A arquitectura nunca abolirรก o acaso
ACASO
NOVEMBRO 2010
PROGRAMA
Profanação e Vandalismo Godofredo Pereira Fa(i)lling Miguel Leal A Memória do Presente Pedro Levi Bismarck Notas sobre a Prática do Acaso Atelier da Bouça
punkto - acaso
EDITORIAL. De Mallarmé aprendemos a ler o vazio das palavras, de Duchamp aprendemos a interrogar a arte, de John Cage a escutar o silêncio da música e de Siza que para ver é preciso tocar o imperceptível. § A obra não se faz a partir de um sentido único e universal mas faz-se na medida em que se entrega ao espectador: provocando-o, questionando-o, possuindo-o. § A obra de arte é um agenciamento incessante e imprevisível de outros significados, sentidos, interpretações. É um acaso. E o acaso é o espaço da interpretação, da experiência, da comunicação que se abre entre nós e a obra. § O acaso não é aquilo que é sem sentido ou fortuito mas é o que possibilita que nada esteja à partida destinado. É a imprevisibilidade, a imponderabilidade: é a própria vida. § O acaso é o espaço vazio que nos é dado para podermos ser livres, o espaço nunca predefinido, onde somos nós entregues à experiência de podermos ser nós próprios, falhando, falhando de novo, falhando sempre. § A arquitectura é a experiência do acaso, isto é a experiência da vida, da construção inconstante de uma rotina nunca predefinida. Os desenhos e as imagens acabadas ficam no arquivo, lá fora a vida continua, a arquitectura ganha vida, enfeitiça-se, sacraliza-se e profana-se, desaparece e renasce. § A natureza indeterminável da arquitectura não é a sua imperfeição mas a sua grande possibilidade: que esta na paisagem ausente do quotidiano seja capaz de provocar o imprevisível, de nos interrogar, rasgar o véu do saber e trazer sempre algo novo, impossível e belo. § Que haja sempre uma hipótese de fugir ao que estamos fatalmente destinados é esse o sentido da palavra acaso.
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Interior do palácio Al Faw ocupado pelo exército Americano, Iraque, (Foto: Richard Mosse, série ‘Breach’, 2009).
godofredo Pereira
PROFANAÇÃO E
VANDALISMO SOBRE O ACASO NA VIDA DOS MONUMENTOS
Monumentos Foi recentemente transformada em condomínio de luxo a antiga sede da PIDE-DGS em Lisboa. No decurso das modificações a placa comemorativa existente foi recolocada numa zona menos visível, certamente para não prejudicar a boa imagem do edifício, um prédio que não chegou a ser monumento na revolução e que seguindo a sua vida se deixou profanar pelo mercado imobiliário. Perante tal afronta à memória do fascismo e da opressão, mas sem a capacidade de adquirir o edifício para o transformar num monumento – ou porque ele já é um monumento ao neo-liberalismo – a questão que sobrou foi a de saber onde recolocar a placa comemorativa existente. Pelo meio e como seria de esperar tanto a placa como a fachada do edifício foram vandalizadas. Honra aos Heróis, dizia. Depois de muita discussão restou à Câmara Municipal fazer uma nova placa inaugurada com pompa e circunstância. Dois monumentos num só ditou o acaso, algo que decerto o projectista original nunca imaginou. Firmitas Na relação da arquitectura com o acaso ganham relevo duas afirmações concorrentes: 1) se a arquitectura não pensa na sorte é porque pensa não depender dela e 2) se a arquitectura pensa na sorte é porque deseja controlar o acaso. A primeira afirmação é confirmada pelo ideal
da estabilidade Vitruviana: Firmitas não se refere apenas a uma estabilidade ou firmeza do construído, mas à sua necessária permanência ao longo do tempo enquanto permanência daquilo que é estabelecido pela arquitectura em si. O melhor exemplo deste desejo de inscrição são os monumentos, edificações com uma função de uso cerimonial, construção de peças representativas que supostamente falam para todo o sempre. E se estender este pressuposto específico dos monumentos a toda a outra arquitectura é debatível, já questionar até que ponto é que, mesmo no desenho de monumentos, a arquitectura cumpre este desígnio de permanência parece-nos mais relevante. Para iluminar esta questão teremos de indagar sobre o que se entende ser o objecto (propósito) da arquitectura. Se nos estivermos a referir à organização e disposição de materiais com dimensões específicas, então talvez possamos dizer que este objecto monumental permanece tal como as pirâmides ou os templos Gregos. Mas é sabido que o objecto arquitectónico não é exactamente a mesma coisa que o objecto da arquitectura, assumindo-se em geral que este é de facto o projecto: investido de ideias e funções, ideológico, simbólico e representativo (mesmo quando tenta não o ser). Enquanto projecto o objecto da arquitectura será então o planificar de uma construção de acordo com certos pressupostos ideológicos, uma definição que se enquadra bem com o que nos fornece a história da arquitectura: o monumento concretiza o projecto. Mas por 5
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outro lado temos também a inscrição do objecto no mundo, aberta à vida e à transformação, em que se passa de objecto acabado de construir (mundo perfeito) a objecto vivo, selvagem e alheio às maquinações do arquitecto. Apesar de não ser objectual, não poderá também esta dimensão almejar ao título de objecto da arquitectura? E se sim, poder-se-á afirmar que a arquitectura possui dois objectos de estudo, a saber, o objecto projectual e o seu devir-mundo? O problema não se põe. Simplesmente porque desde há muito que a escolha foi feita: é que a arquitectura, mesmo aquela que não almeja à monumentalidade, não quer geralmente ter nada que ver com vida, mas apenas com morte e perfeição, o que talvez explique um maior interesse na petrificação do projecto do que nas suas eventuais mutações. E porquê? Talvez porque nesta diferença entre o projecto e a sua vida edificada se interpõe uma figura que impõe a separação dos dois tempos, isto é, a figura do acaso. Assim sendo, a segunda afirmação que avançamos parece ser a mais correcta: a arquitectura pensa na sorte quando se deixa levar pela angústia de controlo que a todo o custo se recusa a aceitar o devir da própria arquitectura. Quando os imprevistos usos e transformações do edificado são descritos em termos de sorte ou azar, é sinal que se dá prioridade ao objecto projectual e por isso mesmo aí se espeta a primeira faca à arquitectura e à sua vida. Também tu, Brutus! Brutus aqui é o arquivo, essa tentativa de matar a arquitectura (fala-se exclusivamente do projecto e não do edifício). O arquivo é, como observa Kent Kleinman em Archiving Architecture1 um suplemento de qualidades que a obra construída necessariamente não terá (originalidade, estabilidade, permanência) e vive precisamente desta separação forçada entre projecto-ideia e obra-viva. O arquivo insiste nesta separação segundo a assunção de que a arquitectura está no projecto e o resto é obra do acaso, tentando passar a ideia de que o que se observa no projecto se observa no edificado: “O arquivo 6
deve ser mais precisamente descrito como uma máquina para esquecer que os projectos arquitectónicos são ontologicamente distintos das suas representações”. Só que fatidicamente o grande perigo espreita e as traças comem os livros. De facto o projecto enquanto objecto de arquivo ou de referência sofre também aí as necessárias vicissitudes da passagem do tempo, sob a forma da sua integração compulsiva em novas genealogias ou interpretações históricas. Ou seja, estamos perante um problema bem mais simples: ignora-se voluntariamente o acaso da arquitectura porque se sabe não o poder evitar, e busca-se o refúgio do arquivo como se este estivesse protegido da intempérie, oferecendo mais que uma protecção ilusória. Mas há quem vá mais longe e decida não só arquivar o projecto como arquivar o próprio edifício. O caso da Villa Müller é exemplar: na vontade de restaurar o projecto original de acordo com os desenhos e ideias de Loos, foram retiradas as camadas de tinta que escondiam as cores originais, foram retiradas mobílias não originais, a casa foi limpa até ao seu passadoideal, passado esse que pouco mais foi que o projecto. É patente o terror inerente à defesa do monumento, o terror ao mundano, que contra a vida vivida da arquitectura transforma o objecto numa obra de arte, intocável. Por isso, a recuperação da casa Müller (como a de tantas outras) é de facto profundamente anti-arquitectónica, e ainda mais se vista à luz das posições do próprio Loos. E o que é ainda mais curioso é que numa época em que se assume que os arquitectos já não constroem monumentalmente se continuem a produzir monumentos em todo o lado: monumentos às instituições, ao passado histórico, ao pensamento, à revolução, à cultura, à arquitectura, etc. O restauro da Villa Müller foi confirmado pelo arquivo dos seus desenhos originais e fotografias existentes. Mas restaurando-a o edifício deixa de ser arquitectura e passa a ser um arquivo construído. Como tal não pode ser tocado, transforma-se num monumento, uma imagem do auto-imaginar-se da sociedade. Assim, quando o arquivo não chega, mata-se o próprio
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edifício. Tudo para que o mundano acaso não profane ou vandalize a bela imagem que queremos da arquitectura. Profanação Mas passemos para o mundano, pois se nos debruçarmos sobre essa segunda vida do objecto verificamos que o acaso não é assim tão simples. A profanação do objecto arquitectónico significa segundo Agamben, a sua devolução ao comum, ao espaço mundano, agora fora do dispositivo de poder que o inscreve: “Uma vez profanado, aquilo que estava indisponível e separado perde a sua aura e é devolvido ao uso”2. Se usarmos o exemplo da arquitectura portuguesa do Estado Novo – que melhor exemplo se pode pedir para uma arquitectura que inscreve determinadas formas de poder pastoral na identidade colectiva de uma nação – então teremos como exemplo de profanação o Tribunal transformado em padaria, os Correios em discoteca ou o Portugal dos Pequeninos em loja de conveniência. Claro que muitas vezes tal não acontece – ou acontece menos vezes do que seria desejável – o que pode indicar problemas nesta ideia. Mas profanar significa retirar ao sagrado. Ora devemos começar por reparar que no que respeita à arquitectura, o sagrado é aquilo que é determinado pela ideia-função e cristalizado na sua representação ‘parlante’. O sagrado remete não só para um espaço religioso ou legal, mas principalmente para a sua cristalização projectual enquanto tal. Tratase aqui da arquitectura enquanto produção de sagrado e ela mesma produção sagrada. Assim os espaços sagrados da arquitectura são todos aqueles determinados para um ritual específico, desenhados para cumprir a inscrição na terra do sagrado (a Ideia). Dito de outra forma, são todos aqueles passíveis de serem profanados. Mas assim sendo temos que esta organização de poder pelo objecto não é exclusiva da arquitectura de estado ou arquitectura de excepção, mas sim estranhamente inerente à própria ideia de arquitectura. Aliás, verificamos que na maioria dos casos o objecto arquitectónico é o palco de constantes profanações, constantes
re-usos e adaptações, frutos da ocasião e das circunstâncias, ou para seguir a linha deste ensaio, do acaso. A profanação trata então da definição de limiares a partir dos quais se considera que o edifício está a ser desvirtuado, limiares a partir dos quais em certos casos se pode recorrer a mecanismos legais disponíveis para intervir e repor a ordem. E principalmente a profanação força o constatar da irremediável distância entre o ideal projectado e o real vivido e necessariamente transformado. Vandalização Por vezes, a profanação não é apenas fruto do quotidiano e das suas preocupações terrenas, mas de um acto deliberado contra a imagem do objecto edificado. Este acto que pelo objecto (ou sobre ele) visa produzir um determinado efeito político, indica que se é possível passar do sagrado ao profano, então também é possível o seu oposto, a passagem do profano para o sagrado. A esta acção daremos, à falta de melhor, o nome de vandalização. O acto de vandalismo parte do princípio de que a separação entre sagrado e profano, entre poder e viver (ou entre o poder inscrito no projecto e a selvajaria mundana do edificado) não é mais que uma fabricação, uma manobra que esconde o real poder do edifício e que esconde a verdade da arquitectura. Vandaliza-se porque vale a pena vandalizar, porque o edifício representa algo. O muro da universidade é um monumento ao poder instituído, a capela em desuso é de facto a manifestação de uma instituição conservadora, a vandalização de uma fachada vai decerto enfurecer os apoiantes do partido politico adversário, etc. A vandalização é portanto um momento de ataque ao profano (ataque ao edifício que finge ser profano) mostrando que ele é profundamente sagrado, trazendo ao de cima o monumento totémico que se esconde na rotina da vida quotidiana e mundana. O escritor Robert Corbu indicava num texto sobre monumentos desconfiar da sua suspeita inconspicuidade. A suspeita inconspicuidade dos monumentos é a sua capacidade para passarem despercebidos quando reduzidos a 7
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fundos, perdidos no dia-a-dia dos hábitos até que alguém os retire a essa invisibilidade. E ao tentar ser iconoclasta, a vandalização pressupõe que para os outros existe ali um tabu e reinveste totemicamente o edifício, conferindo-lhe a capacidade para articular e dar visibilidade a uma luta de poder que necessariamente o ultrapassa: expõe o sagrado, torna-o visível e ao mesmo tempo duplica o seu poder. A vandalização pressupõe que ao atacar a fachada se ataca simultaneamente a ideia que está expressa na fachada. E pressupõe que alguém se importa (e de facto há sempre alguém que se importa...). Assim, se a profanação parece marcar uma diferença ontológica inscrita nos próprios fundamentos da prática da arquitectura entre o projecto do objecto e a vida do objecto - i.e. duas arquitecturas - já a vandalização através da sua acção sacrificial, nunca remete para o profano, mas sempre para o sagrado. Só que é precisamente por este estar no mundo que a vandalização é capaz de devolver ao objecto mundano o seu carácter ideal e que assim o ressuscita da morte. E é este momento de encantamento que se torna decisivo. No momento da vandalização, a separação entre sagrado e profano colapsa e edifício, uso e simbologia, recuperam uma co-imanência que lhes escapa desde que se transmutaram de projecto em obra, e que no fundo opera a união, o encontro ainda que momentâneo entre essas duas vidas da arquitectura, a vida ideal, projectada, e a vida real mundana e conflitual. A vandalização desenterra a Ideia para monumentalizar a terrível realidade que se esconde no profano.
torno ao edificado ou fazendo uso do edificado. Para além de Kleinmen, diremos finalmente que não se trata tanto ou simplesmente de uma separação ontológica, mas de duas linhas de vida que casualmente se cruzam e voltam a separar, produzindo-se momentos de transferência entre elas, forçados pelos variados encantamentos mágicos do edifício e do projecto e pelas igualmente feiticistas tentativas de os desmascarar. Assim sendo o objecto da arquitectura não será mais do que a tentativa de ter pulso nesta relação entre inscrição e transformação ou entre morte e vida. Afinal, o problema é que a monumentalidade – que é normalmente identificada com o simbolismo clássico – não advém simplesmente de uma decisão de construir monumentalmente, isto é, de seguir uma certa forma de projectar, mas principalmente de circunstâncias imprevisíveis ditadas pelo acontecer da arquitectura, que resultam no edifício tornado monumento. Ora dá-se o caso deste processo poder cristalizar para a história da arquitectura uma organização espacial e uma linguagem formal que se baseou precisamente na ideia de anti-monumentalidade. E aí produz-se o léxico de uma nova monumentalidade, isto é, de uma nova forma de representar e fazer ver pela arquitectura. Diria Benjamin que é aura que está em jogo, diremos nós que a angústia contra o acaso, que parece animar os delírios de controlo do arquitecto, resulta da incapacidade de aceitar o carácter totémico e feiticista do objecto arquitectónico. E que é essa capacidade de descobrir poderes ocultos e uma espécie de alma vivente na matéria inanimada que faz a vida da arquitectura.
Animismo Temos portanto que entre estas duas vertentes da arquitectura, ou entre os seus dois objectos existem múltiplas relações, de apropriação, de profanação, de violência, passando do simbólico ao profano, do usual ao monumental, movimentos que reflectem as lutas de poder em
Godofredo Pereira (Porto, 1979) Arquitecto pela FAUP. Mestrado AVATAR, pela Bartlett School of Architecture. Desenvolve tese de doutoramento sobre ‘Feiticismo e Política Mágica dos Monumentos’, no Centre for Research Architecture, Goldsmiths University, Londres, com bolsa da Fundação para a Ciência e Tecnologia. É co-editor da DETRITOS (http://www.revistadetritos.com) e lecciona na Bartlett School of Architecture, Londres.
1 Kent Kleinmen, Archiving Architecture, (in Blouin, Francis X., Rosenberg, William G., Archives, documentation, and institutions of social memory: essays from the Sawyer Seminar, University of Michigan Press, 2006, pp. 54-60). 2 Giorgio Agamben, Profanations, Zone Books, NY, 2007, pp. 73-92. 8
‘Honra aos Heróis’ - grafitti na fachada da antiga sede da PIDE-DGS em Lisboa, antes de serem iniciadas as obras para a sua transformação em condomínio de luxo. (Foto: autor desconhecido)
PEDRO OLIVEIRA
Bas Jan Ader no Ocean Wave (Cortesia CGAC, 2010)
Os destroços do Ocean Wave. Detalhe do material documental da exposição (CGAC, 2010)
Miguel Leal
FA(I)LLING
Try again. Fail again. Better again. Or better worse. Fail worse again. Still worse again. Till sick for good. Throw up for good. Go for good. Where neither for good. Good and all. Samuel Beckett
Na manhã de 18 de Abril de 1976, quando navegava 100 milhas a sul da costa irlandesa, um barco de pesca galego avistou o casco semisubmerso de um pequeno veleiro de recreio que não chegava a ter 4 metros de envergadura. À deriva em mar aberto e sem sinais de ocupação recente, o barco foi encontrado na vertical, com a proa no fundo e parte da popa fora de água. No seu interior, entre vários outros objectos, descobriu-se um passaporte no nome de Baastian Johan Christiaan Ader. Tratava-se com efeito do Ocean Wave, o barco no qual, a 9 Julho de 1975, o artista de origem holandesa Bas Jan Ader tinha partido de Cape Cod, no Massachusetts, tendo como destino o porto de Falmouth, na Grã-Bretanha. Não era a primeira vez que Ader cruzava o Atlântico num barco à vela. Já em 1963, com 20 anos, depois de viajar à boleia por França e Espanha, tinha embarcado em Marrocos num veleiro que o levaria numa longa e atribulada travessia de 11 meses até San Diego, na Califórnia, com passagens pela Martinica e pelo Canal do Panamá. Estabelecido desde então em Los Angeles, para Bas Jan Ader a viagem do Ocean Wave era por isso mesmo uma espécie
de retorno mais ou menos romântico ao lugar de onde tinha partido anos antes. No entanto, quando planeou enfrentar sozinho o oceano Atlântico numa arriscada aventura — e nunca antes tentada em tais condições —, Ader tinha como objectivo concluir o seu projecto In Search of the Miraculous e podemos por isso dizer que se tratava acima de tudo uma radical experiência estética. Apesar da adaptações que lhe foram feitas, o barco escolhido, um Guppy 13 Pocket Cruiser, um pequeno veleiro de recreio muito popular à época na Califórnia, não parecia o mais indicado para a travessia. Desafiar o Atlântico sozinho numa autêntica casca de noz foi para Ader apenas mais uma forma de ensaiar o difícil encontro entre a tragédia e a farsa, derradeira tentativa de levar ao limite o confronto com as ideias de risco, queda, fracasso ou desaparecimento que parecem dominar a sua obra. In Search of the Miraculous era assim o gesto radical exigido a um artista que experimentou de um modo muito particular a tão reclamada fusão entre vida e obra que marcou as décadas de 60 e 70. Na verdade, Ader integrou a primeira geração de artistas conceptuais da costa leste mas desde cedo o seu trabalho mostrou uma dimensão poética que o aproximava da já longa tradição do Romantismo. Há, ainda assim, um lado absurdo e trágico-cómico que também permite relacionar a sua obra com as mecânicas específicas do burlesco. Observe-se, por 11
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exemplo, como Ader enfrenta a gravidade em dois curtos filmes de 1970 — Fall I e Fall II. No primeiro, vemo-lo sentado numa cadeira em cima de um telhado de onde acaba por cair no chão, desamparado e aos repelões; no segundo, pedala ao longo de um canal para cair bruscamente na água. Sem explicação aparente, as duas quedas são absurdas e estão talvez mais próximas da comédia splatstick de Buster Keaton do que da grande tragédia romântica. Por isso mesmo, o modo como Ader combina essa dimensão trágico-cómica com a melancolia evidente da sua figura solitária, em filmes como I’m Too Sad to Tell You, de 1971, no qual chora convulsivamente em frente à câmara, ou em Broken Fall (Organic), do mesmo ano, em que se baloiça pateticamente do alto de uma grande árvore até se deixar cair na água, transformam o seu trabalho numa variante singular da arte conceptual e, ao mesmo tempo, como alguém assinalou, numa síntese pouco comum entre a Europa e a América. A primeira parte do projecto In Search of the Miraculous foi apresentada em Los Angeles pouco tempo antes da partida do Ocean Wave e o seu segundo momento deveria ter resultado da viagem solitária de Ader, para o que se planeava já, entre outras, uma exposição no Museu de Groningen, na Holanda. Ora, Ader veio a desaparecer algures no meio do Atlântico, naquela que é uma forma estranhamente topográfica de definir a ideia 12
de interrupção e talvez a única que poderia em boa verdade completar um projecto que pretendia levar ao limite as ideias centrais da sua obra. Quando o casco do Ocean Wave foi encontrado, 10 meses após a partida de Cape Cod, estava já coberto de algas e moluscos e por isso estima-se que andasse à deriva há vários meses. Sabe-se apenas que se perdeu o contacto via rádio com Ader três semanas após a partida e julga-se que alguma coisa terá acontecido ao Ocean Wave já depois de ter passado os Açores. Os sinais encontrados no barco não foram suficientes para reconstituir o sucedido. O Ocean Wave foi trazido pelo pesqueiro galego para o porto da Corunha mas pouco tempo depois viria a desaparecer misteriosamente uma segunda vez, agora em definitivo. Do Ocean Wave não restam pois mais do que algumas imagens, ajudando a adensar o mistério em volta da última viagem de Bas Jan Ader. § Na Bienal de Veneza de 2005 Joachim Koester apresentou Message from Andrée, uma peça na qual podemos encontrar sinais da sua vocação de caçador de fantasmas. O ponto de partida de Koester foi a viagem falhada, em 1897, dos exploradores suecos Salomon A. Andrée, Nils Strindberg e Knut Frænkel, que queriam sobrevoar em balão o Pólo Norte. O balão,
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baptizado com nome de ave imperial — Örnen (Águia) —, partiu de Danskøya, perto de Spitsbergen, no Árctico, a 11 de Julho de 1897, mas ao fim de três dias, a poucas centenas de quilómetros do ponto de partida, caiu no gelo para não mais se levantar. Andrée, Strindberg e Frænkel andaram então à deriva sobre o gelo implacável do Árctico durante várias semanas até se instalarem, com a intenção de aí passar o Inverno, numa pequena ilha desabitada — Kvitøya [White Island] —, onde viriam a morrer em data incerta do mês de Outubro. O desaparecimento heróico da expedição ficaria envolto em mistério durante mais de trinta anos, até que em 1930 se descobriu, quase intacto, o acampamento montado em Kvitøya. Aí estavam os corpos dos três homens, os seus diários de bordo e as películas fotográficas nas quais Strindberg, o fotógrafo de serviço, fixou metodicamente as peripécias do pequeno grupo. À época, este achado improvável fez furor dentro e fora da Suécia, tendo a reconstituição das desventuras da expedição liderada por Andrée ajudado a alimentar o imaginário de muitos leitores. Joachim Koester não foi pois o primeiro a interessar-se pelas fatalidades e contingências do destino da expedição em balão sobre o pólo, mas fê-lo de um modo muito particular. A obra de Koester é povoada de assuntos obscuros e personagens estranhas, movimentando-se ambiguamente entre o documentário e a ficção; no entanto, o centro da instalação de Veneza não era tanto a história dos três aventureiros
mas sim um filme em formato 16mm, mudo e quase abstracto. Dos rolos fotográficos especialmente preparados pela Kodak para a expedição, recuperaram-se cinco em 1930, já expostos, um deles ainda no interior da máquina. Surpreendentemente, após tanto tempo, logo na altura foi possível revelar quase uma centena de imagens. Alguns dos negativos, cobertos de manchas e riscos, tinham ficado praticamente ilegíveis, mas foram precisamente as marcas físicas do seu destino a prender a atenção de Koester. Para Message from Andrée, o artista filmou, frame a frame, as manchas importunas que povoam o branco de outro modo imaculado das paisagens retratadas nas fotografias de Nils Strindberg. O resultado final é paradoxal, silencioso e abstracto, qualquer coisa que pode ser descrita através do ruído que certos espectros sonoros ou visuais se mostram capazes de produzir. Koester optou por se concentrar nas qualidades plásticas das imagens, no preciso sentido de uma plasticidade que deriva directamente da abertura ao acaso e à mudança, ao acidente e à contingência. No filme somos confrontados com essa espécie de autonomia plástica da emulsão fotográfica que liberta as imagens de uma função documental e as isenta de qualquer valor de indexação. Foi portanto o potencial visionário e alucinatório dessas manchas mais do que a referência das fotografias a um passado trágico, que atraiu a imaginação de Koester. A deriva dos três homens sobre as placas soltas de gelo, com tudo o 13
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que isso tem de uma dramática psicogeografia e de um jogo com o acaso, encontra no filme um émulo visual de carácter telepático e alucinatório. Das desoladas paisagens do Árctico retratadas por Nils Strindberg restam no filme as manchas informes que o acaso produziu, e é precisamente esse ruído, essa música do acaso tantas vezes interpretada como erro ou falha incómoda, que constitui a substância da intervenção de Koester. Há pois um inconsciente que se esconde nas velhas e gastas películas encontradas em Kvitøya, um inconsciente sem o qual aquelas imagens não seriam o que são e que aparece no filme de Veneza como narrativa abstracta e silenciosa, singela homenagem tanto à desgraçada aventura sobre o gelo do Árctico como ao potencial auto-poético e imaginativo das coisas, em particular dessas manchas que ganharam vida própria e reapareceram à superfície como a derradeira mensagem de Andrée.
filme de Koester são como que uma metonímia que me permite continuar falar da suspensão e do aparente fracasso da viagem de Bas Jan Ader. Através deste método espero que se possa descobrir que nenhuma das viagens falhou verdadeiramente porque o que importa é tentar outra vez para falhar outra vez, apenas para falhar melhor, de uma vez por todas ainda pior outra vez...
§ A sombra de Beckett e a circularidade implicada no bater sincopado do texto de Worstward Ho (1983) — Try again. Fail again. Better again. Or better worse. Fail worse again. Still worse again... — persegue-me há vários anos como marca possível de uma ontologia da própria prática artística. Não é coisa sobre a qual se possa escrever directamente e por isso recorri a um efeito de deslocação em que a referência à queda do Örnen e às manchas do 14
Miguel Leal (Porto, 1967) Artista plástico. Vive e trabalha no Porto. Membro fundador da VIROSE, uma estrutura interdisciplinar dedicada aos media e ao estudo das relações entre arte tecnologia. É professor na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto (FBAUP), onde orienta trabalho de atelier e lecciona cadeiras de arte e cultura contemporâneas. http://ml.virose.pt
O Örnen imediatamente após a aterragem forçada a 14 de julho de 1897. Fotografia retocada.
Este texto foi em parte motivado pela exposição In Search of The Miraculous: Trinta anos despois, apresentada entre Maio e Setembro de 2010 no Centro Galego de Arte Contemporânea, em Santiago de Compostela. Com curadoria de Pedro de Llano, a exposição partia da ligação fortuita da história do Ocean Wave à Galiza para oferecer uma leitura abrangente da obra rarefeita de Bas Jan Ader.Repare-se, a propósito da aventura do Örnen, que logo em 1930 saiu na Suécia o livro Med Örnen mot Polen, baseado nos diários de Andrée, Strindberg e Frænkel e ilustrado com algumas das fotografias recuperadas em Kvitøya, ainda que retocadas, de imediato publicado com sucesso em vários outros países (veja-se a versão americana em edição dirigida a um público juvenil: Andrée’s Story: From the diaries and Journals of S. A. Andrée, Nils Strindberg, and K. Frænkel, found on White Island in the Summer of 1930 and edited by the Swedish Society for Antrophology and Geography, Nova Iorque, Blue Ribbon Books, c. 1930). Para mais detalhes sobre a peça de Joachim Koester em Veneza ver o catálogo Joachim Koester: Message from Andrée, Copenhagen, The Danish Arts Agency, 2005.
Nove memórias-registos (Le Corbusier - Villa Savoye, Álvaro Siza - FAUP e Bonjour Tristesse, Mies - Pavilhão de Barcelona e Neue Nationalgalerie, Steven Holl - Kiasma)
Pedro LEVI Bismarck
A MEMÓRIA DO PRESENTE O imprevisível DEVIR do espaço - arquitectura, liberdade e amor
É a imprevisibilidade que faz o acontecimento, mas é também a imprevisibilidade que faz o próprio conhecimento. Não é aquilo que probabilisticamente se pode determinar mas é o ponto improbabilístico que rasga o próprio véu do saber e mostra qualquer coisa que até aí não fomos capazes de prever. Carlos Amaral Dias1
Prelúdio 1 : Palomar O inquieto senhor Palomar2 está sobre o mar mas não o observa, fixa o olhar sobre uma onda, uma apenas. Tenta prever todos os seus movimentos, a sua dinâmica inquieta. Precisa de encontrar uma ordem, um esquema que lhe permita organizar toda essa complexidade. Não desiste. Reduz o campo de observação, regista todos os pequenos detalhes. Se conseguir será em breve capaz de prever todos os movimentos e passar à derradeira fase: estender esse conhecimento ao universo inteiro. Mas a maré muda subitamente e o senhor Palomar perde a paciência, regressando a casa ainda mais nervoso. Esta pequena metáfora que Italo Calvino nos oferece sobre os modelos humanos de explicação do mundo é aqui tão simples como magnificamente exposta. De facto, o homem constrói-se a partir dessa vontade de controlar os fenómenos do mundo, de nomear e de lhes dar um sentido. Projectar, investigar, planear são os nomes desses mecanismos de domínio da realidade. Formas, operações de organização da vida quotidiana que traçam esse percurso para uma artificialidade especificamente humana. A casa-abrigo não é o indomável território-onda, mas sim o pequeno campo de observação das coisas seguras e previsíveis. A casa faz-se sobre o signo da firmitas, da permanência, de um habitus capaz de nos colocar em segurança com o mundo. Mas cada campo de observação é apenas uma estação provisória e, tal como em Palomar, há sempre uma maré, um distúrbio iminente e imprevisível. Toda a construção é provisional, contingente, assim é a nossa essência humana, na morte para além da morte. Préludio 2 : Un coup de dés O que é irredutivelmente interessante no poema Un coup de dés de Mallarmé é que o acaso é uma metáfora que nomeia não o objecto do poema, mas o seu irreparável propósito. O acaso que o poeta francês assinala é a abertura improbabilística que se abre na interpretação do seu próprio poema. O espaço branco que é deixado entre as frases é o espaço do acaso, da 17
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interpretação, dos sentidos que se (o)põe em cada leitor. Era esse também o sentido da palavra duchampiana infra mince, esse ínfimo pormenor, esse mínimo evento capaz de dar um sentido provisional à obra de arte e transformá-la não num objecto estético, mas num conteúdo provisório, num agenciamento de outros significados. E essa é também a busca absoluta de John Cage, não a procura por uma nova linguagem, mas essa de abrir a música ao indizível mundo do acaso, mas abrir como sinónimo de libertação dos códigos tradicionais, para além do beco infindável das mimetologias académicas. Foi essa também a procura última de Yago Conde, essa indeterminação precisa do sentido da arquitectura. Mas uma indeterminação que não é a procura infinita do fortuito, mas sim da precariedade própria da disciplina. Precariedade como provisionalidade contra a automatização dos discursos encerrados em si próprios; precariedade como experimentação, questionando em cada momento a arquitectura e os significados demasiado exactos que esquecemos já de interrogar. Em suma: precariedade como uma forma de estar atento. I. O espaço provisional - fazer(-se) casa Incerteza como imprevisibilidade e indeterminação como provisionalidade são os sentidos da palavra acaso que nos interessam aqui reter, mas são também os significados que sobrevêm da origem etimológica desta palavra. Casus, em latim, significava não apenas um acontecimento, uma oportunidade, mas nomeava também o próprio acto de cair, daquilo que imprevisivelmente cai e que, por conseguinte, perece3. O que subitamente se torna relevante na digressão por esta palavra, é que aquilo a que hoje chamamos casa tem precisamente a mesma origem etimológica que acaso. A casa para os romanos não era algo sólido ou estável, mas uma construção provisória e precária, uma cabana, uma barraca 4. Ora, que tenha sido esta palavra e não a palavra domus5 a nomear esse distinto lugar do habitar e da privacidade do humano frente ao mundo, mostra muito 18
da precariedade do nome e da acção que a palavra casa ainda hoje nomeia. Se a domus invoca desde logo essa acção triunfante sobre o território e sobre a natureza, por outro lado, a casa traz consigo, e de forma bem presente, essa precariedade e fragilidade não apenas da sua construção, mas do próprio acto/evento do fazer-se habitar e do ocupar-se lugar para praticar esse residir, esse estar-no-mundo. Se como nos diz Heidegger, ir ao encontro das palavras é ir ao encontro do mundo6, e se a teoria e o exercício da escrita são, antes de mais, uma caixa de ferramentas como o escreve Foucault, então a questão é sempre o que podemos fazer com estes nomes e o que podem eles identificar e oferecer à nossa actividade quotidiana? Neste caso concreto, as palavras advertem-nos que mesmo por detrás da aparência e da solidez do nome casa, esta é algo profundamente precário e provisório, mas que simultaneamente se faz sobre essa provisionalidade. A casa-projecto como algo pré-definido, acabado, deverá ser entendida antes como casa-táctica, como algo que se pensa, desenha, reconhecendo a natureza provisional do espaço e do tempo. Se o acaso tem algum sentido enquanto experiência do mundo é o reconhecimento de uma dimensão especifica da vida e do habitar que aparece toujours improbabilisticamente, exigindo sempre atenção, resposta, mas sobretudo invenção – a capacidade de escutar o imprevisível e ensaiar uma reacção. Porque é precisamente aí, nesse espaço do confronto súbito que ocorre fora da rotina do habitus, que se produz a essência criativa do ser no mundo, onde este produz/encontra o seu próprio espaço de acção e de liberdade. E quando isso acontece, quando esse espaço imprevisível e indeterminado se abre, podemos dizer que o homem fez casa, ou talvez, fez-se a si mesmo casa. O que a palavra casus nomeia é precisamente isso, essa possibilidade que algo aconteça, e esse acontecer inestimável que a casa permite e oferece é esse lugar do eu, do ser junto-às-coisas, nunca sobre-o-mundo (como na domus), mas sempre provisionalmente, indeterminadamente, abrindo-nos de uma forma sempre nova e livre às coisas. A casa
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não é um simples suporte de rotinas, mas sim o praticável7 que permite que o ser ocupe um lugar no mundo, não para dele se esconder, mas para a partir daí poder comunicar com ele. Que esse espaço não seja determinável na sua forma, nem previsível no seu sentido, não é uma imperfeição da casa, mas a sua dádiva, a possibilidade última que possibilita a própria arquitectura, deixando sempre que algo mais advenha, aconteça e possa ter um lugar no mundo, para além do mundo8. 2. O espaço-por-vir: agio Na paisagem tecnificada e impositiva da realidade qualquer discurso arquitectónico sobre a casa terá de reconhecer que esta é, acima de tudo, um processo aberto, uma táctica provisória para uma conquista do lugar. E que o último reduto do privado não deve e não pode ser uma submissão aos ditames burocráticos das leis, dos mercados ou das imagens, mas deve ser sempre e cada vez uma reflexão-digressão sobre a construção da liberdade individual no mundo e a construção de um espaço de relação com o outro. É esse o sentido da palavra agio (à vontade), utilizada por Giorgio Agamben, que «indica de acordo com o seu étimo, o espaço ao lado (ad-jacens, adjacentia), o lugar vazio em que cada um se pode mover livremente, numa constelação semântica em que a proximidade espacial confina com o tempo oportuno (ad-agio, ter agio) e a comodidade com a justa relação»9. Agio é o lugar do livre uso do próprio, é o espaço do porvir, daquilo que não estando determinado, nem estando destinado, apenas a nós cabe cumprir e realizar10. É o espaço do nosso ser que é deixado em suspenso, um espaço-acaso, um espaço-casa, que permanece por fazer e por vir. Não é o lugar do casuístico ou do fortuito, mas o espaço adjacente, indeterminado nas suas margens e imprevisível na sua natureza, que se abre no limite do ser e permite que este conquiste a sua singularidade, esse seu lugar no mundo. Ter agio é fazer(se) casa, é conquistar a intima fragilidade do mundo, mas é acima de tudo, o lugar-encontro
que se faz na presença e na procura do outro, na partilha, na constelação semântica e na simultaneidade provisional e única entre dois tempos e dois espaços. É um verbo mais que um nome, uma acção mais do que um facto, um espaço aberto e indeterminado que se faz mundo entre o homem e as coisas11. 3. O espaço instante - a memória do presente Mas não será também o agio essa indeterminação nos limites de cada objecto que Yago Conde procurava; os espaços brancos entre as frases de Mallarmé; o silêncio imperscrutável da música de John Cage ou o infra mince de Duchamp? Esse momento ínfimo e imprevisível que faz do encontro entre a obra de arte e o espectador um evento plenamente individual e inter-subjectivo, para além de qualquer sentido universal. A obra de arte abre-se ao acaso, à abertura e à aventura da interpretação, e é o interprete-criador que dá o seu sentido último, possuindo-a, destruindo-a, refazendo-a. E quando esse instante único se faz casus e se faz casa, dá-se precisamente aquilo a que podemos chamar o facto estético. Baudelaire escrevia que era a passagem imediata da experiência à memória que concretizava o momento estético (a memória do presente12); mas não será esse momento o instante único onde a experiência é simultaneamente já memória, isto é, onde o presente é já o ausente, onde aquilo que vejo é simultaneamente aquilo que recordo? A sincronização absoluta e imprevisível de dois tempos, o ínfimo paradoxo que faz com que algo se escape da escuridão e seja, enfim, belo – não pela sua forma, pela sua proporção, mas por nos pôr frente a frente com essa impossibilidade humana: recordar o que ainda posso tocar e tocar aquilo que sei que vou recordar, que quero recordar. Que esse momentum súbito, esse instante ínfimo possa acontecer e tomar lugar, disturbando os limites da nossa linguagem e interrogando a nossa quotidianidade, abrindo um espaço um agio - de aproximação e de encontro em direcção ao mundo, é esse o sentido último 19
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da obra arquitectónica. Que isso aconteça imprevisivelmente, indeterminadamente e até no mais ínfimo pormenor, apenas reforça a nossa confiança na capacidade e no valor da arquitectura. 4. O espaço imperceptível – desvelando, interrogando o real Toda a produção artística exige de nós atenção e vigília, há sempre algo a des-velar, a descobrir. Mas o verdadeiro conteúdo da revelação não é aquilo que é por si próprio revelado, mas aquilo que esta, no seu silêncio, deixa ainda por dizer. Isto é, não o que em si é inexpugnável à compreensão, mas o que é deixado a mim para poder dizer. Também na obra de arquitectura assim o é: se nada tiver sido deixado por dizer (e por vir), então significa que nada afinal foi dito. Como escreve Agamben, «o único conteúdo da revelação é aquilo que é fechado em si, o que é velado – a luz é apenas a chegada do escuro a si próprio»13. Na digressão-em-viagem pelos espaços de Álvaro Siza há sempre algo que fica por dizer, há sempre um significado indeterminado, um gesto imprevisível que pede um outro sentido. A lição fundamental de Siza não está no desenho ou no método, naquilo que imediatamente vemos, mas naquilo que fica por ver. Para Siza a arquitectura é, acima de tudo, um dispositivo crítico e irónico sobre o exercício da quotidianidade. Cada edifício é em si uma reflexão sobre a sua própria
condição, cada edifício subverte a essência de si mesmo e interroga a natureza da nossa relação com o espaço, com os programas, com o quotidiano. Na paisagem distraída das rotinas diárias, Siza faz do espaço arquitectónico uma experiência por vir, interrogando-nos e provocando-nos, subvertendo o mais ínfimo pormenor e exigindo de nós toda a atenção e disponibilidade, mas sobretudo, toda a vontade – agio. O traço negro que circunda o Pavilhão Carlos Ramos; as escadas-percurso que dão acesso à Casa de Chá da Boa Nova; o vermelho-cor das paredes interiores do cubo de entrada na Faculdade de Arquitectura, mas também essa perspectiva acelerada do corredor, e em Berlim, o olho invisível do Bonjour Tristesse, guardam essa precisa indeterminação da arquitectura, essa capacidade de provocar o imponderável, de interrogar, de abrir um espaço na memória do presente, rasgando o véu do saber e trazendo sempre algo novo, impossível e belo. Os poetas provençais fazem do agio um «terminus technicus» da sua poética, que designa o lugar próprio do amor. Ou melhor, não tanto o lugar do amor, quanto o amor como experiência do ter-lugar de uma singularidade qualquer. Giorgio Agamben, A comunidade que vem
Pedro Levi Bismarck (Praia da Granja, 1983). Arquitecto pela FAUP. Estudou e trabalhou em Berlim. Está actualmente a desenvolver a sua tese de doutoramento na FAUP. Vive no Porto. spacingzyx24.blogspot.com
1 Carlos Amaral Dias, programa Alma Nostra, Antena 1 (20 de Abril de 2010). 2 Italo Calvino, Senhor Palomar. 3 Casus está etimologicamente ligado ao verbo cadere. San Isidoro de Sevilla, Etimologias. 4 Idem. 5 Domus é o domínio do senhor, daquilo que foi domesticado. Ibidem. 6 Para Heidegger, compreender/pensar os nomes que se ocultam por detrás das palavras é compreender/pensar a relação imemorial do homem com o mundo. CF. Heidegger, Das ding. 7 Termo convocado por Manuel Mendes. 8 Giorgio Agambem. Cf. A ideia do ter-lugar é desenvolvida no livro A Comunidade que vem. 9 Idem, pp. 27. 10 Agamben chama a isso a nossa possibilidade ética - o ethos - a nossa segunda natureza. Ibidem, pp. 30. 11 A expressão sentir-se em casa assinala a forma verbal que faz a casa e amplifica o sentido provisional desta como algo que acontece, através da produção momentânea de um espaço-em-que-se-pode-estar. 12 Charles Baudelaire, Critique d’art suivi de critique musicale. A memória do presente revela, em Baudelaire, o sentido efémero do próprio presente, mas também retém a importância da experiência do presente como construção de uma memória singular. 13 Giorgio Agamben, Ideia da Prosa, pp.117. 20
Stéphane Mallarmé, Un coup de dés, 1897 (página da edição francesa, 2003) O número / se existisse / diverso da alucinação esparsa da agonia / começasse ou findasse / ensurdecedor e não negado e preso quando aparecesse / enfim / através duma profusão ampliada e rara / se contasse / como evidência da soma pouca uma / se iluminasse / o acaso / cai / a pena / rítmica suspensa do sinistro / para se afundar / na espuma original / recente onde explode o delírio até ao cimo / desvanecido / pela neutralidade idêntica do abismo.
Nove variaçþes sobre uma mesma casa. A
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ATELIER DA BOUÇA
NOTAS SOBRE A PRÁTICA DO ACASO A CASA COMO LABORATÓRIO ESPACIAL
Nove variações sobre uma mesma casa. A
C
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Alguma arquitectura apavora-se com o acaso!
O acaso é implacável!
A arquitectura manipula o espaço do acaso.
Alguns projectos de espaços querem determinar completamente a vida que neles decorre e decorrerá em todos os próximos tempos. Fazendo um paralelo ao teatro, diríamos que desejam à partida conhecer e dar resposta tácita a um argumento, uma narrativa completamente definida. Se essa narrativa não está disponível à partida, tornase também ela objecto de projecto na sua finitude. Entendendo o acaso como algo que acontece sem ser consequência de algo passado, ou seja, efeito que não se explica por uma determinação precedente, nestes projectos o acaso é um drama, o pavor! Os espaços que eliminam a surpresa, que condicionam e prevêem tudo, têm tanto medo das surpresas más (pouca confiança nas capacidades do espaço) que eliminam qualquer hipótese de surpresa boa.
O acaso existe e é impossível, além de ser escusado, desenhá-lo. Como todas as profissões que gerem/lidam com o percurso das coisas no tempo, ambicionamos projectar/ condicionar o futuro, este desejo, sabemo-lo desde o início, é irrealizável na sua completude, mas quem disse que nós queremos mesmo prever tudo? Não podemos (nem conseguíamos se quiséssemos...) conhecer o acaso, e condicioná-lo? Até que ponto? Até que ponto queremos fechar todas as saídas e deixar uma família/instituição/ comunidade enclausurada? O conforto não é a possibilidade de acaso, a multiplicidade de apropriações, a máquina aberta à sua manipulação?
“A ideia de que a arquitectura deve facilitar todos os movimentos, de igual maneira, é assumir que a arquitectura não toma uma posição filosófica, por exemplo em relação à vida das pessoas, isso parece-me um disparate. Por outras palavras, eu gosto mais de uma casa que me dificulta, ou que me põe obstáculos para me impedir que faça coisas tontas e que me facilita movimentos para fazer coisas sensatas”. Gonçalo M. Tavares1
Filipa de Castro Guerreiro e Tiago Macedo Correia [atelier da bouça] Nasceram em 1976, licenciaram-se na FAUP em 2000. Desenvolvem actividade profissional desde 2001. Fundaram em 2008 o atelier da Bouça. Filipa é docente de Projecto 1 e responsável pelo Pelouro da Comunicação da OASRN 2008-10. A dois (ab)usam (d)a casa como laboratório espacial, partilham a obsessão pelo vazio enquanto matéria da arquitectura. 24
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Intensificando, “praticar o acaso” informa a prática do projecto...
O acaso pode informar o projecto de arquitectura. Tudo tendo tendência ao equilíbrio, as coisas tomam, naturalmente, o seu lugar justo, isto é adequam-se aos rituais/movimentos que nós fazemos no tempo e espaço. "Observez un jour, non pas dans un restaurant de luxe où l’intervention arbitraire des garçons et des sommeliers détruit mon poème, observez dans un petit casse-croûte populaire, deux ou trois convives ayant pris leur café et causant. La table est couverte encore de verres, de bouteilles, d’assiettes, l’huilier, le sel, le poivre, la serviette le rond de serviette, etc. Voyez l’ordre fatal qui met tous ces objets en rapport les uns avec les autres; ils ont tous servi, ils ont été saisis par la main de l’un ou de l’autre des convives; les distances qui les séparent sont la mesure de la vie. C’est une composition mathématiquement agencée ; il n’y a pas un lieu faux, un hiatus, une tromperie. Si un cinéaste non halluciné par Hollywood était là, tournant cette nature morte, en ‘gros plan’, nous aurions un témoin de pure harmonie." Le Corbusier 2.
E se, apesar de separarmos o ser e o parecer, as nossas rotinas mudarem mais depressa do que os objectos levam a assentar? E se não quisermos que o conforto se instale perene e obtuso e, pelo contrário, pela disposição estranha dos objectos, quisermos que o espaço nos faça/obrigue a mudar?
Quando se passa de mero observador a jogador, quando exploramos os limites da flexibilidade e refinamos/ radicalizamos as nossas experiências (laboratoriais), seguindo o método científico (problema – premissa resultante da vivência - , hipótese – projecto que responde ao problema -, experiência – construção do espaço -, observação – análise das vantagens e problemas que o novo espaço impõe, levando ao estabelecimento de novas premissas) reunimos um conjunto de informações passíveis de generalização e por isso úteis para qualificar/ garantir dispositivos de flexibilidade aos espaços que propomos. É desta forma e com este objectivo que (Ab)usamos intensamente (d)a casa como laboratório espacial... pelo prazer do acaso enquanto manipulador do pré definido, ou apenas porque gostamos de recomeços.
1 Gonçalo M. Tavares in Pedro Pacheco e Luís Santiago Baptista (curadores), Falemos de Casas... em Portugal (exposição), Trienal de Arquitectura de Lisboa, 2010. 2 Le Corbusier, Prologue Américain, in Précisions, Collection de L’Esprit nouveau. Altamira, 1997. 25
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Contribuições Atelier da Bouça Pedro Levi Bismarck Miguel Leal Godofredo Pereira
Impressão Minerva Tiragem 1000 exemplares Distribuição Gratuita
Imagem da Capa retirada da série Rotoreliefs, Marcel Duchamp, 1923 Contactos revistapunkto@gmail.com
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