#05 Áreas de Contaminação

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áreas de

contaminação # 05 [ novembro 2002 ]

€ 2.5


[ ficha técnica ]

[ índice ]

DIRECTOR

[ editorial ] truísmos

Pedro Jordão

Pedro Jordão

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REDACÇÃO Bruno Gil, Carina Silva, Carlos Guimarães, Carolina Ferreira, Joana Alves, José Brites, Mário Carvalhal, Pedro Canotilho, Rui Aristides, Vera Pinto

beginning to see the light

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Susana Faria joão mendes ribeiro

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COLABORADORES

Bruno Gil + Carina Silva + Vera Pinto Alexandre Saraiva Dias, António Olaio, João Mendes Ribeiro, Josep Maria Montaner, Maria Amália Freitas, Pedro Crisóstomo, Ricardo Trindade, Susana Faria, Vasco Pinto

koolhaas, museus e lojas

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Josep Maria Montaner

GRAFISMO Bruno Gil, Carina Silva, Eduardo Nascimento, Pedro Jordão

sobre a artisticidade da arquitectura

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António Olaio

EDIÇÃO GRÁFICA Eduardo Nascimento

celulóide

IMPRESSÃO

Pedro Jordão

p20

Imprensa de Coimbra, Limitada TIRAGEM 400 exemplares ISSN

o vértice

p24

José Brites [ 1º acto ]

p26

1645-3891

Alexandre Saraiva Dias + Maria Amália Freitas PROPRIEDADE NUDA/AAC – Núcleo de Arquitectura

[ prova final ] a construção de metáforas

CONTACTOS

Pedro Crisóstomo

NUDA/AAC – Núcleo de Arquitectura Departamento de Arquitectura Faculdade de Ciências e Tecnologia Universidade de Coimbra Colégio das Artes Largo D. Dinis 3000 Coimbra

[ contaminações ] la carniceria Ricardo Trindade [ cheese-ham files ] #5

tel [ darq ] : 239 851 350 fax [ darq ] : 239 829 220

Vasco Pinto

e-mail: nuda_aac@hotmail.com

[ ? ] bolles + wilson

nu [novembro 2002]

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[editorial]

Truísmos. Pedro Jordão *

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YOU ARE NOT IMMUNE! Desde que passou a ser proibido proibir, passou a ser obrigatório infectar-te. De preferência, do modo mais virulento possível. Ninguém deveria estar imune a doenças essenciais à vida. Infelizmente, já existem vacinas e muitos são os meios de nos entorpecermos. Esse é um luxo (?) que nenhum arquitecto (nenhum ser, de resto) pode ambicionar. Todos os arquitectos deviam ser vampiros. Morder com paixão o Mundo, sugar-lhe a imensidão. Demasiados arquitectos esquecem demasiadas vezes que a autonomia da arquitectura é algo que não existe. A arquitectura existe apenas na multidisciplinaridade, para sempre contaminada pelo que nos rodeia. Ignorar esta realidade é ignorar a sua essência. A mediocridade agradece.

2

O GOSTO PELO BIFE IMPEDE A VERDADEIRA MUDANÇA. É mais cómodo aceitarmos candidamente o que temos, é mais fácil anestesiarmonos no conforto do conhecido. A verdade é que a opção pelo piloto automático é sempre a mais segura. Para quê mudar? Demasiado trabalho e demasiado tempo gastam-se nessas aventuras. Por isso, escrevem-se e constróem-se mil vezes as mesmas redundâncias sem qualquer intenção de mudar o rumo. Inventam-se mentiras, como aquela nossa preferida de que já nada se inventa, tudo se copia. Mas é algo assumido e isso desculpa tudo, até porque todos sabemos que é no assumir que está o ganho. É o maravilhoso mundo da fotocópia. Que nos livra a todos da aborrecida obrigação de tentarmos ir mais longe. O problema é quando aparecem alguns elementos subversivos a minarem a ordem instituída e a criarem algo novo. São, evidentemente, indivíduos perigosos que não contribuem para uma sociedade civilizada.

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THERE ARE TOO FEW IMMUTABLE TRUTHS TODAY. As unanimidades são, na maioria das vezes, fenómenos estranhos. Chegam a ser assustadores, pondo em causa as mais elementares leis das probabilidades. E alguns conceitos essenciais da arquitectura. Como a dúvida e a confusão. Aprende que a dúvida, essa incompreendida, é a melhor amiga do Homem. E que a confusão é saudável. Reconhecer o caos é a única forma de verdadeiramente alcançar a ordem. A crítica, apesar (ou precisamente por causa) da sua subjectividade deveria ter aqui um papel fulcral. Mas a (a)crítica portuguesa é demasiadas vezes inócua e asséptica. A (a)crítica portuguesa parece ter medo da crítica. Há quem se esqueça que a crítica não tem que agradar. Pelo contrário, deve incomodar. Espera-se de um crítico que tome uma posição. Pessoal, concerteza. Subjectiva e discutível. Do mesmo modo, a crítica não deve ser uma teoria abstracta, envolvida no deleite da palavra, mas um estímulo concreto, suscitando a reflexão sem a preocupação de dar respostas definitivas. Uma reflexão que não existe na leitura de textos em que empenhamos todo o nosso esforço na simples descodificação das frases que, no fim, revelam-se completamente vazias. Quando se faz a crítica pela crítica, quando se começa a fazer teoria da teoria da teoria, começa-se a cair num discurso que raia a ininteligibilidade ou, pelo menos, o tédio. NEVER UNDERESTIMATE THE POWER OF DENIAL. E claro, tudo isto pode ser tão facilmente negado...

4

1. U2, nos concertos da Zoo TV Tour 2. Douglas Coupland, no romance Geração X 3. Jenny Holzer, na instalação Truisms 4. Alan Ball, no argumento do filme American Beauty

* aluno do 6º Ano do Departamento de Arquitectura da Universidade de Coimbra

P.S. – Esclarecemos que todos os questionários e entrevistas publicados na NU são originais, tendo sido conduzidos por alunos deste Departamento de Arquitectura. Esclarecemos ainda que os artigos da autoria de colaboradores estrangeiros são todos inéditos ou, pelo menos, inéditos em português e a sua publicação tem, em todos os casos, a autorização pessoal dos autores.

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Beginning To See The Light Susana Faria *

O mais eterno e mais universal dos materiais torna-se assim no material central com que se constrói, com que se cria o espaço. O arquitecto volta uma vez mais a reconhecerse como criador. Como dominador do mundo da Luz. Alberto Campo Baeza in La Idea Construída O papel da LUZ na arquitectura é um tema tão místico (e controverso) como a sua própria essência. Quase não temos consciência da sua existência. Limitamo-nos ao seu usufruto, sendo para nós um dado adquirido. Mas na arquitectura a sua função vai mais longe, chegando a ser a protagonista (ou mesmo a geradora) do espaço. Sem LUZ não há Arquitectura. A LUZ confere existência aos objectos. Não só pelo seu poder revelador das formas, mas também pelo impacto que tem na percepção do espaço por parte do observador. E sem a resposta psicológica daí decorrente, o espaço fica esvaziado de uso e significado. O espaço invoca a LUZ. Fazer arquitectura implica concretizar uma ideia através de um material. Sendo assim, é importante definir o carácter da LUZ como material. Porque, mesmo não sendo palpável, a LUZ é matéria arquitectónica. Como tal, é qualificável e quantificável, sendo controlada por factores como a direcção, a intensidade, a cor, o movimento, o ritmo, a transparência ou a opacidade. A LUZ é um material único. Que também existe à luz do seu contrário – a sombra, a quem, segundo Junichiro Tanizaki em Elogio da Sombra, a LUZ deve toda a sua essencialidade. No livro, Tanizaki descreve-a tal como esta é sugerida na cultura japonesa, onde os seus aspectos poético, espiritual e místico da vivência do espaço estão permanentemente presentes. LUZ e sombra são indissociáveis. A LUZ divide com a sombra os méritos pelo nosso conhecimento das formas e dos espaços. Revelam os limites através do

nu [novembro 2002]

contraste. Num espaço de LUZ absoluta, em que a sombra é ausente, os limites espaciais e a tridimensionalidade dos objectos são esbatidos.

[Trata-se da] sobrevivência da Luz, em vez da Luz para a sobrevivência, que alargando horizontes define ambientes e não ilumina simplesmente. Maurizio Vitta in L'Arca nº 155 Na dualidade LUZ natural/artificial interessa menos a fonte e mais o resultado. Usadas isoladas, alternadas ou em simultâneo, estão sempre presentes na arquitectura. A LUZ natural é dinâmica, varia com o tempo, através da sequência dia/noite, das estações do ano, sendo distinta, inclusivamente, em diferentes pontos do planeta. Varia igualmente consoante os conceitos específicos das diferentes culturas. A cultura oriental é um caso flagrante, pela inquestionável valorização da sombra, enquanto que na cultura ocidental existe um grande desejo da presença de LUZ. A LUZ solar é única e inimitável e ninguém lhe nega esse estatuto. Sempre que se fala de LUZ, remetemos para a LUZ natural. Talvez porque exista ainda um preconceito relativo à LUZ artificial, que continua a ser vista como um mero instrumento de iluminação, sem grande impacto na criação dos espaços. Mas a LUZ artificial, que de uma maneira geral se apresenta estática, tem a vantagem de poder ser manipulada. Esta consciência foi essencial para começar a ser vista como um mecanismo de construção do espaço, o que tem vindo a ser confirmado em diversas obras de arquitectura que a utilizam como protagonista, depois de o mesmo se ter passado nas artes plásticas e cénicas. A maleabilidade da LUZ artificial permite-lhe ainda actuar como um meio de manipulação do


observador. Nos gigantescos centros comerciais de Las Vegas, por exemplo, é simulada uma claridade diurna. Ilude-se, assim, a passagem do tempo incitando a permanência do utente e impelindo-o a um maior consumo. É também assim que, mal a noite cai, várias (excessivas) luzes e néons multicolores invadem o espaço urbano, convidando-nos a viver uma nova realidade. Para além disso, quando associada à cor, a LUZ artificial aumenta o seu potencial. O uso da cor tem um enorme impacto, alterando a sensação espacial e criando alterações ópticas, o que sugere uma nova dimensão emocional, algo reconhecido por arquitectos como Luis Barragán, Steven Holl ou Toyo Ito. Este modo particular de afectar o observador confirma o valor próprio da LUZ artificial.

importância no Teatro. Consideravam a sombra necessária, tal como a LUZ, para ligar o actor ao lugar cénico no tempo e no espaço. George de la Tour era inclusivamente da opinião que o verdadeiro sentido dramático não depende do assunto mas da luz e sombra. A LUZ seria o elemento através do qual a peça de teatro se manifestaria. Como se a LUZ interpretasse e lesse o texto ao espectador. São apenas as luzes que, muitas vezes, desenham e constróem o espaço cénico. A LUZ secciona, delimita, dissolve e modela o espaço. A List, mencionando um exemplo que nos é próximo, é uma peça de Teatro Dança em que a cenografia, criada por João Mendes Ribeiro, funciona como um jogo entre personagens, cores, objectos através da LUZ, a verdadeira catalisadora deste acontecimento, revelando o essencial e escondendo o supérfluo.

[O desenhador de luz] desenha a luz, servindo-se dos contrastes de luz e sombra, dos conflitos de luzes, das oposições, dispõe e escolhe, para que possam ser vistos espaços, cenários, gestos, movimentos: utilizando, para isso, a luz com que ilumina as suas escolhas, impondo a outras a obscuridade.

No cinema, a LUZ foi sempre um dos elementos principais. Mas existem alguns casos, como o Expressionismo Alemão, em que essa realidade é absolutamente incontornável. Herdando muito do que se vinha fazendo nas produções teatrais da altura, como as de Reinhardt, filmes como Nosferatu (1922), de F.W. Murnau, vivem da LUZ e das sombras. Todo o estado emocional das personagens, todo o seu jogo psicológico, toda a tensão da acção é condicionada e potenciada através do uso meticuloso da LUZ artificial.

João Mendes Ribeiro in Fragmentos de uma Prática de Dramaturgia do Espaço Nas artes cénicas, a LUZ artificial tem sido, desde há muito, um dos principais meios de manipular a atenção do observador e de o afectar emocionalmente. Os romanos, nas suas encenações ao ar livre, foram os pioneiros nessa técnica, através do uso de tochas e candeeiros à noite. Os problemas gerados com o encerramento do espaço do Teatro são resolvidos com a invenção da lâmpada incandescente e a LUZ torna-se, a partir desse momento, ferramenta imprescindível da cenografia. É através de Adolphe Appia e de Max Reinhardt que a iluminação do palco moderno ganha máxima

Hoje nós iluminamos as coisas, usamos a luz para iluminarmos os objectos, e não a consideramos um elemento em si. James Turrel in James Turrel – Dipinto con la Luce A experimentação no uso da LUZ artificial foi iniciada nas artes plásticas, nos anos 60, por artistas plásticos como Dan Flavin e James Turrel. As suas obras, mas particularmente as de Turrel,

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traduzem (os) resultados (mais) importantes na procura da LUZ como mecanismo espacial. De facto, houve sempre um claro sentido arquitectónico na maioria das suas obras. Dan Flavin usa essencialmente lâmpadas fluorescentes de produção industrial, recorrendo muitas vezes à cor. Existe sempre a intenção de que as suas instalações interfiram com o espaço. O modo como consegue criar novos ambientes não permite a indiferença do observador. James Turrel foi, no entanto, mais longe, sendo o artista plástico que mais divulgou as potencialidades da LUZ artificial, principalmente na criação de espaços. As suas obras exploram constantemente a fronteira entre arte e arquitectura. James Turrel explora o espaço enquanto habitáculo de LUZ, onde é modelada. A experiência dos espaços criados por James Turrel adquire a sua singularidade desde as suas primeiras obras, como Mendota Stoppages (1968-70), um estúdio em Ocean Park preparado para viver a total dimensão do espaço em dois momentos distintos – noite e dia. De dia, o espaço era regulado pelo movimento do Sol, criando determinados efeitos consoante fosse Verão ou Inverno; à noite usavam-se fontes de LUZ artificial móveis e estáticas. Turrel explora as qualidades visuais dentro de cada espaço, iludindo o observador ao criar-lhe a dúvida de estar dentro ou fora, numa experiência que compara à de um sonho lúcido. Turrel também criou cenários para o espectáculo de dança Severe Clear e para a ópera lírica To Be Sung. Na dança, os bailarinos movem-se no espaço, aparecendo e desaparecendo com o uso da LUZ. Em Projection Pieces, Turrel cria a ilusão de um rectângulo de LUZ, projectado na parede, ser tridimensional. A imagem de LUZ que sugere um cubo sólido e parece ter consistência física. Estas três últimas obras têm lugar nos espaços de Roden Crater (2000), a mais recente obra de James Turrel, situada numa cratera de um vulcão no deserto do Arizona. Combinando LUZ artificial e natural, Turrel

criou um percurso pontuado por diversos espaços – apenas abertos para o exterior, na cobertura. Nestes contentores, receptáculos de LUZ, onde se concretizam outras obras dentro desta obra maior, Turrel capta a LUZ natural, proveniente do exterior, e retém a LUZ artificial, nascida no seu interior, criando um espaço singular. Aqui, a LUZ não percorre apenas as paredes mas todo o espaço, permanecendo, como se o sentisse. Habita-o. Durante a visita à Exposição Universal 2000, em Hannover, era impossível permanecer indiferente à instalação de James Turrel. O acontecimento tinha lugar no Planeta M, um volume metálico de forma aparentemente elipsoidal. Observado de dia, a sua presença impunha-se pela forma. No crepúsculo, a forma ovóide revelava a mais mediática das suas performances, criada por Turrel. A sua superfície metálica começava a irradiar luzes coloridas que iam mudando através de uma sequência cromática previamente definida. Esta instalação surge numa linha de trabalhos em que James Turrel relaciona a arquitectura a obras de arte com LUZ. São exemplo a instalação Performing Lightworks no Kunsthaus em Bregenz, de Peter Zumthor, a Gaslight na sede da Verbundnetz Gas AG, em Leipzig, e na Pont du Gard, no sul de França. Mas Turrel também nos proporciona espaços de LUZ colorida contínua. A experiência é feita em espaços interiores. The Inner Way é uma instalação concebida numa passagem subterrânea em Munique. O corredor é seccionado, não só por zonas de LUZ de cores como o vermelho, azul e amarelo, como também por molduras de LUZ colorida, criada por cabos de fibra óptica. Em Kawanishi, no Japão, House of Light, sítio para contemplação, foi igualmente premiado com a participação de James Turrel. Todos estes exemplos demonstram duas importantes dimensões da LUZ artificial – a do impacto visual no observador e a da criação de espaços únicos através da imposição de novos limites espaciais e de ambientes controlados.

Untitled, Dan Flavin | Severe Clear + Planet M + Afrum-Proto + The Inner Way, James Turrel | Capitol Nightclub, Tom Kovac | D nu [novembro 2002]


A projecção da cor é experimentada quando a luz, reflectida numa superfície colorida brilhante, então balançada para uma superfície neutra branca, torna-se um fenómeno brilhante que provoca uma sensação espacial. A cor reflectida é vista indirectamente; permanece, a referência ausente para uma experiência. Em experiências com este fenómeno temos descoberto uma dimensão emocional que sugere um 'espaço psicológico'. Steven Holl in Questions of Perception Se tivermos de mencionar um dos precursores no uso da LUZ artificial como mecanismo arquitectónico, Steven Holl é uma referência incontornável. Holl explora as qualidades de ambos os processos de iluminação, associando-lhes com frequência a cor. A Capela de Santo Inácio (1995) trata, dentro do seu programa, espaços destinados a diferentes exercícios espirituais com ambientes de LUZ distintos. Essa diferença de espaços, não só se reflecte ao nível da qualidade da LUZ como a nível formal, traduzida pelo apelido de Bottles of Light. Os escritórios D.E. Shaw & Co. (1992), em Nova Iorque, são outro exemplo notável dos primeiros passos na criação de um espaço através da LUZ. O hall de entrada, cubo de dez metros de lado, é caracterizado por ranhuras feitas em determinados pontos da parede. A cor presente nessas fissuras é reflectida pela projecção de LUZ natural e artificial. Edifícios como o Kursaal, de Rafael Moneo, em San Sebastián, ou o Habita hotel, dos Ten Arquitectos, no México, exploram a combinação da pele com a LUZ. A pele de vidro permite filtrar o excesso de LUZ natural durante o dia, permitindo, à noite, projectar a LUZ artificial do interior, influenciando a paisagem urbana e atraindo o olhar, funcionando (e sendo já conhecidos) como Farol e Lanterna urbanos. Por seu lado, a Torre dos Ventos, de Toyo

Ito, não é um mas o fenómeno de LUZ artificial que emerge na noite de Yokohama. Condicionado pela direcção e velocidade do vento e pela intensidade do ruído proveniente do exterior, a opacidade da pele da Torre dá lugar à transparência e a um movimento de luzes que transforma totalmente a experiência espacial na grande escala urbana. Uma das mais recentes obras da dupla suíça Herzog & de Meuron, o Laban Centre, projectado para Deptford Creek, Londres, ainda no papel, representa a proposta espacial mais ambiciosa (até ao momento) no campo do uso de LUZ artificial. Nesta escola de dança contemporânea, folhas de policarbonato subtilmente coloridas, foram usadas como uma segunda parede externa. Que durante o dia terá um efeito opaco e de noite brilhará como um farol. Do mesmo modo, o interior do edifício é formado por espaços e ambientes definidos pela LUZ artificial. A LUZ artificial tem vindo a provar que, apesar da sua imaterialidade física, é passível de gerar espaços, através do modo como os limita e como lhes confere carácter, para além de um óbvio potencial na relação com o observador. Mais do que a consciência de um novo mecanismo arquitectónico, o que também se adquire é a noção de que a LUZ artificial tem uma maleabilidade muito própria, ao contrário da LUZ natural, que nunca se controla verdadeiramente. Estas ideias, cada vez mais sedimentadas, vão impondo a LUZ artificial como um interessantíssimo material, responsável por algumas das mais inovadoras obras da arquitectura mundial, no que é ainda um vasto leque de hipóteses por explorar.

* aluna do 6º Ano do Departamento de Arquitectura da Universidade de Coimbra

E. Shaw, Steven Holl | Moda Lisboa, José Adrião e Pedro Pacheco | Kursaal, Rafael Moneo | Laban Centre, Herzog & de Meuron p 06.07


João Mendes Ribeiro

arquitectura & cenografia

Bruno Gil + Carina Silva + Vera Pinto *

“É facilmente reconhecível, na maioria dos meus trabalhos de cenografia, a minha formação em arquitectura, isto é, a dominância do gesto arquitectónico na concepção dos espaços cénicos.” Algures entre a Arquitectura e a Cenografia, duas áreas aparentemente distintas, nasce um trabalho enriquecido por esta ambiguidade. É reconhecível a racionalidade e a abstratização nas obras de cenografia que o arquitecto faz, assim como uma arquitectura flexível e adaptável às necessidades do cliente, própria de um cenógrafo que trabalha sempre muito próximo daqueles que vão habitar os seus cenários. Se no princípio inesperada, esta interacção entre a arquitectura e a cenografia acabou por marcar fortemente o trabalho de João M e n d e s R i b e i r o , t o r n a n d o - o s i n g u l a r. . .

“Entendo o trabalho entre disciplinas não como uma acumulação parcial de saberes e experiências, mas sim como uma partilha... não me interessam as divisões e separações, interessam-me as áreas de intersecção e sobreposição de linguagens. Sinto que aí crescemos imenso.” Interdisciplinaridade. É este o conceito que JMR procura no processo de projecto. Evolução, não como sinónimo de soma, mas de cruzamento. As especialidades deverão cada vez ser menos especiais crescendo com a energia de um trabalho de equipa. A interacção revela-se determinante para a coerência de um objectivo comum. A desmistificação do trabalho de equipa como um mal necessário é pertinente. O diálogo.

“Eu às vezes não tenho paciência para um projecto de arquitectura...” A questão do tempo... o tempo de projectar, o tempo gasto em esperas inúteis... a duração e xc e s s i va e i n e x p l i c á ve l d o s p r o c e s s o s burocráticos... e, logo a seguir, dos processos de construção. Um desenrolar lento duma história que parece não ter fim, ou melhor, onde o fim por vezes não é escrito pelo autor inicial – o arquitecto. Este aparece insatisfeito com os entraves que lhe são impostos. No entanto, aqui o acto de projectar aparece como um vício, uma paixão, onde o arquitecto continua numa busca incessante pelo final, um final aberto, com espaço para novos investimentos, com novas motivações...

De Harmonia Mundi, Francesco Giorgi (1525) Igreja de San Francesco della Vigna, Francesco Giorgi, Veneza (1534) Pavilhão Philips, Le Corbusier com Xenakis, Bruxelas (1958)

nu [novembro 2002]


Ainda a questão do tempo... mas agora o tempo de vida de um objecto que se cria, por vezes se vê nascer, mas quase nunca se vê morrer... Um edifício vive, normalmente, o tempo que o seu corpo, o seu esqueleto, os seus materiais aguentarem, permitindo vivências e experiências variadíssimas, conforme os diferentes usos e usufruidores. Um objecto cenográfico é destinado a um uso, quem sabe, mais intenso, mas num muito mais curto espaço de tempo – o tempo de uma peça, o tempo que o objecto tem até ser destruído – sem tempo, no entanto, para envelhecer e se tornar obsoleto... “A efemeridade também tem as suas vantagens... não chegas a perceber o envelhecimento do objecto... desaparece de repente e tu guardas as boas memórias”

“Flexibilidade é entendida como possibilidade de mutação do espaço, embora condicionada por regras de transformação” Um edifício tem que ser entendido como corpo modelado em constante mutação – deve respirar. JMR encara o espaço como uma realidade nunca estanque, sempre evolutiva... flexível, reagindo conforme a natureza e intensidade dos usos. Esta reacção deverá ser definida. Cabe ao arquitecto racionalizá-la, clarificá-la. Dar limites à flexibilidade é visualizar as possibilidades de transformação do espaço. Se um cenário é experienciado bruscamente, respondendo de forma flexível, na arquitectura os edifícios têm necessariamente que ser corpos, reflectindo a mutação dos usos.

“...não estava definida nenhuma regra em relação à forma, ao conteúdo da exposição1, e isso era um desafio muito interessante. Desde logo, o que é que íamos mostrar?, como é que íamos comunicar?, que ideias íamos passar?” Como num verdadeiro atelier... os trabalhos, dispostos sobre a mesa sem qualquer tipo de protecção, mostravam-se num percorrer de diversas escalas... Começando no móvel, aqui, objecto multifuncional, caminhando pela ficção teatral com uma materialidade de obra construída, até à intervenção de grande escala, num diálogo equilibrado entre Arquitectura e Cenografia. 1

Exposição SALA DE PROJECTO _ WE CAN BUILD YOU 2 _ João Mendes Ribeiro

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[entrevista]

No folheto da exposição WE CAN BUILD YOU 2 aparece Espaço+Corpo+ Arquitectura. Em que medida é que o factor escala poderá ser elemento dinâmico nesta relação? A designação escolhida para a exposição mencionada, com especial ênfase para a relação entre espaço, corpo e arquitectura, traduz um motivo presente nos meus trabalhos. No caso das cenografias isso torna-se muito claro porque eu estou a desenhar em função de corpos específicos, identificados, essa é uma exigência tanto minha como do encenador ou do coreógrafo. Por exemplo, se um bailarino pega na peça de forma errada, a relação com aquele objecto pode não funcionar, não há empatia entre eles. Quando digo empatia refiro-me aos gestos, aos afectos, à forma envolvente como o bailarino se sente perante os objectos que utiliza para comunicar. Por vezes isso não acontece, portanto é preciso ajustar, alterar; outras vezes é deliberadamente uma provocação, para ele não se sentir cómodo, mas essa é a minha intenção de projecto. A questão é que não é possível pensar os espaços sem pensar na escala humana e na forma como estes se caracterizam e se habitam. Na arquitectura, a não ser em algumas situações muito especiais, sinto muito isto; o espaço que eu desenho tem a ver com o meu corpo porque a relação com o cliente não é tão directa, tão próxima. Quando trabalho em cenografia não faço em função do meu corpo mas do dos bailarinos e actores, porque há essa proximidade.

O cenário pode ser obstáculo ou impulsionador da acção. Será correcto fazer um paralelismo entre esta realidade e a arquitectura, no sentido do arquitecto impor alguma coisa ao utente? Não acho nunca que seja impor, não deve impor, nem propriamente condicionar. Eu acho que deve redescobrir ... deve ser sempre um processo interactivo. Há clientes que têm ideias muito vagas, mas a grande maioria não tem, quando vão ter comigo já estão à espera de uma coisa diferente; temos de caminhar juntos e tenho que explicar o que significa aquele espaço e como se pode habitá-lo, como se pode senti-lo. E aí estamos a dar um salto, por isso é que eu digo que a palavra imposição não é correcta, no sentido do cliente compreender aquele espaço como sendo também dele. Eu tenho muitos casos destes, histórias engraçadíssimas; por exemplo, no primeiro trabalho que eu fiz havia uma senhora, e porque era do Ribatejo gostava muito das casas ribatejanas. Eu fui lá com ela ver umas casas ribatejanas e estive a explicar-lhe que não era possível fazer uma casa ribatejana hoje, daquela maneira, muito menos

Sala da exposição WE CAN BUILD YOU 2 na Ordem dos Arquitectos nu [novembro 2002]

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Casa de Chá em Montemor-o-Velho


não sendo no Ribatejo (risos...), os processos construtivos não são os mesmos, as tecnologias não são as mesmas e os programas também não são os mesmos. E fiz uma casa completamente diferente. A princípio ela estranhou porque percebeu que não era a casa ribatejana, mas que tinha mais a ver com o meu entendimento das nossas conversas do que com o modelo. Esta comunicação entre o arquitecto e os clientes tem motivações muito diversas e complexas, e nunca há uma resposta imediata ao problema, até porque o problema, por vezes, não é fácil de se identificar; se por um lado é importante ir de encontro às expectativas do cliente e dar uma resposta, por outro, também se espera, da parte do arquitecto, que vá mais longe, e isto não significa, necessariamente, ir contra nem impor uma solução aos clientes, mas sim construir com eles uma nova forma de habitar, onde eles se sintam bem; nunca pode ser uma imposição de modelos.

Nuno Carinhas diz que a cenografia é a arquitectura da ficção. Será que o facto de ser arquitecto cenógrafo faz com que transporte para a arquitectura real um pouco de ficção? Por exemplo, na Casa de Chá sentimos como se estivéssemos num espaço interior e que tudo aquilo é um cenário, tem um ambiente cenográfico... Pode transportar de alguma maneira. Aquele trabalho é muito específico porque eu entendi sempre aquelas ruínas como cenografia. Isto é, eu sinto duas coisas em relação à Casa de Chá: por um lado, um profundo respeito pelo passado e daí sempre tentar tocar-lhe o menos possível; por outro lado, e eu nunca disse isto de uma forma muito clara, acho que aquelas ruínas são muito artificiais e têm um caracter muito cenográfico. E portanto, se eu queria que as próprias ruínas fossem as paredes da Casa de Chá, também me apetecia distanciar delas, reforçando o seu caracter cenográfico. A questão do interior/exterior é sempre um dos meus temas preferidos porque eu gosto muito desta ambiguidade. Acho que um pátio, se for muito comunicante, como os do Mies van der Rohe ou do Eduardo Souto Moura, é um espaço exterior mas lê-se como espaço interior. É um espaço completamente contido, íntimo e encerrado, não tem cobertura mas nem por isso se deixa de ler como espaço interior. A Casa de Chá é um exemplo. O que eu queria era voltar a habitar o Paço das Infantas, que não se lia muito como espaço interior e, com pequenos gestos, tentei reforçar essa ideia; voltar a habitar aquele espaço, mas de uma forma contemporânea, actual, e num contraste evidente com as pré-existências,

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porém estabelecendo ligações; o facto de construir uma escada para chegar a uma janela e de uma forma simbólica marcar um piso superior, e poder voltar a usar a janela correctamente, numa relação de escala, e poder ter uma vista superior da relação do edifício com o terreno envolvente também me parecia interessante.E depois a leitura cenográfica tem um pouco disto que eu vos disse, eu não quis mais uma vez identificar aquele espaço com coisíssima nenhuma a não ser quando fosse habitado e caracterizado pelo mobiliário. Isto é, há imagens da Casa de Chá, que vocês já viram nas revistas, que não têm mobiliário, não se percebe para que é que aquilo serve, tão abstracto, porque não há sinais identificadores do uso, de uma função. Mesmo o corpo de serviços está camuflado. É só pela colocação do mobiliário, e depois pelo uso, mesas, carrinhos de chá, que tu percebes a sua utilização; e isso foi intencional - partir de uma abstracção para depois deixar ser habitado e ser ocupado de forma a que esse processo de aproximação do espaço o caracterize e identifique o seu uso. Pensei sempre a Casa de Chá com algum sentido experimental, não queria que fosse demasiado limitado pelo programa, mas queria que fosse suficientemente aberta para se poder fazer muitas coisas. A Olga Roriz também quis fazer um espectáculo na escada de acesso à janela, só usando aquele elemento; não foi possível. O que eu acho é que essa escada, tendo declive acentuado, é um elemento muito cenográfico. Não é uma escada confortável, mas não o é de propósito. Eu não vou construir uma escada confortável para chegar a um espaço mínimo onde só se sentam duas pessoas na espessura de uma parede, e a ideia é criar um grau de dificuldade no uso daquela escada (isto, possivelmente, vai muito para além da arquitectura, porque eu de facto não estou a cumprir os regulamentos). Deve ser das coisas que mais toca às pessoas, e toca não por ser cenográfico mas porque acrescenta algo mais. E toda a gente reconhece que não é uma escada funcional, é difícil subir aquela escada; e é ainda mais difícil descer (risos).

Quanto à luz como elemento importantíssimo no teatro e na cenografia... A luz é também geradora de forma na arquitectura. Até que ponto acha que os arquitectos tiram partido da luz? Eu acho que tudo se joga na relação interior/exterior e daí também o meu fascínio por esta relação; e estou a falar sobretudo de luz natural, como é que se domina a luz natural, ou como se transforma. Esta é fundamental para se perceberem as formas e os volumes. Mas o que me fascina

A List, Gertrude Stein, Teatro da Cornucópia, Lisboa, 1997 | Propriedade Privada, Olga Roriz Comp. de Dança, Porto, 1996 nu [novembro 2002]


é a forma como nós conseguimos conduzir a luz de fora para dentro, como é que conseguimos transformar um espaço interno num espaço de qualidade, a partir da luz. Um dos exemplos com que fiquei mais impressionado foi com a arquitectura do Barragan. Indo às obras dele, do lado da rua, não há qualquer sentido de composição; são buracos numa fachada, são aberturas, vãos sem qualquer sentido de composição. E a leitura faz-se toda de dentro para fora mas muito a partir desta ideia, de como é que a luz entra; e é fascinante o domínio e o controlo da luz num espaço interno, a forma como ele consegue, a partir das aberturas, domesticar a luz e transformá-la num elemento fundamental na caracterização de um espaço interior. Nós tendemos muitas vezes a fazer desenho de composição de alçado, em que a regra vem de fora para dentro, e é interessante nas obras do Barragan sentir exactamente o contrário; sentir que aquela janela cá fora não faz sentido nenhum mas que lá dentro tem todo o sentido, desde a proporção, à sua altura, etc. Na cenografia sinto que, em relação à luz artificial, tenho aprendido imenso na construção de cenários, porque há uma relação muito forte entre o cenógrafo e os desenhadores de luz, e não é por acaso que no teatro não se chama engenheiro electrotécnico, chama-se desenhador de luz, o que já quer dizer muita coisa - é alguém que desenha a luz. E essa relação com os bailarinos, com os coreógrafos, é também de parceria; e pode acontecer um cenário que se desenha particularmente interessante, ser destruído pela luz; ou o contrário, um cenário que aparentemente não era muito estimulante, mas que, com o desenho de luz, fica um cenário fantástico. A luz pode criar muito mistério e no teatro há condições para isso, mas é principalmente importante na caracterização dos espaços; e nesse sentido posso estabelecer pontes com a luz natural. Fiz um projecto para a Companhia Nacional de Bailado em que resolvi não fazer cenário, ou melhor, fiz o cenário só com luz. O espaço de representação era um espaço em sombra, um espaço de não representação, e a delimitação do espaço era só feita com a luz projectada no chão.

Até que ponto é que a arquitectura teve influência na evolução do espaço cenográfico, quer na introdução da terceira dimensão, quer ao nível da racionalização dos cenários? A Bauhaus é para mim é um caso paradigmático, enquanto campo de experimentação e cruzamento de áreas disciplinares distintas. No que respeita à cenografia conforme entendida pela Bauhaus, esta caracteriza-se por alguns princípios de organização de espaço próximos da arquitectura. O espaço tem que ser lido sempre em três dimensões, e neste caso mais; tem que ser lido com uma quarta

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dimensão – o tempo – que é a forma como os bailarinos, ou como os actores, percorrem o espaço. Quanto à caracterização dos espaços cenográficos, nomeadamente no que toca aos diversos elementos que compõem a cenografia, também eles se aproximam, não apenas em termos formais, mas também processuais e construtivos das matérias específicas da arquitectura.

Não será exagerado ter em consideração o papel do cenógrafo como actor teatral, se tivermos em conta a influência que o dispositivo cénico pode assumir no xadrez das situações e das personagens. (João Mendes Ribeiro) Na criação de cenários multifuncionais, que se podem mudar de sítio e que, de alguma forma, participam na peça ou na coreografia, sente-se actor? me parece particularmente interessante é, exactamente, a construção de cenários dinâmicos e multifuncionais, com possibilidades de mutação, movimentos de acordo com as acções dos intérpretes. Já não é só trabalhar um espaço, sentir que é um espaço, sentir que está desenhado a três dimensões, sentir que tem a ver com a acção, mas é também permitir que ele se transforme de acordo com as acções, e que possa acompanhar o movimento dos bailarinos, interagindo com esse movimento. Noutro dia a Olga dizia-me Se eu te pedir uma pedra tu nunca me fazes uma pedra de esferovite! e eu disse-lhe que não, porque não sou capaz; se é uma pedra, o actor precisa sentir o peso da pedra. Eu quero sempre que as relações sejam verdadeiras; se tem peso, que o movimento do bailarino demonstre esse peso, se é isso que se quer representar, se é isso que se quer sentir. De outra forma parece sempre artificial, mesmo para o espectador. O que me interessa não é criar ambientes mas sentir uma relação física, e nalguns casos até emocional, com os objectos, mas sobretudo uma relação física verdadeira com os intérpretes. Isto é, não quero que eles finjam nada, quero que lidem apenas com aqueles objectos; e se é um objecto leve tem que transparecer que é um objecto leve; quando me dizem finja que é uma porta mas não é uma porta ou finja que tem um muro mas depois ele é construído em esferovite, eu acho que não é um muro, nunca vai ser um muro. Nesse sentido não sou nada cenográfico, no sentido do termo cenografia que é fingir uma coisa que não é, porque não é uma questão de superfície, é uma questão de estrutura. Para mim mais importante do que desenhar objectos, é perceber a sua relação com os bailarinos, e de uma forma verdadeira em relação às intenções da coreografia.

Isso não é um bocado controverso?! O mundo do teatro é precisamente o mundo da ficção... Mas nesse sentido penso que introduzo aí uma posição diferente, aí é que eu me aproximo do trabalho da arquitectura, ou antes, da verdade das coisas. O que me interessa é a atitude dos intérpretes perante os objectos, e ela tem que transparecer veracidade, eles não podem estar a fingir... A relação com os objectos deve ser imediata, sejam objectos

Vermelhos, Negros e Ignorantes, Teatro Nacional S. João, Porto, 1998 | João Mendes Ribeiro nu [novembro 2002]


mundanos, com os quais as pessoas habitualmente lidam, ou não. Agora para me contradizer, acho que é muito importante no teatro transfigurar os objectos. Mas isso é outra coisa, não é torná-los falsos mas sim atribuirlhes outros valores. Não é fingir que é uma cadeira, mas aquela, de uma maneira particular e simbólica, poder significar muitas coisas, e coisas completamente diversas. E portanto, a transfiguração dos objectos do dia-adia é um trabalho que gosto de fazer. Essa transfiguração pode significar variações de escala, a possibilidade de conter dispositivos que transformam o próprio objecto, ou até ser uma peça abstracta que, a partir de transformações, se torna reconhecível. Deixa de ser banco para ser mesa, deixa de ser mesa para ser obstáculo. Ou mesmo, de uma forma muito simbólica, a possibilidade de nos remeter para coisas que nada tenham a ver. Por exemplo, num trabalho que fiz, O Céu de Sacadura, uma peça da Luísa Costa Gomes sobre Sacadura Cabral, a primeira coisa que fiz foi o levantamento rigoroso do avião do Sacadura, para perceber os materiais de construção, as proporções, etc.; e depois destruí aquilo tudo para fazer uma coisa que me parecia muito interessante: queria ter alguns objectos que fossem próximos da escala do avião, sobretudo quando havia uma acção directa dos actores, mas, ao mesmo tempo, as peças do avião não se associavam, e apresentavam-se no palco fragmentadas; umas estavam à escala real e outras fora de escala, e portanto não tinham relações de correspondência. E lembrome, por exemplo, da asa que achei tão bonita que me apeteceu reproduzir, e era então um objecto suspenso que funcionava como o tal avião mas só aparecia a asa, não aparecia mais nada, e a uma dada altura funcionava como um candeeiro, porque resolvi projectar luz nela e, em cenas escuras, ela parecia um candeeiro; isto é, claramente, a transfiguração de um objecto, uma asa de avião que, com luz, sugere um candeeiro de rua, um objecto luminoso. Acho muito interessante quando os objectos de alguma forma mudam de figura e ganham outras qualidades; de uma forma simbólica transfiguram-se.

Alguma vez se sentiu dividido entre estas duas mulheres: a arquitectura e a cenografia? Acho interessante que vocês considerem a arquitectura feminina porque eu também tenho esse entendimento, embora não saiba bem explicar porquê!...Não me sinto nada dividido, acho que faz parte do mesmo trabalho e nem sequer sinto coisas distintas. Antes pelo contrário, sinto que enriqueço imenso pelo facto de estar a trabalhar em escalas e problemas, ou resposta a problemas, distintos; sinto que sou exactamente a mesma pessoa. As respostas são diferentes, os programas são diferentes, mas a metodologia e a forma de olhar as coisas é exactamente a mesma, não me sinto nada dividido. Coimbra, Setembro 2002 * alunos do 5º Ano do Departamento de Arquitectura da Universidade de Coimbra

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Rem Koolhaas, Museus e Lojas Josep Maria Montaner *

No mundo dos museus apareceu um fenómeno genuinamente contemporâneo: a aproximação entre arte e comércio, o facto dos museus tentarem aproximar-se dos lugares de consumo e das lojas, para aumentarem o valor dos seus produtos, imitarem as lógicas das museografias. Assim, Rem Koolhaas projectou um museu contentor: o Museu Hermitage-Guggenheim, no recinto do casino The Venetian, em Las Vegas (2000-2001). Tratam-se de duas grandes salas com as suas respectivas recepções e lojas, articuladas com o grande lobby do hotel e casino. Uma grande caixa vertical e polivalente, para exposições temporárias do franchise Guggenheim, e uma galeria horizontal e convencional, para obras-primas procedentes do Hermitage de São Petersburgo. Concluindo, uma montagem que, como se fora um espaço comercial, pode desmontar-se quando se achar conveniente, reconvertendo os espaços, antes dedicados a museu, em salas para o hotel e o casino, numa cidade, Las Vegas, cuja essência consiste em demonstrar que tudo está à venda. Ao mesmo tempo, os interiores das lojas de firmas como a Nike ou a Prada, foram projectadas com a vontade de se aproximarem da lógica de apresentação dos museus: sapatos ou roupa, ou seja, objectos de consumo produzidos em série, são apresentados de maneira singular como objectos únicos e irrepetíveis, edições limitadas ou personalizadas, como se estivessem num museu. E não é casual que a grande loja da Prada em Nova Iorque tenha sido inaugurada em 2001 segundo um projecto de

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Koolhaas. No número 575 da Broadway Avenue, compartindo o piso térreo e o subsolo da sede que Arata Isozaki remodelou para o Guggenheim do Soho, situa-se a nova loja da Prada, obra de Rem Koolhaas. Desde a rua, especialmente subindo desde South Manhattan, o que mais se destaca é o mural com uma imensa fotografia a cor, pixelizada, que com o tempo pode mudar, sendo necessário acercarmonos para descobrirmos o que está no interior. Ainda desde o exterior, as torres suspensas, com manequins e roupa pendurada debaixo, transmitem a informação de que se trata de uma loja singular, sem necessidade de que o logotipo da Prada apareça. Todo este espectáculo convida o transeunte a entrar e a experimentar a loja como se fosse um espaço público. No interior domina uma espécie de grande onda que desce do nível da rua até ao nível da cave. Alguns degraus servem para sentar e para mostrar sapatos e outros produtos, e outros degraus permitem percorrer o itinerário até ao nível da cave. No outro extremo, a onda sobe e possui uma mola que permite que essa face se desdobre e se converta num cenário: então, a loja pode transformar-se num teatro. Este carácter de espaço público que se lhe quer outorgar pretende inspirar-se nas paisagens das cidades europeias do século XIX, descritas por


Charles Baudelaire e Walter Benjamin como paraísos do flaneur. Potenciando o movimento no interior, existe um grande elevador de planta circular e casca de vidro num dos extremos. Na cave, a roupa à venda situa-se em volumes compactos que deslizam por guias, como sucede nas bibliotecas, e alguns ecrãs, ao lado dos volumes, mostram a mesma roupa vestida por modelos. Nas cabinas de prova, uma câmara permite que o espelho seja duplo: o cliente vê-se de frente e, ao mesmo tempo, vê projectada a imagem das suas costas filmada pela câmara. Deste modo, uma loja que custou 40 milhões de dólares converteu-se num manifesto da arquitectura contemporânea, das suas seduções, mas também das suas obrigações. Uma loja que quer imitar museus, bibliotecas e teatros, que quer ser uma espécie de espaço público. Mas que tipo de espaço público é este que mostra objectos que valem cada um milhares de dólares e que ilustra apenas a atmosfera elitista em que vivem os ricos? Também não é casual que o último livro de Koolhaas seja outro livro-tijolo, um álbum das imagens e dos slogans comerciais do franchise Prada, apresentada como um autêntico universo. Se tudo é shopping, escreve, o luxo seria ir comprar com o mesmo gosto, atenção e espírito livre com que se visita um museu, sem pressão nem obrigação de comprar. O consumo converte-se numa sofisticada e culta representação numa sociedade

do espectáculo da qual, como teorizou Guy Debord, não há escapatória. Cada livro de Koolhaas é uma montagem narrativa, com slogans e redundância de fotografias, misturadas e repetidas, como se tratasse de um guião cinematográfico. A tradução de conceitos e o uso de palavras polissémicas, aliado ao factor de uma autoria múltipla dos livros, propiciam a construção do discurso ambíguo e complexo de Koolhaas. E quando, em 2001, no seu livro Prada, Koolhaas defende a alternativa do papel pintado nos muros da loja, que podem ir mudando as mensagens publicitárias, está a continuar a ideia de Robert Venturi de que a intervenção do arquitecto se produz nas peles exteriores e interiores dos edifícios, num tratamento aplicado de gravuras – o aplique de que falou em finais dos anos setenta – ou imagens electrónicas – as iconografias electrónicas e a arquitectura genérica sobre a qual escreveu no princípio dos anos noventa –, que podem ir sendo substituídas. Em conclusão: museus, lojas e livros para justificar o consumo.

* arquitecto, docente da Escuela Técnica Superior de Arquitectura de Barcelona, crítico e autor dos livros Arquitectura y Crítica, Después del Movimiento Moderno: Arquitectura de la Segunda Mitad del Siglo XX y La Modernidad Superada: Arquitectura, Arte y Pensamiento del Siglo XX, todos editados pela GG

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Sobre a Artisticidade da Arquitectura António Olaio *

Tendo sido convidado a reflectir sobre a condição da arquitectura enquanto arte, confesso que desde logo vi que não seria nada fácil corresponder a semelhante desafio, o que torna a coisa ao mesmo tempo bastante estimulante. No caso das artes plásticas, frequentemente, quando, por exemplo, se pergunta o que faz de determinada obra de arte, uma obra de arte, a resposta menos arriscada é dizer que uma obra de arte é aquilo que o artista decide mostrar como tal. Esta resposta, que tem o mérito de cortar logo a possibilidade de novas questões, ficando logo o assunto resolvido assim, ou antes, assim definitivamente por resolver, não pode ser aplicada no que diz respeito à artisticidade da arquitectura, até porque uma obra de arquitectura não surge nunca pelo enunciado de que: Isto é uma obra de arte. De facto, também como artista que gosta de fazer arte mais do que de ser artista, não considero interessante considerar que uma obra de arte o seja só porque se diz que é, embora perceba as razões que levam a essa resposta, sobretudo quando, frequentemente, a questão parte de quem nunca questiona as obras de arte que utilizam os suportes tradicionais. Quanto à artisticidade da arquitectura, a resposta residirá, certamente, na resposta à questão: o que é a arquitectura? De facto, (a componente artística da arquitectura não será propriamente uma componente) encontraremos a condição da arquitectura enquanto arte na própria definição de arquitectura. A melhor definição de arquitectura que encontrei, ouvi-a da boca do arquitecto Alexandre Alves Costa, citando o arquitecto Fernando Távora. Em determinado momento, Fernando Távora terá dito (e escrevo-a de memória, da forma como a entendi, não exactamente como a ouvi): Arquitectura é isto: imaginem um deserto, espetam-se dois paus e depois alguém passa. Na simplicidade desta definição reside a enorme simplicidade do que é arquitectura e também a sua enorme complexidade. Para além da ideia da essencialidade da arquitectura enquanto modeladora do espaço que esta definição transmite aqui, numa grande subtileza, reside o que faz da arquitectura arte. Estando perante a essência da arquitectura, como na arte, estamos para além ou aquém (no sentido de estar antes) de qualquer sentido utilitário. De facto ainda não serve para nada alguém passar entre dois paus no deserto. A ideia de porta pode ser sugerida, certamente estamos perante o

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antepassado de uma porta, mas, ao mesmo tempo, não estamos ainda perante porta alguma, porque não se entra nem se sai de coisa alguma. Passando entre os dois paus, vimos do deserto e entramos no deserto nunca tendo de lá saído. O que se modifica ou, melhor, o que se revela, é uma nova relação com as coisas. Estes dois paus no deserto serão o princípio da arquitectura, mas também são o princípio da arte. Voltemos à citação como a entendi: espetam-se dois paus e depois alguém passa. Como estávamos no deserto, num deserto absolutamente deserto, terão sido aqueles dois paus que fizeram nascer alguém para por eles passar. Aqui, o nascimento do artifício, o nascimento da arquitectura ou o da arte, numa situação primordial em que uma e outra terão sido a mesma coisa, coincide com o nascimento do indivíduo, o artifício cria o indivíduo, ou, melhor, o artifício é o indivíduo. Neste sentido, na essência, a arte trata do que consistirá ser um indivíduo. E o domínio da estética é sobretudo o da procura desta definição, ou melhor, o da expressão da consciência do que é ser, do que é existir. E tanto a arte com a arquitectura, se é que ainda faz sentido separá-las, tratam do que as coisas são e não daquilo para que as coisas servem. Claro que as obras de arquitectura servem para alguma coisa e, no sentido mais estritamente utilitário, servem para mais do que uma obra de arte, mas o que faz uma obra de arquitectura ser arquitectura não é aquilo para que ela serve mas sim o que ela é. No sentido mais amplo do que é a percepção, nós somos o que percepcionamos. A percepção é a nossa relação com as coisas e, tanto a arte quanto a arquitectura modelam, ou melhor, recriam a percepção. Mais do que inventar novas formas, a arte e a arquitectura são motivadas pela dinâmica da percepção. E os artistas, arquitectos ou não, são aqueles que não se satisfazem em ser (o que seria, eventualmente, bastante mais confortável), passam a vida, através do que produzem, a pensar o que é que isso quer dizer.

* artista plástico, músico, docente do Departamento de Arquitectura da Universidade de Coimbra


3 telas de António Olaio de uma exposição

para a Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto a inaugurar em Dezembro de 2002

What makes a home a house?


Celulóide Pedro Jordão *

Cena 7. The End. Há uma reciprocidade óbvia entre cinema e arquitectura, ainda que não seja uma relação inversa. Cinema na arquitectura e arquitectura no cinema são fenómenos diferentes. O vice-versa não se aplica. A arquitectura incorpora valores cinematográficos. O cinema incorpora a arquitectura como mecanismo. Do cinema, a arquitectura retirou o sentido de movimento, de montagem, de enquadramento. Da arquitectura, o cinema retirou um meio de exprimir significados silenciosos, de sugerir uma intenção, um sentido de lugar. Até porque o que se representa verdadeiramente no cinema não é nunca um objecto, mas a sua ideia, não um lugar, mas todos os lugares que reflectem a mesma ideia. Num aparente paradoxo, podemos ainda concluir que, apesar de a arquitectura ter a capacidade, inexistente no cinema, de concretizar um espaço real, o cinema tem a capacidade, inexistente na arquitectura, de controlar o tempo e a causalidade. Na arquitectura, ao contrário do cinema, a duração e a direcção da experiência espacial é determinada pelo utilizador do espaço, muito mais do que pelo seu criador. Cena 2. Corta! Claro

que um filme pode ter princípio, meio e fim. Mas não necessariamente por esta ordem. A célebre frase de Jean-Luc Godard é facilmente aplicável à arquitectura, referindo-se a um elemento comum a todos os processos artísticos – a montagem. A decisão do que se segue e como e quando. É nessa decisão, do que é visível, com que tamanho e com que enquadramento, e por quanto tempo (a duração do plano), que se definem as fronteiras. O corte pode ser gradual ou abrupto. Enquanto que Frank Lloyd Wright dissolve os espaços entre si, atenuando

a transição, Mies van der Rohe corta a cena abruptamente. Esta dissolução (continuidade) e este corte (descontinuidade) correspondem igualmente a diferentes modos de estruturar eventos arquitectónicos e cinematográficos, o que conduz a diferentes percepções. Esta leitura cinematográfica da arquitectura é comum em arquitectos como Rem Koolhaas ou Jean Nouvel, que admite criar os seus espaços com esta ideia em mente: Nessa contínua relação plano/sequência que um edifício é, o arquitecto trabalha com cortes e montagens, molduras e aberturas. Eu gosto de trabalhar o espaço em termos da sua espessura. Assim, a imposição de diferentes ecrãs, planos lidos de pontos de passagem obrigatória, são uma constante do meu trabalho. É no momento do raccord, da mudança de plano, que se encontra a chave da montagem. É neste momento que devemos escolher o modo como vamos colocar em diálogo as várias cenas ou os vários espaços, o que implica uma ordem mas não necessariamente uma hierarquia ou uma sequência temporal lógica, o que em cinema sucede em filmes como Pulp Fiction (1994), de Quentin Tarantino. Em arquitectura, esta problemática é visível no raumplan das casas de Adolf Loos ou em certas experiências de Bernard Tschumi, em que defende que o significado de uma sequência espacial, e consequente impacto no observador, pode ser alterado pela inclusão de um novo espaço. Tschumi traça um paralelo com a experiência do teórico de cinema Kuleshov, na qual se interpunha alternadamente o mesmo plano de um actor de expressão neutra com três imagens: um plano de um prato de sopa, uma criança dentro de um caixão e uma passagem luminosa. Concluiu-se que a expressão do actor era interpretada de acordo a situação que a precedia. É também nesta base que reside muita da genialidade dos filmes de Hitchcock. Como referiu Jacques Herzog, nos filmes de Hitchcock tudo é tão normal; depois, de repente, há profundidade. Mesmo as coisas normais podem ser novas. Este é também, de certo modo, o mundo de David Lynch.

Nosferatu (1922), F.W. Murnau | Das Cabinet Des Dr. Caligari (1920), Robert Wiene | idem | Metropolis (1926), Fritz Lang | nu [novembro 2002]


Cena 5. O caso Fritz Lang. Poucos realizadores fundiram de modo tão perfeito e evidente o cinema e a arquitectura como Fritz Lang. Com Lang, a arquitectura também representa. Não é neutra, não se comporta como um simples fundo. Por vezes, chega mesmo a ser violenta. Uma cena típica de Lang dispõe as personagens contra um cenário arquitectónico, de modo muito controlado, seja numa cena interior ou exterior, em que o padrão geométrico do edifício domina sempre a cena. No entanto, os interiores, nomeadamente os escritórios e os quartos são os cenários preferidos de Lang. Aliás, as suas personagens vivem tipicamente numa única divisão. Por vezes porque são pobres, como em You And Me (1938), ou porque estão encarceradas, como The Testament Of Dr. Mabuse / O Testamento do Dr. Mabuse (1932). Se são ricas, aparecem essencialmente nos seus escritórios ou luxuosos quartos de hotel. Curiosamente, quando habitam casas de várias divisões, vivem em ambientes de tensão e conflito, como em The Secret Behind The Door / O Segredo Da Porta Fechada (1948). Lang utiliza intensivamente a arquitectura para sugerir a relação emocional das personagens e para exprimir a essência da trama. Em The Secret Behind The Door, as distorções dos cenários, e a opressão que exercem sobre a personagem feminina, reflectem o seu medo e a sua relação doentia com os diversos espaços das casa, fechados à chave. Em The Testament Of Dr. Mabuse, o sentimento de encarceramento é reforçado pelo movimento das câmaras, que seguem a personagem só para a ver confirmar a sua prisão em cada tentativa de procurar uma saída. Geralmente, há apenas um pequeno movimento da câmara nos seus filmes, precisamente porque as personagens estão ligadas ao fundo arquitectónico. O movimento ocorre no início, seguindo a personagem, até esta encontrar o seu lugar; e então a câmara pára. A realização de Lang encontra a composição perfeita e fixa-a. Lang adorava as possibilidades que lhe davam as formas irregulares, os cantos e os recantos, chegando

mesmo a construir divisões poligonais, como em Scarlett Street (1945), onde surgem também espaços espelhados, que utiliza para reflectir a imagem de Joan Bennet, como na cena do assassínio, o clímax do filme. Mas antes de todas estas obras houve Metropolis (1926), o seu épico de ficção científica e, provavelmente, a sua obra mais famosa. Lang confessou que se inspirou na sua primeira viagem a Nova Iorque, em 1924, que o teria impressionado com os seus arranha-céus, que via pela primeira vez. Apesar de ser, para muitos, o precursor dos filmes de ambiente urbano gótico, os edifícios representados são funcionais. Lang preferiu sempre um perfil modernista, ou até mesmo construtivista, com as suas formas duramente rectilíneas, lembrando os edifícios esculpidos por Malevich a partir de grandes sólidos brancos.

Cena 3. A câmara de Le Corbusier. Scene and screen. Não é por acaso que as duas mais poderosas metáforas estéticas do Modernismo são vocábulos herdados do cinema. Arquitectura e cinema construíram, juntos, o início da modernidade, instituíram-lhe os princípios, deramlhe as asas dos seus desejos, reflectiram o seu olhar. Também não é coincidência que Le Corbusier, o arquitecto mais determinante do Movimento Moderno, tenha tido sempre um discurso cinematográfico, ligado ao movimento. E o movimento, com a consequente introdução do tempo como quarta dimensão do espaço, é a verdadeira génese do Modernismo. Os olhos modernos movem-se. Como uma câmara de filmar deslizam por imagens que se sucedem. Com Le Corbusier, a opacidade das paredes foi substituída pela transparência dos panos de vidro. As janelas deixaram de ser aberturas na parede – tornaramse ecrãs de cinema que emolduram, com precisão, a paisagem. Escolhe-se a cena e a moldura. Escolhem-se as vistas. E são estas que definem o espaço interior. O promenade architectural de Le Corbusier não é mais do que o correspondente arquitectónico da câmara de filmar. Aliás, um dos

idem | The Secret Behind The Door (1948), Fritz Lang p 20.21


gestos mais determinantes na Villa Savoye, por exemplo, é o imenso travelling que se inicia na entrada da propriedade e só termina na abertura do painel do terraço, depois de se contornar a casa e subir a rampa interior. Rope / A Corda (1948), de Alfred Hitchcock, com a sua acção contínua e única é um óbvio equivalente cinematográfico.

Cena 6. Utopias urbanas. Metropolis poderá ter sido a primeira visão em celulóide de uma cidade do futuro, mas desde então nunca mais o cinema deixou de nos contaminar com as suas urbes imaginárias, muitas vezes verdadeiros exercícios de antecipação. A par de 2001 - A Space Odissey (1968), de Stanley Kubrick, Blade Runner (1982), de Ridley Scott, continua a ser a mais importante referência da segunda metade do século XX. Num mundo pós-apocalíptico, escurecido, em que os néons tomam o lugar do sol, irrompem do solo gigantescos edifícios habitados por milhões de seres solitários. O que parece hoje um cenário vulgar em filmes de ficção científica, teve na altura um impacto tremendo, continuando a deter uma força visual difícil de igualar. Desde então são muitos os exemplos de cidades futuristas nascidas pelo cinema, como em Gattaca (1997), de Andrew Niccol, ou The Fifth Element / O Quinto Elemento (1997), de Jean-Luc Besson, até chegarmos ao primeiro grande exercício do género deste século em Minority Report / Relatório Minoritário (2002), de Steven Spielberg. Neste caso, o factor mais interessante reside no modo extremamente realista com que se lançam pistas sobre um futuro próximo. É o caso das superfícies electrónicas dos edifícios da Washington de 2054, autênticos transmissores urbanos que se baseiam em experiências arquitectónicas cada vez mais frequentes nos dias que correm. Mas nem só do futuro nasce a diferença. Existem filmes que se alimentam de cidades oníricas desligadas do tempo. Realizadores como Tim Burton e Alex Proyas, deram-nos exemplos particularmente marcantes de urbes que se assumem como personagem principal, transformando o filme numa experiência mais do

que numa história. Tim Burton fê-lo com a Gotham City de Batman (1989) e, sobretudo, de Batman Returns / Batman Regressa (1992). A Gotham City que Anton Furst criou para os dois primeiros filmes da série é uma mistura ecléctica, inspirada nos Futuristas italianos, em Gaudi e, sem dúvida, nas fantasias urbanas de Hugh Ferriss. O resultado, conseguido também através da distorção da escala e das proporções, é uma atmosfera negra e irresistível. Algo similar acontece em The Crow / O Corvo (1994), baseado na BD de culto de James O'Barr, e em Dark City (1998), ambos de Alex Proyas. É no último caso que a imaginação vai mais longe e salta para o desconhecido, apresentando-nos uma vasta e obscura metrópole que reúne elementos do nosso passado e presente combinados com visões futuristas. Com claras referências a Des Cabinet Des Dr. Caligari e a Metropolis, Dark City foi criada e imaginada como um novo lugar para habitarmos.

Cena 4. O Dr. Caligari e o Expressionismo Alemão. A intrusão da arquitectura no cinema deu-se verdadeiramente com o Expressionismo Alemão, que nasceu, em grande parte, das dificuldades do pós-guerra. Impossibilitado de produzir cenários elaborados para as suas produções teatrais expressionistas, Max Reinhardt confiou nos cenários pintados, nas perspectivas bizarras e nos efeitos de luz para criar o ambiente pretendido e atrair a atenção para as emoções individuais de cada personagem. Estas novas técnicas estariam na base de um novo cinema, do qual Das Cabinet Des Dr. Caligari / O Gabinete Do Dr. Caligari (1920), de Robert Wiene, é o primeiro exemplo paradigmático. O filme marca uma transição entre um modelo de narração e filmagem arcaicos, dos primórdios do cinema, para uma linguagem mais desenvolvida, cujo principal precursor tinha sido D.W. Griffith. O papel da arquitectura é, desde logo, evidente. No filme, um louco internado num asilo conta a estranha história de um hipnotizador que controla um homem sonâmbulo para os seus propósitos malévolos.

2001 - A Space Odissey (1968), Stanley Kubrick | Blade Runner (1982), Ridley Scott | idem | Batman (1989), Tim Burton | nu [novembro 2002]


Sendo a história de um louco, o filme leva-nos para um mundo que é a expressão da sua loucura. Ruas sinuosas, edifícios com inclinações impossíveis, quartos claustrofóbicos e cenários contorcidos, criam uma imagem de extrema instabilidade. A atmosfera é completamente surreal. O uso de linhas oblíquas serve igualmente para nos dirigir o olhar. Em Das Cabinet Des Dr. Caligari há um carácter centrípeto da imagem, que concentra todo o conteúdo. Nota-se ainda uma influência teatral em que não é utilizado o conceito de fora de campo. A acção está perfeitamente controlada dentro do quadro. (Neste ponto, é impossível não nos lembrarmos da arquitectura de Adolf Loos.) Encontramos ainda aqui um elemento que se tornaria muito importante no cinema alemão – a figura do monstro, representada de modo indefinido, imaterial. A sua presença manifesta-se por uma sombra projectada na parede, bem como por uma câmara subjectiva, que representa o ponto de vista do próprio monstro. Nosferatu (1922), de F.W. Murnau, a primeira adaptação (não autorizada) do Drácula de Bram Stoker é outro momento fulcral deste cinema. Como sucederia em todo o cinema Expressionista Alemão, a iluminação tem aqui um papel fundamental. O contraste luz/sombra é meticulosamente calculado, fazendo ressaltar a intensidade dramática da acção, dando uma profundidade de campo inexistente nos cenários, destacando as características e os estados de alma das personagens e contribuindo decisivamente para a criação de um mundo negro, de intriga, de medo. Aliás, o film noir (americano, apesar do nome) tem a sua génese nestas características, bem como o imaginário cinematográfico de alguns cineastas, como Tim Burton. O uso da arquitectura no cinema como mecanismo-chave para criar sensações e conduzir a trama, passaria a ser recorrente. Vários anos mais tarde, surgiriam disso outros exemplos, como Bigger Than Life / Atrás Do Espelho (1956), de Nicholas Ray, em que o caminho para a loucura de um homem viciado em cortisona é representado pelas distorções dos cenários. A mesma técnica é utilizada para

caracterizar o louco e colorido mundo post-mortem de Beetlejuice (1988), de Burton.

Cena 1. A essência do romance. Primeiro a luz e as sombras e as imagens em movimento. Começa a sedução, intensa, mútua. Cinema e arquitectura envolveram-se num abraço que não se desfez até hoje. Muito aproxima e muito distingue estas artes que se interferem constantemente. O tempo, o movimento e o olhar são, para ambas, substâncias preciosas. Arquitectura e cinema dirigem-se um observador. Mas a primeira (a maior?) grande diferença começa aqui, nos diferentes graus de liberdade que permitem ao observador – a diferença entre o determinismo do cinema e o (quase) livre arbítrio da arquitectura. No cinema há um claro sentido pessoal de lugar e de espaço, o do cineasta, cujo olhar (o único) somos forçados a seguir. A percepção no cinema é passiva, enquanto que na arquitectura é dinâmica, pressupondo uma resposta do observador, que é forçado a optar. Segundo Sergei Eisenstein, existem dois tipos de olhares espaciais: o cinematográfico, em que diversas imagens passam em frente de um observador imóvel, e o arquitectónico, em que o observador se move entre uma série de fenómenos dispostos cuidadosamente e que ele absorve segundo o seu sentido visual. Eisenstein considera o cinema como a única forma de conseguir, numa superfície plana, uma ilusão representativa do espaço, servindo-se da multiplicação de pontos de vista, seja através de um plano sequência ou através da montagem. Para esta simulação no tempo e no espaço contribui igualmente a identificação que se gera entre o observador e o olhar da câmara. Quando começa a intimidade.

* aluno do 6º Ano do Departamento de Arquitectura da Universidade de Coimbra

Beetlejuice (1988), Tim Burton | Dark City (1997), Alex Proyas p 22.23


O Vértice José Brites *

Inabalável nas convicções que guarda de si mesma — as da impreteribilidade do seu préstimo, do papel que ocupa como reflexo dos ideais que lhe são contemporâneos ou de como motiva a génese e evolução de outros ideais — a arquitectura vacila face a si própria, face aos conceitos mais elementares que lhe são intrínsecos. A definição do métier e de quem o executa, o seu objecto, o seu objectivo, parecem tomar a forma de irresolúveis temas de retórica cujas audaciosas tentativas de resposta são tantas quantos arquitectos há e houve. É quase como se a arquitectura assumisse os contornos de uma espécie de entidade semi-dogmática que se consegue descrever factual e metodologicamente dentro dos muitos capítulos que encerra, mas que nunca revela seu o propósito absoluto.

irresistível trocadilho bacoco…). Assim o será, muito provavelmente, grande parte das lendárias definições de arquitectura tecidas em belas palavras pelos grandes mestres — uma provocação. Provocação para com o colectivo, para com os colegas, para com o próprio autor, na esperança, quem sabe, de instaurar a discórdia motivadora de uma qualquer dialéctica de raciocínio. Um pontapé para a frente. Um tiro no escuro com o risco calculado (no escuro, é certo, mas não no vazio). Mas antes que me perca, o que é isso de técnico da arquitectura? É o exímio conhecedor dos métodos de construção? É o hábil mediador de propostas com as autarquias? E se for, em que pé ficamos? Quais as lacunas com que o finalista do curso de arquitectura se debate ao chegar pela primeira vez ao atelier?

Imagens standardizadas do arquitecto, essas há. Provavelmente, como (pré-)profissionais do ramo, não as veremos com bons olhos, mas há ideias pré-concebidas de arquitecto, seja a do playboy bem falante ou a do idealista fantasioso de olhar perdido. Porém, mais preocupante do que estas caricaturas é a imagem (na qual já me aconteceu esbarrar) do arquitecto desprovido de carácter técnico, apostado em dar relevo ao seu ímpeto artístico. Proferida semelhante asseveração por gente alheia, em último grau, à prática da arquitectura, a coisa assume o carácter de um insolente disparatezeco, mas vista por outro prisma a questão adquire proporções diferentes e interesse acrescido. Nem são precisas muitas palavras para lançar a contenda: é o arquitecto um técnico ou um artista? E pronto, lá nos perdemos de novo em retóricas existencialistas…

O ensino que nos é dado, há quem diga, caracterizase por uma certa omissão de componentes especificamente técnicos. Os nossos colegas de outros países acabam o curso superior com um mais alargado leque de conhecimentos no que diz respeito à construção do edifício propriamente dita, no que diz respeito aos materiais utilizados, propriedades destes, técnicas de construção e por aí fora. Os cursos de arquitectura que temos em terras de Portugal estão tendencialmente virados para a parte conceptual do projecto; lá está, para a arte de projectar, para onde nos leva o espírito, para o gozo que dá fazer excêntrico enquanto se pode. Uma vez lá fora, a canção é outra, frequentemente escrita ao ritmo dos cadernos de encargos, dos procedimentos burocráticos nas câmaras, das cabeçadas com as equipas de engenharia, etc.. Enfim, toda uma série de eventualidades às quais o aluno da arquitectura está alheio enquanto inebriado pelo empolgante borbulhar das quimeras académicas…

...o arquitecto (…) é um técnico [da arquitectura]... (Paulo Varela Gomes, RUC, Camartelo de ?/06/2001)

A frase foi proferida em tom de subtil provocação, intencionalmente arquitectada (arquitectada, o

nu [novembro 2002]

...a arquitectura só faz sentido se for uma arte… (João Luís Carrilho da Graça, O Público de 09/03/2002)


Ao falar de arquitectura como arte tenha-se em atenção que esta é uma arte que se atravessa, que se visita, que se consome, que se vive; literalmente. A arte do que para aqui andamos à procura está em fazer bem, se possível aliado a fazer bonito, mas esta não é uma frase que aceite vice-versas. Fazer arquitectura, boa arquitectura, não é fácil. O arquitecto tem a tarefa simultaneamente apaixonante e ingrata de fazer coincidir o seu cunho criativo pessoal com as exigências do cliente, os requisitos específicos de cada situação e as possibilidades consentidas pela extensa série de condicionantes urbanísticas, programáticas, construtivas e monetárias que habitualmente se lhe impõem, assegurando a qualidade do produto final em termos formais e funcionais. E para desempenhar tal função há que possuir uma certa mestria. E experiência (que é mãe de todas as coisas) e prática e talento. E bem, há que dizê-lo: há que ter arte. Convenhamos que não há um único arquitecto que não tenha já comentado consigo mesmo algo do género sempre gostava de projectar qualquer coisa parecida com o não-sei-quê do Não-Sei-Quem, seduzido pelas linhas exteriores da obra. E também é preciso reconhecer que a imagem pesa nos dias de hoje. Depois, é sabido que os cursos de arquitectura funcionam por esse país fora um pouco como botes de salvação para náufragos de outros ramos, ditos artísticos, que confrontados com o p a n o ra m a d e d i f i c u l d a d e s d e e m p r e g o, remuneração, etc., que se lhes sugeria, ponderaram e acabaram por optar pelo ramo que com maior índice de sucesso consegue aliar a vontade criativa à certeza de uma refeição em cima da mesa (em boa hora me confesso: atrás do teclado está um deles). Não será por isso de admirar que nalguns dos projectos que vemos nas escolas de arquitectura se note claramente o onirismo de quem procura trazer a arte que lhe foi privada para a ponteira da régua de paralelas.

Arquitectura, s.f. uma das belas-artes; arte de edificar ou traçar planos para construção de edifícios com alguma qualidade estética; […]. — a definição figura num comum dicionário da língua portuguesa e é plena de eloquência. Procuro mais acima. Arquitecto, s.m. o que faz os projectos e muitas vezes dirige a construção dos edifícios. (Do gr. arkhitéctôn 'chefe dos operários' […]). — o técnico responsável, concluo. Mau. Afinal em que ficamos? Coloco a questão aos meus pares: eis-me galardoado com todo o tipo de exposições. Não obstante, o teor da resposta é invariável; perante a questão em causa, o aluno de arquitectura opta pela resposta politicamente correcta: é no equilíbrio entre a função de técnico e a de artista que o arquitecto se deve manter — sobriedade acima de tudo. Mas esse equilíbrio nunca será perfeito. Porque é assim, pronto, e não vai daí mal nenhum ao mundo. Dizia-me o Varela Gomes no outro dia: quando o arquitecto perder a mania que é artista deixa de haver arquitectura, e eu concordo com ele. E quanto às lacunas, concordo com o Jordão: antes as de carácter eminentemente técnico e burocrático, porque essas repõem-se facilmente no dia-a-dia do atelier; as de carácter conceptual temos estes cinco anos para as colmatar. Depois, chapéu. Termino de forma inconclusiva. Há alguns parágrafos atrás expus a questão, agora não lhe respondo. Para os leigos, que diabo, optemos pela tal correcção política. Até porque, em boa verdade, é também essa a função do arquitecto: ser o ponto pivot, a articulação das vertentes técnica e artística; aquilo que as une, as legitima e as enriquece. É nesse ponto que encontraremos o arquitecto: no vértice desses gumes.

* aluno do 3º Ano do Departamento de Arquitectura da Universidade de Coimbra

p 24.25


[ 1º acto ]

LOCALIZAÇÃO. FORNELO, VILA DO CONDE | PROJECTO. ALEXANDRE SARAIVA DIAS + MARIA AMÁLIA FREITAS + CARLOS QUERIDO BORGES | DATA. 2001/2002 | MAQUETAS. ALEXANDRE SARAIVA DIAS, RUI STANZANI LAPA, CARLOS QUERIDO BORGES | FOTOGRAFIAS. ALEXANDRE SARAIVA DIAS, RUI STANZANI LAPA.

[A RESPEITO DA POESIA PODE AINDA DIZER-SE: A LÂMPADA FAZ COM QUE

nu [novembro 2002]


S E V E J A A P R Ó P R I A L Â M PA D A . E TA M B É M À V O LTA . ] H E R B E RTO H É L D E R

p 26.27


CORTE PÁTIO

3

6

7

8 4

5

9

3

2

1

5M

PISO 0. 1 ATELIER | 2 ARRUMOS | 3 QUARTO DE BANHO | 4 ENTRADA | 5 SALA | 6 LAVANDARIA | 7 DESPENSA | 8 ENTRADA DE SERVIÇO | 9 COZINHA

nu [novembro 2002]


ALÇADO POENTE

3

1 1

1 0

2

1 0

1 2

3

1 0

PISO 1. 2 ARRUMOS | 3 QUARTO DE BANHO | 10 QUARTO | 11 BIBLIOTECA | 12 VARANDA

p 28.29


Uma aproximação ao futuro Se analisarmos a história da arte ocidental de forma generalizada, poderíamos descobrir duas grandes tendências que articulam a sua evolução e progresso (isto, se se puder falar de evolução ou progresso na arte). Uma destas tendências segue uma perspectiva a que chamaríamos cumulativa ou aditiva, que considera o progresso na arte como um incremento dos seus recursos expressivos, um enriquecimento dos seus meios, dos seus códigos e, em consequência, como uma ampliação do horizonte de expectativas do público. Em síntese, uma perspectiva que se poderia colocar sob o lema quanto mais, melhor. Seguindo o caminho oposto, a outra tendência procura a redução, o despojamento, o empobrecimento dos recursos e meios artísticos – poderia ter como lema o que têm também os artistas minimalistas e a estética de Samuel Beckett: less is more. A esta tendência chamaríamos redutiva ou subtractiva. Se aceitarmos esta divisão – sem dúvida abusiva – poder-se-ia afirmar, com pouca margem de erro, que hoje o teatro se encontra fascinado pela primeira tendência e pela convicção de que a única via para superar a eternamente anunciada crise do teatro é a acumulação de recursos expressivos e o enriquecimento da produção teatral. Este fenómeno dá-se, não só nos âmbitos socio-culturais de meios económicos abastados, sob a forma de exacerbação do espectacular, mas também nos contextos mais pobres, carentes de alguns recursos, mediante uma intensificação ou crispação expressiva que recai geralmente sobre o actor, que se submete a todo o género de torturas físicas e psicológicas (a que se chama entretenimento), para multiplicar a sua capacidade comunicativa. Mas se partirmos do princípio segundo o qual o essencial da acção teatral é o encontro entre actores e espectadores, a simultaneidade espacial e temporal de um colectivo de emissores e de um colectivo de receptores (e se admitirmos que a co-presença de ambos é a condição dos complexos processos de identificação e participação que em tal encontro se desenvolvem), então, na nossa opinião, para que o teatro continue a existir – e, de todas as maneiras, o teatro continuará a existir – terão de se incrementar e potenciar estas duas presenças, isto é, criar as condições necessárias para intensificar a presença do emissor em cena, mas também a do receptor na plateia enquanto ser participativo durante esse encontro fugaz que a representação instaura. Seguindo este princípio, só se poderá compreender o futuro do teatro, trabalhando, investigando e aprofundando essa dupla presença de actores e espectadores. Enfatizar esta relação cooperante significaria, assim, enriquecer a interacção de ambas as presenças (o que exigiria do espectador algo mais do que simplesmente estar ali) nesse sistema efémero que é o encontro teatral, não apenas no que a partir da cena se transmite à sala, mas no que a partir da sala se transmite à cena (e que o actor,

nu [novembro 2002]


[ prova final ]

a construção de metáforas ou o fio de Ariadne Pedro Crisóstomo * pela sua parte, recolhe e devolve). Este trabalho sobre a imediação do encontro parece-nos um dos requisitos fundamentais para a sobrevivência e consequente desenvolvimento do teatro. Se aceitarmos esta segunda hipótese, estaremos também de acordo em admitir que esta intensificação da interacção entre emissores e receptores produz-se com muito maior eficácia e profundidade a partir de uma opção estética despojada, reducionista, do que a partir de uma opção cumulativa, baseada na ênfase da espectaculosidade e no incremento quantitativo dos recursos expressivos. A discrição e a nudez das circunstâncias em que se produz esse encontro entre actores e espectadores contribuem, na nossa opinião, para intensificar a cooperação. Durante muitos séculos, a noção de acção dramática predominou nos nossos palcos, baseada fundamentalmente na sua equivalência com o argumento, com a história, com a fábula, conceitos provenientes da literatura narrativa. Pode-se dizer que a profundidade das questões levantadas no teatro tradicional, não se esgotando em absoluto na palavra, está a ela muito ligada. Mas, ao longo do século XX, deparamo-nos com uma dramaturgia na qual a história narrada é menos importante; a acção dramática liberta-se da sua função de mensageira literal para oferecer um devir cénico, não só através da interpretação dos actores, mas na sua globalidade como todo teatral (incluindo neste campo a cenografia, o desenho de luz, os figurinos) para nos mostrar um mundo situacional mediante o qual se contam histórias, e não uma história. Nestas histórias, a acção não decorre só pela linha do argumento mas também por outros layers. Hoje em dia, preferimos aceitar a condição incompleta da personagem dramática, o seu carácter parcial e enigmático, revelador de apenas uma parte de si mesmo. A imagem beckettiana da personagem mutilada, cega, reduzida a um rosto, a uma boca e a uma voz, como no caso de Eu não de Beckett, exige um reducionismo e uma minoração do conceito de personagem. Todo o questionamento do eu, do sujeito, empreendido pelo pensamento contemporâneo, vê-se reflectido no tratamento da personagem como resíduo, como algo incompleto e inacabado. A palavra dramática, que no teatro tradicional se concebe como uma palavra completa, portadora do pensamento do autor, transmissora de uma qualquer ideologia, e que é de um certo modo auto-suficiente, esvaziase em certas correntes do teatro contemporâneo, tornando-se insuficiente. Esta insuficiência é potenciada, também, como opção estética: a palavra não diz – faz; não mostra – oculta; não quer revelar o que a personagem parece dizer. E nesta condensação da fala, o silêncio é tão expressivo como o discurso. Existe uma atenuação do explícito. O grande teatro do passado, vinculado a uma concepção religiosa, aspirava a transmitir a mensagem, o conteúdo, os significados da obra, à mente do espectador, através de um predominante concretismo. O explícito era, assim, o elemento fundamental do discurso do autor,

manifestando-se no sentido da narrativa, nos diálogos e no carácter das personagens. Hoje, as nossas opções levar-nos-iam a negar esta discursividade clara, acentuando a incerteza e a ambiguidade dos conteúdos a transmitir, tanto nos verbais como nos não-verbais. Seria assim dado ao espectador um papel mais activo, induzindo-o a escrever o que o espectáculo esconde, reclamando a sua participação de modo a completar a obra q u a n d o a r e p r e s e n t a ç ã o n ã o d i z t u d o. Para um novo espaço teatral O teatro reclamado nestas linhas necessita indubitavelmente de uma redução espacial, a fim de que possa acontecer o encontro entre emissores e receptores. Para que se produzam os efeitos cooperativos mencionados, terão de se assumir determinadas limitações espaciais que reduzam a distância entre actor e espectador. Uma sala de mil e quinhentos lugares, onde a distância da primeira fila da plateia ao placo seja de três metros, é absolutamente inadequado para que funcionem os subtis circuitos de energia e informação que fluam entre o palco e a plateia. Necessariamente, ter-se-ia também que reduzir a quantidade de pessoas dentro de um espaço com estas características. Admitamos a aceitação deste carácter minoritário – mas não elitista – da obra de teatro como um factor positivo e não como mal inevitável. Quando este espaço minoritário não é respeitado, o indivíduo desaparece e dissolve-se na multidão, perdendo-se assim a noção de grupo em que o encontro teatral baseia as suas raízes. Porque tudo depende das proporções espaciais e da natureza dos códigos cénicos. Esta redução ou minoração dos parâmetros da teatralidade não implica, porém, uma tendência ao simplismo e à pobreza do acto teatral. Pelo contrário, cada vez é mais necessária a exploração da noção da complexidade, quando não se pretende já compreender a realidade, mas interpretá-la de vários pontos de vista. Esta noção, cujas explicações filosóficas conduzem-nos inevitavelmente à interdisciplinaridade, é a ferramenta indispensável para evitar que o acto teatral se restrinja a uma teatralidade plana. É dever do teatro incitar o espectador a valorizar a sua função criativa, combatendo a tendência da passividade do cidadão incutida pela sociedade actual; desafiar o espectador para a iniciativa e para a criatividade e estimular a sua sensibilidade e a sua predisposição para a inocência. [ excerto do trabalho realizado no âmbito da Prova Final do Departamento de Arquitectura da UC, 2000 ]

* arquitecto licenciado pelo Departamento de Arquitectura da Universidade de Coimbra

p 30.31


[ contaminações ]

Mc Crónica

la carniceria teatro

Ricardo Trindade * Durante um ano não se falou de outra coisa quando o teatro era assunto de conversa. Ciclicamente ouvia falar de La Carniceria Teatro e o espectáculo que trouxeram ao Citemor em 2001. E ninguém se poupava elogios, não sabiam era explicar o que era, ou o que tinha sido – para meu infortúnio, já que não estive presente na altura... Diziam que maltratavam uns coelhos, aquilo nem era bem teatro, o público ficava apreensivo, chocado, algum espectador até abandonou o recinto... Este ano não pude deixar de comprovar pessoalmente que fenómeno era esse, vindo de aqui mesmo ao lado, de Madrid, três espanhóis e um argentino que dias antes do espectáculo enchiam as páginas centrais do Y. A relação entre o Citemor e o grupo madrileno tinha sido de tal forma entrosada, e supostamente a aprovação tinha sido tanta, que 2002 reservava um espectáculo construído em – e para – Montemoro-Velho: um work in progress intrínseco à especificidade do local e do público, tricotado a partir de uma ideia central, inerente à própria filosofia dos actores e do encenador. O nó apertouse e a co-produção tomou a forma de intercâmbio, bastando, para o comprovar, dar uma espreitadela à enorme quantidade de instituições e nomes portugueses que constam da ficha artística, desde a frota Táxis Licínio à Banda Filarmónica de Montemor-o-Velho, participando todos, física ou virtualmente no espectáculo e na sua construção. A história de Ronald, o palhaço do McDonald's foi então o nome dado à produção dirigida por Rodrigo Garcia, que estreou no passado dia 15 de Agosto. Longe de ser apenas um pretexto para o espectáculo, o nome da multinacional inicia-o com um tríptico de histórias de infância marcadas pela experiência Big Mac, e fecha-o com a imagem desoladora de três Ronalds em pé, parados, mudos, afinal uns palhaços sem piada nenhuma. O fast food como aperitivo e sobremesa, princípio e fim de uma substância imoral que são os aspectos negros e ocultos da vida civilizada. Ora com ironia, ora com inóspita frontalidade, os três actores vão lançando quentes provocações à consciência colectiva, dissecando tabus da memória h i s t ó r i c a , e s b o f e t e a n d o o c o n s u m i s m o, esquartejando os Estados Unidos, os seus cartoons que manipulam as mentes virgens das criancinhas, a sua política autista de relações internacionais. Desancam ainda no Avô Cantigas e no seu congénere Pipo Pescador, que supostamente amam os seus infantes em exagerado grau de profundidade; a certa altura iniciam um ritual corporal de decalcagem de tatuagens que vão envergando por todo o corpo, com os logotipos da Nike, Volkswagen, Puma, Adidas, Lacoste, etc...; sufocam-se na desimportância da informação, na aparente reacção que temos à notícia de um genocídio, mais – ou menos – escandalosa que a da transferência de um jogador de futebol. E da nu [novembro 2002]

bosta colectiva extraem pedaços de merda individuais, do desarranjo global ensaiam prenúncios de uma desilusão solitária e irrefutável: Até aos 25 acreditas que és artista. A partir dos 26 precisas de dinheiro todos os dias. E aos 27 já fracassaste. Fim do espectáculo. Preciso de um Alka-Seltzer, não me larga o cheiro de miúdos de frango e/ou tripas várias de porco, misturado com o odor ácido a vinho, a detergente da roupa, a hambúrguer putrefacto, tal se imagina a esterqueira que ficou o palco depois de um bombardeamento de comida caída do céu. Sai-se com a impressão de que há uma alternativa lógica e moral para aquilo tudo. Mas desengane-se a mais purinha das almas que, como eu, acreditaram ingenuamente por alguns momentos que as pessoas reais por trás daqueles três actores poderiam ser protótipos do neo-hippie politicamente correcto, um altruísta macrobiótico fazedor dos seus próprios instrumentos de trabalho, tecelão de roupagens de pura lã ou cânhamo vendidas a troco de sal. Sai o primeiro actor, banho tomado, a tiracolo uma mochila Freitag, da qual retira um maço de Marlboro… Não é de facto possível rendermo-nos à novidade de um tema que já conhecemos. Aliás, como grupo de teatro de vanguarda, o público é desde logo um público restrito, eventualmente esclarecido. Infelizmente assim é. No entanto, o conteúdo do espectáculo é reflexo do activismo de Rodrigo Garcia, escritor, encenador, actor, artista visual, crítico acérrimo da estupidez social e do falhanço dos sistemas educativos. O objecto do seu trabalho é maniqueísta: podridão ou esperança, renegando todo o imenso meio-termo onde se enquadram a maioria dos autores. Mas se houve impacto no que vi, esse deve-se à matéria intrinsecamente teatral: a encenação brilhante, a concordância entre o movimento e a palavra, entre a luz e o som, entre a presença física e a projecção vídeo. Porém, é nas três interpretações (Ruben Amellié, Juan Loriente e Juan Navarro) que este teatro encontra maior eco. E também aqui o grupo foge à convenção: o actor não coloca máscaras, antes, retira as que tem. E a sensação é a de estarmos – o público – no limiar da teatralidade, onde esta se confunde com a própria vida, e no reforço dessa ideia sobe ao palco, a dado momento, a mulher e filhos de um dos actores, como se dizendo, isto que vocês pagaram para ver não é teatro. Mas de mentira se faz o teatro, e a propósito, vemme à memória outro grupo espanhol que se recusa a convencionalismos. Os catalães La Fura dels Baus procuram avidamente novas formas de comunicação teatral numa surpreendente associação entre tribalismo e tecnocracia, onde o movimento, a imagem e a violenta interacção com o público são


os ingredientes de espectáculos sensacionalistas onde a própria integridade do espectador é posta à prova. Ali come-se com os olhos. Fizeram imenso furor na década passada, vi dois espectáculos com cerca de 5 anos de intervalo. Se o primeiro tinha cumprido todas as expectativas, já o segundo foi uma tentativa frustrada de impressionar, já nós sabíamos que eles tentariam ser chocantes, e tentaram; já nós temíamos que algum líquido de origem duvidosa tentaria salpicar a roupa, e realmente; já nós estávamos alerta para um susto vindo de origem desconhecida, pois buh!. Aquilo que outrora tinha sido um encontro com a novidade e com o espanto converteu-se num Estilo Internacional cujo conteúdo foi largamente esbatido pela forma demasiadamente técnica, produzida, cara; cujos actores foram largamente esbatidos pelo cagaçal produzido pelo arsenal de máquinas, ecrãs e demais engenhocas multimédia, até davam óculos 3D à entrada, como se o espectáculo carecesse de alguma profundidade. Tive alguns indícios deste sintoma conformista no espectáculo dos La Carniceria. Alguém dizia que tinha gostado mais no ano passado, fora mais autêntico, este claro que era bom, mas não sabia ao mesmo. Efectivamente, parte da vitalidade deste espectáculo depende do seu lado performático e irrepetível, tomando o público de assalto com insistentes acções espontâneas pautadas por uma enorme dose de imprevisibilidade. Quase que apetece manter único o momento, não vão os La Carniceria fazer escola, mas quem não sabe é como quem não vê, e neste caso vice-versa, sendo que é melhor voltar a ver, ainda que se venha a saber demais. Se há alguma relação causa/efeito entre o não convencionalismo e a necessidade de reinvenção formal, esta só se dá quando a matéria conceptual da qual o espectáculo deriva deixa de se pôr em questão, resumindo, quando se deixa de perguntar porquê para se passar a perguntar como. (Pena é que enquanto em Espanha uns perguntam porquê e outros como, em Portugal ainda muito se franze o sobrolho: quem?!) A história de Ronald, o palhaço do Mc Donald's foi sem dúvida uma aventura arriscada; o seu sucesso deve-se à grande entrega dos actores e do encenador, bem com ao tom de acesa argumentação que envolve todo o projecto. Às vezes hesitante no limite entre o genial e o ridículo, apesar de tudo, os La Carniceria limitaram-se a ser geniais. www.lacarniceriateatro.com

* aluno do 6º ano do Departamento de Arquitectura da Universidade de Coimbra

p 32.33


[ cheese-ham files ]

#5 Vasco Pinto

Any-fellows. Fazer um balanço da situação geral da arquitectura no final do milénio não deixaria em tempo e lugar nenhum de ser um propósito arriscado e ambicioso. Também não parece surpreendente que um dos fenómenos contemporâneos mais interessantes de debate sobre a disciplina surja sob o signo da negação, ainda que a carga metafórica do inglês e o fantasma da dupla negação, lancem sobre o determinante Any um halo poderoso de ambiguidade a insuflar uma carga imensa de sugestão, ainda por cima, e sabe-se lá porquê, estranhamente positiva — tal como Ella a trautear uma canção de Porter: A-ny-thing Goees... Anything goes, era assim que Cynthia Davidson, coordenadora do fenómeno e co-directora com Eisenman, Isozaki, Philip Johnson, Koolhaas, Phylis Lambert e Ignasi de Solà-Morales queria chamar a Anything, o último Any, para assinalar a dissipação de uma estrutura propositadamente finita, que encenou e preencheu abundantemente toda uma década e merecesse por isso um fim digno e performático, à imagem de Any. Anything [MIT Press, 2001] é o registo bibliográfico da conferência com o mesmo nome que decorreu em Nova Iorque, em Junho de 2000, e que, juntamente com Anyone, Anywhere, Anyway, Anyplace, Anywise, Anybody, Anyhow, Anytime e Anymore, perfaz os dez compostos do prefixo any, que são os temas/títulos das conferências anuais itinerantes promovidas pela Anyone Corporation desde 1991. Focalizando o lugar controverso da arquitectura contemporânea, num plano multidisciplinar e intercultural, os dez volumes publicados transcrevem as comunicações e discussões de um elenco de participantes, arquitectos, críticos e teóricos, em áreas e o r i e n t a ç õ e s d i ve r s a s , c u j a r e p u t a ç ã o e reconhecimento não fica nada atrás dos nomes que já citei. É esse o primeiro espanto de Any: é que está lá toda a gente (anyone that matters, e Eisenman não é particularmente misantropo nas nu [novembro 2002]

suas escolhas nem meigo com as estrelas que ficam de fora). Como tal, é um excelente auxiliar de navegação para quem ande à procura do fio, do zeitgeist ou apenas do who's who da arquitectura actual. Depois, há os discursos brilhantes, os que não descem da expectativa e os verdadeiramente surpreendentes, alguns (poucos) ânimos exaltados, algumas imposturas, uma ou outra carta enigmaticamente fora do baralho. Restam as aproximações e os cruzamentos com esferas teóricas e artísticas de órbitas bem exteriores à da arquitectura (com destaque para a literatura, a matemática e a sociologia) e uma centrifugação de expressões definitivamente mais individuais que culturais ou estilísticas, a obsessão do global e do virtual e o primado da imagem sobre o discurso, ou melhor: do discurso enquanto imagem — Fragmentos de um interminável monólogo de que a regra é, de preferência, mais a da diferença que a da repetição (J. L. Cohen). Eu gosto particularmente do fait divers, das recepções elegantes e de me comprazer com as contradições implícitas nalgumas entrelinhas. Desiluda-se quem pretender princípios estruturantes, conclusões decisivas ou delimitações claras de fronteiras. Complementarmente, entre 1993 e 2000, foram editados os números de 0 a 27 da ANY-magazine, números temáticos ou monográficos com edição delegada a autores e críticos proeminentes, que ajudaram a sedimentar e a disseminar as culturas e o conceito de Any. Ficamos por fim a saber que os anos 90 são a Anydecade, que recolocou ainda mais nos Estados Unidos o epicentro da cultura arquitectónica mundial e que Any é afinal um acrónimo para Architecture New York. No ar fica a possibilidade de terem sido estes os CIAM da era pós-moderna, contra o cepticismo benevolente de Rafael Moneo na censura contada por Solà-Morales: Many things, Peter, [too] many things…


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Bolles + Wilson Um dos mais interessantes ateliers da Alemanha, Bolles + Wilson têm também uma forte relação com a Holanda, principalmente com Roterdão, onde têm algumas das suas mais importantes obras, como os Quay Buildings (1996) e o New Luxor Theater (2000). Caracterizados por um estilo irreverente, Bolles + Wilson subvertem as regras clássicas de composição e usam descomplexadamente a cor e os materiais industriais. Mas o tema de fundo da sua obra é sempre a experimentação urbana. Das suas obras, destacam-se ainda a Biblioteca Municipal de Münster (1993) e o Centro Educativo de Castrop-Rauxel (1997).

Escolha e relacione-se com: uma cidade... Machu Pichu uma obra de arquitectura... Heidi Weber Pavillion, Le Corbusier um artista... Cy Twombly um livro... Lolita, Vladimir Nabokov um filme... Lost Highway / Estrada Perdida, David Lynch uma experiência... Vaguear sozinho por edifícios inacabados da nossa autoria uma influência... Sombras um vício... Voar às cegas uma palavra... Sometimes um futuro... Como um passado – não perfeito

p 34.35


ISSN 1645-3891

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