N° 22 - O Brasil e a Crise20 anos da carta de 1988

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Forma e conteúdo no vôo do Ícaro do sertão

E Manfredo manteve-se consciente do desafio que enfrentou, isto é, se avizinhar e assumir a ficção para reelaborar a matéria vencida no tempo, e tratar intertextualmente não só a poesia escrita como um considerável acervo de imagens de amplo espectro na linguagem do cinema. Um copioso arsenal que esteve disponível e que foi criteriosamente incorporado, desde reportagens e antigos “jornais da tela”, institucionais da era JK, como, e sobretudo, filmes conhecidos como Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos, e Memória do Cangaço, de Paulo Gil Soares, entre outros. Nesse processo, joga papel importante a criação da figura do atornarrador e é interessante acompanhar a maneira curiosa como esse assimila, também por força da montagem, o personagem do drama, numa tríplice operação. E não há aqui ambigüidades e sim ambivalências. Primeiro, talhadíssimo para o papel do Vaqueiro, Luís Carlos Vasconcelos chega a Brasília e é filmado como qualquer profissional numa espécie de aquecimento e aparece lendo ou decorando seu texto. Ato contínuo já encourado se esgueira cerrado adentro na pele de Raimundo (ou Oraci?), o Vaqueiro, num lance brechtiano, num jogo de lúdico e proposital vai-e-vem. Oportunidades em que os versos da narração já se instalaram com seu estribilho e se repetirão compassivos: “Ei-lo caído de bruços/Para o campo paramentado (...”). E aqui cabe um parêntese para frisar a total felicidade na escolha de Vasconcelos. É quando, em curta seqüência de Memória do Cangaço, aparece no canto do quadro, mas quase em close, o rosto de um homem do bando de Lampião do qual o ator é praticamente um clone tal a estarrecedora semelhança física. Tanto é assim que a edição não foi indiferente ao fato e o corte vem rápido e certeiro para o ator aproximando-o do seu “modelo”. Isso empresta naturalmente enorme verossimilhança e concorre para a força do filme que se nutre do diálogo com outros materiais. E tratando-se da montagem foi crucial para o êxito do Vaqueiro Voador o concurso absolutamente providencial de Ricardo Miranda, num reencontro com o Manfredo dos tempos da então chamada “sala de montagem” com película, hoje remoto ancestral das ilhas de edição e dos final cut, quando ambos militavam quase tão somente como montadores. Esse diálogo de almas irmãs também trouxe enorme benefício ao filme. E o seu efeito se faz sentir sobretudo na longa trajetória e estruturação dramatúrgica do personagem até o terço final quando o filme “vira”. Especialmente quando o entrecho se torna mais autoral no código do cinema e exige sutil condução em que nunca se sabe onde termina o ator, o narrador e começa o personagem. 181


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