Descrição da imagem: capa com fundo branco. Na parte superior, em letras pretas, “ISSN 29656192” e o código de barras; “Revista Sarau”; “Volume 5 – Número 2 – Edição Especial – abril de 2025”. Abaixo, à esquerda na vertical: “MÚSICA
–
POESIAS
– CONTOS –
CRÔNICAS –ARTES VISUAIS”. Na parte central, o cantor Belchior, e à direita, o escritor, Dalton Trevisan. O desenho colorido e em destaque de Belchior, no qual predomina a cor amarela com pontos pretos. Homem de cabelos, olhos e bigode escuros; apoia a mão direita na cabeça. O desenho pequeno e colorido de Dalton sobreposto ao de Belchior, no qual predomina na sua pele, um misto de cores. Homem de cabelos curtos e lisos; usa óculos de grau, terno escuro sobre uma camisa clara.
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EXPEDIENTE
Volume 5 – número 2 – edição especial - abril de 2025
Fortaleza – CE – Brasil
Publicação Bimestral
Distribuição Gratuita: On-line
EDITORES:
Débora Nogueira de Oliveira
(CNPJ: 47.902.319/0001-76)
Nonato Nogueira
JORNALISTAS:
Tiago Rocha de Oliveira - Registro nº MTB/JP 01293-ES
Gerardo Carvalho Frota - Registro nº 1679-CE, em 21/03/2005. DRT 002936/00-92
A Revista Sarau é uma revista de Literatura, Música, Cinema, Teatro e Artes Visuais. É uma publicação eletrônica, de submissão aberta, publicada bimestralmente por escritores e artistas comprometidos com a divulgação da Literatura e da Arte em nosso país.
SUMÁRIO
5 Editorial
6 Ainda tenho uma roupa colorida / Elaine Meireles
8 Belchior e a fotografia 3x4: entre sonhos e desafios / Néia Gava
12 Belchior: um artista latino-americano / José Roberto Morais
13 Breve bilhete ao bardo Belchior / Xico Bizerra
14 A vida em canções de Belchior / Vanice Ricardo do Nascimento
15 Um hino da liberdade / Eduardo Fontenele
19 Carta poética para o conterrâneo Belchior / J. Udine
20 Belchior / Jorge Furtado
21 Duas despedidas / Lúcia Menezes
22 A última música / Beny Barbosa
24 Um encontro com Belchior / Cleiton Lopes da Cunha
25 Vivenciando o sujeito de sorte / Luiza Pontes
26 Rapaz eterno / Pedro Henrique Mariano
30 Dalton Trevisan para todo o sempre / Pedro Henrique Mariano; Dalton Trevisan / Angela Maria dos Santos
31 Para Dalton Trevisan / Jovina Benigno
32 Dalton Trevisan: um escritor premiado / José Roberto Morais
33 Gênio do espelho, existe em Curitiba alguém mais aflito do que eu? / Ana Esther
34 Dalton Trevisan: vida, obra e curiosidades / Denilson Marques dos Santos
EDITORIAL
O avanço tecnológico tem causado maravilhas em nossa sociedade, sobretudo em pesquisas científicas, favorecendo a sustentabilidade, melhorias na Medicina, Engenharia, Biologia, Agricultura... apesar de ainda não ter promovido o encurtamento das grandes distancias que separam pobres e ricos, cidade e campo. E a Arte, por vezes, desfruta da IA (Inteligência Artificial) como se já não houvesse mais criatividade humana. Causa-nos espanto a criação de monografias, dissertações, teses, romances, contos, textos e desenhos variados que são elaborados pelo CHATGPT, pela IA. Humanos já começam a temer a independência de certas máquinas e, refletem sobre este campo minado, que envolve Poder e Manipulação do Conhecimento.
Enquanto não formos engolidos por esse avanço desgovernado da IA, vamos valorizando a Arte Humana, que resiste com criatividade e originalidade. Assim é que estamos com uma edição especial da Revista Sarau, homenageando dois emblemáticos artistas brasileiros: Dalton Trevisan (com a palavra), que completaria 100 anos em julho, e Belchior (com a música), que faria 80 anos em outubro de 2026.
Ao ler a obra de Dalton Trevisan, encontraremos personagens polêmicos e fortes que por anos foram silenciados e marginalizados pela sociedade de Curitiba. Sua linguagem concisa e oral, retrata com pitadas de ironias e “humor negro” o cotidiano de assassinos, gigolôs, tarados, prostitutas, revelando a condição humana do submundo curitibano. São destaques do conjunto de sua obra “O Vampiro de Curitiba”, “Cemitério de Elefantes”, A Polaquinha”, “Contos Eróticos”, “O Ciclista”, entre outros.
“A Palo Seco”, “Apenas um Rapaz Latino Americano”, “Paralelas”, “Tudo Outras Vez”, “Na Hora do Almoço” são algumas das tantas representativas músicas de Belchior que evidenciam a riqueza e a qualidade da obra musical do cantor, que também compositor, interprete, professor, artista plástico. A letras de suas canções focalizam conflitos ideológicos, reflexões filosóficas, engajamento político, aspectos nacionais-regionais e uma forte crítica social. Em suas músicas encontraremos influências da MPB, do Rock, da música nordestina.
Aos nossos leitores, o convite para que desfrutem dos textos de nossos articulistas sobre o “Vampiro de Curitiba” e do nosso “Rapaz LatinoAmericano”.
Boa leitura!
Elaine Meireles
AINDA TENHO UMA VELHA ROUPA COLORIDA
Elaine Meireles
A Av. Monsenhor Tabosa, “Corredor da Moda de Fortaleza” nos anos de 1970-2000, era uma febre efervescente de gente e de lojas, não somente aos finais de semana ou feriados. Frequentei com frequência algumas de suas lojas de artesanato, confecções, sapatos. Elas ditavam a moda em nossa capital, mas também pelo Brasil todo e se espalhavam no estrangeiro, levando nossas roupas, rendas, castanhas, sapatos, etc. Não tínhamos ainda os shoppings (o primeiro deles, o Center Um) e a Feira da José Avelino, ainda não era o formigueiro das atuais madrugadas e manhãs, com as chamadas “sacoleiras”, ansiosas pelas novidades da capital cearense, vindas de vários municípios do Ceará e estados do Brasil, com seus ônibus estacionados no Mercado Central, entorno à Catedral da Sé e ao Forte de Nossa Senhora daAssunção.
A rebeldia, própria da adolescência e início da vida adulta, estava expressa também nas passeatas estudantis na Praça da Bandeira (Faculdade de Direito), nos pilotis da Arquitetura e nos jardins da Reitoria da UFC (Universidade Federal do Ceará), na Faculdade de Medicina e Farmácia da UFC, e onde quer que o protesto se fizesse necessário... lá estávamos, pois, “uma nova mudança em breve vai acontecer”.
E quanta coisa aconteceu! Ficamos marcados pelos amigos que desapareceram, pelos amigos que nos esqueceram e percorreram por caminhos largos cheios de regalias, pelos amigos que perderam o juízo em meio a negação de si mesmos e de seus ideais... Nem sempre conseguimos superar os obstáculos, e as marcas do tempo chegaram em nossos rostos, sem nos pedir permissão, os cabelos brancos deram o ar da graça... e como “Assum Preto, cego dos óio/Num vendo a luz,...” começamos a cantar de tanta dor, na certeza que “Quem sabe faz a hora, não espera acontecer”. “O passado nunca mais”. “Brasil nunca mais”
Vez por outra deixo o cabelo crescer e vou ao cabeleireiro, que me faz um crespado no cabelo tingindo de castanho claro, e lá no fundo da gaveta do guarda-roupa, tiro aquela roupa colorida, guardada há décadas, com um cheirinho gostoso de alfazema... e vou descendo em minha rua, rumo à av. Monsenhor Tabosa, à Praia de Iracema... e passo antes pelo Mercado dos Pinhões, no Bar da Mocinha .... com certo temor, guardo o dinheiro no bolso interno da calça, conduzo um celular dos antigos... hoje só quero ver o pôr-do-sol.
“E precisamos todos rejuvenescer” É . os tempos são outros e já não sou a mesma, mas ao retornar a casa, lavarei e guardarei a minha velha roupa colorida, pois em breve poderei usá-la novamente.
Elaine Meireles – Especialista em Literatura Luso-Brasileira, Professora Tutora da UFC/IFCE, Articulista e Editora da Revista Sarau. Autora da Coletânea Lápis Afiado (Análise de livros indicados para o vestibular; Estilos Literários Brasileiros.); Português – Vestibulares & Concursos. Participação nos livros Vivencias de Leitura – uma análise linguística-literária das obras (org. Lucineudo Machado). Contato: ponchetart1@gmail.com
BELCHIOR E A FOTOGRAFIA 3 X 4: ENTRE SONHOS E DESAFIOS
A vida histórica de Belchior, o “poeta engenheiro” da música brasileira, também conhecido como o poeta das estradas e das inquietações, é um retrato de coragem, saudade e busca incessante por realizações e por uma vida melhor. Como tantos outros jovens artistas nordestinos, ele desceu do norte em busca de sonhos e planos que o sul prometia. Mas a jornada não foi fácil.
Afinal, Belchior, repleto de ambições, deixou para trás a sua cultura e a sua gente no nordeste. A mulher que amava não o seguiu,
Néia Gava
por medo do desconhecido. Ele escolheu o caminho incerto, levando consigo apenas uma fotografia 3x4 e um coração cheio de lembranças, saudades e, talvez, um certo arrependimento.
A canção foi lançada em 1976, cujo período foi marcado pela ditadura militar no Brasil. Nesse contexto, a música representou uma forma de resistência e expressão artística, mesmo dentro das limitações impostas pelo regime.
Origem e formação musical
Antônio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes, conhecido como Belchior, foi um artista multifacetado e uma figura icônica na música brasileira. Marcou gerações. Deixou marcas. Deixou legados.
Foto: Divulgação
Belchior nasceu em 26 de outubro de 1946, na cidade de Sobral, no Ceará. Ele cresceu em uma família numerosa, com 22 irmãos.
Desde cedo, demonstrou aptidão para a música. Sua mãe, Dolores, cantava no coral da igreja, e Belchior foi exposto a artistas como Ângela Maria e Cauby Peixoto.
A sua carreira teve início ainda na sua adolescência, pois nesta fase já compunha suas primeiras canções. Ele estudou música, canto gregoriano, línguas e filosofia no Colégio Sobralense.
Participou de festivais de música, shows amadores e programas de rádio e TV em Fortaleza, dividindo o palco com colegas como Fagner e Ednardo.
Já em São Paulo, Belchior compôs trilhas sonoras para curtas-metragens e se apresentou em praças e programas televisivos.
Com o seu talento, Belchior conquistou o primeiro lugar no IV Festival Universitário da MPB com a música “Na Hora doAlmoço”.
Suas composições se tornaram verdadeiros clássicos da Música Popular Brasileira, tais quais “Como Nossos Pais”, “Apenas um Rapaz Latino-Americano” e “Mucuripe”.
O seu legado é tão vasto que encanta, contínua e cotidianamente, a todos: fãs e amantes da boa música.
Solidão e Desafios
Ao chegar no Sudeste, com “...os pés cansados e feridos de andar légua tirana...”, Belchior encontrou a solidão das noites em ruas violentas. Seu corpo exausto e com o coração ansioso, aflito e saudoso, pernoitava em becos escuros e frios, alimentando
esperanças. Os guardas o abordavam, desconfiados daquele desconhecido, recémchegado de um lugar distante. Sua origem nordestina o marcava, e a repressão policial o feria.
...Em cada esquina que eu passava, um guarda me parava Pedia os meus documentos e depois sorria Examinando o três-por-quatro da fotografia
E estranhando o nome do lugar de onde eu vinha
Repleto de esperanças, mas diante de tantas dificuldades, Belchior, lançou a música “Fotografia 3x4”, em 1976, que retrata a realidade vivenciada pelos migrantes
nordestinos na região Sudeste do Brasil, marcando a sua chegada em outro estado em busca de uma vida melhor, de forma um tanto poética e reveladora.
Eu me lembro muito bem do dia em que eu cheguei
Jovem que desce do Norte pra cidade grande Os pés cansados e feridos de andar légua tirana E lágrimas nos olhos de ler o Pessoa E de ver o verde da cana
A beleza e a miséria
Belchior se sentiu seduzido por Copacabana e suas praias. Mas a cidade grande também lhe mostrou a miséria em locais de pobreza e prostituição. O artista, à margem da sociedade, enfrentou a diferença social e a violência. Sua fotografia 3x4 era um julgamento constante: “...Desses casos de família e de dinheiro eu nunca entendi bem Veloso, o sol não é tão bonito pra quem vem do norte e vai viver na rua...”
Dias e noites se passaram. Belchior persistiu, mesmo quando a fome e as condições
precárias o assolavam. Ele amou e foi amado, porque sua história ecoa em todos nós. A estrada do sul não foi apenas geográfica; foi a trilha de seus sonhos e desafios: “...Mesmo vivendo assim, não me esqueci de amar...”.
Belchior foi muito mais que um cantor; ele foi um poeta da alma brasileira, expressando anseios, saudades e sonhos através de sua música. Sua fotografia 3x4, símbolo de origem e resistência, permanece como testemunha de uma jornada que transcendeu fronteiras e preconceitos.
Fotografia 3x4
Em “Fotografia 3x4”, uma das canções icônicas de Belchior, há um relato poético e introspectivo sobre a experiência de um jovem que migra do Norte para a cidade grande, em busca de novas oportunidades e vivências.
Em suas entrelinhas, Belchior revela a alma de homens comuns, assim como rastros de esperança, desilusão e resistência.
Como uma luta poética, o protagonista e compositor busca combater o esquecimento e a invisibilidade, que afligem migrantes nordestinos: “Eu me lembro muito bem do dia em que eu cheguei / Jovem que desce do norte pra cidade grande...”.
Belchior também revela, ao descrever a sua foto 3x4, a inquietação pela desvalorização de trabalhadores que não recebem o seu devido valor social nem mesmo respeito.
Com toda a sua simplicidade, Belchior cria a sua canção pautada não somente em suas escolhas rotineiras, mas na vida de tantos outros, que, com esperanças de uma vida melhor, buscam no sul trabalho, possibilidades diversas e reconhecimento.
Quando chega na cidade grande, onde vislumbrou sonhos realizados, plantando-os enquanto trilhava por árduos caminhos, Belchior se depara com a dura realidade de quem vem de fora. Ele enfrenta a saudade de casa, a dificuldade de adaptação e a sensação de estranhamento.
...Em cada esquina que eu passava, um guarda me parava Pedia os meus documentos e depois sorria Examinando o três-por-quatro da fotografia E estranhando o nome do lugar de onde eu vinha...
Desigualdades sociais e regionais: desafios diários
Fotografia 3x4 desperta reflexões sobre as desigualdades sociais e regionais do Brasil, das quais os principais “julgados” são os nordestinos: “...A minha história é, talvez/É talvez igual a tua, jovem que desceu do norte, que no sul viveu/ na rua/E que ficou desnorteado...”.
O jovem compositor e cantor, como tantos outros, busca o seu lugar no mundo, mas se depara com muitas dificuldades e desilusões
Capa LP Alucinação de 1976. Foto: Divulgação
Belchior e suas referências culturais
Belchior, poeticamente talentoso de nascença, ainda utilizava referências culturais que enriqueciam, ainda mais, a sua narrativa. Ao se referenciar a escritores como EdgarAllan Poe e João Cabral de Melo Neto, ele contribuiu para que o público enxergasse o Nordeste como uma região culta e sofisticada.
Em Fotografia 3x4, Belchior menciona o poeta Fernando Pessoa e o cientista Isaac Newton, demonstrando a sua sagacidade quanto à importância da intertextualidade em suas composições.
...Os pés cansados e feridos de andar légua tirana E lágrimas nos olhos de ler o Pessoa E de ver o verde da cana
(...)
Pois o que pesa no norte, pela lei da gravidade Disso Newton já sabia, cai no sul grande cidade...
Por fim, e de forma tão poética quanto durante toda a sua narrativa, Belchior eterniza a mensagem de identificação e solidariedade, demonstrando que muitos brasileiros compartilham experiências parecidas: “...Eu sou como você/Eu sou como você/Eu sou como você que me ouve agora...”.
Referências Bibliográficas
Por fim, Fotografia 3x4 é um retrato que que reflete as complexidades da vida social no Brasil, demonstra, com sensibilidade, aventuras e desilusões pelas quais passam a juventude, que, apesar dos dissabores, persiste em buscar o seu lugar no mundo, identificando suas próprias identidades
Cantor Belchior morre aos 70 anos no Rio Grande do Sul | Ceará | G1. Acesso em: 10/10/2024. Significado da música FOTOGRAFIA 3X4 (Belchior) - LETRAS.MUS.BR. Acesso em 20/10/2024. Fotografia 3X4 - Belchior - LETRAS.MUS.BR. Acesso em 16/11/2024.
Análise Profunda da Música "Fotografia 3x4" de Belchior: Um Retrato Social em Versos - Jornal da Fotografia. Acesso e m 15/11/2024.
NÉIA GAVA é Especializada em Letras: Português e Literatura. Escritora e Poeta. Possui sete Antologias Poéticas publicadas. Membro do Conselho Municipal de Política Cultural de Vargem Alta. Acadêmica Correspondente da Academia de Letras e Artes de Venda Nova do Imigrante (ALAVENI). Acadêmica Correspondente da Academia Pan-Americana de Letras e Artes do Rio de Janeiro (APALA-RJ). Colaboradora e membro do Conselho Editorial da Revista Sarau (CE-Fortaleza). Membro do grupo "Escritoras Cachoeirenses". E membro nº001039 da Academia Internacional de Literatura Brasileira –AILB.
BELCHIOR: UM ARTISTA LATINO-AMERICANO
José Roberto Morais
Nasce o artista cultural
Na cidade sobralense
Um destaque musical
Deste solo cearense.
Cantor e compositor
Escreveu sobre o amor
O direito e a solidão;
Política também foi tema
O preconceito um problema
Enfrentado na nação.
Belchior contribuiu
Pra música brasileira
Seu berço muito influiu
Ao seguir sua carreira.
No coral a mãe cantava
No rádio sempre escutava
Lindas vozes e canções;
Nos festivais destacados
Dos artistas renomados
Ouvia interpretações.
Na escola em que estudou
Piano aprendeu tocar
Nas feiras se apresentou
Sua voz pode entoar.
Desperta curiosidade
Viveu na comunidade
De frade em Guaramiranga;
Mudou-se pra capital
Pra ser profissional
Com violão na capanga.
Começou a medicina
Porém, logo abandonou
Amúsica nordestina
Muita grata lhe ficou.
Uniu-se a outros cantores
Poetas, compositores
Fagner, Ednardo,Amelinha;
Jorge Mello, Rodger Rogério
E Teti nem fez mistério
Nesse grupo que ele tinha.
Na sua discografia
“Apalo seco” gravou
Sua música contagia
Cada disco que lançou.
Sentiu “alucinação”
Teve “medo de avião”
Viveu “como nossos pais”;
Magno “sujeito de sorte”
Sentiu-se são, salvo e forte
Viu “galos, noites e quintais”.
“Divina comédia humana”
Viveu “tudo outra vez”
E viu o verde da cana
Na “fotografia” que fez. “Rapaz latino americano”
Vestiu-se e seguiu seu plano “Velha roupa colorida”; “Todo sujo de batom”
Fez “comentários a John”
Sobre o “mistério da vida”.
José Roberto Morais - Professor, poeta, cordelista e escritor araripense. Colunista da Revista Sarau e Membro Fundador da Academia Cearense de Literatura de Cordel (ACLC). Autor dos livros: “50 Sonetos”, “Reforma Agrária e o Boi Zebu e as Formigas: uma análise sociológica”, “Fantástico Mundo da Leitura” e “Veredas do Cordel”; e coautor em algumas antologias. Em projetos de leitura e escrita, publicou com seus discentes as obras “Somos Escritores: jovens que escrevem” (2019) e “Trilhas da Leitura” (2023).
UM HINO DA LIBERDADE
A canção “Como o Diabo Gosta”, do compositor cearense Antônio Carlos Gomes Belchior Fontenelle, que está presente no disco “Alucinação”, segundo disco do artista, é um documento histórico que fala de desobediência civil. No caso brasileiro, ela fala de desobedecer o governo autoritário que comandava o País em 1976. O disco mais celebrado de Belchior produziu vários sucessos inesquecíveis. As canções tinham uma forte identificação com as músicas de protesto de compositores como o norte-americano Bob Dylan e o movimento brasileiro já extinto Tropicália.
Outra força atrativa do período eram os movimentos políticos de oposição ao regime:
Eduardo Fontenele
os movimentos de esquerda marxista. Em sua canção, Belchior recusa a aproximação com essas agremiações por se identificar com o anarquismo e não com o marxismo. A letra da música utiliza a figura do Diabo como uma metáfora sobre a falta de opções para quem não se identificava com nenhuma das duas forças políticas.
Belchior foi um dos compositores mais ativos na luta contra a ditadura da década de 70, assim como outros artistas, entre eles Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque etc. Belchior utilizou suas músicas para criticar o regime ditatorial. Com “Como o Diabo Gosta” não foi diferente.
Não quero regra nem nada
Tudo tá como o Diabo gosta, tá
Já tenho este peso, que me fere as costas
E não vou, eu mesmo atar minha mão
Já tenho este peso, que me fere as costas
E não vou, eu mesmo atar minha mão
Foto: Divulgação
O que transforma o velho, no novo
Bendito fruto do povo será
E a única forma que pode ser norma
É nenhuma regra ter
É nunca fazer nada que o mestre mandar
Sempre desobedecer
Nunca reverenciar
É nunca fazer nada que o mestre mandar
Sempre desobedecer
Nunca reverenciar (BELCHIOR,1976, faixa 5)
Belchior acreditava que a revolução e as transformações sociais só poderiam vir do povo, ou seja da base da pirâmide, e nunca dos poderosos, o topo da pirâmide, que sempre defenderiam o status quo, em outras palavras, seus privilégios.
No primeiro verso da segunda estrofe, o cearense faz referência à obra do Filósofo alemão Friedrich Nietzsche. O compositor fala em transformar o velho no novo, que é uma referência ao Eterno Retorno presente no livro “A Gaia Ciência”, de 1882. As referências à juventude e à transformação do velho em novo são constantes na obra de Belchior. Segundo Nietzsche (1882),
E se um dia, ou uma noite, um demônio te seguisse em tua suprema solidão e te dissesse: "Esta vida, tal como a vives atualmente, tal como a viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes; e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo que há de indizivelmente pequeno e de grande em tua vida há de retornar, e tudo na mesma ordem e sequência - e do mesmo modo esta aranha e este lugar entre as árvores, e do mesmo modo este e eu próprio. A eterna ampulheta da existência será sempre virada outra vez - e tu com ela, poeirinha de poeira!" -
não te lançarias ao chão e rangerias os dentes e amaldiçoarias o demônio que te falasse assim? Ou viveste alguma vez um instante descomunal, em que responderias: "Tu és um deus, e nunca ouvi algo mais divino!" Se esse pensamento adquire-se poder sobre ti, assim como tu és, ele te transformaria e talvez te triturasse; a pergunta, diante de tudo e cada coisa: "Quero isto ainda uma vez e ainda inúmeras vezes?"
Pesarias como o mais pesado dos pesos sobre teu agir! Ou então, como terias de ficar bem contigo mesmo e com a vida, para não desejar nada mais do que essa última, eterna confirmação e chancela?
O poético da letra da canção remete ao imaginário dylanesco. Dylan, o maior artista folk que já existiu. O compositor estadunidense fazia canções de protesto nos anos 60. Tanto Belchior quanto Dylan têm as mesmas influências literárias, como os escritores da Geração Beat Jack Kerouac e Allen Ginsberg. Os beats eram poetas anti-establishment. Eles defendiam sobretudo a liberdade, como a canção do compositor cearense. Os beats fizeram parte e influenciaram todo o movimento da contracultura norte-americana, que teve em Bob Dylan um de seus principais representantes e divulgadores.
Belchior também bebeu de fontes como o poeta simbolista francês Arthur Rimbaud, que influenciou os beats. Rimbaud foi um poeta rebelde, como Belchior e os beats. Já Dylan admirava Dylan Thomas, um poeta que lhe serviu de inspiração até no nome artístico. Rimbaud (1854-1891), considerado um dos maiores poetas da literatura francesa, cujos poemas eram o retrato fiel de seu comportamento libertário e boêmio. Participou dos eventos da Comuna de Paris (1871) e teria abandonado o movimento após a série de abusos sexuais sofridos por parte dos soldados; Rimbaud era um dos poetas prediletos da Rive Gauche, círculo de poetas e pintores acostumados à boemia nos bares e cabarés da margem esquerda do Sena em Paris, da Geração Beat, principalmente para Ginsberg e claro de Belchior, conforme relato na entrevista ao programa ensaios MPB em 1974 (VARELA, 2022, p. 80-81).
De acordo com Medeiros (2017), Belchior e Dylan se conheceram após um show que o bardo americano de voz anasalada fez no Brasil. Gilberto Gil, amigo de Belchior, fez a ponte para que os dois artistas se conhecessem no camarim de Dylan. Foi a ápice da vida de Belchior. Este era admirador
do bardo há décadas e baseava seu trabalho com a palavra nas composições do estadunidense.
Segundo Josely Teixeira Carlos (2007), uma das principais características das letras de Belchior é a intertextualidade com escritores e com outros compositores. Nas letras de Belchior é possível fazer relação com obras de Edgar Allan Poe, Machado de Assis, João Cabral de Melo Neto, Carlos Drummond de Andrade, García Lorca, Fernando Pessoa, Olavo Bilac, Gonçalves Dias etc. Entre os compositores mencionados estão Caetano Veloso, Gilberto Gil, The Beatles, o já citado Bob Dylan, Rolling Stones, e o Tropicalismo, movimento do qual Caetano e Gil fizeram parte.
Uma outra característica que liga as canções de Belchior às de Dylan são as letras extensas com melodias econômicas. As letras são sempre quilométricas, com um minimalismo nos arranjos instrumentais, o que não é o caso da canção analisada, que possui um texto com poucas estrofes e é breve em sua duração, mas é impossível não lembrar das composições folk de Dylan ao ouvir a música de Belchior em questão.
Referências bibliográficas:
BELCHIOR, A. C. G. Alucinação. Como o Diabo Gosta. São Paulo. Phillips-Polygram. 1976.
CARLOS, R. T. Muito Além de Apenas Um Rapaz Latino-Americano Vindo do Interior: investimentos interdiscursivos das canções de Belchior. Fortaleza. 2007.
MEDEIROS, J. Apenas Um Rapaz Latino Americano. 1° edição. São Paulo. Todavia. 2017.
MILTON, John. Paraíso Perdido. São Paulo. Martin Claret. 2006.
NIETZSCHE, F. A Gaia Ciência. São Paulo. Editora Escala.
PRADO, G. S. “O Passado é uma Roupa que Não Nos Serve Mais”: as tensões de Belchior com o Movimento Tropicalista (década de 1970). Rio de Janeiro. 2021.
ROSSETTI, R.; CRISTINA, P. Nietzsche e Belchior: muito além do bigode. São Caetano do Sul. 2017.
SANTOS, L. M. B. Belchior e o Regime Militar Brasileiro: autoritarismo estatal e a migração inter-regional em suas letras. São Paulo. 2019.
VARELA, Â. F. C. Socio-Poética das Imagens Materiais de Belchior: o sertão, a cidade, a América Latina e arcádia reinventados. Natal. 2022.
Eduardo Fontenele é autor dos livros de contos “Abstrações” (2017), “A Morte de Benjamin Siegel” (2020) e o romance “O Mártir Excêntrico” (2024). Contato: @robertoeduardogon - robertoeduardo33@gmail.com
CARTA POÉTICA PARA O CONTERRÂNEO BELCHIOR
Como pode, amigo do interior,
Se estando na mesma cidade,
E com quase a mesma idade
E a gente não se encontrou
Porque o destino não deixou...
Pois somos do mesmo mês
O bom outubro, da vez.
Foste do signo de Escorpião, E eu, de Libra, em ação,
No equilíbrio e timidez.
Ora, em nossa mocidade,
De música e poesia,
Nunca a gente se via
Afim de se ter amizade,
Numa parceria, de verdade
Para compor para Sobral,
Sob o teu canto musical.
Porém, o destino atroz,
Não quis unir nossa voz
Para encontro sensacional.
Como teu fã, dos melhores,
Após muito tempo depois
Em visita a Sobral, pois,
Vi-te no anfiteatro dos amores,
Por trás da Igreja das Dores, Fazendo uma apresentação,
Mas grande era a multidão
E não pude estar contigo,
J. Udine
Ó bom conterrâneo amigo
Junto a ti e ao teu violão!
Tu saíste de Sobral,
E quase ao mesmo tempo, eu também,
E, nesse sonhar além
Cada qual, do seu umbral
Partiu do ponto inicial
Para realizar sonhos de vida
Em distinta lida.
Foste, enfim, grande cantor,
E eu mero servidor
Aseguir em luta sofrida.
Finalmente, caro poeta,
Vi-te no Dragão do Mar
Com o povão a cantar
Atua bela obra esteta
Musical, e mui seleta.
Porém, morto, eu te encontrei,
Triste, chorei, lamentei,
Lá, no teu triste velório,
Que foi um momento inglório
Esse encontro que não sonhei!
Deixo saudações eternas,
Ó Belchior, magistral, O grande compositor
Da cidade de Sobral, Pois foste um filho brilhante, Para a música nacional!
JOÃO UDINE VASCONCELOS - Natural de Ubajara/CE, mas filho, de coração, da heráldica cidade de Sobral, quando, ali, fixou residência dos dois aos vinte e nove anos. É poeta, trovador e cordelista. Participou de inúmeras antologias, e ganhou muitas menções honrosas em concursos de poesia. Pertence às seguintes agremiações:
ACECULT - Academia Cearense de Cultura; UBT - União Brasileira de Trovadores/CE; ABRASSO - Academia Brasileira de Sonetistas; AVPLP - Academia Virtual dos Poetas de Língua Portuguesa.
Ele era um RAPAZ
LATINOAMERICANO
Com ideias geniais
Disse eu sei, e não me engano
E partiu para o sudeste
Pra realizar cada plano
Gostava sempre de usar
VELHAROUPACOLORIDA
Curtia sua Liberdade
Vivia de bem com a vida
E nunca que se rendia
Antes os percalços da lida.
COMO NOSSOS PAIS diziam
Ele encantou multidões
Com a bela poesia
Contida em suas canções.
Partiu e deixou saudades
Nos românticos corações.
Foi um SUJEITO DE SORTE
Lutou para merecer
O que ele conquistou
Sem dar o braço a torcer
Ao regime ditador,
Com sua garra de vencer.
COMO O DIABO GOSTA
O sistema era assim
Muitos foram encarcerados
Tiveram trágico fim,
Mas Belchior foi ousado
E ao ideal disse sim.
BELCHIOR
Na suaALUCINAÇÃO
Tudo de bom vislumbrava
Irradiava energia
Quando nos palcos cantava,
Era destaque nas rádios
Cada música que gravava.
Pra ele NÃO LEVE FLORES
O melhor que você faz
E cantar suas canções
Pra que tenham mais cartaz
Num tempo em que o besteirol
Se destaca mais e mais.
Sua lutaAPALO SECO
Deve ser sim relembrada
Pela nossa juventude
Que anda desnorteada
Que não curte o que é belo,
Por estar alienada.
Ao ver sua FOTOGRAFIA
Vem logo na mente minha
O dia em que o conheci
No espaço do Totinha
Agaleria paleta
Eita saudade Mansinha!
Um bom tempoANTES DO FIM
Ele se afastou de nós
Pois queria dar uma pausa
Pra poder ficar a sós
Mas dele sempre recordo
Quando escuto os rouxinóis.
Jorge Furtado
JORGE FURTADO, nasceu em Fortaleza em 1971. É poeta, cordelista, compositor. Participou de algumas antologias e tem alguns cordéis publicados.
DUAS DESPEDIDAS
Agora vou contar a história de Paralelas e junto dela:
Arquivo de Lúcia Menezes
Duas despedidas,
Quando Belchior resolveu morar no Rio de Janeiro, planejou uma primeira temporada para saber como seria morar em outra cidade e tentar seguir a carreira artística. Passou pouco tempo e voltou para Fortaleza. No mesmo dia de sua chegada ele foi lá em casa. Naquela noite nos disse que iria deixar o curso de Medicina. Que tinha voltado só para arrumar a mudança. O seu semblante era de esperança e talvez, saudade adiantada... guardei na memória sua expressão daquele dia. A pele branca, o rosto largo, sem bigode, cabelos negros, traços finos, bem combinados para um rosto masculino. Era bonito e sedutor o rapaz latino-americano. A cantoria e a conversa seguiu noite à dentro. Lá pelas duas da madrugada ele resolveu ir pra casa... fiquei com meu irmão no portão vendo-o seguir a
LúciaMenezes
pé... ali eu me despedi dele, ali mesmo naquele momento. Uma despedida silenciosa, só minha... Pela manhã o telefone tocou, eu atendi era o Belchior e ele disse: "Ouve aí Lucinha, fiz ontem quando saí daí" e eu ouvi "Paralelas". Fui a primeira a ouvir, fiquei encantada, fora do chão... “Belchior, eu estou estudando essas coisas...paralelas, retas, traços, metáforas, figuras, estou arrepiada” ...pedi logo a letra, ele me deu e disse: à noite vou aí e você ouve melhor... e foi assim que nasceu uma das mais belas canções da nossa MPB...
Com a letra na mão, pum! Tive um insight, fui descobrindo o que diziam as linhas e as entrelinhas... naquele momento descobri e comecei uma nova etapa: interpretava tudo que eu lia. Sim, foi com “Paralelas” que passei a entender que as poesias, os livros diziam muito mais nas brechas do que nas frases claras. Comecei a ler as linhas, as entrelinhas, as partes, o todo e ainda fui mais longe... percebi que a partir de uma poesia, ou conto... poderiam aparecer outras e outras ideias, além do que já estava ali. Minha imaginação foi a mil. Fiquei mais atenta, passei a observar a linguagem das pessoas. O que elas diziam nem sempre era o que sentiam. Minha Nossa! A linguagem das expressões... ai, ai... os subterfúgios, as chantagens emocionais, as falsas verdades... minha gente foi demais! Depois desse dia, eu senti que já não era mais uma menina. Já entendia do meu jeito e de um dia para o outro foram duas despedidas. A do Bel e a da minha infância, pois eu virei mocinha... tantas lembranças... depois conto mais.
Lúcia Menezes é professora aposentada da Universidade Estadual do Ceará (UECE). É cantora com sete discos gravados, iniciou sua carreira musical em 1988.
Foto:
A ÚLTIMA MÚSICA
− Eu te amo, mas não posso mais. Adeus!
Enquanto, “De Primeira Grandeza” tocava pela milésima vez na velha jukerbox, Condessa remoía os seus sentimentos que se misturavam como ingredientes de uma receita que teimava em não dar certo. Ela não entendia como aquele homem, mesmo casado, a procurava e alimentava um amor que estava fadado a não ir pra frente. Enquanto consumia a terceira dose de uísque pensou: ‒ será que ninguém poderia amar uma travesti?!
Tantas vezes Condessa tentou tirar aquele amor de dentro de si, como se expurgasse um tumor maligno, mas não teve jeito; as suas raízes se entranharam em seu coração tão profundamente que agora era impossível extirpá-las. Estava condenada a morrer sufocada por elas. Absorta em seus pensamentos, não escutou a garçonete, quando lhe chamou:
− Condessa! Condessa!
Quando ela se voltou para a garçonete, viu que a mulher estava com mais uma dose
Beny Barbosa
da bebida apontada em sua direção. Entretanto, avisou-lhe:
− Condessa, o bar já vai fechar.
− Já?!
− Na semana, fechamos às três e já são...Duas e quarenta e cinco. − disse ela, verificando velho relógio de parede.
Resignadamente, Condessa pegou o copo em silêncio. Entretanto, pediu à moça:
− Por favor, toque essa música só mais uma vez!
A garçonete demonstrou uma ponta de irritação. Não aguentava mais aquela música do Belchior. Percebendo a situação, Condessa tentou amenizar:
− Não se preocupe, é a última música. Depois vou embora. Ele não virá, eu sei... Antes mesmo que a garçonete se retirasse, o estrondo de um trovão tomou conta do ambiente, anunciando que a chuva estava a caminho. Naquele instante, os dois últimos clientes deixaram o bar. O gerente apressou o passo e baixou a porta de rolar, deixando um pequeno vão, como se fossem cortinas encerrando um espetáculo, Condessa disse para si:
− Com certeza ele não virá. É um covarde e mentiroso!
Condessa retirou de dentro de sua pequena bolsa de predarias estilo clutch, um pedaço de papel. Abriu, desamarrotando-o e viu que tinha escrito o nome “Arnaldo” e o número de telefone. Leu-o repetidas vezes, enquanto “De Primeira Grandeza” tocava pela última vez, confundindo-se com o barulho da chuva que caía. Decidiu que, esperaria por ele somente até o final da música. Caso não aparecesse, não o procuraria mais, nem tão
Foto: Divulgação
pouco escutaria mais aquela música, que era a preferida dele:
“Musa, deusa, mulher, cantora e bailarina
A força masculina atrai, não é só ilusão
A mais que a história fez e faz e o homem se destina
A ser maior que Deus por ser filho de Adão.”
Na medida que a música tocava o gerente e a garçonete iam desligando as luzes do bar. Eles não queriam dar o azar de entrar um cliente inesperado ou Condessa pedir um bis. Aconteceu exatamente o que eles mais temiam: mesmo sob chuva torrencial, um homem adentrou o local como se estivesse
apenas se protegendo da chuva. Entrou agachado devido o espaço que ficara entre a porta e o piso. Condessa, que estava abrindo a bolsa para pagar a conta, nem percebeu que o homem que havia entrado naquele momento era Arnaldo.
“Anjo, herói, Prometeu, poeta
e dançarino
A glória feminina existe e não se fez em vão
E se destina à vida, ao gozo, a mais do que imagina
O louco que pensou a vida sem paixão.”
Beny Barbosa é natural de Fortaleza/CE. É professor e militante dos direitos humanos. É contista e poeta, Arte Colagista. Em 2021 lançou o livro TEMPOS DE CHUMBO, pela editora CARAVANA. Foi o vencedor do concurso de contos da revista A ÚLTIMA PÁGINA. É membro do Clube de Leitura CONVERSA.
UM ENCONTRO COM BELCHIOR
A tarde era morna, dessas que convidam ao devaneio, quando me vi sentado num banco de praça ao lado de ninguém menos que Belchior. Sim, ele, o poeta das margens e das veias abertas, o trovador das saudades e das urgências. Era como se o universo houvesse tramado uma coincidência improvável — ou talvez fosse mesmo o inevitável, dado o quanto a sua poesia já habitava minha alma.
"Você me ensinou a ser poeta," eu disse, rompendo o silêncio que apenas o canto distante de um sanhaço preenchia. Ele sorriu, aquele sorriso enigmático, entre o tímido e o confiante, que parecia esconder um mundo de histórias.
"É curioso, meu jovem. A poesia, quando ganha asas, se espalha por onde nem imaginamos. Mas me diga, o que você escreve?"
"Eu escrevo sobre o que me dói e sobre o que me salva. É impossível não me inspirar em versos seus, como os de Alucinação e Como Nossos Pais Você traduz a vida como ninguém, Belchior. Suas canções me ensinaram que é possível transformar angústia em Arte."
Ele inclinou a cabeça, atento. "Ah, a angústia... Ela é uma mestra, não? Mas a Arte, meu caro, precisa ir além do grito. Precisa ser um sussurro que ecoa."
Aquelas palavras me fizeram lembrar do meu primeiro contato com sua obra, uma tarde perdida da adolescência em que, ao ouvir Velha Roupa Colorida, percebi que as inquietações que eu julgava minhas pertenciam a um universo maior. A partir dali, descobri um novo jeito de existir: mais crítico, mais livre, mais apaixonado.
"Belchior, suas músicas me deram coragem para ser quem eu sou. Não apenas um fã, mas um
Cleiton Lopes da Cunha
poeta que arrisca palavras mesmo quando a vida parece pesada."
Ele me olhou com um misto de orgulho e serenidade. "E isso, meu amigo, é o maior tributo que um poeta pode receber. Veja, o mundo está cheio de canções e de poemas, mas são poucos os que deixam marcas no outro. Você sentiu, e agora faz sentir. Isso é belo."
Ficamos em silêncio por um instante. O sol, já baixo, banhava a praça com uma luz dourada.
"Belchior," arrisquei mais uma vez, "se tivesse que me dar um conselho como poeta, qual seria?"
Ele riu. "Seja fiel às suas inquietações. Mas não se prenda a elas. O mundo é vasto, e o coração humano é um labirinto cheio de atalhos inesperados.
E nunca, nunca esqueça: quem canta seus males espanta, mas quem escreve, cria pontes."
Agradeci com os olhos marejados. Não era apenas um conselho; era uma dádiva.
Quando me voltei para responder, percebi que ele não estava mais lá. Restava apenas o vazio do banco e uma brisa leve, que me trouxe o cheiro de jasmins. Talvez fosse um sonho. Talvez uma epifania.
De uma coisa eu sei: saí dali transformado, com a certeza de que as palavras, quando sinceras, têm o poder de aproximar universos. E, enquanto eu viver, levarei comigo a poesia de Belchior, como quem carrega uma bússola para o coração. Feliz do poeta que inspira outros a cantar a vida em toda a sua dor e beleza. Feliz do fã que, em algum lugar do tempo, encontra o ídolo para um último e eterno diálogo.
Cleiton Lopes da Cunha - Nascido em Pedro Leopoldo-MG. Engenheiro Eletricista de formação e Escritor. Autor de “Poesia Completa”; “Folhas Secas”; “Olhar Poético” ... Escreveu algumas literaturas técnicas na sua área de formação, mas seu gênero preferido é a Poesia “livre”, sem se prender muito às rimas, prefere o pensamento livre.... escreve poesia como se fosse Filosofia... reflexões e pensamentos... devaneios... Escrever é seu Hobbie preferido.... Arte que te faz sentir vivo!
VIVENCIANDO O SUJEITO DE SORTE
Adentro o quarto de estudos, deparome com umas folhas avulsas, umas canetas esferográficas coloridas e um lápis B-12, onde sempre rascunho algo ou mesmo, circulo alguns dados que sempre estou a reinventar. Os pensamentos são mais que presentes e aproveito o momento para ligar o canal do YouTube com algumas faixas do LP Alucinação de Belchior, o coloco baixinho, como música ambiente.
Foto: Divulgação
O porta-retrato de meus pais está colocado num canto da mesa de madeira. A imagem de papai segurando uma singela rosa branca de mamãe, no leito do hospital ficou eternizado na minha memória. Lembro do último gesto de um casal que vivenciou momentos felizes, e também, altos e baixos, como qualquer casal podem vivenciar. A
Luiza Pontes
ausência física dos meus pais machuca em todos os seus parâmetros, não somente por que não convivemos mais, mas sobretudo, pelo silenciamento no ambiente da casa.
O luto é um estado visceral que machuca pela falta das presenças, restando sobretudo, as memórias, as lembranças e as fotografias dos mementos especiais em família. O tempo é o melhor remédio para amenizar estas ausências. Os ciclos se fecham em todas as suas instâncias. A casa se apresenta como o espaço dos acontecimentos, das idas e vindas como se observasse tudo de forma calada e imparcial, lembrando o livro A Casa, de Natércia Campos, que presenciou tudo, sendo a narradora e personagem principal, numa literatura ficcional, de um lugar mítico, humano e rico de detalhes.
Por esse motivo, resgato em meus alfarrábios a letra da música Sujeito de Sorte, de Belchior que aborda a força de viver, numa mensagem bastante específica e marcantes como “ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro”, contextualizando um período delicado de nossa história. As memórias resistem ao luto e ao momento presente.
LUIZA PONTES - Professora, Pesquisadora, Escritora, Dramaturga, Atriz e Diretora Teatral. Participou de coletâneas e antologias com a Academia da Incerteza, com o Grupo Resistência Mandacaru, com a Revista Sarau. Trabalha com performances teatrais, confecção de Scrapbook, participa de saraus da AABLA, da Revista Sarau, do Clube de Leitura Conversa, do Mulherio das Letras no Ceará, do Coletivo Lamparinas de Literatura Infantil.
DALTON TREVISAN: UM ESCRITOR PREMIADO
José Roberto Morais
Na ficção aumentou pontos
Dalton Trevisan nasceu
Em Curitiba, capital
Muitos contos, escreveu
Destaque nacional.
Faculdade frequentou
Em Direito se formou
Exerceu advocacia;
Trabalhou por sete anos
Na vida fez novos planos
Pra seguir com maestria.
Na carreira literária
Com novela fez estreia
Uma escrita necessária
Pra divulgar sua ideia.
Fez “sonata ao luar”
Um grupo foi liderar
Com a revista Joaquim;
E “sete anos de pastor”
Renegada pelo autor
Pois considerou ruim.
Um porta voz de escritores
Arevista se tornou
Divulgou aos seus leitores
Muitos textos, publicou.
Carlos Drummond deAndrade,
Cândido e Mário deAndrade
Bons ensaios publicaram;
Entre essas publicações
Kafka e Sartre, traduções
Grandes nomes ilustraram.
Pela Europa viajou
Produziu sem publicar
Seis meses por lá passou
Depois pode retornar.
Começou escrever contos
E crônicas publicando;
Lavrou textos a granel
Espalhou como cordel
Em folhetos divulgando.
E ganhou repercussão
Vendendo muitos milhares
Com sua publicação
“Novelas nada exemplares”.
Prêmio Jabuti venceu
Recluso, não recebeu
Enviou representante;
Registrou situações
Dos costumes, tradições
E fatos angustiantes.
“Cemitério dos elefantes”
Também “desastres de amor”
Teve “cantinhos galantes”
E “macho não ganha flor”.
“Violetas e pavões”,
Ganhou o Prêmio Camões
Pela sua obra completa;
Escreveu “noites de amor”
“O grande deflorador”
Com narrativa seleta.
Houve “crimes de paixão”
Trouxe “a guerra conjugal”
“Afaca no coração”
Com concreção temporal.
Sobre um “anjo vingador”
Um “maníaco” explorador
Sempre escreveu como quis;
Um escritor renomado
Na cultura premiado
Prêmio Machado deAssis.
José Roberto Morais - Professor, poeta, cordelista e escritor araripense. Colunista da Revista Sarau e Membro Fundador da Academia Cearense de Literatura de Cordel (ACLC). Autor dos livros: “50 Sonetos”, “Reforma Agrária e o Boi Zebu e as Formigas: uma análise sociológica”, “Fantástico Mundo da Leitura” e “Veredas do Cordel”; e coautor em algumas antologias. Em projetos de leitura e escrita, publicou com seus discentes as obras “Somos Escritores: jovens que escrevem” (2019) e “Trilhas da Leitura” (2023).
Gênio do espelho, existe em Curitiba alguém mais aflito do que eu?
Ana Esther
Comprei o livro O Vampiro de Curitiba, em 1997, pensando em me deliciar com aventuras de um Conde Drácula tupiniquim. Ledo engano! O vampiro do Dalton Trevisan tinha outros contornos comportamentais e psicológicos. Decepcionada sem o chupador de sangue tradicional, encantei-me, no entanto, com o personagem Nelsinho e sua compulsão pela conquista das mulheres curitibanas. Que original!
É-me extremamente curiosa a impressão que um livro, seu autor, suas ideias podem deixar nos leitores. Esse livro do Dalton Trevisan sempre ficou na minha cabeça, não era o vampiro que eu imaginara, porém sentiao como um texto originalíssimo. Volta e meia voltava-me à lembrança. Até que, sendo eu própria uma escritora, recorri a ele para inspirar-me a escrever um conto em homenagem a minha mãe e a minha bisavó. Minha mãe sempre me contava uma tenebrosa experiência que sua avó havia tido e que jurava de pés juntos ter sido tudo verdade. Não se tratava de um encontro com um vampiro, muito menos com o Nelsinho do Trevisan... nem o tal pavor ocorrera em
Curitiba. O que a minha bisavó Marica avistou com seus próprios olhos fora um lobisomem! Na Porto Alegre da primeira metade do século XX. Eu não poderia deixar de dar ao meu conto o título O Lobisomem de PortoAlegre, claro!
Talvez a delicada referência passe despercebida a muitos leitores, principalmente para aqueles que ainda não foram apresentados à obra do Dalton Trevisan que, diga-se de passagem, é reconhecida até fora do Brasil. No entanto, para mim tem um significado literariamente emocional. O meu apreço pelo Vampiro de Curitiba possibilitoume ter a genial ideia de contar aos meus leitores a história que minha mãe adorava me relembrar.
Diante da quântica rede de entrelaçamento entre todos nós no Universo, fica aqui a dica para quem desejar conhecer a obra do Dalton Trevisan e, quiçá, também o meu conto que está disponível na internet. Jamais o Dalton soube da influência que seu livro teve em mim. Jamais eu saberei a influência que esta minha crônica terá nos leitores... Oh, fiquei curiosa! Gênio do espelho, existe em Florianópolis alguém mais aflita do que eu?
O Vampiro de Curitiba – Dalton Trevisan (Rio de Janeiro, Editora Record, 13ª edição, 1992. Pág. 11)
O Lobisomem de Pôrto Alegre –Ana Esther https://www.recantodasletras.com.br/contosdeterror/8236613
Ana Esther Balbão Pithan - nasceu em Erechim/RS, mora em Florianópolis/SC desde 1991. Graduada em Letras/Inglês (UFRGS) e Mestre em Língua e Literaturas de Língua Inglesa (UFSC). Foi Professora Universitária. Tem 11 livros publicados, participação em várias antologias. Criadora dos personagens O Pelicano, Mega Vó, Anamasthêr e a Meditação do Chimarrão entre outros. Instagram: @pelicanaesther