tem que ser e não com cimento como fazem os humanos.
Tipografia
Human Natura Made Tommy Palatino