#05 Áreas de Contaminação

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[ prova final ]

a construção de metáforas ou o fio de Ariadne Pedro Crisóstomo * pela sua parte, recolhe e devolve). Este trabalho sobre a imediação do encontro parece-nos um dos requisitos fundamentais para a sobrevivência e consequente desenvolvimento do teatro. Se aceitarmos esta segunda hipótese, estaremos também de acordo em admitir que esta intensificação da interacção entre emissores e receptores produz-se com muito maior eficácia e profundidade a partir de uma opção estética despojada, reducionista, do que a partir de uma opção cumulativa, baseada na ênfase da espectaculosidade e no incremento quantitativo dos recursos expressivos. A discrição e a nudez das circunstâncias em que se produz esse encontro entre actores e espectadores contribuem, na nossa opinião, para intensificar a cooperação. Durante muitos séculos, a noção de acção dramática predominou nos nossos palcos, baseada fundamentalmente na sua equivalência com o argumento, com a história, com a fábula, conceitos provenientes da literatura narrativa. Pode-se dizer que a profundidade das questões levantadas no teatro tradicional, não se esgotando em absoluto na palavra, está a ela muito ligada. Mas, ao longo do século XX, deparamo-nos com uma dramaturgia na qual a história narrada é menos importante; a acção dramática liberta-se da sua função de mensageira literal para oferecer um devir cénico, não só através da interpretação dos actores, mas na sua globalidade como todo teatral (incluindo neste campo a cenografia, o desenho de luz, os figurinos) para nos mostrar um mundo situacional mediante o qual se contam histórias, e não uma história. Nestas histórias, a acção não decorre só pela linha do argumento mas também por outros layers. Hoje em dia, preferimos aceitar a condição incompleta da personagem dramática, o seu carácter parcial e enigmático, revelador de apenas uma parte de si mesmo. A imagem beckettiana da personagem mutilada, cega, reduzida a um rosto, a uma boca e a uma voz, como no caso de Eu não de Beckett, exige um reducionismo e uma minoração do conceito de personagem. Todo o questionamento do eu, do sujeito, empreendido pelo pensamento contemporâneo, vê-se reflectido no tratamento da personagem como resíduo, como algo incompleto e inacabado. A palavra dramática, que no teatro tradicional se concebe como uma palavra completa, portadora do pensamento do autor, transmissora de uma qualquer ideologia, e que é de um certo modo auto-suficiente, esvaziase em certas correntes do teatro contemporâneo, tornando-se insuficiente. Esta insuficiência é potenciada, também, como opção estética: a palavra não diz – faz; não mostra – oculta; não quer revelar o que a personagem parece dizer. E nesta condensação da fala, o silêncio é tão expressivo como o discurso. Existe uma atenuação do explícito. O grande teatro do passado, vinculado a uma concepção religiosa, aspirava a transmitir a mensagem, o conteúdo, os significados da obra, à mente do espectador, através de um predominante concretismo. O explícito era, assim, o elemento fundamental do discurso do autor,

manifestando-se no sentido da narrativa, nos diálogos e no carácter das personagens. Hoje, as nossas opções levar-nos-iam a negar esta discursividade clara, acentuando a incerteza e a ambiguidade dos conteúdos a transmitir, tanto nos verbais como nos não-verbais. Seria assim dado ao espectador um papel mais activo, induzindo-o a escrever o que o espectáculo esconde, reclamando a sua participação de modo a completar a obra q u a n d o a r e p r e s e n t a ç ã o n ã o d i z t u d o. Para um novo espaço teatral O teatro reclamado nestas linhas necessita indubitavelmente de uma redução espacial, a fim de que possa acontecer o encontro entre emissores e receptores. Para que se produzam os efeitos cooperativos mencionados, terão de se assumir determinadas limitações espaciais que reduzam a distância entre actor e espectador. Uma sala de mil e quinhentos lugares, onde a distância da primeira fila da plateia ao placo seja de três metros, é absolutamente inadequado para que funcionem os subtis circuitos de energia e informação que fluam entre o palco e a plateia. Necessariamente, ter-se-ia também que reduzir a quantidade de pessoas dentro de um espaço com estas características. Admitamos a aceitação deste carácter minoritário – mas não elitista – da obra de teatro como um factor positivo e não como mal inevitável. Quando este espaço minoritário não é respeitado, o indivíduo desaparece e dissolve-se na multidão, perdendo-se assim a noção de grupo em que o encontro teatral baseia as suas raízes. Porque tudo depende das proporções espaciais e da natureza dos códigos cénicos. Esta redução ou minoração dos parâmetros da teatralidade não implica, porém, uma tendência ao simplismo e à pobreza do acto teatral. Pelo contrário, cada vez é mais necessária a exploração da noção da complexidade, quando não se pretende já compreender a realidade, mas interpretá-la de vários pontos de vista. Esta noção, cujas explicações filosóficas conduzem-nos inevitavelmente à interdisciplinaridade, é a ferramenta indispensável para evitar que o acto teatral se restrinja a uma teatralidade plana. É dever do teatro incitar o espectador a valorizar a sua função criativa, combatendo a tendência da passividade do cidadão incutida pela sociedade actual; desafiar o espectador para a iniciativa e para a criatividade e estimular a sua sensibilidade e a sua predisposição para a inocência. [ excerto do trabalho realizado no âmbito da Prova Final do Departamento de Arquitectura da UC, 2000 ]

* arquitecto licenciado pelo Departamento de Arquitectura da Universidade de Coimbra

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