Madonna Female Gothic / Extremo Ocidente / A Filha Perdida / Margherita Buy / John M. Stahl número 1
Madonna, número 1 novembro de 2022 editores
Letícia Weber Jarek, Luiz Fernando Coutinho, Miguel Haoni, Roberta Pedrosa. projeto gráfico e diagramação Pedro Alencar colaboraram nesta edição Emanuela Siqueira, Evandro Scorsin, Felipe Cruz, Fernando de Mendonça, Gabriel Linhares Falcão, Leodoro CamiloFernandes, Letícia Weber Jarek, Luiz Fernando Coutinho, Miguel Haoni, Paula Mermelstein, Rafaela Marques, Raffaella Rosset, Roberta Pedrosa, Tainah Negreiros Souza, Victor Cardozo.
A mansão cinema e um chalé à beira mar (sobre um gênero obscuro), por Leticia Weber Jarek
Homem viúvo procura (sobre a figura do marido), por Evandro Scorsin Movimento em falso (Coração Prisioneiro), por Victor Cardozo
John M. Stahl: depois de amanhã, por Roberta Pedrosa
Amor, Sublime Amor, por Miguel Haoni Renate, por Gabriel Linhares Falcão Extremo Ocidente, por Luiz Fernando Coutinho
dossiê female gothic descobertas atores e atrizes caderno crítico mesa redonda crônica
A Filha Perdida, de Maggie Gyllenhaal
68 - 76 101 - 119
O casamento como campo de batalha (O Segredo da Porta Fechada), por Paula Mermelstein
Aqui, a espectadora salva a si mesma, por Emanuela Siqueira Nenhum teto todo nosso ou expulsando os fantasmas, por Rafaela Marques
Rebecca, um cinema inesquecível?, por Luiz Fernando Coutinho Fábulas de tragédias reais (sobre o female gothic contemporâneo), por Miguel Haoni
7 - 67
Margherita Buy, por Leodoro Camilo-Fernandes
5 - 6 80 - 100
Zeros e Uns, por Leodoro Camilo-Fernandes
The Souvenir, parte I e II, por Roberta Pedrosa Benedetta, por Tainah Negreiros Souza
77 - 79 120 - 126
Falar no escuro, por Raffaella Rosset
Paralelas partidas (Dor e Glória e Mães Paralelas), por Felipe Cruz
Um Mundo Flutuante, por Fernando de Mendonça
Kimi – Alguém está escutando, por Luiz Fernando Coutinho
editorial
Tudo começou com um desejo. A vontade de produzir uma revista de cinema. O passo seguinte foi telefonar para os redatores. Seduzi-los a embarcar na aventura. Nosso principal critério era a necessidade de tê-los por perto. Nove meses depois do primeiro flerte e após uma gestação complicada, sai o primeiro número da revista Madonna
O trabalho é ambicioso. Queremos verificar o quadro clínico do cinema (ele está realmente morto?) e se o senso crítico evapora quando se tenta falar sério sobre filmes que saem em streamings ou em festivais pequenos. Descobrimos muito tarde que a super-exigência míope e anacrônica, que espera que o cinema continue dando os resultados que dava há décadas atrás, ignorando que as condições de pro dução mudaram totalmente, cria um estado de amargura permanente. Foi preciso então entender que o cinema muda e aceitar o desafio de encará-lo pelo que ele é, não pelo que gostaríamos que ele fosse.
Algumas ferramentas são importantes. A primeira é a desconfiança da sepa ração entre forma e conteúdo. No final de A Filha Perdida, por exemplo, todas as escolhas dramáticas e temáticas têm consequências estéticas. Quando Maggie Gyllenhaal inverte a ordem da cena de Elena Ferrante e faz com que a mãe ligue para as filhas e não o contrário, como previsto no livro, é a forma da cena que determina o significado dessa inversão. Roteiro e atuações (objetos privilegiados pela “cinefilia popular”) também definem a estética do filme, apesar de escaparem do controle demiúrgico do metteur-en-scène. A essa distância, o refrão da “cinefilia dita avan çada” (Mise En Scène Über Alles) nos parece um tapa sexo, uma daquelas verdades absolutas que pretendem suportar o insuportável, fazer passar como natural o que deveria ser questionado sempre. O formalismo alucinado que seguíamos no pas sado se revelou, então, como forma de manutenção, muito mal maquiada, de um poder violento. Quando falamos da ideologia no cinema clássico hollywoodiano, não pretendemos destruí-lo. Como um bom amante, tomamo-lo pelo que ele é, o abraçamos por inteiro.
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Depois de um mergulho um pouco longo demais nas elaborações teóricas, queremos experimentar uma escrita mais ágil, mais reativa aos lançamentos. No lugar das grandes cosmogonias, cultivar os textos curtos, no lugar do complexo de épico – do escritor voltado para a eternidade –, entender que um texto é só um texto e um texto ruim é melhor do que texto nenhum. Como dizia Serge Daney, tentamos escrever com a consciência de que amanhã esses textos vão embalar os peixes na feira.
Para isso, tentamos também aplicar recortes diferentes, desenhar outras geo grafias e questionar alguns silêncios da história do cinema. Queremos escapar um pouco do corretor automático da política dos autores e ver os filmes através de outros prismas. Ou apenas ver um filme. Como no caso do female gothic: descobrir um gênero esquecido pela história oficial e lançar luz sobre uma produção acadê mica desconhecida. Um gênero forte, presente, popular ainda nos dias de hoje, mas sobre o qual se fala muito pouco.
Nossa escola foi o cineclubismo e a tradução. Trabalhamos a vida inteira com o patrimônio da crítica histórica. Chegou, porém, a hora de conjugar o verbo na primeira pessoa. Não mais inserir nossas ideias numa sopa de textos consagrados, de críticos canônicos, absorvendo a consistência dos antigos, blindando-se na credibi lidade deles. Tudo isso está fora de questão. O desafio aqui é outro: nos lançarmos de forma mais frontal aos obstáculos impostos pela folha em branco.
Claro, nem tudo o que a gente quer acontece. A revista tem vida própria, como se verá nas próximas páginas. Mas continuaremos desejando, acompanhando a criança nos seus primeiros passos. Esperamos aprender a andar com ela.
Boa leitura!
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FemaleGothic Dossiê
A mansão-cinema e um chalé à beira-mar
Sobre um
gênero
obscuro, o female gothic
por Leticia Weber Jarek
Alguns filmes não têm os pés no chão, ao contrário, eles parecem descrever com melancolia o que os trouxe forçosamente à terra. Partimos de costume das nuvens, a neblina pairando como uma entida de nas clareiras de uma floresta ou nas arestas de um castelo. A paisagem se impõe primeiramente como um personagem: se há neve, chuva, vento, esses elementos aparecem antes como traços de sua personalidade, em vez de um mero suporte dramático. Sobretudo, não há um único som que
abale esse estado de elevação, diríamos um silên cio quase de cinema. Não se trata certamente de um vazio sonoro, mas de um acompanhamento milimetricamente orquestrado; se folhas caem ou uma porta se abre, instrumentos de corda respondem, de pronto, a esse movimento. Tudo com o fim de manter a elevação, para que nossos pés não cheguem à terra. Abrigada pelas quatro paredes de uma sala qualquer, a espectadora está então pro tegida pelos próximos noventa minutos: ela está
Jane Eyre de Robert Stevenson (1943)
mansão-cinema e um chalé à beira-mar † leticia weber jarek
em suspensão, colada a uma figura viajante que poderíamos chamar de travelling ou de espírito. Há antes de tudo uma voz que agita lentamente esse véu branco que cobre a paisagem, iluminando assim o que antes estava encoberto, abrindo, como se fosse possível, portões de mansões outrora inacessíveis. A essa altura, ainda não vemos ninguém.
Outros antes dela já viveram esse mesmo delírio na pele de Jennifer Jones (Portrait of Jennie, William Dieterle, 1948) e Gene Tierney (The Ghost and Mrs. Muir, Joseph L. Mankiewicz, 1947), confundindo esse sonho alvo com a própria tela de cinema. Porém, para essa espectadora, seu filme começa a partir do momento em que se levanta o véu. Com o beijo que sela o casamento, inicia-se uma lenta queda na realidade: no fade-out do “felizes para sempre”, uma outra história se põe em curso, essa não tão alva, tampouco feliz. Que ela veja Rebecca, Dragonwyck, Jane Eyre... Esses filmes são consumidos pela mesma obsessão de suas heroínas, ou seja, a de ter um nome próprio, de firmar uma identidade, pois tal como uma mulher casada / divorciada / casada novamente, eles pertencem a um subgênero obscuro que possui vários nomes.
Female gothic é, contudo, o mais conhecido e aquele que situa com mais clareza sua ascendência e natureza essencialmente furtivas. Fruto de um fascínio paradoxal pelos romances góticos do final do século XVIII e início do século XIX, Hollywood produz no decorrer dos anos 1940 uma série de obras assombradas pelos avanços femininos na distribuição de papéis sociais, cujas intrigas são igualmente transpassadas pela psicanálise - nesse momento, uma nova lupa para entender as agruras da alma humana. É talvez o título duplo do filme de William Castle o que melhor resume a temática central desses filmes, When Strangers Marry/Betrayed (1944), quando neles o casamento é invariavelmente posto em xeque devido à identidade opaca e ameaçadora do marido que, com frequência, se revela um
assassino. Sendo influenciado pelas obras de Ann Radcliffe, irmãs Brontë e Daphne du Maurier, permanece então no centro desse subgênero uma figura feminina que investiga e se aventura num território doméstico, porém igualmente ameaça dor, trazendo à luz a figura despótica do marido. A seu lado, encontramos na maioria das vezes um personagem particularmente americano, um tipo “mais democrático e menos europeu”, que lhe ajuda e que serve de quebra como uma futu ra promessa amorosa – entre eles, George Brent em Experiment Perilous (Jacques Tourneur, 1944), James Mason em Caught (Max Ophüls, 1949) e Robert Cummings em Sleep, My Love (Douglas Sirk, 1948). Caso a missão da heroína não seja bem-sucedida, os votos matrimoniais se tornam irreversíveis e o casamento termina num impasse mortal (“wedlock is deadlock”¹).
“E então uma nuvem erradia velou a lua, e per maneceu ali como uma mão de sombra a cobrir um rosto”², diz a segunda sra. De Winter. Como um irmão do filme noir e uma versão feminina do fil me de aventura, o female gothic retrabalha incansavelmente “estranhas fantasias de perseguição, de estupro e de morte, devaneios e pesadelos masoquistas, que colocam o marido no papel do assassino sádico”. É assim que descreve Thomas Elsaesser a contribuição de Hitchcock a esse ciclo, que ele intitula como “melodramas feministas freudianos”3; na pluma de outros pesquisadores, esses filmes encontram nomes não menos bizar
1 MODLESKI Tania, The Women who Knew Too Much: Hitchcock and Feminist Theory, Londres/New York, Routledge, Taylor & Francis Group, 2016, p. 78.
2 MAURIER Daphne du, Rebecca: a mulher inesquecível, São Paulo, Abril Cultural, 1981. Tradução de Lígia Jun queira Caiuby e Monteiro Lobato.
3 ELSAESSER Thomas, “Tales of Sound and Fury : Obser vations on the Family Melodrama”, in GLEDHILL Christine, Home is Where the Heart is / Studies in the Melodrama and the Woman’s Film, Londres, British Film Institute, 1987, p. 58.
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a
ros como o “gênero Gaslight” (Modleski), “para noid woman’s film” (Mary Ann Doane) ou ainda “ciclo da esposa perseguida” (Andrew Britton). Ora, estranha ironia para esse subgênero sem nome que, no seu romance fundador (Rebecca), Maxim de Winter elogie o sobrenome “charmoso e original” de sua protagonista, quando nele permanecemos sem saber como ela se chama. Mas essa primeira indefinição não deve nos enganar, trata-se de filmes prestigiosos com exuberantes aportes cênicos e técnicos, concebidos como “produções de qualidade” com o fim de atrair um público feminino e de classe média. Nesse casting técnico glorioso, figuram Gregg Toland, Bernard Herrmann, William Wyler, o próprio Hitchcock sendo importado por David O. Selznick para dar vida a seus sonhos megalomaníacos.
Se esse subgênero se manteve então nas som bras da história do cinema e da cinefilia, contrariamente à publicidade excessiva em torno do filme noir, é porque, com a sua “parafernália feminina”, ele tece não só uma crítica à crueldade da arte cinematográfica quanto àquele que a arquiteta; suas maiores interessadas (americanas e feministas) vindo de publicações acadêmi cas centradas em estudos de gênero. Ainda, nas palavras de Doane4, essas obras testam os próprios limites da representação fílmica no que concerne as personagens femininas e sua subjetividade. Temos aí uma série de terrenos proi bidos, cercados como a decadente Xanadu de
4 DOANE Mary Ann, The Desire to Desire: The Woman's Film of the 1940s, Bloomington/Indianapolis, Indiana Uni versity Press, 1987, p. 125.
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Joan Fontaine em Suspicion
a mansão-cinema e um chalé à beira-mar † leticia weber jarek
Kane, para os escribas (muito viris) da história do cinema. Em suma, um paradoxo e um lugar pra lá de inconfortável: um subgênero que tenta dar conta da perturbação causada pelo retorno de homens amputados, simbólica e literalmente, pela Segunda Guerra Mundial, sem transbordar num discurso excessivamente crítico e “perigoso”, mas agradando também um público femini no, consciente de suas amarras, em seus anseios por liberdade e romance. Para resumir, um com bo de sadomasoquismo.
You don’t believe me, don’t you?
Se falei antes dessa voz over que antecede qualquer movimento da intriga é porque, assim como seu irmão noir, esses filmes góticos partem primeiramente de um fato já consumado – a perda da inocência. Se aquela que guia a narrativa começa, de costume, como uma folha branca, uma garota “quadrada, um tanto frígida” com seus óculos fundo de garrafa (Joan Fontaine em Suspicion) ou, ainda, como a encarnação perfeita da moça ingê nua (Tierney em Dragonwyck, a pobre Bel Geddes em Caught), o que ela narra já a marcou irreme diavelmente. Trata-se da lenda de um homem que se sobrepõe a sua própria história que, diferente dela, tem uma posição muito bem estabelecida, sendo conhecido pela sua propriedade: Maxim e sua Manderley, Edward Rochester e Thornfield,
Nicholas Van Ryn e seu castelo à beira do rio Hudson, Dragonwyck. Enquanto esses homens possuem uma aura medieval e europeia, de um tempo em que eles “em se quedavam à noite ao abrigo de velhos portais”5, suas mansões embaralham as noções de espaço-tempo de uma maneira muito propícia aos cuidados da censura. Com frequência estamos em Londres (Gaslight, Hangover Square, Midnight Lace), numa Inglaterra contemporânea mas ainda rural (Suspicion e Rebecca), em paisagens coloniais ou quase feudais (Under Capricorn e Dragonwyck) ou, ainda, destacados do cartão-postal norte-americano em casas que destoam da luminosidade de São Francisco (The House on the Telegraph Hill, Robert Wise, 1951) ou da modernidade de Nova York (Caught).
Além desses terrenos profundamente simbóli cos e autônomos, há nesses filmes um verdadeiro apreço por certos rituais (o casamento, a noite de núpcias, a escolha do vestido), o que acaba lhes aproximando ainda mais de uma verve sadomasoquista. Não é à toa que, neles, as chaves ganham em potência figurativa, elas dominam o close-up: o fato de possuí-las ou não configura já uma intriga suficientemente complexa e, sobretudo, prazerosa na sua duração. Que Welles e Fontaine se bei
5 MAURIER Daphne du, Rebecca: a mulher inesquecível, op. cit.
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A chave de Notorious; a punição de Jane Eyre (Margaret O'Brien) e sua amiga (Elizabeth Taylor).
jem ou não em Jane Eyre (1943), pouco importa. É o tempo decorrido entre o primeiro encontro e o “embate final” entre esses dois amantes que vale mais que qualquer resolução imediata. Dirigido por Robert Stevenson, esse filme se compõe unicamente de contrastes que sublinham a distância entre esses dois corpos que em tudo se opõem: tal como um monstro expressionista, Welles habita as sombras e tem seu rosto chamuscado por sabe-se lá que matéria negra, enquanto Fontaine se expõe frontalmente à luz, de forma a se tornar, ela mesma, um holofote. Desse suspense erótico, o espectador anseia pelo momento em que a heroína suja as mãos com o sangue derramado pelo seu amante, ao passo que esse finalmente se desnuda aos olhos e na luz de sua companheira.
De violência e brutalidade esses filmes entendem bem. Escutamos até da pequena Jane Eyre (Margaret O’Brien) que ela permaneceria com um braço quebrado se alguém simplesmente a amasse... A mesma menina que, no início desse filme, é punida ao lado de uma jovem Elizabeth Taylor pela sua insurreição: elas rondam na chuva, cabelos cortados em penitência por seus pecados, com placas penduradas nos pescoços – a “rebelde” e a “vaidosa”. Quando passamos à idade adulta, as torturas e as provações se adensam. Podemos até distinguir as heroínas do female gothic de acordo com o tipo de martírio que elas
suportam: há as envenenadas, as enclausuradas e, hoje as mais famosas, as intoxicadas pelos discursos de seus próximos, o conhecido processo de gaslighting. É verdade que nem sempre os vilões são seus amantes, como em Dark Waters (André De Toth, 1944) e Under Capricorn (Alfred Hitch cock, 1949), mas essa suspeita é o suficiente para paralisá-las: como é possível amar seu próprio assassino?
Se tudo é tortura e sofrimento, onde diabos reside a graça de tal subgênero? Por um lado, existe a pornografia do suplício feminino, da qual algumas atrizes conseguem inverter as dinâmicas de poder devido ao fascínio que exercem sobre a câmera. Minhas favoritas são Ingrid Bergman e Joan Fontaine. Essa última, como vimos, consegue se manter ilesa e cristalina apesar de todos os reveses psicológicos que ela deve interpretar. Talvez, sua façanha é ser verossímil num gênero inverossímil. Quem pôde encarnar, como ela, mulheres que amam criminosos, e sabem disso? Se Rebecca, Suspicion e Jane Eyre irritam alguns, Bergman propõe uma outra versão da esposa torturada. Muito mais física, a emoção deixa traços no seu corpo de amazona, pinta sua pele de mar fim com variações de azul e de vermelho - um dos méritos de Under Capricorn é de filmá-la em cores, de insistir nos planos-sequência que refletem a mesma respiração oscilante de Lady Henrietta,
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Ingrid Bergman em Under Capricorn e Gaslight
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rendendo-se de antemão ao seu domínio cênico. Ela sufoca, ruboriza, empalidece, mas nada se equipara ao momento em que, de viés, com ape nas um olhar, ela reconhece os mecanismos de seu torturador. Um olhar oblíquo para o teto no qual oscilam as luzes em Gaslight; ou quando, no canto dos seus olhos, paira uma lágrima, a última, antes que ela grite denunciando aquela que lhe envenenava (Capricorn). Ninguém se entregou de tal maneira nesses filmes: seja à depressão e à bebida (Notorious, 1946, Alfred Hitchcock), a um estranho veneno (Capricorn), mesmo ao desespero e às chamas no nada gótico Joana D’Arc (Roberto Rossellini,1954), ela ainda assim possui força o suficiente para fazer com que a câmera gravite ao seu redor. Talvez seja mesmo esse abandono irrestrito que faça a sua força. A vista pode emba çar em Notorious mas quando Ingrid Bergman pronuncia com a voz quebrada “you don’t believe me, don’t you?” na tentativa de se salvar, o cinema inteiro está com ela – “you have to believe me!”. Por outro lado, essa é finalmente a maior graça do female gothic: o tão esperado momento em que a heroína se dá conta de que ela não é louca, de que ela está sendo manipulada. Ou seja, a tomada de consciência de um horror particularmente íntimo que antecede, talvez, a sua vingança.
It’s staring walls...
Não é à toa que arquitetos e doutores proliferem nesses filmes. Uns são os mestres do tabu leiro em que a heroína deve sucumbir, os outros, os “homens certos”, estão ali para identificar as supostas neuroses que abatem essas mulheres. Logo, uma prisão dupla: se a casa deixa de ser um domínio feminino, mesmo quando elas mesmas são suas proprietárias (Gaslight, The House on the Telegraph Hill, Sorry, Wrong Number, Dark Waters), nem mesmo o corpo parece lhes pertencer pois, a princípio, elas desconhecem o mal que as consome. Daí arquitetos que tentam imobilizá-las em
cenografias sufocantes e médicos que as definem cientificamente em quadros patológicos, quando não são eles próprios os assassinos, como Vincent Price em Shock (Alfred L. Werker, 1946) – de um para o outro não há enfim muita diferença, já que ambos parecem “ver algo por debaixo da carne”, como anuncia uma velha senhora na sequência inicial de Experiment Perilous
Se existem então algumas variáveis no female gothic, as funções “mortais e maritais” se asso ciando e se alternando com as “apaziguadoras”, o seu argumento fundamental permanece, contudo, inalterado na “imagem da mulher-mais-ha bitação”6: elas podem tanto vagar e investigar os corredores e as portas secretas das mansões nas quais habitam, como em Secret Beyond the Door (Fritz Lang, 1947) e The Two Mrs. Carrolls (Peter Godfrey, 1947), quanto permanecer imantadas às suas camas ou aprisionadas em sótãos recônditos, sofrendo de males sem-nome, como em Jane Eyre e Sorry, Wrong Number (Anatole Litvak, 1948). “Ora! São inválidas!”, dizem alguns.
Das mazelas particularmente “femininas”, fala-se muito nesses filmes de histeria e invalidez, essa última sendo a doença ingrata de esposas que
6 HOLLAND Norman e SHERMAN F. Leona, « Gothic Possibilities », New Literary History, vol. 8, n° 2, inverno de 1977, p. 279.
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My name is Julia Ross.
já não “têm mais uso” ou que servem apenas de muleta dramática para homens bem-posiciona dos e desejosos de aventuras extraconjugais. Que essas primeiras-damas estejam mortas ou presas no sótão, elas instigam mesmo assim o suspense e a tensão entre os outros dois membros dessa família maligna – da primeira à segunda esposa se desenrola então uma espécie de édipo feminino7, no qual Rebecca representa por excelência a figura materna.
Mas não nos enganemos, antes fosse invalidez o que acomete essas mulheres. Trata-se, ao contrário, de paranoia, como sublinha Doane, tendo em vista que as fronteiras entre o eu e o outro parecem cair, indefinindo os limites entre o exterior e interior. Nesse sentido, se constrói a impressão de que o mal provém da casa à medida que essa, como uma entidade, responde e reage
7 Ver MODLESKI Tania, Loving with a Vengeance: Mass -Produced Fantasies for Women, Londres/New York, Routledge, Taylor & Francis Group,1982, p. 51-67 ; HEINICH Nathalie, Etats de femme : L’identité féminine dans la fiction occidentale, Paris, Gallimard, 1996, p. 149-210.
às ações da protagonista. Ora, nada mais normal num subgênero em que um domínio “pro priamente feminino” se vê usurpado por mestres malignos. Logo, não é um acaso se a Leona de Sorry, Wrong Number morre nas mãos de um assassino que entra justamente pela janela ou quando, num transe químico induzido pelo seu marido, a heroína de Sleep, My Love quase se joga no vazio de sua sacada. Na fórmula sintética de Doane, autora dessa teoria sobre a paranoia nos woman’s films⁸, quanto maior for o desejo da protagonista de ver, de buscar e de investigar, maior será a violência à qual ela é submetida – essa vindo tanto dos personagens, quanto do mecanismo cinematográfico. Dessa maneira, a instabilidade das fronteiras no female gothic revela enfim a questão central desses filmes e, aqui, voltamos à nossa heroína sem-nome: à imagem do útero
8 Cabe dizer que sem os diálogos, imaginários ou reais, com Mary Ann Doane e Hélène Frappat esse texto não exisitira.
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The Night Walker.
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doente e vazio de Rebecca, todas essas mulheres sofrem de um problema identitário, sobretudo, em relação à construção de sua feminilidade. Daí o grito de desespero da protagonista de Joseph H. Lewis (1945) uma vez que, presa numa arma dilha burguesa, ela é obrigada a interpretar o papel mortal da primeira esposa em vez daquele de uma simples secretária: My name is Julia Ross!
Que os homens matem e que sobre esses crimes sejam feitos alguns filmes, até aí não há nada de excessivamente anormal para os corações cinéfilos. “Ora, falamos apenas de enredos!” Que o cinema tenha parte nesse ato, aí já é outra coi sa. Ver é desejar ou, ainda, deflorar. Eis então o pecado mortal de Rebecca pelo qual ela é relega da ao extracampo. Em diferentes graus, as heroínas do female gothic são punidas justamente por sustentar um olhar voyeurista que a forma do filme esposa apenas parcialmente. Nessa disputa pelo direito à perspectiva, a mansão-cinema convoca alguns elementos formais em oposição à protagonista, intitulados por Doane de “agentes de perseguição”9: na forma de travellings, fusões, sons e variações de luz, questiona-se e rebate-se o ponto de vista da personagem principal. O que ela vê e escuta é real e diegético ou apenas uma alucinação? Pois se ela pode olhar, a mansão e suas paredes também têm olhos. Daí esse olhar lúbrico, sem sujeito mas ainda assim prestes a gozar, que salta de armários e de espelhos na montagem de The Spiral Staircase (Robert Siodmak, 1946) ou que cerca sua vítima num sonho vertiginoso em The Night Walker (William Castle, 1964). A mensagem é clara: ela também é observada.
Ao passo que, nos romances góticos, o ponto de vista permanece unificado pela sua atribuição à narradora ou a outros personagens, aqui a subjetividade da heroína se vê desmantelada pelas
9 DOANE Mary Ann, The Desire to Desire: The Woman's Film of the 1940s, op. cit., p. 152.
10 Ibidem.
“‘terceiras pessoas’ do delírio paranoico”¹⁰. Uma gravação que chama Merle Oberon à morte em Dark Waters, a oscilação das luzes em Gaslight ou quando, em Sleep, My Love, um falso psiquiatra assedia Claudette Colbert com um feixe de luz que cobre especificamente seu rosto – “does the light bother your eyes?”. Curiosamente, os meios de coação se assemelham ou mesmo coincidem com a técnica cinematográfica, algumas cenas de tortura e de humilhação psicológica se passando mesmo durante a exibição de filmes. É assim que a mansão-cinema parece consentir o abuso, sendo que o “clímax” dessa tortura se desenrola na maioria das vezes na sua escadaria. Nela, Robert Ryan zom ba de Bel Geddes em Caught (“você ainda anda como uma modelo!”), Cary Grant libera enfim Ingrid Bergman das amarras de seu marido e sogra nazistas num longo e abafado plano-sequência de Notorious. Ao mesmo tempo o lugar da espetacu larização do corpo feminino, a escada é também o caminho “da curiosidade ao horror”¹¹. Desse último, The Spiral Staircase apreende sua essência sendo também um precursor dos gialli: é então ali que a dama de companhia muda, interpretada por Dorothy McGuire, se vê acuada em planos cada vez mais próximos, enquanto George Brent anun cia a regra máxima que rege essa mansão, “there is no room in this whole world for imperfection”. Uma crise da visão
Se o cinema clássico hollywoodiano foi, em certa medida, “um olhar que se substitui ao nosso para nos dar um mundo em acordo com nossos dese jos” ¹², as protagonistas do female gothic estão fadadas a reviver essa mesma substituição escópica em moldes mais doentios ou, mesmo, misóginos. Pois, antes de serem elas mesmas paranoicas, é o mecanismo cinematográfico que se desarticula a partir
11 Ibid., p. 179.
12 MOURLET Michel, « Sur un art ignoré », Cahiers du Cinéma, n° 98, agosto de 1959, p. 34.
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do momento em que elas se colocam como sujeito do olhar. Daí a sina da personagem muda de The Spiral Staircase: num cruel truque de cinema, ao se olhar no espelho, ela se vê tal como o assassino a enxerga através de seu filtro psicótico, ou seja, como uma falha no seu mundo perfeito. Nessa tela perversa, ela vê seu reflexo deformado pelo desejo daquele que a observa: com a boca apagada, ela não domina nem a palavra, nem a sua imagem. Quanto a esse “homem tornado deus na mise en scène”13, ele frequentemente não passa de um pobre espantalho, esse sim, doente por não se conformar aos padrões de masculinidade. No filme de Siodmak, Brent é sufocado pelas expectativas opressoras de seu falecido pai ao passo que, em muitos outros filmes (Caught, Secret Beyond...), esses homens não conseguem gozar de um amor à altura de seus anseios. Se a invalidez é moeda corrente no grupo obscuro de doenças femininas, a impotência é a sua face masculina. Em Dr. Jekyll and Mr. Hyde (Victor Fleming, 1941), é preciso se transformar em mostro para enfim acessar as imagens transcendentes de um gozo irrestrito: essas com Ingrid Bergman, novamen te, e Lana Turner na dianteira de uma carruagem guiada por Spencer Tracy, como uma versão adocicada de um pornô fantasioso.
Conscientes das virtudes reflexivas desse subgênero repleto de espelhos, quadros, máscaras e mesmo sessões de cinema, alguns realizadores tecem comentários nada lisonjeiros sobre a própria posição que ocupam na arte cinematográfica. É o caso de Two Mrs. Carrolls, no qual um pintor psicótico, interpretado por Humphrey Bogart, encontra nas suas pinturas as desculpas para se livrar de suas esposas – ou, numa outra formulação, a arte assumindo aqui um papel homicida, o quadro se apresentando como um espírito obsessor dessas saudáveis mulheres. Lá estão elas, representadas então como um Dorian Gray em estágio terminal, como femmes fatales putrificadas pela brisa impotente e sublimada do artista. Nessa perspectiva, a resposta ácida de sua filha a propósito do aspecto bizarro (“slightly creepy”) de um desses retratos, justamente aquele de sua mãe, se impõe ao mesmo tempo como uma piada e uma autocrítica à habitual crueldade hollywoodiana em relação à representação feminina: “You get accustomed to it, then you think it’s wonderful. [...] It isn’t exactly like mother because it isn’t a portrait. Yet it is like her too. Father says it’s representational.”
Experiment Perilous aponta para esse mesmo controle excessivo e adulterante da fabricação da imagem feminina. Nele, a personagem de Hedy Lamarr se vê aprisionada numa pintura mórbida que falseia sua personalidade e que, enfim, reflete a influência mortal de seu marido. Se o “homem certo”, dr. Huntington Bailey (George Brent), prefere um retrato mais pastoral e inocente da heroína, como testemunha o desfecho convencional do filme, Tourneur consegue ain da indicar uma via menos insuportavelmente luminosa. É o que acontece quando Lamarr tenta tocar, num espelho d’água, sua própria imagem: longe de qualquer alusão a Narciso, o realizador nos mostra nas mãos da atriz o quão inefável é esse reflexo, cuja própria modelo não consegue dominar. De manequins e de prisões femininas,
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13 Ibidem.
Ingrid Bergman e Lana Turner em Dr. Jekyll and Mr. Hyde
também Ophüls e Sirk são exegetas. Enquanto Caught inicia-se com duas amigas que folheiam revistas femininas, denunciando já nos primeiros minutos nas réplicas da protagonista os artifícios das publicidades de moda (“I bet it’s retouched!”), em Sleep, My Love, os capangas responsáveis pelo plano mortal ao qual Colbert deveria sucumbir se encontram num (nada mais nada menos) estúdio fotográfico. Portanto, nem tudo é o que parece e, como demonstra Sirk na abertura desse filme, o cinema pode ser também um longo e apressado trem que passa por cima de algumas, ou mesmo muitas, mulheres.
A “passagem do bastão” e aquela que volta Não obstante, há ainda dois elementos incontornáveis sem os quais seria impossível descrever o female gothic à altura do que ele propõe; em resumo, um metacomentário na forma de retrato impiedoso das relações heterossexuais. É preciso dizer que nem tudo é preto no branco nesses filmes, compostos por incessantes avanços e recuos, à medida que formas críticas trapaceiam a ideologia corrente enquanto essa recobra, ainda assim, uma parte do seu poder. Eis então nosso primeiro elemento que eu chamo, com um certo humor, de “a passagem do bastão”. Pois se Sirk, Ophüls, Lang, Hitch cock concedem um ponto de vista absolutamente central às suas heroínas, que guiam e desvendam
os meandros da mansão-cinema no decorrer do filme, esse mesmo ponto de vista não permanece até o fim nas suas mãos. Há uma espécie de sucessão de protagonismo, para as figuras masculinas, da qual Secret Beyond the Door é, talvez, o exemplo mais emblemático e mais consciente: após fugir do derradeiro quarto número sete, Celia (Joan Bennett) adentra na floresta na tentativa de escapar de seu marido quando, num grito, ela confronta o “monstro”. Entre um plano e outro, passamos então à perspectiva psicótica de Mark que se vê julgado num tribunal interior, no qual ele interpreta todos os papéis centrais. De maneira não tão paródica e irônica, acontece o mesmo em Caught e Sleep, My Love: já que a protagonista deve ser salva e o monstro sacrificado, ela deve estar disposta a, no mínimo, renunciar o seu ponto de vista - não que Ophüls e Sirk realizem esse movimento de transmissão sem nenhum pesar ou ressentimento crítico. Voltamos aqui ao problema de identidade que assombra essas mulheres, visto que, em suma, o que parecia ser a sua narrativa se revela a história de um homem.
Porém, resta ainda um último elemento. Existe uma mulher que continua a olhar, pois, estando em nenhum lugar, ela permanece onipresente. De fato, Rebecca apresenta a solução para aquelas que não querem abdicar do ponto de vista, isto é, esse silencioso extracampo que contamina sem precedentes
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The Spiral Staricase e Hedy Lamarr em Experiment Perilous.
e um chalé à beira-mar † leticia weber jarek
o que vemos de Manderley – ela parece nos dizer que, para sobreviver, é preciso sair do cinema. Quando, no notório chalé à beira-mar de Rebecca, a câmera de Hitchcock é tomada por um impulso fantasma e acompanha os movimentos dessa mulher que volta, o resto do filme passa inteiramente ao seu domínio. Sendo a primeira e a mulher por excelência, aquela que não relega seu desejo ao segundo plano, ela pauta tudo que vem em seguida. Jaz então com o corpo de Rebecca, esse que nun ca veremos, o verdadeiro impasse do female gothic Pertencendo a essa família maligna (primeira espo sa/marido/a outra), essas heroínas partem numa jornada de reconhecimento, em resumo, do seu lugar nessa genealogia macabra. Para isso, é preciso que ela conheça antes de tudo a verdadeira face de seu marido pois, assim, ela poderá responder à seguin te pergunta: ela seria a primeira mulher, aquela que foi despachada para o guarda-roupa do Barba-Azul e imortalizada numa pintura ou a outra, a substituta que, afinal, também pode se tornar só mais uma no seu arquivo criminal?
O que ela decide fazer com essa informação é ainda mais importante: ela vai consentir com o ato homicida de seu marido ou denunciá-lo, reconhecendo assim a história apagada de uma outra mulher? Escolha importante, tendo em vista que ela compromete as condições da sua própria sobrevivência dentro da ficção. Se, por um lado, ela escolhe crer na falsa narrativa do marido, ela deixa de existir tal como nós a conhecemos durante esses noventa minutos, ora tornando-se uma versão pálida de si mesma (a pobre Fontaine), ora juntando-se às outras esposas de Barba-Azul – o que
14 Se Bergman representa as “sobreviventes” do female gothic, Joan Fontaine está certamente do lado das “condes cendentes”. Não é um carma muito leve para se carregar, mas a atriz consegue torná-lo minimamente digno, tan to em Rebecca, Jane Eyre, quanto em Suspicion. Hitchcock tinha, porém, uma outra ideia para a conclusão desse últi mo filme: muito mais honesta e absurdamente controver sa, a protagonista se entregaria à morte conscientemente,
dá no mesmo14. Por outro lado, se ela desabrocha e consegue se salvar, é preciso que o filme acabe: ao dominarem enfim a palavra, as heroínas de Gaslight e de The Spiral Staircase executam o último movimento possível e visível desses filmes. As filhas do fogo Não é um acaso que esse retorno fílmico de Rebecca, a panorâmica na sequência da câmara reservada aos seus amantes, seja um signo de modernidade. Ao contrário de outras heroínas que abdicam de seu olhar, ela insiste precisamen te nas marcas de sua autoria, como a grafia do seu famoso R, suas roupas e a mise en scène da ala oeste. Mesmo que essa câmera estranhamente independente, apartada de personagens diegéticos, assombre outros filmes, aqui ela ganha ares inéditos por esposar ou, melhor, encarnar aquela que não pode ser vista. Nessas outras obras, por outro lado, esse movimento surge como uma continuação do desejo mortal do marido – por exemplo, a sequência de hipnose de Sleep, My Love e o rápido travelling lateral de The Spiral Staircase que revela as botas molhadas do assassino. Por mais belos que sejam esses últimos movimentos, eles dão a ver um triste e recorrente fundamento da forma fílmica hollywoodiana, isto é, de que é mais fácil esposar o olhar de um homem que aquele de uma mulher. É certo que grande parte desses artesãos ressentiam e lutavam contra esse pressuposto, a comédia gozando por exemplo de uma maior liberdade de gênero, mas assim como eles encenavam tramas assombradas por um olhar opressor, esse mesmo olhar acabava se
tão grande seu amor por seu marido vigarista. Ela deixaria, contudo, uma última carta à sua mãe, comunicando sua decisão e a monstruosidade do seu par – antes de beber seu último copo de leite, ela pede que ele envie então essa carta. O desejo é realizado: esposa morta, marido futuramente preso, the end. Eis um diretor que se divertiu com as amarras do casamento burguês.
18 a
mansão-cinema
infiltrando na forma do filme. Dessa constatação, a conclusão de Jane Eyre dá o melhor e mais belo exemplo. Ao reencontrar Rochester, manco e cego, numa morada completamente devastada pelas chamas, a heroína saúda em voz over o que veio a ser o futuro ao seu lado, então casada e com um filho. Ela diz, num tom sóbrio quase como um par perfeito à entonação trágica de Welles, que esse homem voltou a ver a luz do sol e que assim ele pôde ver que seu filho havia herdado “seus próprios olhos como eles antes foram... grandes, brilhantes e negros”.
Esse final me emociona particularmente. Isso porque, nos meus delírios cinéfilos, se Rebecca chegou a ter um irmão, ele certamente se chamou Charles Foster Kane. Daí esse mesmo R de Rebecca e Rosebud, alguns segundos a mais nas fusões desses filmes, ambos vivendo em mauso-
léus trágicos que prenunciam todo egoísmo, toda ambição que a censura tanto desejou encobrir... São filhos do fogo que indicam, sem mostrá-la, uma via que começou a ser construída no cinema clássico e que pôde florescer verdadeiramente no cinema moderno. Eles são o rosto do que, em outros filmes, permanece esparso na narrativa, naquilo que o female gothic tem de transgressor e inconsequente. Penso especificamente na maneira como, em Hangover Square (John Brahm, 1945), tudo é consumido pelas chamas, nas personagens lésbicas que surgem aqui (Rebecca) e ali (Suspicion) com uma potência figurativa sem par ou, ainda, em todas as alusões ao holocausto e à Segunda Guerra Mundial15
Mas é, sobretudo, com a performance de Welles em Jane Eyre que uma outra porta se abriu. A última. Ainda que ele interprete um personagem em consonância com a sua persona à la Byron, monomaníaco e romântico, os seus gestos denunciam uma outra apreensão desse arquétipo. Em vez de escolher a frieza e a sobriedade como sinônimos de um charme monstruoso, Welles se entrega a um tom absolutamente trágico e car nal. Ele o faz como Ingrid Bergman faria: sem ao menos hesitar, ele se desnuda com gestos falhos, incertos, na postura quebrada de um Rochester derrotado, abandonando seu ar soberano. Sabemos bem que ele não tem medo de se metamor fosear, brincar com próteses e com maquiagens, mas esse trabalho não surge aqui como uma pro teção, ao contrário, é com ele que ele revela a sua fragilidade. Para mim, em suma, ele é profundamente feminino.
15 Como, por exemplo, as valas que se assemelham a trincheiras em Hangover Square, o terrorismo cinemato gráfico das notícias de guerra em Dark Waters e, mesmo, a protagonista de The House on the Telegraph Hill que sobrevive ao holocausto para agora ser vítima de seu marido – literalmente.
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Orson Welles em Jane Eyre e Laird Cregar em Hangover Square.
Come on, angel, come on, darling, let's exchange the experience...
É nessa troca de papéis (sociais, de gênero, o que for) que reside um pequeno segredo desse sub gênero. Antes de Rebecca, vem Wuthering Heights (William Wyler, 1939) no qual Laurence Olivier foi, antes de tudo, o criado que se deita no leito de morte de sua amante casada para se despedir e, enfim, maldizer todos aqueles que se opuseram a esse amor maligno. De pronto, já temos uma série de inversões. Ainda, como um desses filhos do fogo, Wyler sublinha as linhas de Brontë nas quais fica claro que, para Catherine e Heathcliff, não existe nenhuma diferença entre os dois. Um relâm pago vem acordar o espectador de seu sono mortal, heteroguiado, quando Merle Oberon diz “Nelly,
eu sou Heathcliff!”. O mesmo acontece com Oli vier uma vez que, com sua amada nos braços, ele profere “eu não posso viver sem a minha vida, eu não posso viver sem a minha alma!”.
Eis o horizonte ideal do female gothic: uma completa inversão de papéis que, por fim, pudes se revelar o caráter volátil dos códigos de gênero e a hipocrisia das relações amorosas, sobretudo heterossexuais. As esposas podem também envenenar, os maridos, sofrer passivamente, mas a tortura deveria durar por um curto período. O suficiente para que se aviste o castelo sonhado de Heathcliff e de Catherine que, como crianças, se entregam ao amor irrestritamente. Essa é, aliás, uma das belezas tímidas de Hurlevent de Jacques Rivette (1985), isto é, filmar esses dois amantes numa androginia que não conhece limites. Uma
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Merle Oberon em Wuthering Heights.
inversão possível no mundo da ficção e através dele. Mas não é como se esse sonho nunca tivesse se realizado porque, afinal, o que quer dizer Emily Brontë quando ela escreve “I’m Heathcliff”?
Ou melhor, por que o interesse desses filmes pela palavra, pela voz, pelos nomes? Falamos de um problema de identidade, falamos de Rebecca e de Charles Foster Kane. É um acaso que Bernard Herrmann, compositor das trilhas de Jane Eyre e de Citizen Kane (Orson Welles, 1941), marido da autora de Sorry, Wrong Number, fosse também perdidamente apaixonado pelo Morro dos Ventos Uivantes, tendo feito desse livro uma ópera? E se eu disser que, nessa ópera, encontramos trechos de The Ghost and Mrs. Muir? Ora, quer dizer que essas heroínas são também, no final das contas,
escritoras que buscam por um estilo, no mínimo uma assinatura, como aquela de Rebecca...
Elas estão não só à procura de si mesmas, mas de personagens para lhes fazer companhia em tardes morosas nos seus chalés à beira-mar, como aquele reservado aos amantes de Sra. De Winter, como o de Lucy Muir e de capitão Gregg. Dessa sessão de cinema, sai certamente uma espectadora menos inocente que, com os pés no chão, já sabe quem ela não quer ser. Quanto aos especta dores, esperemos que eles não tenham medo de admitir que, eles também, sofreram na pele da esposa torturada. †
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Fabienne Babe e Lucas Belvaux em Hurlevent.
Homem viúvo procura
O marido no female gothic
por Evandro Scorsin
Sua mãe morreu quando ele nasceu. Seu pai, que lhe odiava, se suicidou um ano depois. Foi cria do pela irmã, que sacrificou a vida por ele, lhe odiando em segredo. É assim que George Brent, o médico em Idílio Perigoso (Jacques Tourneur, 1944), descreve o marido de Hedy Lamarr: um homem mais velho, rico, sem mãe nem pai, tal qual sua outra encarnação em Cry Wolf (Peter Godfrey, 1947). Às vezes a juventude os acom panha junto da ganância, como em O Segredo da
Porta Fechada (Fritz Lang, 1947) ou Uma Vida Por Um Fio (Anatole Litvak, 1948). O desejo de ver suas mulheres emolduradas na parede, aprisionadas em quadros, exibidas como troféus, é uma obsessão comum para esses homens que dominam a geografia do lar. Humphrey Bogart, pintor em Inspiração Trágica (Peter Godfrey, 1947), cruza os limites proibidos dessa obsessão, e através do pincel, desnuda a alma de sua mulher oprimida. Como se olhasse profundamente nos olhos de
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Paul Lukas em Idílio Perigoso.
Medusa, vê a esfinge que lhe petrifica. Mas o que revela de tão tenebroso esse retrato ao mesmo tempo brutal e sensual? Essa figura indomável que Mario Bava irá projetar sobre o corpo de Bar bara Steele em A Maldição do Demônio (1960). O que teme esse homem razoável, lógico, inclusive brilhante, para citar mais algumas palavras do médico de Idílio Perigoso? A enfermeira de A Morta-Viva (Jacques Tourneur, 1943) complementaria: ele é forte, silencioso e muito triste. Sim, triste. Triste de ver tudo que ama sucumbir à morte.
A primeira encarnação é Laurence Olivier em Rebecca (Alfred Hitchcock, 1940). A coluna arca da, o peso sobre os ombros, o olhar ausente, o rosto voltado para baixo. Preocupação? Culpa? Postura, aliás, acidentalmente replicada por Burt Lancaster em Uma Vida Por Um Fio. Em que tormento sua mente se perde? Que culpa é essa que esses olhos tristes carregam? Esse homem está em guerra, conclui ainda George Brent em Idílio
Perigoso. Mas com quem? Contra a vida, afirma, mas sobretudo contra um mundo em transfor mação. Reacionário? Nostálgico? Brent despreza seu antagonista, mas sem antes reforçar sua fascinação. Brent é o segundo homem, o homem “certo”, figura recorrente no female gothic e será, digamos assim, aquele que não sucumbiu a seus demônios. O homem cuja perversidade é controlada. Representante do novo mundo, detentor dos valores americanos, ele nem sempre mantém as mãos limpas. Sujo pela cumplicidade, como o próprio Brent, ou como Frank Latimore em Choque (Alfred L. Werker, 1946), que entrega sua esposa para a morte. Esse homem conhece o mari do tão bem quanto a si mesmo que, por vezes, se torna ele mesmo o assassino, justificando a mor te como uma forma de libertação, como em A Morta-Viva. Já o marido, nascido no último dia de escorpião, 21 de novembro, herdeiro da alta cultura e dos velhos valores europeus, sucumbirá.
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Barbara Stanwyck em Inspiração Trágica; ao lado, Barbara Steele em A Máscara do Demônio.
Talvez a astrologia possa nos ajudar a entender de forma um pouco mais lúdica o comportamento desse marido que sustenta no olhar preocu pado seu desejo de tudo controlar. Escorpiano, sedutor, o ciúme é antes de tudo a imagem de seu narcisismo. Há tantos espelhos nesses filmes, mas nenhum deles se interessa por seu reflexo. Queria ele ser o centro do filme, ter o controle de tudo, dominar o comportamento de todos. Mas ele está perdendo, está constantemente per dendo, para as transformações sociais, culturais e morais.
De certo modo, todos temos tigres debaixo da cama, reflete o onisciente e complacente médico de Idílio Perigoso. O tigre, enquanto representa ção de algo que não entendemos e tememos, deve ser destruído. O tigre é o reflexo desse marido. Assim, ele desfigura o mundo à imagem e semelhança de sua paranoia. É o plano subjetivo do assassino em Silêncio nas Trevas (Robert Siodmak, 1946): mulheres deformadas não só pelos olhos do homem, mas pelas lentes da câmera. É a esco pofilia mortal do cinema. Desejar é destruir. A câmera enquanto representação fálica do poder, deseja submissão daqueles que estão diante de suas lentes: todo mundo sabe, você não olha para ela, é ela quem te olha: regra número 1 do cinema. Quando em O Segredo da Porta Fechada, Joan Bennett abre mão de um romance confortá vel, ignorando uma vida estável ao lado de um homem comum em busca de uma paixão extraor dinária, plena de furor, o que ela encontra na verdade é a morte. Mas por quê? Que pecado essas mulheres cometeram para receberem tão trágico fim? A resposta está na heresia de Rebecca: o desejo. Ela morre por desejar. É também por isso que Maxim de Winter quer que sua atual esposa sem nome (Joan Fontaine) seja tudo, menos
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Laurence Olivier em Rebecca; Burt Lancaster em Uma Vida Por Um Fio; e Dorothy McGuire em Silêncio nas Trevas.
uma cópia da esposa falecida. Eis o retrato da mulher ideal: uma mulher sem força de vontade, incapaz de falar ou agir por si mesma, a esposa zumbi de A Morta-Viva. É também por isso que Julie Demarest (Geraldine Brooks) morre em Cry Wolf - mulheres mais novas, sonhadoras, cheias de libido precisam ser castradas. Então a repulsa de Bogart face ao retrato proibido de sua primei ra esposa em Inspiração Trágica está justificada. A esposa precisa ser antes de tudo o reflexo da passividade. Mas por quê? Mary Ann Doane em The Desire to Desire (p.130) sugere que, na teoria freudiana, o ser humano expele e projeta para o mundo externo o que encontra em si mesmo de desagradável. Se a mulher nesses filmes se proje ta na autopunição, o homem se projeta na destruição. Se ela escolhe para si uma figura paterna que deve castrá-la (o homem maduro, provedor, protetor), ele, por sua vez, repele qualquer imagem feminina que não seja o espelho santificado de sua mãe. Desejo, castração, morte.
Ele, aos dez anos, não ligava para a separação dos pais. Afinal, a mãe agora era só dele. Naquela tarde de verão ficaram juntos no jardim, ele e a mãe. Colheram flores. Ainda conseguia se lembrar de como eram os zumbidos das abelhas. No entanto, no cair da noite, pela janela, vê a mãe sair com outro homem. O que está acontecendo? Por que ela está saindo? Ela está deixando-o? Sem compreender, ele tenta ir atrás, mas a porta está fechada. Sua mãe o trancou. Melhor, sua mãe o trocou. Ele esmurra a porta até sangrar, mas não adianta. Lá, nesse quarto escuro, ele perde a mãe. Jamais a perdoará. É assim em O Segredo da Porta Fechada, mas poderia ser também em todos esses outros filmes de estilo gótico que surgem à som bra das feridas abertas da segunda guerra. É o homem aprisionado em sua própria nostalgia. Ele
saiu para lutar como filho, e no retorno encontra uma mulher que recusa aceitar seu papel de mãe. Ao escolher a fuga através do desejo por outro homem ela encontra a morte. Desejo, castração, morte. Por vezes, a tomada de consciência no último minuto traz a redenção para essa família, turva pela hipocrisia certamente, afinal, o triun fo desse casamento é, em alguma medida, a morte indubitável dessa mulher. †
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Movimento em falso
Coração Prisioneiro (Caught, Max Ophüls, 1949)
por Victor Cardozo
A passagem de dez anos de Max Ophüls pelo sistema de produção hollywoodiano dos anos 40 foi bastante acidentada, ainda que a adversidade tenha dado fruto a alguns de seus melhores e mais incomuns filmes. Entre seu último trabalho feito no exílio francês, De Mayerling à Sarajevo, em 1940 (Ophüls chegaria aos EUA no mesmo ano) e o retorno à cadeira de diretor em Vendetta (1950), demitido por Howard Hughes depois de apenas uma semana de filmagem, vão seis anos de inatividade forçada. Houve então um filme de aventu
ra, The Exile (1947), e em seguida uma obra-prima melodramática à moda europeia, Carta de uma Des conhecida (1948). Nenhum dos dois foi particularmente bem recebido pelo público ou pela crítica norte-americanos da época. Em 1949, chegamos a Coração Prisioneiro, essa obra ainda misteriosa, que hoje costuma ser ofuscada entre os títulos mais celebrados e conhecidos dentre os desse período, Carta e Na Teia do Destino (1949). Com este últi mo, guarda algumas semelhanças: ambos feitos no mesmo ano, com o mesmo James Mason (que asse
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Robert Ryan, Barbara Bel Geddes e James Mason em Coração Prisioneiro.
gura a escolha do diretor com seu status de astro em ascensão), sendo também as únicas investidas de Ophüls em um cenário urbano e contemporâ neo do tempo em que foram feitos, mais distante do universo de romantismo desencantado do fim do século XIX no qual se ambientam a maioria de seus filmes. Talvez por consequência, em ambos as suas protagonistas agonizam mais por terror do que paixão: um pecado original assombra a promessa de felicidade conjugal cara ao imaginário hollywoodiano, o pecado da autonomia.
Em paralelo, o cineasta lida com limitações impostas de fora a respeito de sua técnica. Os lon gos e meticulosamente coreografados planos sequência de Ophüls aumentaram o custo e atrasaram o andamento de produções que prezavam por pragmatismo e eficiência. Mason, que se tornaria amigo do diretor, escreveu esses jocosos versinhos, aludindo às desventuras de Ophüls sob o jugo dos cronogramas e produtores:
A shot that does not call for tracks
Is agony for poor old Max, Who, separated from his dolly, Is wrapped in deepest melancholy.
Once, when they took away his crane, I thought he’d never smile again.
Algo que também confundia os produtores e seus demais representantes na hierarquia do estúdio era um esmero que lhes parecia injustificável em tipos de cenas que eram considerados banais em si mesmos, como conversas de telefone, momentos centrais da mise en scène aqui e em Na Teia do Destino. O problema do plano-sequência vai além da anedota autoral, pois, no limite, sua predileção por ele não existe de maneira alguma como vir tuosismo (superado já na maturidade da primeira fase da sua filmografia nos anos 30). Os trilhos e gruas de Ophüls são um meio para, entre outras coisas, fazer valer o tempo da performance dos atores e o ritmo da própria cena, acompanhar
as movimentações dramáticas de um plano para que o jogo cênico transcorra e os atores possam ignorar mais livremente a máquina que se move em sua volta, da mesma maneira como talvez seus personagens ignorem por um momento a morte e o tempo que passa. Uma outra função de seus planos-sequência é acompanhar pura e simples mente o movimento dos corpos, dentre os quais a dança é sempre um momento mais privilegiado, mais vivo e trágico de seu cinema. Se “vida é movi mento”, nunca seus personagens estão mais vivos do que dançando e também nunca mais prontos para a precipitação ao fim de todo movimento. Pois o movimento para a vida pode se converter também, no mesmo gesto, no movimento do ritual, da violência, das traições, do caos e de toda a barbárie que assombram um mundo à beira do declínio. É justamente a gangorra entre um lado e outro que o romantismo desencantado de Ophüls não se cansa de percorrer em corte (seu plano-sequência é também o bisturi com que ele atravessa os estratos sociais e históricos desse mundo). Sua fascinação com o fim do século XIX não existe por outro motivo que não o de, com a distância recon fortante de um passado romantizado, encontrar consequências com o aqui e agora, bem como o que permanece, repetindo-se a perder de vista, os infinitos ecos, reflexos e distorções entre desejo e imitação. No seu cinema, não há real separação entre o movimento da história e a entropia desse condicionamento social do desejo, são metades de uma mesma equação. Os oficiais, guerras e duelos são inseparáveis de seus encontros mundanos, bai les e serenatas para dois.
Nos Estados Unidos do fim dos anos 1940, o compasso se faz mais acelerado desde o início e está sujeito a interdições mais bruscas. Se Carta ainda se ambienta nesta Europa de sonho e memória e antecipa as espirais de desejo da sua fase final francesa, Coração Prisioneiro é um filme aberto aos solavancos do tempo presente, feito
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de movimentos acidentados e paradas forçadas no qual a fantasia romântica, autoconsciente ou não, é sufocada tanto por incertezas do espírito quanto por problemas materiais. Os planos-sequência permanecem, mas são aqui mais curtos, mais contidos, o que torna sua inscrição na cena por vezes mais eloquente. O único momento em que há dança é feito num lugar abarrotado e cheio de ruído que, no entanto, dá um melhor pretexto para que os amantes se aproximem e se toquem entre os apertos e empurrões. Sua protagonista, Leonora, vai abandonando as aspirações de per tencimento à classe dominante (não há aqui uma aristocracia sedutora, mas o poder de consumo por si mesmo, transparente e banal). É notável o contraste da dança com os movimentos glaciais e ensaiados da mesma Leonora sob os comandos dos compradores das roupas para as quais ela serve de modelo numa loja luxuosa, ela mesma também identificada como uma forma mais privilegiada de objeto de desejo. Será também um filme marcado pela indecisão dessa protagonista, que se define, seja contra ou a favor, sempre em função do olhar de um outro.
Tal identificação (e sua transparência) é o ponto de partida do filme. Os créditos iniciais apa recem sobre o passar de páginas de revistas que exibem adereços, joias, peças de roupa e ambien tes que são objetos de consumo e ostensivamente projetam um desejo de identidade. O contraste
entre as escolhas das duas amigas ilustra, pelo desejo implícito em cada uma, sua diferença mais fundamental, que ainda está por se revelar. Margue (Barbara Bel Geddes), que ainda não mudou de nome para Leonora, como se Bel Geddes não tivesse ainda assumido sua entrada no filme, encolhe mink, ainda que já seja considerado comum e ultrapassado. Maxime (Ruth Brady) escolhe chinchila, o último modelo da revista. Esse primeiro plano de abertura tem o mesmo valor antecipatório do plano no início de Desejos proibidos (1953) em que Danielle Darrieux pondera sobre qual de suas joias poderá vender sem que o marido dê por sua falta: é, a um só tempo, o prelúdio da ação que desencadeará todas as outras na trama e a metonímia de uma identificação da mulher com um objeto de alto valor que mudará em paralelo com o status social da mesma. No caso de Leonora, trocam-se os brincos pelo casaco de mink e o espelho pela revista.
O terço inicial, repleto de considerações mor dazes sobre o custo de vida e a perspectiva de mobilidade social de uma jovem mulher mediante a etiqueta e a oportunidade de um “bom” casa mento, não cessa de demarcar os parâmetros dessas oscilações de valor. O discurso de Maxime encontra sua consequência lógica na charm school, na qual o equilíbrio entre sedução e etiqueta é sis tematizado em números e fórmulas (qual pronúncia é considerada mais elegante e adequada, que
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cosmética aplicar a cada formato geométrico do rosto, como se defender contra investidas indese jadas mantendo a compostura). Ao fim dessa formação, um emprego garantido como modelo de loja, no qual se pode conhecer bons partidos em potencial. De Margue, a everywoman que conhecemos no início do filme, sabemos apenas que alme ja deixar para trás as dificuldades de uma infância pobre em Denver (“um casaco de mink para mim e um para mamãe”) e que ainda concilia um ideal de romance ao imperativo arrivista que lhe é oferecido: não lhe basta “apanhar” um milionário, é preciso que haja um momento de arrebatamento recíproco e genuíno, que ela descreve com um fer vor de sonho e de fé. Como Leonora, ela descobrirá que um e outro são incompatíveis. Muito mais do que uma performance de docilidade feminina, o genuíno senso de empatia e gentileza com o qual
ela resolve sua indecisão é sua verdadeira constante, que lhe deixa à mercê de alguém que lhe imponha um novo papel, ostensivamente por seus dois interesses românticos ao longo do filme, mas também Maxime e quiçá até mesmo a mãe que só vemos por uma foto e uma manchete. Bel Geddes nunca se exaspera sem a provocação de um par ceiro de cena, nenhuma ação deixa de registrar uma discreta e delicada reação em seu rosto e voz, nela a emoção se projeta para dentro, a câmera de Ophüls é sua única verdadeira aliada. Se as protagonistas de Ophüls costumam atravessar a paixão e a desilusão como um salto no abismo, o movimento de Leonora é pendular, pois a paixão está sempre em suspenso.
Depois do “treinamento”, ela inaugura sua nova identidade, incorporando o jargão e o inventário dos gestos “charmosos” com desconforto. Como
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modelo da loja, ela poderá ostentar no corpo o tão desejado casaco de mink para que seja apalpado e examinado por possíveis clientes. Imediatamente ela atrai o olho de Franzi (Curt Bois), representante pessoal (leia-se lacaio profissional) de um milionário que está dando uma festa num iate. Com o convite, fica subentendida a consumação de sua objetificação voluntária. Ela hesita, chora, é recriminada por Maxime, mas acaba indo. O plano em que ela espera carona no cais, remete a um tableau de inocência acossada digno de fábula: Bel Geddes é iluminada de cima por uma luz solitária, cercada por sombras densas e brumas. O iate, em contraplano, parece uma nave infernal.
As sombras que cercam Leonora são o domí nio de Smith Ohlrig (Robert Ryan), dono do iate e da festa, o milionário com quem ela ensaia um romance relutante, possível justamente pelas fissuras dentro das personas que ambos escolhem projetar: Leonora lhe parece “mais doce que as outras garotas”, seu resquício de candura contradiz a artificialidade de costume e Ohlrig, apesar de já prenunciar a persona controladora e cruel que veremos depois, ainda hesita, deixa escapar lapsos de impulsividade e vulnerabilidade ferida, ainda age como “um ser humano”. O impulso de desafiar a previsão de catástrofe de tal união, decretada por seu psicanalista, é o suficiente para que Ohlrig se decida pelo casamento.
A sombra de Ohlrig, personagem criado à imagem e semelhança de Howard Hughes, domina a segunda parte do filme. Pouco adianta o esquematismo da explicação psicanalítica para suas motivações, tão típicas da sua época e contexto quanto o retrato da vida de uma aspirante a modelo na primeira parte. Esse tropo não passa de um pre texto para que a performance de Robert Ryan tiranize e contamine mesmo as cenas em que ele não está de corpo presente com um tom genera lizado de frustração, neurose, sadismo (como na cena com Franzi ao piano) e paranóia em torno de
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sua vontade (basta um telefonema ou uma cam painha para que a convocação aconteça). Curiosamente, dada a imponência e intensidade do ator, a dominação não se dá tanto por um senso de ameaça física, mas justamente pela disposição do espaço e das sombras no quadro, que projetam uma relação de controle e onipotência entre ele e o entorno à la Kane em sua mansão (as montagens de tabloides dando conta da recepção pública do casamento também parecem aludir ao filme de Welles). Ryan está sempre apagando e acendendo luzes, abrindo e fechando portas e janelas, como se estivesse ajustando a atmosfera ao seu gosto. Sua posição privilegiada na hierarquia do plano, no entanto, é quebrada pelas intrusões de Leono ra, como na cena em que Ohlrig tenta submeter todos os olhares à sua imagem na sala de projeção e é frustrado pela presença disruptiva da esposa, primeiro pelo riso que o faz interromper o filme e de maneira mais definitiva por sua saída da sala. Ohlrig tem ataques nervosos quando contrariado, impõe uma rotina de alerta, isolamento e vigília para seus subordinados e é dado a rompantes de brutalidade. Tudo isso se dá de maneira bastante autoconsciente sem que haja qualquer perspectiva de mudança em sua trajetória rumo à autodestruição (e Ryan sabe transparecer essa consciência ago nizante por detrás da virulência). Apenas Leonora insiste em esperar tal mudança, que ele retorne ao homem que ela conheceu antes do casamento,
ainda conciliável com suas fantasias. O que Ohlrig não pode tolerar em Leonora é a capacidade obstinada de renúncia que escapa à sua posse ou controle, pois ele só consegue conceber as relações pessoais em termos de dominação e posse. Desti tuído de seu poder de coerção, o monstro se revela o mais débil e vulnerável dos perdedores, regride a um estado infantilizado, o que fica visível já nos lapsos mal-contidamente histéricos que Ryan dá a ver nas cenas que antecedem seus ataques. Mas seu poder financeiro, meticulosamente compartimentalizado e, portanto, de uma tirania mais terrível, mantém todos à sua volta isolados como reféns, o espaço da mansão é seu reino despótico, o tempo dos seus inúmeros funcionários obedece e espera pelo seu. A metáfora de sua dicotomia poder-impotência são os jogos aos quais ele recor re inutilmente antes dos ataques, nos quais ele dá o comando para que outros corpos se movam enquanto ele perde o controle de seu próprio corpo. Daí a importância do contraste com a primeira parte do filme, em que a necessidade e a privação que constituem a regra são expostas de maneira igualmente autoconsciente.
Diante da incapacidade de conciliação e da tortura insuportável, resta a fuga, ainda que a ideia surja de início como um blefe. Leonora recomeça com um emprego de recepcionista num consultório médico de uma vizinhança pobre, mas ainda carrega consigo a afetação e o discurso da charm
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school (além do inseparável casaco). Seus modos atiçam a fúria do Dr. Larry Quinada (James Mason), um pediatra altivo e idealista que despre za o arrivismo ao ponto da intransigência, dessa forma também disfarçando sua atração sublima da por Leonora. Quinada é a verdadeira figura de autoridade do filme, autoridade moral: não há maior fonte de poder num melodrama que o de determinar o certo e o errado, tanto melhor se nele houverem traços góticos, onde o espírito se volta não mais para a virtude, mas para o terror da punição. Não é de se estranhar que a forma como ele trata Leonora não mude muito quando Qui nada passa de chefe a pretendente, o que acontece justamente a partir do momento em que ela resol ve se dedicar de corpo e alma às competências do seu trabalho - numa sequência análoga ao treina mento da charm school, cada uma imersão numa linguagem com valores e hierarquias próprios. A mesma equivalência entre patrão e marido já era bastante clara no casamento com Ohlrig, mas faltava a ele justamente a autoridade moral. A Mason será permitido controlar as cenas do terço final de modo muito mais efetivo que Ryan (a própria câmera parece obedecê-lo em suas andanças em ziguezague pelo consultório). Sua conduta e visão de mundo são tratadas pelos demais personagens, do colega obstetra aos pacientes, como absolutamente justas e desejáveis, e seu charme disfarça o gosto amargo de sua intransigência. Antes de decidir pedi-la em casamento, ele dá a ela de presente um casaco novo, de tecido, mais adequado a uma recepcionista ou a esposa de um médico. O gesto comove e leva Leonora à fuga mais uma vez.
Se Leonora está realmente “apanhada” como nos avisa o título, é no impasse entre essas duas visões de mundo, entre os olhares desses dois homens. Uma recaída com o marido se torna um obstáculo para o novo romance diante de uma gravidez, o que dá margem para uma nova chantagem, de aprisionamento definitivo. Em nome da
criança que vai nascer, Leonora volta ao Xanadu soturno de Long Island para sofrer novas torturas. Uma confrontação inevitavelmente acontece, mas o que importa não é o embate entre os dois homens por Leonora, feito em montagem dialé tica de campo e contracampo e confinando toda a agressividade às palavras e ao contraste entre a leveza de Mason e a energia crispada de Ryan, mas por qual moral deve prevalecer. Num plano notável que parece uma metonímia dramática do filme, a câmera acompanha Bel Geddes andando de um lado ao outro entre Mason e Ryan, tendo por divisória uma escada que enquadra seu corpo como uma grade de prisão. Leonora termina por ceder à chantagem, mas o seu desejo pela libertação é poderoso e se concretiza num espetacular ataque neurótico em que ela efetivamente rompe com o controle do marido, negando a ele não apenas o socorro, mas sua própria pessoa. Não dei xa de haver certa justiça poética no fato de que seu maior ato de rebelião esteja justamente em se deter, imóvel, diante do corpo prostrado de seu algoz (melhor ir contra sua própria natureza dócil que impor a si mesma a violência da tira nia; melhor que a criança viva livre na carestia do que aprisionada). A ruptura, no entanto, é ambi valente: Ohlrig sobrevive, ainda que banido para o extracampo, e Leonora perde o bebê que era o motivo do seu sacrifício. A notícia da libertação agridoce é dada numa ambulância: Bel Geddes paralisada, quase imóvel, Mason e o quadro vão se fechando sobre ela, sua voz sentencia “você está livre” mas também “você deve querer viver”. De fato, a chantagem do primeiro marido se resolve, resta o próximo. Ophüls conclui o filme com um irônico movimento acompanhando uma enfer meira que se livra do casaco de mink, a identidade anterior de Leonora definitivamente descartada. Vemos Leonora pela última vez brevemente e de longe, aos cuidados vigilantes do bom médico. Seu colega nos fecha a porta. †
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O casamento como campo de batalha
O Segredo da Porta Fechada (Secret Beyond the Door, Fritz Lang, 1947)
por Paula Mermelstein
O Segredo da Porta Fechada, dirigido por Fritz Lang com roteiro de Silvia Richards é, em certo sentido, uma colagem de diferentes referências. Em uma mistura de Rebecca (1940) de Alfred Hit chcock com o conto popular do Barba Azul, o filme articula algumas tendências recorrentes da década de 1940, como a do gênero noir, a temática do casamento e a trama psicanalítica. É também,
como poderíamos caracterizar a maior parte da filmografia de Lang, um estudo sobre o espaço; uma tentativa de materializar os desejos humanos (mais terríveis) em um espaço concreto que os encene e expresse, adaptando-se às demandas específicas da narrativa e personagens em ques tão - de modo que se aproxima, em certo sentido, da tese do protagonista do filme a respeito das
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Joan Bennett em O Segredo da Porta Fechada.
potencialidades da arquitetura, ainda que este as extrapole patologicamente.
O filme começa como um sonho, turvo e silen cioso. Sobre uma superfície d’água vemos flutuar um barquinho de papel e flores de narcisos, enquanto a voz de nossa protagonista relembra um livro que leu há muito tempo atrás sobre o significado dos sonhos: “Se uma garota sonha com barcos, ela chegará segura a um porto, mas se ela sonha com narcisos, ela estará em perigo”. A voz de Celia Barrett, interpretada por Joan Bennett, continuará a nos acompanhar ao longo do filme, frequentemente em um sussurro ínti mo. Como é de praxe no filme noir, a história em questão trata-se de um relato subjetivo, e nessa modalidade do noir “para mulheres”, geralmente sobre os perigos do casamento, acompanhamos a personagem feminina.
Diferentemente dos outros filmes de Lang em que atua e pelos quais é conhecida, assim, Ben nett irá interpretar aqui uma espécie de anti-femme fatale. A máscara de mistério e opacidade da femme fatale cai por terra, afinal, quando acompanhamos tão de perto os pensamentos íntimos da personagem. Esta máscara será reservada ao homem enigmático com quem ela se casa, Mark Lamphere interpretado por Michael Redgraveque havia atuado no filme de Hitchcock A Dama Oculta (1938), estabelecendo mais uma relação com a filmografia do diretor. O filme será, em certo sentido, sobre esta máscara e a tentativa de Celia de derrubá-la, de conectar-se com seu recém-marido que é, na verdade, um desconhecido. A escolha por Bennett, enfim, com seu histórico de personagens sexualmente assertivas é absolutamente distinta, senão contrária, àque la da inocente e benevolente Joan Fontaine em Rebecca, mas será fundamental ao papel ambíguo que interpreta no filme de Lang, no qual os peri gos que sua personagem enfrenta serão encarnados mais concretamente pela figura de seu mari
do e menos por um fantasma do passado, como no filme de Hitchcock.
Toda a tensão e senso de aventura em O Segredo da Porta Fechada provém, no fundo, desta situação absolutamente banal de uma mulher recém -casada descobrindo o caráter e as idiossincrasias de seu cônjuge. Como resume a metáfora inicial do sonho, o casamento pode ir em duas direções: a mulher pode se deparar com um barco, que a levaria para outros lugares, ou com um narciso, flor associada ao mito grego do homem de mesmo nome que se apaixona pelo próprio reflexo, ou seja, do homem fechado em si mesmo. Mas para que o filme não se constitua apenas em ilustrar metáforas ou expôr pensamentos em voice-over das personagens, é necessário materializar tais senti-
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Michael Redgrave em O Segredo da Porta Fechada.
mentos, colocá-los no espaço e tempo filmáveis, e ninguém melhor para fazê-lo do que Fritz Lang, mestre em adentrar em mundos obscuros e oníri cos sem nunca perder de vista o espaço concreto em que isso se dá e as personagens envolvidas. É desde o princípio, assim, que o aspecto psicanalítico do filme acaba, em certo sentido, sobrando, e Lang fará questão de evidenciá-lo como um enxer to nada sutil. Assim se dá a narrativa descaradamente freudiana: Celia, uma jovem rica cheia de pretendentes, acaba de perder seu irmão, figura paterna, protetora e exemplar, e apenas agora terá o caminho livre para se casar.
Em O Segredo da Porta Fechada, o casamento é um campo de batalha, onde cada um dos noivos deve adentrar o território desconhecido do outro com cautela e excitação. Celia conhece seu futu ro noivo, Mark, na exótica paisagem mexicana da
viagem que faz após a morte de seu irmão, não por acaso em meio a uma luta de rua. Seu passeio por uma feira de quinquilharias e excentricidades do país latino é interrompido por um grito feminino que sinaliza uma briga que irrompe entre dois homens locais disputando por uma mulher. A cena antes barulhenta, acompanhada por ruídos da feira e da música local, é então preenchida de silêncio, em meio ao qual ouvimos apenas os movimentos dos homens envolvidos. Um deles saca uma faca e Celia, hipnotizada, não consegue sair de seu lugar, não importa o quanto sua amiga lhe chame. A faca é arremessada pelo homem e para do lado da protagonista, por pouco não lhe acertando. É neste momento que Celia expressa o sentimento, em voice-over, de que alguém a observa, e então avista Mark em meio à multidão, olhando para ela.
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A cena, mundana mas de ares arcaicos e mito lógicos, é um bom exemplo de como Lang inscreve este filme de teor místico em um espaço-tempo capaz de ser filmado e, sobretudo, sentido, uma vez que o tempo parece congelar neste momento, permeando o ambiente de uma irrealidade inquietante, de uma energia no ar.
Para apresentar o personagem misterioso de Mark e finalmente começar esta aventura, é preciso primeiro introduzir Celia e o espectador que a acompanha em outro tipo de regime, em outro ritmo, aquele do momento presente. Se antes a cena de sonho inicial seguida pela narração constante da protagonista inseriam os eventos do filme no passado, como um grande flashback, agora estamos de fato junto com Celia, dentro da cena, implicados e hipnotizados pela trama. A energia primitiva irrompida pela briga entre os dois homens é canalizada na faca que direciona o olhar de Mark a Celia, como uma flecha de cupi do; ele a observa violentamente, como se seu próprio olhar fosse capaz de perfurá-la. A voice-over de Celia confirma: ele haveria visto, por trás de sua maquiagem, algo que ninguém havia visto, algo que nem ela sabia que estava lá.
Sua narração continua, então, informando que o próximo encontro dos dois deveria ser em “seu território”, e aguarda em um bar que ele venha até ela. A conversa entre os dois se dá por meio de metáforas e tentativas de explicação para um mesmo fenômeno, a sensação de que o tempo parou: “há algo em seu rosto que eu vi antes em um campo de trigo, quando logo antes de um ciclone o ar assume uma quietude”, decla ma Mark. Ele continua, afirmando que ela passou sua vida inteira dormindo, uma “bela adormeci da do século XX”, e agora quer acordar. Esta sensação de que o tempo parou, que nos inscreve no presente da narrativa, é essencial para a constru ção tanto deste amor à primeira vista que ultrapassa as máscaras sociais, as banalidades da vida
cotidiana, quanto para nos inscrever num clima propício para sentirmos medo - procedimento básico de qualquer filme de suspense. A especifi cidade, aqui, é que este suspense provém de uma cena que poderia ser, em outro filme, românti ca; as determinações dominantes de Mark sobre Celia a atraem e repelem simultaneamente, ele sabe demais sobre ela, mais do que ela própria, o filme parece nos dizer.
Logo os personagens se casam e será na lua -de-mel que o outro lado de Mark irá se manifestar. É aqui, em uma hacienda mexicana, que ele revela ser um arquiteto fracassado, vivendo às custas de sua revista de arquitetura, “se não pos so construir casas de acordo com as minhas teorias, pelo menos posso falar sobre elas”. Mark é, portanto, um homem frustrado e um homem de ideias. Estas consistem, essencialmente, na crença de que a maneira como um cômodo é cons truído influencia os eventos que aconteceram nele. Quando Celia se prepara para sua noite de núpcias, a empregada que lhe auxilia recomen da que ela deixe seu marido esperar um pouco, e a protagonista então tranca a porta do quarto. A maçaneta se mexe logo a seguir, e então para. Mark não insiste e agora frio e distante, anuncia que vai embora. Estabelece-se assim a questão central deste personagem, seu problema com “portas fechadas”, sua impotência - não apenas sexual, mas esta é central, dado o contexto em que primeiro se manifesta -, que faz com que ele próprio também se feche (neste labirinto um tanto cafona de metáforas).
O resto do filme será no território de Mark. Ele justifica que se mudem para lá explicando que sua família vive naquela residência desde o século XVII, já associando a casa ao aspecto gótico que a caracteriza. Como o cinema de Lang, o conflito irá, a todo momento, não apenas perpassar o espaço em que se dá mas ser construído a partir deste. Estando este conflito caracterizado
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pelas estranhezas do casamento, não surpreende que a casa deste novo marido seja o epicentro desta construção.
A decoração da casa é barroca: máscaras, quadros e papéis de parede pomposos, inúmeras cor tinas e, é claro, inúmeras portas. Não simplesmente esta casa é dele e de sua família mas, sendo um arquiteto, ele a projetou, e projetou também suas armadilhas. De acordo com sua própria teoria, afinal, a arquitetura de um quarto define o que acontecerá nele. Esta teoria poderia se aplicar a qualquer filme de “casas mal-assombradas”, que não por acaso costumam ter uma arquitetura gótica e sombria a priori, antes mesmo de qualquer coisa acontecer ali. A diferença é que, geral mente, em tais histórias de terror, ainda que já tenha tal arquitetura, esta é incidental, a casa se torna mal-assombrada porque algo aconteceu ali, e não o contrário.
A princípio, a questão de Mark parece ser um excesso de pragmatismo e racionalidade, mas logo veremos que suas teorias são na ver dade governadas por superstições - ainda que as chame de “teorias” e colecione o que considera evidências de sua veracidade. Mesmo que, diante das convenções sociais da época, estas características sejam típicas de um homem - geralmente colocadas como contraponto para um suposto aspecto instintivo e caloroso da mulher - falta a Mark a tomada de atitude que costuma acompanhá-las na construção de um herói. Mark não é um homem de ação, por isso não consegue “abrir a porta”, metáfora para um complexo de castração freudiano. “Se não posso construir casas de acordo com minhas teorias pelo menos posso falar sobre elas”, é, afinal, como ele rancorosa mente justifica a existência de sua revista sobre arquitetura. Mas falar sobre elas aparentemente não é o bastante, ele precisou também construir como adendo de sua própria casa sua própria coleção fetichista de quartos. Diferentemente
do herói que protagonizará o díptico indiano de Lang na década seguinte, que é um arquiteto e um homem de ação, Mark é mais fetichista que arquiteto, e algo entre herói e vilão.
A coleção, introduzida à Celia por Mark como uma série de quartos “oportunos” - e há aí uma confusão no filme pela palavra que ele usa em inglês, “felicitous”, significar também “felizes” -, concerne essencialmente quartos onde aconteceram assassinatos célebres. Não simplesmen te suas cópias, como o arquiteto faz questão de enfatizar mas, na medida do possível, os quar tos de verdade. Não são réplicas mas um museu de relíquias, que contam um pouco da história do próprio Mark. Ao mostrar o primeiro quarto, o arquiteto introduz a história de um conde francês que matou sua esposa ali. No segundo, conta sobre um homem que assassinou sua mãe a prendendo em uma cadeira e deixando o quarto ser inundado pelas enchentes de 1913, por conta de seu seguro de vida. E por fim apresenta o ter ceiro quarto, de uma hacienda no Paraguai onde Don Ignacio, um “homem culto”, nas palavras de Mark, que considerava o assassinato uma arte, matou diversas de suas amantes, estrangulando-as com uma echarpe. Ele haveria afirmado que uma “emanação profana do quarto lhe impulsionou inevitavelmente a matar”. Há ainda mais um quarto que permanece sempre trancado. Juntan do as informações de cada um dos quartos temos todas questões que permeiam o impulso assassi no de Mark - a relação perturbada com a mãe, o assassinato da esposa, a emanação assassina pro veniente do quarto - e mesmo a arma do crime que será utilizada em sua tentativa de assassinato posteriormente, a echarpe. A coleção, aqui, reme te àquela não-dita, mas sempre latente, da lenda do Barba Azul, que “colecionava” suas ex-esposas mortas em um armário.
É neste mesmo momento crucial do filme, da construção de seu mito através dos espaços
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que a questão psicanalítica é colocada de modo mais enfático - e talvez satírico - por uma jovem estudante de psicologia que a todo momento interrompe a explicação fantástica para os assassinatos, que tanto fascina Mark, apresentando academicamente justificativas freudianas para todos seus argumentos sobrenaturais. A cena e a personagem são emblemáticas no que diz res peito ao embate interno do filme entre fantasia e ciência, e mesmo do papel ostensivo que a psica nálise acaba por assumir aqui. A fantasia, em certo sentido, exumaria o protagonista de sua culpa, mas a maneira simplória com a qual esta psica nálise é introduzida também; para a estudante de psicologia, bastaria que Don Ignacio fizesse tera pia para que evitasse as mortes destas mulheres. Do modo semelhante, o trauma que instaura o instinto assassino em Mark é simplesmente sua mãe haver lhe trancado no quarto quando criança enquanto saía para dançar.
Durante a exibição dos quartos da coleção, a câmera acompanha os detalhes de cada assas sinato, as armas do crime e objetos envolvidos, colocados exatamente como nas cenas dos cri mes, congelados no tempo. Este é um dos poucos momentos em que vemos a câmera se movimentar tão ativamente no filme, que ao mesmo tempo em que acompanha a narração de Mark, atribui uma agência aos quartos vazios de vida, associan do-os a tal imanência atribuída pelo arquiteto -
o assassinato pela enchente, por exemplo, é um modo do próprio quarto matar quem está nele. É o modo como estes quartos são introduzidos que lhes garante sua merecida importância em meio a esta narrativa - fossem apresentados de outra maneira, não seriam mais do que anedotas para preencher os buracos da motivação de Mark para sua vontade de matar. Em cada cômodo que adentramos no filme notamos um absoluto interesse da câmera, que passeia revelando as pare des, os adornos, a mobília, seja da Igreja no início do filme, na hacienda mexicana, nestes quartos “oportunos” ou no quarto de Celia.
Os quartos são aqui, afinal, paralelamente à estrutura do casamento, fonte de maravilhamen to e horror, e por isso o momento de revelá-los interrompe, em certo sentido, o fluxo narrativo, assumindo a função de mostrar ou descrever, frente à de narrar1. Como um monstro em um filme de horror ou como o primeiro primeiro
1 Sobre estas diferentes funções, conferir o “regime de mostração” de André Gaudreault e o “sistema de atrações” de Tom Gunning explicitados em COSTA, Flavia Cesarino. O primeiro cinema: Espetáculo, narração e domes ticação. Rio de Janeiro: Azougue, 2005. A oposição entre “narrar” e “mostrar/descrever” vai além do cinema, relacionando-se com as análises literárias de Georg Lukács em “Narrate or Describe?” (1936) e com a mesma discussão em pintura, trazida por Svetlana Alpers em “Describe or Narrate? A Problem in Realistic Representation” (1976), disponível em: https://www.jstor.org/stable/468612.
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plano de uma estrela hollywoodiana, tal revela ção é construída com suspense e apreciada com deleite. Por isso há tantas cortinas e portas antes de Celia finalmente chegar no quarto cuja porta está trancada, adiando o momento em que irá finalmente adentrar no coração do mistério da casa e de Mark.
Enquanto todos os outros quartos se referem a eventos passados, o quarto número 7, que Mark afirma já estar pronto, ainda que o mantenha trancado, parece esperar algo que venha a acontecer. Quando Celia enfim consegue entrar nele, compreedemos imediatamente a monstruosida de do quarto: ele é idêntico ao quarto dela, Celia, que costumava ser o quarto da ex-esposa de Mark antes desta falecer do modo suspeito. Não há nada de explicitamente grotesco aqui, apenas o reconhecimento do que tal semelhança significa em meio esta coleção de quartos “oportunos”. O relógio toca e é então que Celia percebe que tampouco este quarto é uma relíquia congelada no tempo, mas que ateve-se às mudanças mais recentes que houveram no quarto verdadeiro; uma vela cortada em seu quarto também foi cor tada aqui. O quarto duplicado não é da ex-esposa de Mark, não se refere a morte dela, e sim o seu quarto, que espera vivo, em constante mutação, a sua morte concretizá-lo enquanto peça de museu, canonizá-lo na coleção - neste sentido o quarto -monstro é tanto um doppelgänger quanto um mutante. Pois se em primeiro plano este detalhe da vela indica que Mark vem atualizando o quarto constantemente, o que sentimos na verdade é que o quarto se altera sozinho, como se o instinto assassino fosse do cômodo e não do homem que o criou e cultivou como uma coisa viva; o deta lhe da vela é como ouvir um morto respirar ou ver uma estátua se mexer. A partir de tal percep ção, o quarto parece acordar, como Celia haveria acordado de um sono profundo, e passar a existir não apenas no espaço, mas também no tempo.
Ao correr desesperada dali, ela nota que o quarto de Don Ignacio está aberto, com a luz acesa. Não foi apenas o quarto número 7 que despertou: logo vemos os passos de Mark andando pelos corredores, com a echarpe do assassino em mãos, e ele a persegue pelo bosque enevoado ao redor da casa.
O segredo atrás da porta número 7 é, enfim, sobretudo uma hipótese em forma de quarto, uma encenação privada mas material dos sentimentos mais ocultos e reprimidos de Mark, preparado como um palco para re-encenar a “cena primária” traumática (para utilizar os termos psicanalíticos que interpelam o filme) deste personagem. Após acreditar haver assassinado Celia, no dia seguin te à perseguição no bosque, finalmente visualizamos o interior da cabeça de Mark: adentramos em seu devaneio, onde está sendo acusado em um tribunal imaginário. A cena kafkiana é distinta de todo o resto do filme, se dando em um espaço absolutamente abstrato, onde o próprio Mark atua simultaneamente como interrogador e interrogado, e os membros do júri estão todos sob uma sombra que impossibilita vermos seus rostos. Percebemos aqui que o desejo de matar acompanhou Mark durante toda sua vida adulta, e também este era frustrado; assim como o ato sexual, não era capaz de realizá-lo. Os personagens de Lang não costumam ser banais e, assim como o protagonista de Almas Perversas (1945), interpretado por Edward G. Robinson, há todo um antecedente complexo de vergonha e humi lhação que os motivam ao assassinato. Mark é patético no sentido mais amplo da palavra, que provém do grego “pathos”, significando tanto aquilo que é ridículo e comovente quanto doentio, “patológico”.
Mas Celia não morreu, afinal, e retorna para um embate final entre marido e mulher na arena que lhe foi designada, aquela do quarto número 7. Ali, ela prepara todos os detalhes que tornam o quarto ainda mais próximo de seu original, do
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seu quarto, e aguarda a chegada de Mark. Quan do este chega, finalmente revela seus traumas de infância que o impulsionam ao assassinato, enquanto caminha na direção de Celia com a echarpe na mão, até ela revelar a informação que faltava para que tudo fosse resolvido - uma questão, no fundo, muito banal: seria sua irmã que haveria trancado a porta quando ele criança, como uma brincadeira, não sua mãe em sinal de rejeição. Assim que a questão é resolvida e Mark larga a arma do crime no chão, a casa começa a pegar fogo e o casal escapa, se arrastando. Em meio às chamas simbólicas, este espaço amaldiço ado que representa tudo que traumatizou Mark e os monstros que ele criou a partir disso, queima. Na cena seguinte, o casal já está de volta à idílica (e sensual) hacienda mexicana; este paraíso após o inferno é um final improvável mas pode acar retar um sentido mais alegórico do que literal, como se, ao final do filme, todos estes espaços sucumbissem à lógica onírica e simbólica que os originou. O Segredo da Porta Fechada é, sobretudo, uma coleção de cenas e espaços “oportunos”, adaptados por Lang para cada situação dramática, buscando reverberar os desejos e horrores da mente humana na arquitetura hollywoodiana, criando com isso este monstruoso lar conjugal. †
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Aqui, a espectadora salva a si mesma
Alguns apontamentos sobre as "Loucas da Casa" e "Garotas Finais" em dois filmes das décadas de 1970 e 1980
por Emanuela Siqueira
Na década de 1970, principalmente na produção acadêmica de língua inglesa, as pesquisas sobre representação de mulheres na literatura e no cinema ganharam força. Ao mesmo tempo que a academia se interessava na elaboração em torno de padrões que vinham desde, pelo menos, a Grécia antiga – como a figura da Penélope na Odisseia, de Homero, ou a variedade de estupros nas Metamorfoses, de Ovídio –, os filmes e livros continuavam sendo realizados e escritos, fazendo com que a percepção dos padrões seguisse em constante desenvolvimento pelas pessoas que liam e assistiam.
Dois dos padrões mais frequentes e que surgi ram a partir do período citado são o da madwoman in the attic [louca do sótão] e da final girl [garota final]. A louca do sótão, explorada no livro homônimo de 1979, das críticas estadunidenses Susan Gilbert e Sandra Gubert, é uma figura que emerge no século XIX – mais especificamente no romance Jane Eyre (1847), de Charlotte Brön te, com a personagem Bertha Mason – mas que é facilmente encontrada também na literatura gótica do século XVIII. A imagem da mulher levada a acreditar que está louca, que deve ser privada do convívio social pois não tem credibi
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Jacki Kerin em Mais Próximo do Terror.
aqui, a espectadora salva a si mesma † emanuela siqueira
lidade diante de seus atos, é uma repetição que ainda ganha espaço no fetichismo atual pelo que se acredita ser a loucura feminina.
Durante o século XX a imagem do sótão ganhou o espaço da casa inteira em muitas repre sentações, e o lugar onde as mulheres passavam a maior parte do tempo se tornou perigoso, as transformando em loucas da casa: papéis de paredes que se metamorfoseiam em espectros, quartos com mesas de cabeceiras contendo lei tes envenenados, quadros que assombram a paz doméstica ou sótãos que contém materiais que são segredos de família.
Apesar do termo garota final ter se consolidado apenas no começo da década de 1990, com o livro Men, Women, and Chainsaws (Homens, Mulheres e Motosserras, 1992), da pesquisadora de cinema Carol J. Clover, a ideia de uma mulher que sobrevive sozinha (e enlouquecida) também pode ser encontrada desde as tragédias gregas. Clover analisa, a partir do surgimento dos filmes de matança (slashers) no final da década de 1970, as personagens boas moças que são as últimas sobreviventes, pagando um preço módico que envolve a sua própria sanidade.
Mesmo que esses dois tropos, dentre tantos, pareçam datados por terem surgido a partir de livros, filmes e cenários específicos, eles seguem ganhando não apenas reformulações no sécu lo XXI, retornando atualizados, mas também podem ser torcidos e pensados em produções de outras épocas. O que vem acontecendo, desde meados da década de 1970, são as re-visões de desenvolvimento de narrativa que estão mais alinhadas com as pautas de discussões feministas. Porém, ao mesmo tempo que não podem ser ignoradas, as resoluções narrativas, de certa forma, ainda se apresentam rudimentares em nome de alguma fetichização de representação por parte de realizadores interessados em satisfazer a clássica escopofilia masculina.
Sabendo que o cenário no campo da realização – em relação aos números de homens e mulheres escrevendo, dirigindo e adaptando seus trabalhos ao mercado – começou a mudar efetivamente a partir da década de 1990, interessa aqui fazer um recorte de dois filmes realizados entre 1970 e 1980, por homens, considerados produções independentes da época e representativos de narrativas que torcem as duas imagens clássicas mencionadas em um momento chave da crítica cultural feminista.
Sonhos Alucinantes (1971), dirigido pelo esta dunidense John D. Hancock, e Mais Próximo do Terror (1982), do neozelandês Tony Williams, são
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Zohra Lampert e Mariclare Costello em Sonhos Alucinantes.
aqui, a espectadora salva a si mesma † emanuela siqueira
dois longas-metragens que mesclam as figuras da louca da casa e da garota final, dialogando entre si em representações aparentemente aten tas a alguns pontos de vista feministas da época, porém, ainda, bastante exploratórios em relação à saúde mental de mulheres.
Em Sonhos Alucinantes, a protagonista Jessica (Zohra Lampert) é uma caricatura de uma jovem mulher que, voltando de um período de internamento em um hospital psiquiátrico (não sabe-se o motivo), parte para o interior a fim de se readaptar à vida de uma forma mais tran quila. A ideia desse exílio vem do marido, que compra a propriedade para onde se mudam e convidam um amigo. Ao chegar nesse lugar os três se deparam com uma mulher estranha que diz se chamar Emily (Mariclare Costello). A mulher, muito branca e de cabelos vermelhos, é, ao mesmo tempo, uma sedutora figura espectral que se apresenta sem subterfúgios à protagonista, fazendo quem assiste questionar mais a sanidade de Jessica do que a sua origem.
No início de Sonhos Alucinantes a estranha diz que é apenas uma andarilha – na época, pós -Woodstock, há margem para essa construção de pessoas fora de seus lugares e, no filme, essa situação aparece em tom de deboche –, mas com o desenvolvimento da narrativa ela se torna a figura da outra, de uma personagem designada a assustar e também satisfazer quem assiste com a perda de controle de Jessica diante da realidade.
O filme opera mais pontualmente na clássica imagem da mulher louca porque já apresenta a protagonista como, literalmente, uma voz não confiável. Cabe a quem assiste decidir se Jessica continua alucinando ou se está sendo atormenta da por uma figura maligna. Recursos como a voz off da personagem, que tenta firmar uma cons ciência; algumas situações em que ela se encon tra sozinha com Emily; assim como as clássicas cenas de representação heteronormativa, como as em que sente ciúme e medo de ser traída, são características clássicas que induzem à histeria de mulheres.
Já Emily vai se revelando como uma presença sobrenatural, ao mesmo tempo que sua fisi calidade se reafirma na sexualidade e na própria existência de um corpo morto que reivindica um espaço hereditário, isto é, a casa comprada pelo marido de Jessica. Além disso, essa mulher tem domínio sobre a cidade inteira, tornando apenas os homens em seus súditos, fazendo com que, além da disputa pela sanidade de Jessica, haja ainda a clássica disputa entre mulheres.
Em Mais Próximo do Terror, a cena inicial não deixa enganar a época em que o filme foi rodado, período em que despontavam os já citados filmes de matança e a figura das garotas finais: a protagonista surge ensanguentada, próxima de uma caminhonete, assustada e destacadamente assumindo um semblante de pânico, ao mesmo tempo que firme, fugindo de uma determinada
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Gerda Nicolson em Mais Próximo do Terror.
ameaça. A pessoa que assiste já sabe que ela é uma sobrevivente, mas a custo de quê?
Apesar de cenas pontuais bem elaboradas na última metade do filme, Mais Próximo do Terror não é, em primeiro lugar, um filme de matança, mas sim uma história emblemática de compo sição de tropos. De forma interessante, o filme fornece algumas resoluções além do que o espe rado, para a época, como, por exemplo, a figura da garota final que assume a própria sexualidade, abandonando o semblante virginal, e a louca da casa que não morre no lugar em que foi confinada ou acusada de insanidade.
Como bem diz o nome em inglês, next of kin é uma expressão que remete à herança por paren tesco. Linda (Jackie Kerin) volta para o interior (não sabe-se de onde) depois da morte da mãe a fim de ver a quantas anda o asilo e casa que acabara de herdar. A protagonista é apresentada desde o princípio como uma pessoa simpática e que se dá bem com quase todos da pequena cidade. A figura da mãe é apresentada da mes ma forma, porém, no processo de luto, Linda vai ler seus diários e anotações e começar a suspeitar
que há algo muito estranho acontecendo na casa. Poderia ser mais um filme de presença maligna se a mãe da protagonista não tivesse um diagnósti co de doença mental, fazendo com que a herança de Linda oscile entre a casa e a loucura.
A figura da “outra” também está presente em Mais Próximo do Terror, só que de forma muito mais física e direta. Há uma disputa familiar que acontece de maneira muito violenta e performática: a ideia era realmente enlouquecer Linda a ponto de que ela não fosse capaz de ser uma herdeira eficiente. Enquanto Sonhos Alucinantes oferece uma disputa de espaço entre o externo e a casa em si (vitoriana, repleta de elementos góticos, mas mais diurna), em Mais Próximo do Terror, a casa é de fato personagem, escura, no meio de um deserto e cheia de ruídos. Boa parte das técnicas narrativas visuais (o uso de travelling que amplia o corredor, como em um sonho) colaboram na construção de que, de fato, há algo de maléfico atuando sobre a casa.
Os problemas dessas duas protagonistas não se resumem mais aos personagens homens como acontecia com os maridos abusadores e golpis
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tas nas representações cinematográficas entre as décadas de 1940 e 1950. Aqui, estão em jogo as regras e os desejos patriarcais que tomam forma, por exemplo, na disputa de propriedade, colo cando as próprias mulheres como rivais. Como se o preço a ser pago pela independência e certa ideia de liberdade tivesse que ser alto o suficiente para que as protagonistas sempre tivessem que seguir solitárias (e loucas), seja em barcos à deriva ou dirigindo por uma rota de fuga.
A figura da louca da casa funciona como espelha mento das protagonistas e suas antagonistas, como teorizam Gilbert e Gubar. Essa outra, seja a vam pira sedutora ou a figura da tia que busca reparação, mesclada com a da mãe nos diários – dizendo que algo de “diabólico” acontece na casa – ajuda a desenvolver a ideia de que tipo de herança cabe às mulheres. Não apenas no campo do parentesco sanguíneo, mas agora de herança feminina, algo que seria próprio na história daquelas que se reconhe cem como mulheres e que é reproduzido por séculos como um padrão facilmente identificado.
Na introdução de Women and Madness (Mulher e loucura, 1972/2005), a psicóloga estadunidense
Phyllis Chesler comenta que, apesar das referên cias constantes feitas sobre mulheres e diagnósticos entre as décadas de 1940 e 1950, o assunto era um tabu e tratado através de leituras superficiais da teoria freudiana adaptada a noções higienistas e pautadas em um biologismo predominante. Por meio desse último ponto, era ensinada à prática clínica que a mãe é a causadora genética de qual quer predisposição neurótica e psicótica. Não conhecemos as mães de Jessica e de Linda, apesar de sabermos a condição desta última, mas ambas estão alinhadas a uma genealogia da representação fílmica, e até mesmo das narrativas antes do cinema, como já mencionado: por exemplo, as esposas inválidas no cinema hollywoodiano dos anos de 1940. Ou seja, personagens que vieram antes e hoje servem como denúncia da repetição dessas construções que continuam conferindo esse lugar a elas, ainda que com alguma roupagem mais moderna.
Tanto Jessica quanto Linda se esforçam para se manterem coerentes – como espectadoras, inclusive, mal conseguimos comprar a ideia de que estão fora de seu juízo –, porém, a narrativa
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† emanuela siqueira
salva a si mesma
aqui, a espectadora salva a si mesma † emanuela siqueira
desenhada pelo roteiro insiste para que fique mos esperando a insanidade ser comprovada como em Suspeita (1941), de Alfred Hitchcock, por exemplo. Essas personagens enlouquecidas não performam mais o papel da outra, daquelas (como Bertha Mason, a origem dessa representação) que causam medo nas protagonistas e que são uma ameaça, como acontecia naquelas clássi cas, na literatura e também nos filmes da década de 1940. Aqui, elas são espelhadas – ora louca e ora protagonista –, o que dá uma falsa ideia de que, como espectadoras, conseguimos entender o que de fato está acontecendo, alguma espécie de progresso em relação ao molde clássico.
Mary Ann Doane, na introdução de The Desi re to Desire (1989) vai dizer, em relação ao filme Rosa Púrpura do Cairo (1985), de Woody Allen, que a crença no par romântico do cinema clássico, que sai da tela para amá-la, só é possível porque cabe à espectadora um grau de ingenuidade. Porém, a própria autora faz análises detalhadas de representação, simbologias e construções que permitem que essa mesma espectadora não queira apenas ser espelhada na tela, mas que se cons truam discussões a partir dela. Livros como, por exemplo, House of Psychotic Women: An Autobiographical Topography of Female Neurosis in Horror and Exploitation Films (2012), da canadense Kier-La Janisse, que pensam algumas possíveis repre sentações da loucura feminina a partir de suas próprias experiências, são resultados dessa perda de inocência da espectadora.
Assim como as protagonistas dos dois filmes, cabe a essa figura que assiste salvar-se a si mesma, mas diferindo na questão de salvar-se e permanecer sozinha. Os diálogos, tropos, representa ções e críticas devem ser colocados na roda. Não devem ser disputados mas sim negociados, vistos e re-vistos para que essas figuras sejam linhas his tóricas e deixem de ser regra. †
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Nenhum teto todo nosso ou expulsando os fantasmas
por Rafaela Marques
Em Um teto todo seu (1929), Virginia Woolf defende uma posição interessante e um tanto vanguardista: mulher, caso você queira escrever – trabalhar em geral – tenha um teto todo seu, busque sua independência financeira. Por mais que o argumento tenha envelhecido mal e muitas críticas possam ser feitas a ele, é interessante pensar, a partir de algumas experiências cinematográficas não muito distantes temporalmente do ensaio em questão, como, mesmo tendo um teto todo seu, a liber dade das mulheres ainda é uma utopia – no pior
sentido do termo. Para tanto, trabalharemos com três filmes: À Meia Luz (Gaslight, George Cukor, 1944); Uma Vida Por Um Fio (Anatole Litvak, 1948) e Revelação (Robert Zemeckis, 2000). Colocado de outra forma, podemos nos perguntar de que maneira essa possibilidade de libertação aludida pela autora – ainda que branca, burguesa, euro peia – é subvertida e reapropriada pelo sistema patriarcal, se não interditando, pelo menos difi cultando consideravelmente qualquer tentativa de autonomia efetiva das mulheres.
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Barbara Stanwyck em Uma Vida Por Um Fio.
A primeira imagem que temos de Ingrid Berg man em À Meia Luz é de um abandono de sua casa forçado pelas circunstâncias cujos detalhes som brios só descobriremos depois. Atrás da protagonista, as luzes se apagam e a porta da casa na 9 Thorton Square se fecha. Naquele instante sabemos apenas que sua tia, Alice Alquist – única família que ela já teve –, foi brutalmente assassinada e que Paula (Bergman) vai para a Itália com a missão de “esquecer tudo o que acontecera ali”, tentar levar uma vida feliz e talvez seguir os passos brilhantes de sua tia, grande cantora de ópera. Esses primei ros momentos introduzem o que depois será, sob os nossos olhos, uma completa inversão do sonho de liberdade de Woolf. Paula, em dado momen to, afirma de forma categórica: “sinto pavor desta casa!”. Podemos completar: os fantasmas que a assombram e aterrorizam, causando tanto pavor, se manifestam, principalmente, no teto de seu quarto que dá para um sótão lacrado, cujo acesso é impedido desde seu retorno para essa casa cheia de memórias.
Esse retorno aparentemente difícil de explicar é friamente arquitetado pelo marido de Paula, Gre gory Anton (Charles Boyer). Pianista medíocre, orador contundente, Gregory se vale de todo tipo de artimanha para primeiro casar-se com nossa protagonista, apenas duas semanas após o início da relação, e depois convencê-la a voltar à “casa em frente a uma praça em Londres” com a qual ele sonhou por toda sua vida. “Por acaso”, trata-se da casa da qual Paula é proprietária, herdada de sua tia, Alice Alquist, estrangulada anos antes ali dentro, cujo corpo foi descoberto justamente por ela ainda muito jovem.
Nossa heroína foi obrigada a abandonar seu antigo lar após esse crime brutal, cometido contra a pessoa mais importante de sua vida. Os motivos do crime, porém, permanecem des conhecidos tanto por ela quanto pela polícia. Paula também é forçada, já adulta, a abandonar
sua iniciante carreira de cantora para casar-se com Gregory. No caso do primeiro abandono, o horror funciona como o agente que a coage; no segundo, esse papel é desempenhado pelo amor. Gregory, com sua eloquência, assume, em um terceiro momento, o lugar da síntese nesse processo dialético. Ele convence sua bela esposa que voltar para aquela casa é uma boa ideia, e inclusive consegue fazê-la se animar com essa possibilidade até então aterrorizante. Já sabemos que muito rápido esse ânimo se desfaz, mais precisamente quando ambos, sob o olhar do imponente retrato de Alice pendurado na parede, folheiam seu antigo livro de partituras e encontram uma carta perturbadora assinada por um certo Sergis Bauer. Gregory se altera, afirma que Paula deve esquecer a tia para que os dois sejam felizes. A partir daquele momento, o horror volta a se apossar dela e de sua relação com a casa.
Mote do female gothic, a questão “o marido é mesmo quem ele parece ser?” (Mary Ann Doane) se impõe. A partir dessa investigação, poderemos compreender como e por que ter um teto todo seu não é o suficiente para que a mulher esteja a salvo. No caso de À Meia Luz, ter um teto todo seu catalisou uma relação doentia que representou a ruína de Paula nos vários meses em que ela esteve prisioneira dos abusos e gaslitghtings de seu marido. Isso tudo dentro de sua casa, do ambiente que deveria ser seu porto seguro, agora usurpado por intenções mesquinhas e violentas do homem com quem, ingenuamente, Paula escolheu se casar.
Ainda pensando se “o marido é mesmo quem parece ser”, nem o Gregory de Boyer é apenas um pianista medíocre, nem o Norman Spencer de Harrison Ford em Revelação é apenas um geneti cista famoso e renomado – esse que, curiosamente, em sua primeira aparição, parafraseia outro célebre Norman ao se referir a um vizinho: “He wouldn’t hurt a fly”. Em Revelação, vemos uma farofa de gêneros cinematográficos, que tenta,
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justamente, responder à questão sobre o marido – aqui, diferentemente de À Meia Luz, a enquete será levada a cabo pela esposa, pela mulher pro tagonista, sem a ajuda de detetives ou quaisquer outras figuras masculinas.
A casa de Norman e Claire Spencer (Michele Pfeiffer) é também algo pavoroso, seja pela reforma interminável que eles tiveram que fazer para mudar-se, seja pelas memórias escondidas ali que se materializam muitas vezes em forma de assom brações. Só que dessa vez elas são bem transcendentes – ao contrário dos fantasmas do sótão de Paula Alquist, que nada mais eram do que a ação de seu marido, ou seja, imanentes por inteiro. Descobrimos agora que Gregory, então, além de pianis ta medíocre, é também um fantasma, mas de um tipo todo particular: ele possui uma materialidade ignorada por sua esposa, alvo do assombramento. Ou seja, Gregory só é um fantasma para aquela que está sendo assombrada e, por algum tempo, para o espectador; ele nunca pretendeu assombrar sua esposa, pois suas motivações, como veremos, são bem mais vis e pequenas.
Se Gregory é um fantasma imanente povoan do aquela casa na 9 Thorton Square, seria Harrison Ford o fantasma que aparece para Claire com uma insistência ameaçadora? Dificilmente. Por inúmeras vezes nos deparamos, através da mediação dos olhos da Sra. Spencer, com uma figura moribunda que aparece principalmente em reflexos – espelhos ou espelhos d’água. Musi cista brilhante, mãe de uma garotinha, viúva: essa era Claire antes de se casar com Norman apenas três meses após conhecê-lo. O casamento relâm pago, o amor, obrigou-a, como já havia feito com Paula, a abandonar uma carreira brilhante e a se assentar onde quer que o marido estivesse – Boston por alguns anos e, mais recentemente, a casa herdada do sogro em Vermont. O que sobra para Pfeiffer, nesse caso, é sua curiosidade e vontade de compreender de onde vêm aquelas assombra
ções e, mais profundamente, se ela está ou não louca, já que “assombrações não existem”.
É interessante perceber o quanto esse movi mento de busca, compreensão, investigação, existente também em Uma Vida Por Um Fio, molda a maneira como os filmes se desenrolam. Barbara Stanwyck, após ouvir uma ligação cruzada com um conteúdo macabro, se vê jogada em um vórtice intenso de rememorações (flashbacks), ligações telefônicas e tentativas de associações intelectu
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Ingrid Bergman em À Meia Luz; Michelle Pfeiffer em Revelação; e Barbara Stanwyck em Uma Vida Por Um FIo.
ais, que trazem ao filme um movimento interes santíssimo apesar da imobilidade auto infligida da personagem principal. Sua doença, seu corpo que consegue só com muita dificuldade alcançar um pedaço de papel a alguns metros de distân cia, funcionam ali como os fantasmas nos outros dois filmes. O fato de ser uma inválida, neste caso, representa a ruína última da personagem que, dentre as três, é a única que não é capaz de se salvar dos fantasmas. Ainda assim, é ela que vemos na tela, é a atuação brilhante de Stanwyck, que, interpretando uma enferma, nos prende por noventa minutos de um female gothic canônico e desconcertante.
Nos três filmes, malgrado as interferências e violências masculinas, são as mulheres as responsáveis pela ação, pelo olhar e pela investigação. É a partir do ponto de vista delas que compre-
endemos os limites de suas supostas liberdades. Stanwyck e Ingrid Bergman escolhem seus maridos por amor, são mulheres de posses, não dependem de ninguém, não precisam se submeter a homem nenhum, possuem um teto todo delas. Pfeiffer, mesmo sendo mãe solo e viúva – uma mulher rodada, no vocabulário mais chulo e infelizmente ainda corriqueiro – consegue fisgar um ótimo par tido, manter sua autonomia financeira, e ter, ela também, um teto para chamar de seu.
Não obstante, toda essa suposta autonomia é colocada em questão e constantemente em perigo pelas inúmeras assombrações com as quais as protagonistas são obrigadas a lidar. O fantasma imanente de Gregory, ou Sergis Bauer, assombra sua esposa de forma consciente – todos os episódios de gaslighting, os flertes com a empregada. Ade mais, ele a assombra também, talvez, inconscien-
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Charles Boyer e Ingrid Bergman em À Meia Luz.
temente: é possível que Bauer não saiba sobre os efeitos causados sob o teto da casa por suas idas ao sótão – o gás oscilante, os barulhos. Independente disso, consciente ou não, a assombração imanente de Sergis surte o efeito desejado: Paula quase acredita em uma loucura que, paradoxalmente, vem de fora, lhe é atribuída pelo marido, e toma corpo no pavor acarretado a ela pela casa.
No entanto, essas ignóbeis tentativas de anu lamento de sua subjetividade não se impõem de forma categórica: a personagem resiste apesar das dificuldades. Em uma bela cena, nos deparamos com a recusa de Paula em agradar seu marido Sergis/Gregory, um apaixonado por jóias, como ele mesmo nos conta no início do filme. No contexto de uma recepção organizada por uma antiga amiga de Alice Alquist e à qual Paula insiste bravamente em comparecer, vemos um plano aberto onde estão quatro mulheres desconhecidas e a protagonista no meio. Todas, à exceção de Bergman, usam colares exuberantes, cheios de pedras preciosas (motivo do assassinato da tia de Paula anos antes). Essa recusa da personagem, que pode passar des percebida ao espectador desatento, representa, a nosso ver, um ponto capital. Mesmo com todos os esforços do marido, mesmo com a usurpação de seu lar, de sua sanidade, a tentativa de alienação
de seu próprio corpo, ela ainda consegue resistir e usar, naquela ocasião, apenas uma gargantilha simples com um pingente de estrela, talvez remetendo às incansáveis tentativas que ela empreende para manter sua razão, ou, em um vocabulário moderno, suas luzes.
A aliança, no mínimo curiosa, entre Pfeiffer e a aparição, o fantasma de Madison – jovem brilhante que se interessou mortalmente pelo professor mais velho e soberbo, e cujo corpo foi desovado por Norman em um lago (à la Psicose) – representa, de maneira ambígua, a prisão de Claire e sua salvação naquela realidade mórbida. Não fosse pelas ajudas transcendentes, a protagonista de Revelação teria sucumbido aos ímpetos assassinos de seu marido que, agora sabemos, não era apenas um geneticista famoso, mas um criminoso calculista e medonho.
Há algo positivo no teto de Pfeiffer, justamente o pedido de ajuda de Madison que ela conseguiu atender e, principalmente, a restituição de uma dignidade àquele corpo morto já decomposto que nos aparece no final do filme como belo e reluzente após a investigação feita por Claire.
Possível referência (ou não) para Tarantino e sua Beatrix Kiddo, a luta de Pfeiffer pela vida
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Michelle Pfeiffer em Revelação e Uma Thurman em Kill Bill Vol. 1.
enquanto está com o corpo imobilizado pelo halotano nos indica, novamente, uma fissura no sistema opressor, bem como todo o suporte que lhe é dado pelo fantasma de Madison. Apesar de ter tentado encerrar sua esposa em uma casa mal -assombrada e, em um segundo momento, no seu corpo ainda consciente, mas sem capacidade de se mover, Norman Spencer é vencido pela união insólita entre Claire e sua amante assassinada.
Talvez seja esse suporte o que falta a Stanwy ck em sua odisseia de desilusões. Mesmo com a ajuda indireta de Sally – antiga colega de quarto e ex-namorada de seu marido – Stanwyck não é capaz de se libertar da prisão de sua doença. Cabe relembrar que, quando se vê realmente ameaçada, a protagonista tenta falar com seu pai, o cúmplice de seu marido ou ainda este último, homens que, como sempre, estão imersos em seus próprios problemas e não são capazes de ajudá-la. Faltou à protagonista uma rede de apoio, alguém que a levasse a sério, o que dificilmente encontramos em homens. Stanwyck perdeu a mãe para uma doença cardíaca, daí sua neurose e sua crença que seu destino seria o mesmo. Finalmente o que vemos no filme de 1948 é o esforço imenso de uma mulher só que, por mais genial e brilhante que seja, não consegue se salvar talvez por não ter ninguém a quem recorrer. †
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Rebecca, um cinema inesquecível?
por Luiz Fernando Coutinho
Se o female gothic, enquanto subgênero trans-histórico, não se restringiu ao período clássico hollywoodiano, poderia sua retomada a partir dos anos 1990 ser desvinculada de um trabalho com as formas precursoras? Em outras palavras, pode riam esses filmes fazer tábula rasa das obras que, em certa medida, lhes antecederam?
Rebecca (Alfred Hitchcock, 1940), a pedra angular desses filmes assombrados pelas asperezas mortais do casamento heterossexual, narrava a trajetória de uma personagem feminina atormentada pela possibilidade de repetir o destino da mulher que certo dia ocupou seu lugar. O percurso de Joan Fontaine, portanto, consistia em atravessar as agruras da repetição, dos ecos fantasmáticos, da reverberação de um passado insistente. Talvez o que esses novos female gothic nos estimulam a pensar, afinal, seja que sua inquietação, como a de Fontaine, é repetir – às
vezes inconscientemente – um destino traçado em obras passadas, cujas características formais e nar rativas agem como um fantasma sobre os filmes. Se a História do cinema é a Rebecca desses filmes, sua memória inesquecível, é porque ela ocupa o lugar desses no passado e traça as repetições aparentemente inescapáveis de certas convenções.
No início dos anos 1990, com Voltar a Morrer, Kenneth Branagh retoma os códigos do female gothic para constatar as torções estilísticas, os desvios e as deformações a que foram submetidos his toricamente. A protagonista com amnésia (Emma Thompson) vê clarões de sua vida passada, onde seu duplo, interpretado pela mesma atriz, teria sido assassinado pelo marido (Branagh). Supõe-se que o homem que lhe presta ajuda no tempo presente (Branagh novamente) seja a encarnação deste marido: ele repetirá o gesto de sua encarnação passada?
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Emma Thompson em Voltar a Morrer.
Submetidos a sessões de hipnose, as personagens retornam ao tempo passado para descobrir o segredo recôndito que orbita em torno da personagem feminina. O flashback é um female gothic de fatura “clássica” – em preto e branco, apostando na convenção dramática de um marido ciumento que encurrala a esposa no espaço de uma mansão de traços góticos. Branagh não se interessa, felizmente, em restituir fielmente um estilo à sua manifestação contingencial e histórica, ou seja, em “emular” uma forma clássica, mas em filmá-la como uma memó ria ou reminiscência longínqua e, no caso, idealizada. Neste caso, não só as personagens recordam suas vidas passadas, mas o próprio dispositivo construído pelo cineasta relembra as imagens de certo cine ma que o inspirou. São muitos os filmes e cineastas recordados pelo diretor, especialmente Hitchcock, em cuja obra Branagh vai buscar alguns elemen tos de seu filme: a tesoura de Disque M Para Matar (1954), a festa à fantasia de Ladrão de Casaca (1955), a figura maternal de Psicose (1960), entre outros.
Em Voltar a Morrer, passado e presente dialo gam para sugerir a herança insidiosa do primeiro sobre o segundo: o presente influenciado pelo passado não é somente o tema do filme (poderão as personagens escapar do ciclo entrevisto nas sessões de hipnose?), mas uma equação estruturante
da forma fílmica, visto que esta acusa a presença de um fantasma rondando suas imediações. Este fantasma é até mesmo entrevisto em uma tela de televisão: vemos, em dado momento, uma das personagens assistindo Uma Vida Por Um Fio (Anatole Litvak, 1948), female gothic canônico estrelado por Barbara Stanwyck. Não é à toa que o vilão do filme de Branagh seja uma figura inspirada em Norman Bates, personagem-modelo dessa dinâmica em que o passado reivindica sua influência ectoplasmática sobre os corpos do presente.
Apesar de apaziguada, a herança de Hitchcock, por outro lado, não é retilínea. No clímax do fil me, o virtuosismo operático, a mise en scène em câmera lenta e o desbunde dionisíaco acionam menos a influência hitchcockiana que de seu discípulo maior: nesta orgia de corpos desacelerados e rostos expressionistas, Branagh dialoga antes com De Palma, confessando a construção em torvelinho do filme – espiralar, labiríntica, assaltada pelos diferentes herdeiros do fantasma original. É isto que constitui o aspecto heterogêneo, múlti plo, tateante e por vezes esquizo do filme: retornar ao female gothic hoje é a consciência de que o estilo gestado em Rebecca ou Suspeita (1941) já foi desapropriado, desviado e revisto pelos modernos, que precisam ser incluídos na conta.
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Michelle Pfeiffer em Revelação.
rebecca, um cinema inesquecível? † luiz fernando coutinho
Muito menos heterogêneo é Revelação (2000). No filme de Robert Zemeckis, o suposto bom marido (Harrison Ford) é, na verdade, um assas sino: espinha dorsal do subgênero de filmes que tentamos circunscrever, portanto. O fantasma de uma mulher, um corpo nu refletido nos espelhos e nos reflexos da água, aparece para a esposa (Michelle Pfeiffer) e a conduz a uma investigação sobre a verdade acerca do homem. Fantasma de fato ou retorno do recalcado? Assombração ou trabalho de elaboração do inconsciente?
Duas (entre outras) são as possibilidades, neste fil me, de escapar da dominação masculina e, especifi camente, do ambiente doméstico. As janelas, por um lado, são o elemento desencadeador da investigação da protagonista (Pfeiffer reivindica sua posição de agente do olhar, através da qual poderá acionar sua busca). Já as portas, que nos female gothic canônicos atuavam como “representação metafórica do abrir e fechar da mente, repressão e revelação” (Mary Ann Doane), estão sempre abertas para a protagonista. O fantasma da amante não permite que as portas se fechem, bela imagem de uma aliança feminina que quer prevenir o recalque da verdade.
Absolutamente consciente de sua posteridade, o filme retrabalha temas e motivos hitchcockianos: do início que reporta a Janela Indiscreta (1954),
passamos às cenas de banheiro que remetem a Psicose e aterrissamos, por último, em Rebecca. O título original do filme oferece a pista ideal: What Lies Beneath, ou o que se esconde sob as aparências. Não se trata, novamente, apenas do que se dissimula na aparência polida do marido, mas de uma substância referencial que está por trás das imagens do filme, definindo-as como um rosto que impregna suas feições no tecido de um sudário. Em Rebecca, o barco naufragado pelo marido, embarcando a esposa assassinada, não coincidentemente se chamava Je Reviens (“Eu Voltarei”).
No filme de Zemeckis, a amante assassinada, o duplo de Pfeiffer, é afundada junto ao seu carro, mas seu fantasma regressa. Esse “retorno do recalca do”, submerso no fundo das águas como o carro de Marion Crane em Psicose, constitui a tessitura mes ma de Revelação: as imagens e os motivos de outros filmes voltam para assombrar o cineasta e as perso nagens. O filme é um compósito de influências.
A Casa Sombria (2020), de David Bruckner, é um verdadeiro inventário de princípios, tropos e con venções do female gothic. Rebecca Hall interpreta uma professora em processo de luto pelo mari do suicida, responsável por construir a casa onde viviam. Estão lá os diferentes fantasmas deste filão de filmes: a casa cujas janelas, portas e escadas são
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A Casa Sombria.
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revestidas de valor simbólico; a paranóia feminina; a desconfiança em relação ao marido; a investigação da protagonista; o ambiente doméstico investi do de unheimlich; os duplos femininos, a ansiedade sexual convertida em suspense, etc. Se o marido sádico, figura recorrente e deflagradora, está morto de princípio, como o filme articula suas relações com o subgênero? No caso, e assim como em Reve lação, uma entidade retorna para assombrar a protagonista, ou para impeli-la em direção à verdade sobre o marido, e neste movimento assume mais francamente o trabalho com o horror1. O que há de mais interessante no filme de Bruckner é a forma como a paranóia feminina é transubstanciada em uma deformação do espaço, isto é, em uma crise da visão: quando em casa, a protagonista começa a perceber formas humanas e silhuetas na maneira como as linhas das colunas e dos móveis se encontram, denunciando que o problema central do filme, no fundo, é aquele da percepção – percepção sobre o marido, em primeiro lugar, e depois sobre o próprio conteúdo psíquico recalcado (as ansiedades da personagem feminina).
Diferente do que acontecia em Revelação, o fan tasma que retorna para assombrar a protagonista não é benigno. Trata-se de uma entidade demoníaca que, através do marido, reclamava o direito sobre a vida de Hall. Assim, os duplos, as amantes, as mulheres que guardavam uma semelhança mór bida com a protagonista e que são assassinadas pelo homem, revelam-se as trapaças armadas por ele para ludibriar a força diabólica. Há uma ambiguidade excitante nessa resolução final: se por um lado o filme se desobriga a expor as contradições sociais e desloca a violência para o âmbito do sobrenatural, por outro desdobra-se uma violência segunda,
1 Na medida em que os female gothic sempre foram filmes sobre o horror no espaço doméstico, Dana William Als ton (2018) identifica uma inflexão lógica, nos anos 1960, na direção do gênero, em filmes como O Bebê de Rosemary (Rosemary's Baby, Roman Polanski, 1968) e A Teia de Renda Negra (Midnight Lace, David Miller, 1960).
material, social, que o filme, apesar de não destacar, apresenta. Para o marido, é preferível matar três, quatro, cinco mulheres antes de pensar em cometer suicídio. Se a questão é preservar a vida da esposa, seu “gesto romântico” equivale a um gesto homici da; ou seja, adiar sua morte é também uma subtração de vida. O filme encontra, neste movimento, o amálgama tortuoso entre casamento e assassinato que os female gothic tendem a representar, mesmo que não seja a esposa a vítima.
Por fim, Dormindo com o Inimigo (1991), dirigido por Joseph Ruben, demonstra que o retorno às for mas passadas pode ser conservador ou mesmo reacionário. Na trama, a personagem interpretada por Julia Roberts simula a própria morte para fugir do marido abusador, figura bizarra que gosta de transar ouvindo o quinto movimento da Sinfonia Fantástica de Berlioz, mais conhecida por ser o tema musical de O Iluminado (um filme de gaslighting?). A protagonis ta foge, atravessa o país, compra uma casa nova em Iowa, apaixona-se por um professor de teatro, mas o fantasma do marido não deixa de assombrá-la.
O curioso, neste caso, é que ela não teme somente o retorno do marido: o que a atemoriza, em última instância, é o fantasma das convenções do female gothic. Como A Casa Sombria, o filme tem iní cio em um cenário dramático onde geralmente os filmes do subgênero se encerram (a separação física ou simbólica do marido). Agora que a personagem fugiu, perguntamo-nos: onde entra o female gothic? Ele surge, no caso, na progressão narrativa do fil me: é ela quem volta a dispor, de certa forma, as violências que fornecem suas bases convencionais. Será preciso, portanto, encontrar os caminhos para novamente constranger, coagir e vitimar a mulher. Um dos preços a pagar é absolutamente indicativo: para que o marido consiga rastrear a protagonista, todas as personagens femininas à sua volta são transformadas em marionetes da ficção, em títeres que a narrativa esvazia na intenção de servir aos seus propósitos mais incômodos. A personagem
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feminina, que nos melhores exemplares góticos atuava como agente do olhar e como investigadora dos mistérios inauditos, é sacrificada: é o homem e somente ele, neste caso, quem detém todo o poder da ficção, dobrando a narrativa em seu favor (não surpreende, neste sentido, que a mulher seja salva, no final, pelo professor de teatro).
Uma última nota. Em Freud, o principal sintoma do paranóico é a impressão de estar sendo observado. Em certo sentido, o que essas personagens femininas dos female gothic (clássicos ou modernos) pressentem é que aquilo que está a observá-las é o próprio mecanismo do cinema, que articula seus componentes imagéticos e sonoros para observar e agir sobre o universo fílmico. Quando Charles Boyer manipula as luzes da casa onde mora Ingrid Bergman em À Meia Luz (1944), não é somente o ator ou o personagem quem o faz: é também Cukor e a linguagem do cinema. Quando Rebecca Hall escuta uma voz acusmática, indistinta e ameaçado ra, pousar sobre sua escuta, ou quando a sinfonia de Berlioz ecoa nos cômodos da casa nova de Julia Roberts, é o próprio som fílmico que funciona, neste caso, como elemento de assédio, acossando as
personagens. Esta dialética entre a premissa narra tiva e a linguagem cinematográfica está na base do subgênero, mas isto Mary Ann Doane já havia per cebido há mais de 30 anos: “(...) é o cinema mesmo, pela sua organização de imagem e som, que ataca a mulher, se tornando a máquina de seu tormento”.
Em 2014, um filme se apropriou e retrabalhou as convenções do female gothic, não para voltar a encurralar a mulher, mas para sitiar e vitimar um homem. Não seria a primeira vez que um perso nagem masculino é imolado simbolicamente pela ação do gaslighting: o próprio Hitchcock já o havia feito em Intriga Internacional. Na medida em que, historicamente, esses filmes encenaram a dominação masculina enquanto esta se confundia com o próprio aparato cinematográfico, acuando as personagens femininas no interior da ficção e da violência, o gesto confrontativo, neste caso, não é a destruição do aparato ou do mecanismo que o sustenta, mas sua inversão: trata-se de investir esse maquinismo engenhoso contra aqueles que o fundaram. Este filme, que funciona como o con tracampo exemplar de Dormindo com o Inimigo, chama-se Garota Exemplar (David Fincher, 2014). †
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Julia Roberts e Patrick Bergin em Dormindo com o Inimigo.
Fábulas de tragédias reais
O som de abertura da Netflix sempre bateu nos meus ouvidos como uma porta se fechando. Uma porta ameaçadora, perigosa, sedutora, que manteria o espectador trancado em casa. Essa mórbida primeira impressão ganhou corpo quando o serviço de streaming (e produtora de conteúdos) cresceu com o coronavírus e caiu com a vacina ção. Uma metáfora sonora em franca oposição à "janela aberta para o mundo" prometida pelo cinema. A forma como esse som foi produzido, contudo, enriquece ainda mais a imagem: o designer de som Lon Bender gravou uma aliança de casamento batendo num armário de madeira. "Ta-duuum..." e lá se foi mais uma esposa do Barba Azul. Segundo testes de audiência esse som evocava as ideias de "expectativa", "tensão" e, curiosamente, "cinema". Mas por quê? Talvez a história recente nos ajude a entender.
Na noite de 16 de março de 2020, o presidente da França, Emmanuel Macron, afirmou em seu pronunciamento oficial: "Estamos em guerra". Aquela noite marcou o início da política de confi namento no seu país. No mundo inteiro, milhões de pessoas corriam para os abrigos dos streamings enquanto as denúncias de casos de violência doméstica cresciam vertiginosamente. Tudo isso lembra uma outra guerra mundial, a segunda, e a consolidação de uma outra indústria do entretenimento, a Hollywood dos estúdios. Nessa época, nos Estados Unidos, enquanto os maridos lutavam nos fronts ou voltavam para casa traumatizados, as esposas tocavam a cadeia produtiva do país e ainda levavam, no fim do dia, as crianças para o cinema. O "film" da semana, muitas vezes, era "noir". Era a época do female gothic, um subgênero que floresce neste contexto, mas que permanece
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Sobre o female gothic contemporâneo
por Miguel Haoni
Lily James em Rebecca
popular nos períodos seguintes. Entretanto, é jus tamente no momento da guerra contra o coronavírus que esta onda atinge o seu segundo pico. Mas afinal, de que forma filmes como Devorar (Carlo Mirabella-Davis, 2020), O Homem Invisível (Leigh Whannell, 2020), Rebecca - A Mulher Inesquecível (Ben Wheatley, 2020), A Casa Sombria (David Bruckner, 2021) ou Spencer (Pablo Larraín, 2021) nos falam sobre a vida e a arte nos nossos dias?
Não há lugar como nosso lar
No female gothic clássico a casa é um personagem com nome próprio, um monstro arquitetônico que prolonga o controle psíquico dos proprietários. Mansão antiga, vitoriana, assombrada, foi na Manderley de Rebecca (Alfred Hitchcock, 1940) que o subgênero depositou a sua pedra fundamen tal. O remake da Netflix, no esforço de recontar essa história para as novas gerações, não incendeia o original, ele o explode. Através de uma monta gem hipertrofiada, que multiplica ao infinito a
fragmentação dos planos, entramos numa Man derley sem planta baixa, matéria nem concretude. Sem teto, sem nada. O que o original construía na extensão do plano, na mise en scène, numa duração vaporosa, numa suspensão da gravidade, o remake transforma em signo de leitura clara, insistente. Tudo adquire ali um peso simbólico esmagador: a casa é duas vezes maior, com o dobro de serviçais e de opressão. Não existe no filme um empregado que não olhe com desprezo para a nova Sra. De Winters (Lily James), uma empregada que não passe por ela rindo ou cochichando. Tudo está trancado em torno dela. Em determinado momento, por exemplo, Maxim diz à esposa que todo casamento tem seus segredos e a montagem insere uma porta fechada.
Mais à frente, a partir da confissão do marido, ela assume outra atitude, a da investigadora, e seu primeiríssimo gesto é o de abrir as portas.
Rebecca tentou preservar a velha casa do female gothic, mas o gesto mais visível nesses filmes é a
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fábulas de tragédias reais † miguel haoni
Kristen Stewart em Spencer
atualização desse motivo, substituindo as mansões góticas por modernas instalações, casas de vidro e labirintos ultratecnológicos da arquitetura contemporânea. Foi o caso em O Homem Invisível, sucesso da produtora Blumhouse (a casa de Jason Blum, um dos responsáveis pela onda atual de interesse pelo cinema de horror nos Estados Unidos). Enésima versão cinematográfica da clássica história do cientista louco (desta vez narrada do ponto de vista da esposa, Elisabeth Moss), o filme constrói sua casa a partir de duas premiadas mansões na Austrália: a Pebble Cove Farm do lado de dentro e a Headland House do lado de fora. Duas casas com nomes próprios. Na costura que o filme lhes oferece, elas ocupam a função dramática de prisão invisível para uma Rapunzel moderna. A casa é, ela inteira, o olho do observador: substituindo a brigada de serviçais que tudo viam e reportavam aos proprietá rios por câmeras de vigilância, sensores de movimento, coleiras eletrônicas, muros e grades. No filme, porém, a casa só aparece em três cenas, no começo, no meio e no fim, mas graças ao traje de invisibilidade, herdado do filme B america no, a onipresença do proprietário é garantida: seu domínio se estende para além dos muros,
penetra qualquer lugar. É aqui que a casa "normal" dos amigos vira a promessa frustrada de um porto seguro. A paranóia induzida nasce aqui do apagamento das fronteiras. Em A Casa Sombria, filme que acompanha a descoberta de uma viúva (Rebecca Hall) dos mistérios que cercam o suicídio de seu marido, a réplica do outro lado do lago é o duplo demoníaco, umbral, da casa principal. Em Spencer, que ficcionaliza as agruras que a princesa Diana (Kristen Stewart) passou durante o feriado de Natal de 1991, a velha propriedade de seu pai é encoberta pela sombra da casa de campo da família real. Aqui a casa abandonada é um corpo vampirizado, uma "casca vazia", amea çadora. Quando Diana volta a essa casa, é como se penetrasse numa descrição de Daphne du Maurier: "Então uma nuvem passou sobre a lua, como uma mão escura através de um rosto. Olhei novamente para uma casca vazia, sem os sussur ros do passado sobre suas paredes observadoras" (Rebecca, 1938). Essas "segundas casas" prolongam as correntes das "primeiras", dão a prova para as protagonistas de que o mundo de fora é perigoso, que é preciso se proteger dele, na resignação eterna do matrimônio.
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Elisabeth Moss em O Homem Invisível
Espelho, espelho meu
Devorar se desenrola em outra prisão de vidro. Ao mostrar a ruína psicológica de Hunter (Haley Bennett), a esposa oprimida, o filme exagera o esquema expositivo. A mansão ali é aquecida e iluminada por uma televisão, ferramenta tradicional na domesticação das donas de casa. Ela apresenta a caricatura de uma programação idiotizante, numa vulgarização da fatídica tv de Douglas Sirk, que já havia desferido em Tudo o que o céu permite (1955) um comentário suficientemente mordaz sobre o eletrodoméstico apagador de identidades. O retorno ao melodrama flamboyant aparece tam bém numa releitura da moda feminina dos anos 50, nas roupas muito menos práticas e muito mais sufocantes que as das décadas anteriores, mas tam bém através de rasgos de cores berrantes no meio de um mundo metálico, uma casa de bonecas num filme em preto e branco. A televisão-espelho de Jane Wyman é mais uma pedra no muro invisível que pretende apartar a mulher do mundo. Essa alienação altera a compreensão que as mulheres podem ter sobre si mesmas, deformando as ten sões entre o mundo de fora e o mundo de dentro.
Os female gothic começam onde terminam os contos de fadas, quando a Cinderela se muda para
o castelo do Príncipe, para viver o sonho de uma vida de amor e riqueza ao lado do homem que lhe dará um nome. Porém, como diz Hélène Frappat, o romantismo é um golpe e no primeiro beijo este príncipe se transformará em sapo. Rebecca acom panha uma mulher sem nome esmagada por uma mulher sem imagem. No didatismo desgovernado do remake, essa presença, às vezes marcada apenas pela inicial "R", é insuportável. A personagem sem nome é também uma personagem sem identidade nem história, uma página nova a ser preenchida a partir do casamento. Uma bela adormecida. Por isso é tão sensível, no momento do seu despertar, que ela descubra que o seu marido, ausente e tirano, também é um ator no teatro das aparências: foi graças à preservação deste teatro que ele precisou manter um casamento que, segundo a sua moral hipócrita, era destrutivo. E é na hora que ele mostra o seu lado frágil que a esposa assume sua identidade.
Que dentes grandes você tem Spencer abre com a epígrafe "Uma fábula de uma tragédia real". Se nos outros filmes a história da Cinderela era uma alegoria, aqui ela encontra a sua encarnação na vida da Princesa Diana, a ple
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Elizabeth Marvel, Haley Bennett e Austin Stowell em Devorar
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beia que se casou com o príncipe-sapo. A fotogra fia leitosa, a simetria dos quadros, o deslizamento frio dos planos, são as armas de um cinema que expõe demais o seu arsenal artístico, ao colocar sob a lupa a pequena engrenagem cuja função exclusiva é a de reproduzir, perpetuar uma dinastia. Do outro lado desse espelho o pecado original de Rebecca foi ter um desejo sexual sem função social. O remake revela que a sua famosa doença terminal era na verdade um câncer nos ovários: ela nunca poderia deixar um herdeiro para a casa De Winter, crime a ser punido com a morte no tribu nal ideológico dos roteiros hollywoodianos. Dia na, ao brincar com os filhos na véspera de Natal, ouve a seguinte pergunta: "Você quer ser rainha?", à qual ela responde, "Serei a mãe de vocês. Esse é o meu trabalho". No fim do filme, no drive-thru, ela faz um pedido com o seu nome de solteira, Spencer, não usando nenhum dos nomes que poderiam lhe identificar. Um nome anônimo, uma senha que lhe permite voltar, no curto intervalo de um hambúrguer com fritas e refrigerante, à vida ante rior ao castelo kafkiano que habita, a um tempo em que ela era ela mesma. Escapar da máquina doentia e voltar a ser uma mulher normal num mundo normal. Devorar também termina assim, com Hunter abandonando a armadura esparti lhada de esposa ideal das revistas americanas dos anos 50 e aparecendo de moletom e cabelo preso dentro de um shopping center, um pouco antes de abortar no banheiro. Um boneco maldito, um produto quebrado.
A esposa no female gothic morre pela boca: seja através do leite em Suspeita (Alfred Hitchcock, 1941) e Inspiração Trágica (Peter Godfrey, 1947), do chocolate quente em Sonha, Meu Amor (Douglas Sirk, 1948), do café em Interlúdio (Alfred Hitchcock, 1948), do suco em Terrível Suspeita (Robert Wise, 1952) ou de todas as refeições sistematica mente recusadas em Águas Tenebrosas (André De Toth, 1944).
Não existe um copo d'água que o marido pegue para a esposa na cozinha que seja inocente, que não esteja envenenado pela ameaça. Tudo isso acabou produzindo nessas heroínas diversos distúrbios alimentares, explorados nos filmes atu ais nas suas formas limite: anorexia e bulimia. O conflito principal em Spencer começa com a recu sa de Diana à comida. Tendo à sua disposição um verdadeiro arsenal da mais alta gastronomia (que, inclusive, chega na cena de abertura como uma campanha de guerra), Diana sonha com o fast-food. Tudo na Sandringham House é vigiado: quando, no meio da noite, ela entra no frigorífico, acaba não pegando nada para comer devido à presença implacável do senescal. No meio de um dos seus delírios, porém, ela come as pérolas do colar que Charles lhe deu, numa das cenas mais abertamente inspiradas no filme de horror. Tal qual a coleira eletrônica que produz um limite imaginário para o cachorro de O Homem Invisível, esse colar precisa ser quebrado.
Cortem a cabeça
A Hunter de Devorar é uma predadora. Seu desejo sexual, como o de Rebecca, desperta o medo do marido. Esse desejo encontra sua vazão na com pulsão bulímica. O filme inverte o princípio do envenenamento no female gothic clássico: a personagem engole objetos perigosos como forma inconsciente de escapar da sua gaiola dourada. É como se ela escondesse as chaves que lhe garanti riam a fuga, através do aborto, fazendo com que o círculo ao qual está destinada - o da maternidade - não se feche sobre ela. A mulher no female gothic é o veículo do filho - homem, herdeiro de um nome, uma empresa, um reino. Para esses "cor pos sagrados", a autodestruição é um ataque ao sistema. Em O Homem Invisível, quando Cecília quer esfaquear o ex-marido, ela se prepara para cortar os próprios pulsos e espera ele impedir o seu gesto, e desta forma entregar sua localização
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numa mise en scène dirigida por ela. Em Spencer, Diana, além de não comer, insiste em se expor aos fotógrafos posicionados a quilômetros da sua janela enquanto troca de roupas, delira cortan do o braço com um alicate, entra numa casa em ruínas, penetra um campo de tiro. A única forma de vencer um torturador é morrendo e o limite deste gesto é o suicídio. Não é à toa que a Beth de A Casa Sombria é uma suicida. A escuridão na qual o filme está mergulhado é a única luz no fim do seu túnel.
Casa e corpo, prisão e prisioneira, tudo está ligado aos controles de um arquiteto (ou cineasta). Aquele que sabe tudo, que vê tudo e dispõe de uma gama de mecanismos para garantir o seu poder. Sua principal ferramenta simbólica, a mão de fer ro da casa, é encarnada na figura da Mrs. Danvers (Kristin Scott Thomas) de Rebecca. Na mediação que ela estabelece entre a ausência de Rebecca e a presença da nova Sra. De Winters, reforçando o peso da primeira sobre a segunda, Danvers é a alma penada de Manderley: ela não entra em cena, ela aparece no corte. Contudo, a megalomania do proprietário é também protegida por outros cães de guarda: Zeus em O Homem Invisível, Jasper em Rebecca (nome de origem persa que significa "guardião do tesouro"), a matilha da rainha em Spencer.
Para furar tal bloqueio, só mesmo uma mulher arquiteta, uma mulher que dominasse os cálculos do espaço. Esse é o caso da Cecilia de O Homem Invisível, a única que realmente se vinga. Do outro lado temos Diana, a esmagada: na cozinha de Spencer uma placa diz "They can hear you"; o senescal diz a ela em determinado momento "ninguém está acima das tradições"; em outra cena é a própria Diana quem questiona: "Quem decide? Quem são eles?". Nesse caso, sabe-se que todo o poder emana, não do príncipe, mas da rainha, peça principal e mais bem protegida no tabuleiro do filme. Imóvel, quase invisível e inaudível, é ela quem tem a pala vra final sobre tudo, inclusive sobre o destino de Diana. É ela quem escreve o protocolo de aço. A Diana da vida real morrerá anos depois do Natal dramatizado no filme, dentro de um carro, em movimento, numa fuga quase eterna.
Era uma vez...
Estes filmes fazem parte do esforço de buscar uma forma artística justa para a época do MeToo - principal expressão do feminismo libe ral na Hollywood contemporânea - e localizam no modelo do female gothic clássico sua principal inspiração e ferramenta para compreender a violência no casamento. Com lançamentos mitigados
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Rebecca Hall em A Casa Sombria
pelo fechamento das salas de cinema, esses filmes foram, na maior parte das vezes, descobertos em casa, na televisão, num momento em que o cine ma inteiro precisou repensar as suas proporções e arrumar sua bagunça. Diretos demais, distantes demais, feios demais ou bonitos demais, os filmes deste ciclo são aquilo que os leitores da Boa Forma Revista de Cinema chamam de “cinematogra ficamente nulos". Longe de querer chamar filmes ruins de bons, este texto pretende apenas deslocar as interrogações. Por que a estrutura milionária do cinema hollywoodiano, com essas pequenas casas gigantescas (Netflix, Blumhouse), reconhe ceu num subgênero ao mesmo tempo tão presente e tão desprezado, uma fonte de inspiração? Por que esse encontro, já antigo, entre o feminismo e o cinema de horror continua ilustrando tão bem os interesses dos nossos tempos?
E afinal, que cadáver é esse escondido no armário da Netflix? Vasculhando um pouco mais essa lata de lixo (para o horror dos aristocráticos anfíbios da cinefilia), encontramos um outro produto, de uma triste vulgaridade, que nos entrega a resposta mais direta: o internacio nalmente conhecido reality show Casamento às cegas. Quando vemos, na versão brasileira, Thiago exigir de Fernanda que ela pare de fumar da noite para o dia, Shayan cobrar de Ana que não esqueça as palavras em árabe que ele ensinou, quando vemos Rodrigo incutir em Day um senso paranoico de organização do espaço doméstico, vemos o quanto, nesse território, tão pouca coisa mudou nos últimos 80 anos. O female gothic hoje não é um cadáver reanimado, um zumbi se arrastando para fora do armário. Ele é o quadro no centro da casa que chamamos de sociedade. †
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de tragédias reais † miguel haoni
Descobertas
John M. Stahl: depois de amanhã
por Roberta Pedrosa
No início de dezembro de 2021, o cinema Metrograph em Nova Iorque anunciou que no mesmo mês organizaria uma retrospectiva de nove filmes de John M.Stahl, a sua maioria em película, incluindo Filhos (1931), que existe apenas em cópia única sem digitalização. Algumas semanas depois, com um novo agravamento da pandemia, o cinema fechou por uns dias e cancelou sua programação, re-agendando os filmes de Stahl para fevereiro. Esse rear ranjo de datas coincidiu com a minha estadia na cidade. A coincidência de poder ver os filmes do Stahl já seria por si impressionante, famoso blinds pot da hollywood clássica, pouco projetado mesmo em cidades extremamente engajadas em suas pro gramações como é o caso de Nova Iorque, mas esse pequeno reajuste motivado por um evento bastan te trágico e imprevisível como a pandemia fez com que tudo soasse ainda mais surreal.
Foram projetados: Seed (Filhos, 1931), Only Yes terday (Nós e o Destino, 1933), When Tomorrow Comes (Noite de Pecado, 1939), Back Street (Esquina do Pecado, 1932), Holy Matrimony (Na Palheta da Vida, 1943), Imitation of Life (Imitação da Vida, 1934), Magnificent Obsession (Sublime Obsessão, 1935), Keys from the Kingdom (As Chaves do Reino, 1944), Leave Her to Heaven (Amar foi a minha Ruína, 1945). Os três primeiros serão aqueles sobre os quais discorrerei a seguir¹.
1 Sobre Stahl em português há uma tradução no blog Vestido Sem Costura de um texto de Yann Tobin (Apre sentação de John M. Stahl). Todo acesso aos textos franceses eu devo à Letícia Weber Jarek.
Cheios de ambiguidades, de acaso e de desejos, os filmes de Stahl são românticos, e, ao mesmo tempo, cotidianos. O tempo dilatado e o silêncio são duas características stahlinianas que, na medida em que produzem intensidade, lembram o tempo da própria vida. E como já disse Christian Viviani, quando escreveu sobre o mesmo2: "Que vida não conheceu amores, separações, feridas, segredos, retornos? Apenas, não são percebidas como melodra máticos caso eles sejam espaçados um do outro e que as suas interdependências sejam assim atenuadas. Mas quem não conhece o sentimento quando, resumindo a vida de alguém, frequentemente no momento de sua morte, se têm bruscamente a impressão, frente a essa concentração de existência, que teríamos "um verdadeiro melodrama", com o qual se poderia "fazer um filme". Filhos (1931)³
Quando Genevieve Tobin entra na casa de seu ex-amante (John Boles), ela está vestida com elegância em um vestido de festa florido, cuja trans parência no colo desce quase até os mamilos. A casa é velha, sem glamour, com cinco crianças que correm de um lado para o outro, e a atual esposa de Boles (Lois Wilson) parece pronta para um enterro: vestindo uma burca preta rendada, extre mamente antiquada, sem charme algum. Mas mais elegante que qualquer vestido da última moda
2 "John M. Stahl, sans mélo", Positif, n° 467, janeiro de 2000.
3 Em inglês, seed (semente) é também uma maneira recorrente para se referir ao sêmen, sentido que se perde na tra dução para o português.
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parisiense é a recepção de Lois Wilson, que mesmo pega de surpresa com o marido abrindo a porta ao lado de uma loira deslumbrante, recebe-a como se fosse a melhor amiga de longa data.
Depois do jantar, quando Wilson sai da sala, Tobin pergunta a Boles como ele chegou até ali. Ele responde que os filhos foram ideia da esposa e que ele precisou assim arranjar um emprego com mais garantias para sustentar a família. Ao escolher se casar com Wilson, abandonara o sonho de ser escritor, sonho que havia compartilhado com Tobin. Nesse meio tempo, Tobin havia se mudado para Paris e construído uma carreira no ramo editorial de grande sucesso, de modo a voltar para os Estados Unidos e se encontrar como chefe de John Boles.
Acompanhamos, então, como era de se esperar (tendo visto ou não Uma Hora Contigo), Genevie-
ve Tobin “roubar” John Boles da família, ofere cendo-lhe dinheiro para escrever e um escritório para trabalhar em sua casa, longe do barulho das crianças. Enquanto Lois Wilson aposta nos filhos para manter Boles em casa, os mesmos o afastam dela (é impossível trabalhar com tanto barulho, e ter relações sexuais com sua esposa encarna o risco de mais uma boca para alimentar). Medroso até para assumir os seus desejos, é Lois Wilson quem um dia resolve sair de casa com os cinco filhos em um jipe. Tão fácil quanto fugir com um elefante, ela acaba por retornar, apenas para encontrar John Boles pronto para partir definiti vamente com a amante.
Dez anos depois, Genevieve Tobin transfor mou Boles em um escritor de best-sellers. Todos os cinco filhos guardam apenas orgulho do pai e
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Louis Wilson e Genevieve Tobin em Filhos.
nenhum rancor pelos longos anos que foram cria dos exclusivamente pela mãe. Segundo Boles, ele estaria tentando manter o contato com a família, e compartilhar seus ganhos, mas a mudança de endereço (da casa grande para um pequeno apar tamento, em cima de uma loja de vestidos, onde a mãe sustenta a família trabalhando de costureira) teria impossibilitado a transação. Se Wil son teria orgulho demais para aceitar qualquer dinheiro, ou se Boles simplesmente não se empe nhou em mandá-lo não fica claro, provavelmente um pouco dos dois.
As protagonistas de Stahl sempre fazem questão de serem donas de si mesmas. Mesmo em Esquina do Pecado, o filme de Stahl mais melodramático, na ausência de John Boles, Irene Dunne rapidamente decide pintar vasos para vender, o dinheiro nunca sendo apresentado como um fator de dependência para que ela permaneça na relação. Nos longos planos estáticos do rosto de Wilson em Filhos, que guiam o espectador a simpatizar com tal mulher, seu sofrimento ganha espaço, mas menos como uma vítima e mais como uma testemunha consciente da realidade trágica das convenções sociais e dos acasos da vida. Em dez anos, Stahl dá tempo para que a vida se restabeleça, se reorganize. O que termina é o casamento, não a vida.
O reencontro de Boles com os filhos depois de dez anos é um dos momentos mais exemplares da
sensibilidade humana e ambígua de Stahl. Todos os filhos, arrumados como bonecos, não conseguem conter os sorrisos, mas o espectador (certamente não tão generoso quanto as personagens) nutre a expectativa de que Boles seja, pelo menos um pou co, responsabilizado pelos dez anos de descaso e negligência. Mas assim que o pai entra pela porta, a filha mais velha (Bette Davis, em sua segunda aparição cinematográfica) se joga nele e o abraça, em silêncio, a sensação é de que estamos presos nesse abraço, que a imagem congela. O reencontro é surpreendentemente comovente.
Rápido demais, todos os cinco filhos de Louis Wilson vão embora, encantados com o futu ro que o pai, rico e influente escritor morando em Nova Iorque, pode lhes oferecer. Eis então a cereja do bolo: consciente da dor da ex-esposa em deixar os filhos, John Boles diz suas últimas palavras: "I think you're the most wonderful woman in the world!"... Ah!
Sozinha no quarto, antes abarrotado de filhos, ela agora se encontra apenas com um gato. O gato se aproxima e olha pela janela, caminhando calmamente; Louis Wilson abre-a e o gato também a abandona. Se o filme acabasse aqui, com a personagem sozinha com a própria vida na mesa da cozinha, comendo a fornada de pães-de-canela que os filhos, ansiosos demais com a partida, não quiseram comer, seria um final tão digno quanto
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amanhã
Louis Wilson, John Boles e Genevieve Tobin em Filhos; Margaret Sullavan e John Boles em Nós e o destino.
o de Gertrud⁴. Mas Stahl guarda ainda um segundo final. Genevieve Tobin entra pela porta, mas não da mesma maneira que entra na primeira cena do filme, pois dez anos depois ela também sente o peso do tempo. Ela diz para Lois Wilson: "Você ven ceu. Os filhos vão sempre ser a coisa mais importante para ele". Filmadas de frente, sentadas lado a lado na mesa, Wilson lhe oferece um pão-de-canela. Ao verdadeiro vencedor, todo o reconhecimento, the winner takes it all.
Nós e o Destino (1933)
Outubro de 1929, na Bolsa de Valores de Nova Iorque. Entre burburinhos e conversas acalora das, um homem sai da sala e caminha em direção ao banheiro, em um momento de dúvida aceita que engraxem seu sapato, mas repentinamente se levanta e continua o seu caminho. A porta
4 Christian Viviani compara Gertrud e Back Street. A comparação de Stahl com Dreyer também voltou a ser men cionada por Dan Sallitt em seu texto Mubi Notebook em 2009: (Looking Back on Anthology's Stahl vs. Sirk Series on Notebook | MUBI)
do banheiro está fechada, mas o estrondo é claro. Enquanto isso, a vida continua numa festa da alta-sociedade: casos extraconjugais, roupas e acessórios da última moda, piano, coquetéis, algum comentário sobre “a queda da bolsa de valores” feito entre sorrisos. Subindo pelo elevador, John Boles chega na festa e anuncia calma mente à sua esposa que estão falidos. Olhando ao redor ele identifica uma mulher à espera do marido, que pulou da janela do banheiro na cena anterior. Boles, num ato de humanidade, retira a recém-viúva de cena com muito cuidado e dis crição (Stahl faz questão de filmar a espera do elevador e as portas dele se fechando) antes de anunciar para o restante dos convidados, em um tom de voz bastante sereno, que todos estão fali dos e que alguns haviam preferido o suicídio.
Saíndo da festa (que já estava virando literalmente um enterro), estamos prontos para ver de dentro do escritório o que no prédio da bolsa de valores só havíamos escutado. Com revólver em uma mão e carta de despedida na outra, os olhos de Boles passam por uma outra carta, um enve-
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John Boles e Margaret Sullavan em Nós e o Destino.
lope urgente e confidencial. Ao abri-lo, viajamos para uma outra festa, um recomeço para o filme e para John Boles.
O acionista da bolsa de valores, então jovem militar, encontra, ou melhor, é encontrado por uma jovem mignon com um vestido cujas mangas são do tamanho da própria cabeça. Margaret Sullavan é certa do que quer, vivaz e inteligente, tem uma maneira de seduzir John Boles ao mesmo tempo direta e inventiva, nada vulgar e carregada de ingenuidade. Na porta da casa de Sullavan, na madrugada, a despedida é longa, lenta e romântica (stahliniana), e ficamos na dúvida se essa história é algo a mais do que one-night stand. A noite, segun do ela, “pareceu um século”. “Não mais que um segundo”, ele responde.
Mas o desencontro do casal não é obra do acaso e sim de John Boles, que vai para guerra sem
dizer adeus e volta sem reconhecer Sullavan (num close-up impressionante, as feições de Sullavan vão mudando conforme escuta o pai do seu filho dizer que não sabe quem ela é). Grávida, Sulla van não sente vergonha, os pais ficam para trás assim como sua cidade natal e ela vai morar em Nova Iorque, com sua tia "terribly broad minded" (Billie Burke), que a recebe com muita alegria afirmando que a gravidez nos dias atuais seria só “um evento biológico”, “algo que aconteceu”, “não seria nem mesmo um bom melodrama”. Exemplar da postura de Stahl com o gênero – apesar de todos clichês melodramáticos estarem presentes em seus filmes, eles nunca soam como inevitá veis, há uma ambiguidade humana nas tomadas de decisões das personagens que é sempre maior do que os caminhos sem saídas. Se a cena de parto de Sullavan é entrecortada com imagens de
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Billie Burke e Margaret Sullavan em Nós e o Destino.
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Guerra, ela não é generalizante ou metafórica, mas representativa de seu sentimento individual. Stahl acha seus personagens nas multidões, mas ele não os devolve a ela.
Os planos de Sullavan no quarto com seu filho depois desse "reencontro" são especiais, pois em alguns momentos captam toda a graça de um bebê sem perder espaço para a mãe que, sozinha, vive uma mistura de tédio, dúvida e ansiedade sobre como prosseguir. Billie Burke tem um namorado que a propõe em casamento, a relação dos dois é cheia de amor e provocações e aponta para um dos temas preferidos de Stahl, que é o amor após a juventude (Holy Matrimony). À exemplo da felicidade tardia da tia, sabemos que a vida de Sullavan não acabou, que é possível ser feliz fora das convenções. Sua personalidade sonhadora ao mesmo tempo que inquieta (sua dicção um tanto atropelada e seus movimentos ágeis) aponta para uma constante busca por felicidade a despeito das inúmeras adversi dades. Por tanto é Sullavan que deve anunciar “the end of another chapter in my life”, e é isto que faz quando descobre que Boles vai se casar com outra.
Dez anos depois, Sullavan, uma mulher de sucesso no ramo da moda, nutre com seu filho uma relação invejável de parceria e repleta de humor. E o fato de Sullavan não ter esquecido totalmente John Boles não a impediu de ter outros namorados nem prejudicou a dinâmica familiar: com a tia e seu esposo, Sullavan e seu filho, a casa parece um ambiente perfeito para uma criança crescer, cheia de amor, respeito e, por que não?, felicidade.
Considerando casar com o insistente bom-mo ço George Meeker (que também interpreta o oposto de John Boles em Esquina do Pecado, na medida em que ele parece sempre fadado a perder, pois tanto Sullavan quanto Irene Dunne são orgulhosas demais para casar sem paixão e apenas por segu rança), Sullavan sai para uma festa de ano novo, onde paradoxalmente encontra com o seu passa
do. No reencontro, os papéis se invertem, Boles assume a dianteira do flerte e Sullavan, perplexa e curiosa, observa seus movimentos. Sem romantis mos ou ingenuidade, ela se deixa levar pela noite, mas decidida a viver um encontro de uma noite só: sem se abrir mais do que o necessário, ela se diverte com a coincidência e, apesar da insistência de Boles, se nega a reencontrá-lo.
Alguns meses depois, ela escreve uma carta para Boles em seu leito de morte. Se a morte das mulheres é uma recorrência no gênero melodramático, eu não recordo uma que tenha sido tão surpreendente quanto a de Sullavan. Nada antes do filme aponta para uma doença ou desconforto, nem para uma tragédia iminente. Essa situação que beira o inverossímil acaba por deixar tudo mais intenso. A morte para Stahl é informada rapidamente, ao mesmo tempo que essas horas que a precedem são filmadas detalhadamente (o mesmo com o final de Esquina do Pecado).
Voltando à cena inicial, a morte de Sullavan coincide com a queda da bolsa de valores e, sem consciência nenhuma disso, os amantes de duas noites (e uma vida) poderiam ter morrido juntos no mesmo instante. Mas um pedaço de papel, em toda sua fragilidade, muda uma vida, e o último ato de generosidade de Sullavan é dar a Boles a chance de ser feliz. Noite de Pecado (1939)⁵
Imogen Sara Smith, na ocasião da projeção de três filmes de Stahl no MoMA6 em 2016, escreve que Filhos, Nós e o Destino e Esquina do Pecado pode
5 Não posso deixar de notar o tom moralizante das traduções dos títulos dos filmes de Stahl, a palavra "pecado" usada tanto para Back Street e When Tomorrow Comes, se coloca do lado da convenção matrimonial de uma manei ra que Stahl nunca se colocou.
6 "Women in Love: Three Early '30s Melodramas by John M. Stahl (Seed, Back Street, Only Yesterday)", Bright Lights Film Journal, maio de 2016.
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Charles Boyer e Irene Dunne em Noite de pecado
riam ser conectados pela frase dita por Genevieve Tobin no primeiro desses filmes: "I bumped into my past". Nos três filmes, mulheres bem sucedidas mudam os cursos de suas vidas após encontrar por acaso John Boles (que ela descreve como “incapaz de compreender a vida interior, infinitamente mais complexa e apaixonante, das mulheres que se sacrificam por ele”). Isso me fez pensar que talvez a primeira coisa a dizer sobre Noite de Pecado é que Charles Boyer não é John Boles.
Ao invés de tropeçar no próprio passado, Irene Dunne parece tropeçar nos próprios sonhos. Trata-se de uma mulher que sai do interior para Nova Iorque para tentar a vida como cantora e acaba por se tornar garçonete ("I found I had to eat"). Dunne e Boyer (que tinham acabado de trabalhar juntos em Duas Vidas (1939) de Leo McCarey) têm uma química fantástica e em nenhum momento
nos perguntamos o porquê dela estar apaixonada por ele (o que frequentemente acontece no caso de John Boles). Também não é difícil compreender porque Boyer se fascina por Dunne, figura central do sindicato das garçonetes, ela certamente carre ga mais vida e paixão do que as salas de concerto onde ele é convidado a tocar ao redor do mundo.
Ao contrário de Sullavan, cujo corpo carrega certa inquietude, externamente Dunne sempre transparece confiança e serenidade. Sua inteli gência se manifesta por um pensamento ágil e por uma intuição sensível e aguçada para as condições adversas da vida.
Casado, Boyer não esconde Dunne da esposa (Barbara O'Neil), que é apresentada a nós como inválida. O encontro entre O'Neil e Dunne é certamente o momento mais estranho do filme, mas Stahl, ao tomar a devida distância da situação,
75 john m. stahl: depois de amanhã † roberta pedrosa
john m. stahl: depois de amanhã † roberta pedrosa
consegue preservar sua ambiguidade, de maneira que não sabemos o quanto o pedido da esposa para que Dunne se afaste de Boyer de fato surte efeito. A decisão de não ser uma segunda mulher (back street woman) parece mais motivada por consciên cia do que por culpa.
Os quatro minutos finais do filme, uma despedida entre Dunne e Boyer em um restaurante, são devastadores. Irene Dunne porta um vestido que tem há anos guardado para uma ocasião especial. Os dois, filmados de frente, sentam lado a lado (enquadramento que também fecha Filhos e Nós e o Destino). Em Nós e o Destino, Sullavan morre dizen do ao filho que ela vai deixá-lo por um tempo, “a little longer than going to school”. Ao se despedir de Boyer, Dunne pede para que ele o faça também como se fosse voltar logo. Da mesma maneira que Boyer aparece no filme por acaso ele vai embora.
Se Filhos e Nós e o Destino contam a história de uma vida (o mesmo poderia ser dito de Esquina do Pecado e Imitação da Vida), Noite de Pecado conta a história de um encontro. Se há algo depois, ou se esse é o fim, é impossível prever. Vendo os filmes de Stahl em conjunto, o final fica ainda mais pes simista: por sua predileção de filmar reencontros, você sente que se houvesse um para essa história ele o teria filmado. †
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Atores&Atrizes
Até as mãos de Margherita
por Leodoro Camilo-Fernandes
Este pequeno texto pode ser um elogio a Tre piani (das melhores coisas que o cinema de Moretti nos trouxe neste século: a inevitabilidade, a contingência, a irracionalidade das vidas de uma gran de cidade; o que resta a quem tem a sorte e o azar de permanecer vivo?; e sobretudo: a justeza e a soberania das emoções – quando tudo caminha em direção à padronização dos tempos, ou quan do o tempo nos encaminhar para a padronização das sensações, são as emoções que nos vão salvar: as emoções nos vão aterrar – na falta de grama
ou barro pra pisar nos prédios onde moramos e trabalhamos, as emoções hão de nos puxar pra terra daquilo que nos constitui, de tudo o que não podemos deixar para trás) ou pode ser uma tentativa de entender o que Margherita Buy fez comigo durante as duas horas desse filme: desde a primeira cena – quando aparece no meio da noite correndo para ajudar seu filho, acordada na madrugada, enrolada num cobertor – ela me fez chorar. Chorei em qualquer aparição sua na tela: quando a porta da ambulância se fecha; quando
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caminha abraçada com o filho, seus olhos estão inquietos: o marido quer o filho preso, ela quer o filho perto. O melodrama italiano, a mãe e o filho. Se em Mia madre Margherita era filha, aqui ela é mãe. Ainda não consigo entender o que Margherita Buy fez comigo nesses cento e vinte minutos do filme. Talvez seja algo em seu abraço, como ela se levanta de súbito para ter o filho nos braços sabendo que sua prisão é inevitável. E a justeza de todos seus gestos: lança-se ao alto para ter o filho nos braços, lança-se ao chão para ajudar o marido que apanhou do filho. As outras sequências estavam ali no filme para me acal mar o espírito, para que meus olhos pudessem se recuperar até a próxima aparição de Marghe rita: era só a câmera pousar em qualquer parte do seu corpo para que eu começasse a chorar: quando suas mãos encaixotam o apartamento em que vivera toda uma vida com o marido, o plano começa em suas mãos, eu explodi em lágrimas – o plano segue até seu rosto: ela pega o telefone a fim de deixar uma mensagem para o marido mor to na secretária eletrônica. No meio do filme, seu rosto em primeiro plano busca o filho na prisão: tem cansaço ali, tem alívio, tem a força de quem não tem outra alternativa senão permanecer. No fim, também seu rosto em primeiro plano, ela vê o filho carregando seu neto, o sorriso de quem sente a reconciliação – e neste plano tem tudo o que faz o cinema: vento e um rosto de mulher, ou o vento num rosto de mulher. E que o cinema também seja as mãos, os braços, a boca e os olhos de Margherita Buy. †
79 até as mãos de margherita † leodoro camilo-fernandes
CadernoCrítico
Tonight, tonight
Amor, sublime amor (Steven Spielberg, 2021)
por Miguel Haoni
We'll crucify the insincere tonight. Depois de décadas alimentando o sonho de crianças de todas as idades, Steven Spielberg realizou, aos 75 anos, um dos seus: dirigir Amor, sublime amor. Remake do filme dirigido por Robert Wise e Jerome Robbins (1961), que levava às telas o musical da Broadway (1957) livremente adaptado do Romeu e Julieta de William Shakespeare (1597), que, por sua vez, foi baseado no poema The Tragicall Historye of Romeus and Juliet de Arthur Brooke (1562), Amor, sublime amor é a encarnação do eterno retorno. Sua história de amor impossível é tão velha e tão nova quanto o mun do. Spielberg, porém, reanima este corpo com uma energia que não imaginávamos possível. Através de seu anabolizado domínio técnico, o diretor assina todos os planos pesando a mão nos valores plásticos da imagem. Ao lado do fotógrafo Janusz Kaminski, Spielberg produz nos seus filmes complexos desenhos de luz tridimensionais. Mas, se nas experiên cias anteriores da dupla a fotografia podia aparecer mais que o filme, aqui a profusão de flairs, contraluzes, filtros e das horas de trabalho dedicadas à correção de cor encontram a sua justa medida. É como se Amor, sublime amor oferecesse a esses cien tistas da imagem um copo do tamanho certo para a quantidade de água que eles precisam para matar a sua sede. A pintura aqui não transborda a moldura e as cores explodem como estrelas cujo brilho nos chega de outros tempos: as faíscas da lisergia dos anos 60 se misturam com a memória de Sapatinhos Vermelhos (Michael Powell e Emeric Pressburger, 1948) ou Fantasia (Walt Disney, 1940). O filme recupera a emoção de uma criança que folheia apressa-
damente as páginas em preto e branco dos jornais quando encontra, subitamente, o caderno colorido das histórias em quadrinhos. Uma emoção perdida. We'll make things right, we'll feel it all tonight. No pla no técnico, porém, o principal está em como estas imagens ganham movimento, como elas deslizam no filme numa graça e prazer absolutos. A câmera anda, corre, voa, passando por cima, por baixo e por dentro das cenas, num enlace apaixonado com os corpos, extraindo música mesmo das passagens silenciosas. Desde A Lista de Schindler (1994), a fran quia Spielberg-Kaminski faz pensar numa versão hightech do cinema do russo Mikhail Kalatozov, outro diretor que colocava o feito técnico em primeiro plano. Spielberg, porém, aprimora a monta nha russa de Kalatozov, já enferrujada em algumas curvas, colocando a poltrona do espectador sobre trilhos perfeitamente polidos, em rides (como bem descreveu Paula Mermelstein¹) às vezes confortáveis demais. Amor, sublime amor é, nesse sentido, o seu Soy Cuba Magic World. A pobreza aqui é superproduzida, milionária. Cada item – da cama mais triste à mais anônima lata de lixo – parece ter sido arrematado em leilões de colecionadores de antiguidades. Tudo é de uma falsidade reluzente - o que não é nenhuma novidade em se tratando de cinema hollywoodiano. As regras estão dadas, cabe ao espectador aceitá-las ou não.
Essa artilharia técnica não encobre a emoção, ela reforça, adensa o embalo do espectador. Intercalan do momentos de febre delirante com suspensões do 1 O cercadinho de Spielberg – LIMITE (limiterevista.com)
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tempo, o filme respira num ritmo próprio. A cena do baile na escola é um bom exemplo: dentro do gigantesco número de dança (a mesma coreografia, mais puxada para o jazz-rock de um lado e para o flamenco do outro), uma série de micro-eventos vão se revezando no proscênio. Um chute no ar e uma breve abertura no espaço é preenchida por Anybodys (Iris Menas), o garoto trans que tenta em vão encontrar seu par, sendo rechaçado pelos “colegas”. Um dançarino empurra outro e esse ges to dá lugar ao Oficial Krupke (Brian d’Arcy James) que cheira o ponche de uma garota latina. A câmera demora um segundo e é suficiente para capturar o olhar racista de uma moça branca. Uma mudança
de cadência justifica um corte e vemos Chino (Josh Andrés Rivera) resistindo a entrar na dança e Maria (Rachel Zegler) largando a sua mão. É num movi mento um pouco mais prolongado que vemos Tony (Ansel Elgort) chegar e ser recebido pelo olhar frio de Krupke. E eis que, de repente, Tony vê Maria, Maria vê Tony e todo o resto desaparece. Um silêncio delicado no olho do furacão. Imantados por esse olhar, os dois se conduzem para trás da arquibancada, e como aves raras, dão o espetáculo sussurrado da sua dança de acasalamento.
We'll find a way to offer up the night. O interesse principal do filme são os atores. Ilustres desconhecidos,
82 tonight, tonight † miguel haoni
Rachel Zegler em Amor, Sublime Amor e Ansel Elgort em Amor, Sublime Amor
seus nomes, rostos e vozes não se beneficiam de nenhuma imagem de marca. Eles são o motor anônimo da megalomania estética do filme, coreogra fando com graça todos os movimentos emocionais das cenas, mesmo fora dos números. Na cena da escada de incêndio, antes que Tony e Maria comecem a cantar, o jogo da atração obstruída pelas grades do cenário já é dança. Na manhã seguinte, a dança reaparece quando Maria, insone, precisa produzir no seu quarto as marcas de uma noite de sono. O balé em Amor, sublime amor deve expressar tudo: da violência ao desejo, do ódio ao amor, ele solicita o engajamento absoluto dos atores e deve encarnar a atração, a repulsão e a mistura das duas. The indescribable moments of your life. A peça original era um documento da sua época. Sessenta e cinco anos depois, ela soa como uma profecia. O filme é ambientado num mundo em ruínas: fim da imigração europeia, início da imigração latina, em plena guerra racial, a administração Robert Moses em Nova York decide construir um gigantesco complexo artístico-cultural (o Lincoln Center, que abrigará a Universidade Fordham e, ironicamente, a Metropolitan Opera e a Filarmônica de Nova York), em cima das ruínas da favela de Saint Juan Hills, num dos maiores episódios da gentrificação urbana do século XX. Jets e Sharks, as duas gangues rivais disputam em vão, como bem diz o Tenente Schrank (Corey Stoll) no fim da primeira cena, por um território que já não existe mais. Tudo isso faz lembrar de Donald Trump e da sua muralha. Mas para dar corpo ao comentário político, o filme con voca a mitologia masculina dos anos 50: a bagagem simbólica da juventude transviada de James Dean, o nascimento do rock’n roll, o culto à velocidade, a delinquência juvenil, todo um aparato de fetiches (hetero e homossexuais) para explicar, com a ajuda da obtusidade e do romantismo dos rapazes, as raízes do problema. O número da delegacia é o ponto alto dessa reflexão social: fazendo um uso delirante do cenário real para construir cenários imaginários,
os Jets encenam, na absoluta autoconsciência, a sua própria laranja mecânica, o ping-pong dos discursos institucionais no qual foram capturados.
The impossible is possible tonight. A história de Amor, sublime amor já foi contada e ouvida por muita gente durante séculos, na literatura, no teatro e no cinema. Shakespeare a imortalizou como tragédia, na qual, apesar da húbris do herói, o destino inva riavelmente vence no final. Em Hollywood, porém, eles não fazem tragédias. Eles fazem melodramas. E no melodrama, a trajetória é um pouco menos fatídica, a esperança persiste até o último minuto e o final pode ser tanto feliz quanto triste. E é curioso como o filme trabalha a consciência nostálgica do espectador. Se os outros blockbusters em cartaz, como Jurassic Wold: Domínio (Colin Trevorow), Top Gun: Maverick (Joseph Kosinski), Doutor Estranho no Multiverso da Loucura (Sam Raimi) ou Sonic 2 – O filme (Jeff Fowler), fundamentam parte substancial do seu interesse explorando a lembrança dos mode los do passado, investindo no reconhecimento de imagens enraizadas na cultura geral, Amor, sublime amor, apesar de tudo, se esforça para que o espectador esqueça o original e acredite nessa história como se ela estivesse sendo contada pela primeira vez. E no melodrama tudo é uma questão de fé, da crença de que, dessa vez, tudo pode dar certo.
Believe in me as I believe in you... Maria é um anjo do subúrbio. Sua aparição na cena da escada de incêndio é rodeada por um halo de salvação para o herói em queda encarnado por Tony. Ele ascende até ela como os personagens de Frank Borzage, como quem quer tocar as estrelas. Existe, sem dúvida, algo de Charles Farrell na neutralidade de Ansel Elgort e talvez alguma coisa de Janet Gaynor em Rachel Zegler2. Além disso, em Borzage, os casamentos
2 Em 1937, Walt Disney se inspirou em Janet Gaynor (atriz predileta de Borzage) para criar a sua Branca de Neve. E não à toa a próxima Branca de Neve será justa mente Rachel Zegler, a Maria de Amor, sublime amor.
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nunca são feitos em igrejas, mas em barracos e bar racas; nunca são celebrados por padres, mas por mendigos e amigos. Spielberg realiza o casamento de Maria e Tony num velho mosteiro, transformado em museu. Ele se aproxima de um outro romântico, vindo de uma outra Hollywood: Leo McCarey que, em Tarde demais para esquecer (1957), fez com que a aliança entre Cary Grant e Deborah Kerr, mas tam bém entre o filme e o espectador, fosse estabelecida como um voto sagrado. Imaterial e eterno.
Amor, sublime amor é um melodrama (“homem em conflito com outros homens e com o mundo”), mas também, não esqueçamos, é uma tragédia (“homem em conflito consigo mesmo”)³. E, de maneira incontornável, o destino fatal virá recla mar a palavra final. Quando Tony recebe a notícia falsa de que Maria foi assassinada por Chino, ele derrete e se lança na noite escura para os braços da morte. Numa corrida sem direção, Tony vê Maria, viva. Chino aparece por trás dele, os três correm e Chino atira. Nesse momento, num plano de pouco mais de um segundo, a câmera dá um solavanco inesperado, ela sai do trilho e corre, pela primeira vez no filme, sem direção. Maria, com Tony nos braços, canta. Mas um canto sem voz. E é no silêncio que o filme acaba, com a câmera subindo em direção à outra estrela da sorte. †
*Agradecimentos à Billy Corgan e sua Infinita Tristeza.
3 Definições encontradas em HEILMAN Robert B. Tragedy and Melodrama. Versions of Experience, Seattle, University of Washington Press, 1968. p. 296.
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Mãos sobrepostas e modelagem perpétua
Renate (Ute Aurand, 2021)
por Gabriel Linhares Falcão
Alguns filmes nos põem de frente com o cinema em sua forma mais elementar, nos apresentando a composição como um artesanato: sucedendo imagens, adicionando sons, retirando a imagem, aproveitando o silêncio… nos aproximando das mãos (uma, duas ou quantas forem necessárias) que parecem tatear o filme como um material vertical decorrendo de cima para baixo, revelando sua composição na luz da projeção que o atraves sa. Ressaltadas as qualidades planas e materiais do quadro, a profundidade se revela mais do que nun ca como um dado virtual, menos como o estabelecimento de um senso espaço pela concretude da realidade que a estipulação de uma tridimensiona lidade por fragmentos e intervalos que se erguem verticalmente de um vazio inicial, se aproximando assim mais da música que das artes plásticas, abdicando a perspectiva renascentista mesmo que ope rando a partir da captura de imagens reais como princípio visual.
O cinema da alemã Ute Aurand vem nos relembrando quase anualmente da possibilidade artesanal. Adotando uma maneira muito livre e intuitiva de registro, seus filmes são devotos ao tempo presente, propondo um rompimento com o “olhar ao passado” comum dos filmes-diários e com o congelamento da figura pelo retrato, utilizando vias impressionistas do registro que per mitem uma modelagem perpétua do documento. Seu último filme, Renate acompanha a cineasta e amiga Renate Sami durante uma visita de Aurand (diferentemente de outros filmes da diretora que
mesclam registros de vários tempos distintos). Como quem coleta flores e monta um buquê, a cineasta acompanha a retratada por dias comuns e momentos calmos de sua vida: em um parque, em seu lar; os livros em sua estante, pinturas e gravuras dispostas nas paredes de sua moradia, a máqui na de costura, pedaladas de bicicleta, seus óculos arredondados, o cabelo esbranquiçado preso, suas roupas de frio que indicam a real temperatura por trás do sol constante... Do trabalho no computador, à própria preparação de buquês, percebemos em cada fragmento como a luz repousa e incide na imagem. Sons são encontros não intencionais, uma leitura de Friederike Mayröcker e a reprodução no YouTube de So oder so ist das Lebene de Brigitte Horney, por exemplo, são apresentados por Renate à sua companhia e adicionados ao filme como um fragmento a modelar a concretude. Na maneira livre de filmar da cineasta, em que tudo se descobre no instante, a luz parece ser o norte desta modelação bastante espontânea. Até mesmo quando um som é integrado, este surge, como se fosse iluminado momentaneamente, e se dissipas se na modelação.
Sua montagem rejeita qualquer hierarquização entre as imagens e sons, ideia que foi também tema em seu filme To Be Here (2013), garantindo uma hori zontalidade de ponta a ponta. Como se pudéssemos adentrar Renate, e diversos de seus outros filmes, em qualquer instante da projeção, a porta parece estar sempre aberta ao espectador. Não há de fato nem início nem fim nesta jornada perceptiva, apenas a
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sucessão perpetuamente presente¹. Sua liberdade parece ser atraída por dois elementos irrecusáveis que sempre merecem a sua atenção, como uma sutil proposição de passagens inevitáveis em meio a via gem sem destino definido: a câmera-olho não nega a presença de flores e sorrisos, e na montagem, estes parecem surgir mais que qualquer outro detalhe rotineiro. Qual o segredo de Aurand que conduz os retratados à mais sincera espontaneidade? Os sorri sos, também de ponta a ponta, nos fazem questionar se aparecem por controle das passagens em meio a jornada, ou, o mais plausível, pelo magnetismo de quem conduz a câmera. Seus diários não se apresen tam como olhares idealistas do cotidiano, a doçura está impregnada no traço pelo mais simples dom da
1 Entretanto, seus filmes são construídos com a intenção de serem vistos do início ao fim da maneira apresentada.
atração. Seja na Alemanha, nos Estados Unidos (To Be Here), no Japão (Junge Kiefern, 2011) ou na Índia (India, 2005), olha-se direto para a câmera com o sorriso mais largo. Vemos o privilégio de um olhar que é sempre visitante, no sentido mais sincero do registro, que não objetiva o encontro estipulado como um turista, e sim observa sendo guiada pela atração, indo ao que chama atenção; garantindo, nesta fusão entre sentidos e câmera, o habitar.
Os efeitos manuais que adornam esta realidade são experimentos luminosos, que conduzem a um ritmo interno misterioso, liberto, mas ao mesmo tempo rumo a um equilíbrio. O senso de profun didade se faz menos pela realidade concreta e mais por uma justeza virtual. Combinando montagem na câmera e montagem na moviola, a musicalidade apresentada ruma a clareza, a limpeza e a obstinação com a luz, garantindo sua presença reveladora
86 mãos sobrepostas e modelagem perpétua † gabriel linhares falcão
em toda imagem sem que ela sobreponha o objeto. A modelagem torna o mais cotidiano dos planos em tempo vivo. Diante de imagens e sons tão próximos ao olhar pela câmera 16mm, o movimento interno da composição apresenta uma justeza intrigante.
Godard entregou o contraponto em Ici et Ail leurs (1975): “não uma imagem justa, justo uma imagem”; fator instigante mais condizente com as artes visuais que com a música. “Justo uma imagem” carrega consigo a surpresa, ou da cap tura ou do encontro, de toda maneira, acompanhada de uma mínima espera, um estado a priori (que abrange do obstinado ao renunciante) a ser surpreendido.
Um plano detalhe registra o olhar de Renate Sami frisando o fora de campo. Sem cortes, desce para suas mãos sobrepostas e relaxadas. Com uma delas, aponta para a mesma direção de seu olhar alertando algo que a imagem não registra. Rapidamente o foco é jogado para o fundo e a câmera se movimenta seguindo a indicação. Realiza uma breve pausa no movimento para obser var um pequeno cachorro de pelo amarelado que saltita no sentido contrário. Assim que o animal sai do quadro, continua seu movimento e observa os tons de azul do lago com a vegetação ao redor. Algumas pessoas passam cortando a imagem e a seguir retorna ao plano inicial de Sami, agora rindo como se tivesse notado a dúvida que conduzia o interesse de Aurand. Por fim, ainda sem cortes, volta a observar o lago.
Uma rápida tomada parece orquestrar uma surpreendente coreografia casual que refaz seus rumos pela fidelidade ao instante. Sami aponta para o lago ou para o cachorro? Impossível saber. O cachorro, obstinado, completa seu trajeto sem perder o rebolado. Aurand repara o movimento do animal e a câmera desordena. Melhor checar duas vezes o lago para garantir que não se perdeu nada enquanto distraída (atentada) pelo cachorro. O mesmo plano do olhar agora com uma enorme
risada estampada na face de Sami. Qual movimento desta coreografia inesperada pode nos dar indícios do segredo por trás dos sorrisos espontâ neos tão recorrentes? Suponho que o privilégio do olhar que é sempre visitante (fiel a diretriz mais certeira do presente: a da sinceridade aos sentidos como criadores de sentido) seja a facilidade magnética de atrair, de ser presente para estar no presente; como uma meditação partindo do vazio, a modelagem da concretude se depara constante mente com "justo uma imagem"! †
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mãos sobrepostas e modelagem perpétua † gabriel linhares falcão
Habitar o delírio do presente
por Luiz Fernando Coutinho
Em Extremo Ocidente, de João Pedro Faro, um jovem soldado se refugia na penumbra de um bunker improvisado, subterrâneo, "decorado" com artefatos antigos. O radinho de pilha, as fotografias em preto-e-branco, o Almanaque do Zero e a caixinha amarela de M&M’s convivem com a escuridão quase absoluta de uma toca com linhas sinuosas e sombras difusas. Fomos lançados ali pela ação de um zoom que impôs a ligação entre as ruínas e os corvos do mundo lá fora e o reduto abaixo do solo. O soldado (Miguel Clark) tenta preencher as horas vazias e o filme, inicialmente,
se prolonga em um estado de letargia silenciosa. O tédio pode eventualmente dar vazão à loucura, ao gesto suicida, mas o soldado, resignado, afasta o fuzil da boca.
Como em Sombra (2021), o filme anterior de Faro, os melhores momentos são aqueles em que se habita plenamente a unidade do plano, do espaço ou do tempo, sem aguardos ou repercussões. São os instantes de marasmo, torpor ou inércia que antecedem o anticlímax em que o soldado é atacado pelo Canibal: em Extremo Ocidente, na verdade, já nem se pode falar em espera, como era possível
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Extremo Ocidente (João Pedro Faro, 2021)
Miguel Clark em Extremo Ocidente.
em Sombra, pois já não há objeto nem expectativa por parte do soldado. Já não há passado ou futuro, nem uma noite prestes a tombar sobre os persona gens, mas antes um presente peremptório, em que as ruínas da guerra e os objetos antigos instauram uma zona de indeterminação temporal. “Todo dia é o mesmo dia e toda hora é qualquer hora”, canta Diana nos créditos iniciais.
Quando o soldado se lança à superfície, abandonando o bunker, estamos em um segundo bloco do filme. Ele passeia pelas ruínas, "fuma" seu charuto, aponta o fuzil para não se sabe onde, marcha sem razão aparente, vai à praia. Os sons diegéticos do primeiro bloco – a voz que lia as palavras de uma folha de papel, as músicas que tocavam no radinho, o escorrer da água pelo esgoto – cedem lugar a uma trilha sonora compósita e ruidosa de máxima importância. Pois Extremo Ocidente é menos um filme de guerra do que um filme sobre seus traumas, seus fantasmas, suas reverberações no tempo eternamente presente: o som não sugere a existência de uma batalha no fora de campo, pelo contrário: a guerra habita o próprio soldado, que projeta, nas ruínas, a memória daquilo que não consegue esquecer. O toque da corneta, os disparos de fuzil e as explosões não são ruídos do mundo exterior, mas delírios aos quais o soldado se subordina. O único cadáver é o da tartaruga.
Essa memória, que o soldado é incapaz de enterrar, é a persistência de um fato sobre sua condição: trata-se de um militar apátrida, des locado, despossuído de seus pares. A lembrança da guerra é aquilo que lhe permite uma parcela, por menor que seja, de sentido para seus atos. É o espaço onde sua solidão mais íntima poderá ser ao mesmo tempo remediada e aprofundada. Ine vitável não pensar no próprio filme, este objeto insólito no cinema brasileiro contemporâneo, solitário em seu ato de fé clandestino (quantos filmes, hoje, se assemelham a este no país?), que integra na sua composição heteróclita a memória
de outras obras, outros pares, dos quais reivindica um parentesco nem sempre verdadeiro: se já não se pode encontrar aliados no campo de batalha do tempo presente, acionam-se inconsequentemente os fantasmas de outras eras do cinema, do espírito da Boca do Lixo à música distorcida de Rua da Vergonha (Kenji Mizoguchi, 1956), dos subterrâneos de Lang à trilha sonora de Baionetas Caladas (Samuel Fuller, 1951). O que só retroalimenta o delírio.
O terceiro e último bloco de Extremo Ocidente, aquele em que se impõe finalmente uma resolução à trajetória desse soldado isolado, é a introjeção violenta do niilismo que anima, em parte, o cine ma de Faro. Uma vez a guarda baixada pelo efeito alucinógeno de um chá de fita, o soldado é capturado pelo Canibau. Sobre uma mesa de madeira, onde é amarrado em posição crística e fetichizada, o soldado tem o ventre aberto e as tripas devo radas. Nesse universo de escombros, estresses pós-traumáticos e churrasco de cachorro, já não queima mais qualquer esperança; por outro lado, haveria otimismo nesse rasgo no céu que, entre as nuvens, permite a passagem da luz? Poucos filmes brasileiros recentes, apesar dos muitos esforços, dizem tanto respeito à situação política e existen cial no país quanto este belo filme marginal: nele, uma extrema agitação toma a forma de entorpecimento, que por sua vez é o traço de uma angústia profunda. Brasil da estase e do desespero, da paralisia e do calvário. †
89 habitar o delírio do presente † luiz fernando coutinho
ZAO
Zeros e uns (Abel
A disposição do título nos créditos iniciais Zeros And Ones
me fez achar que poderia haver uma palavra ali: ZAO. Uma breve pesquisa me apontou duas possi bilidades de ZAO, uma grega e uma chinesa. Ei-las:
VIVER, ESTAR ENTRE OS VIVOS: em Sportin’ Life (2020), filme anterior a este Zeros e uns, Fer rara pensava, em primeira pessoa, o que é estar aqui agora. Refugiado intelectual na Itália, é daí que Abel vai pensar o estar entre os vivos durante uma pandemia global no primeiro país a sofrer com mais intensidade a inclemência do vírus.
Um trem chega, e até aí tudo bem – isso aqui
Ferrara, 2021)
por Leodoro Camilo-Fernandes
é o cinema after all – Ciotat ou Roma, ontem ou hoje. Na descida do trem: homens de máscara, Ethan Hawke de máscara; militares de armas em mãos; mangueiras limpam, desinfetam o chão da estação. JJ, o gêmeo militar que acaba de chegar, sai para a noite de uma Roma vazia. Parece que estamos mesmo num fim-de-mundo, parece que estamos no agora.
Há uma guerra e as máscaras (e o beijo de máscaras) não escondem que ela acontece no ar – assim como ela é também uma guerra que acontece nas/pelas imagens, câmeras e telas são armas e mapas: nesta Roma afogada na noite da guerra, a luz das ruas não é capaz de iluminar como o brilho individual dos celulares e tablets. “Ele é viciado nas telas”, diz uma traficante sobre seu segurança. As imagens de Ferrara vêm de
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Cristina Chiriac em Zeros e uns.
todos os lugares: câmeras militares, térmicas e infravermelhas; celulares em videochamada; uma televisão no lugar de um padre na missa; drones na noite da cidade; iconografia religiosa. Quando uma agente russa diz a JJ que solte sua arma, é uma câmera que ele primeiro solta ao chão, a pistola vai cair apenas depois.
Os prazeres ainda estão aqui neste fim-de -mundo: o sexo, a droga, o dinheiro. Duas moças se beijando são ofertadas a JJ com a certeza de que, nestes tempos de máscaras, “elas estão negativas”. O dinheiro que paga a droga é higieniza do com cuidado pelas mãos da traficante. Pouco depois voltamos a ver dinheiro em cena: se antes ele pagava pela droga, agora o gêmeo militar vai a uma igreja e deposita uma oferta no altar.
E Ferrara explode o Vaticano. A guerra de três mil anos. Jesus era só mais um soldado.
MANHÃ, AURORA, BOM DIA: o gêmeo revolucionário é capturado e submetido a um inter rogatório ao qual assistimos a partir da tela de um tablet. Em seu monólogo, através da defesa e do ataque do revolucionário, é Ferrara (e Woody Guthrie) quem fala: "this machine kills fascists". Ele cita um trecho de This land is your land, diz que é preciso mais do que só armas pra se matar um homem, que ele poderia incendiar a si mes mo (como é que ninguém está se incendiando?).
E é Ferrara quem grita com ele “Isto é um campo de batalha!”. Impossível não pensar em Samuel Fuller aqui, a film is like a battleground, nesta defesa do próprio cinema que Ferrara lança pela voz de Ethan Hawke. Como em Fuller, o cinema nas mãos de Abel é a arma e é a batalha de um cine asta que não está disposto a abrir mão de seus ideais. Também idealista do que está por vir: “se só escutarmos o que já conhecemos, nada de novo vai acontecer”.
Junto de JJ, o filme vai até a luz do dia. O rosto da criança sob a luz da aurora no colo da
mãe. Soldados se preparam, se escondem. O dia nasce: uma menina passeia saltitando na mesma rua onde antes passaram tanques. Nuvens no céu finalmente azul da manhã. Crianças jogam bola na praça onde antes se escondiam os solda dos. Uma mulher compra flores (ainda temos as flores). Carros voltam às ruas. E de pássaros em bando no céu, a câmera desce até duas crianças que andam de mãos dadas.
- Estar entre os vivos na nova (na mesma) aurora. †
91 zao † leodoro camilo-fernandes
Despir, vestir, fantasiar
por Roberta Pedrosa
As if there were no such thing as integrity!
Frank O'Hara
Sentada no sofá de seu moderno apartamento em Londres, Julie (Honor Byrne) veste uma jaqueta verde com uma estampa no bolso esquerdo que diz "U.S. Army". Ela olha atentamente fotos que pertencem ao seu namorado Anthony (Tom Burke). Ao perguntar-lhe onde as fotos foram tiradas ele responde "Afeganistão". Poderia se dizer que essa imagem resume a relação entre Julie e Anthony: a fascinação dela por ele passa por uma crença de que, por sua idade e por suas experiências, ele conhece mais do mundo, enquanto ela, uma estudante de cinema proveniente de uma família rica de hábitos quase aristocráticos, teria uma vida demasiado restrita à sua bolha social. Suas expe riências seriam tão artificiais quanto a estampa de sua jaqueta.
Mas apesar do lado explícito e até clichê de um relacionamento entre uma jovem e um homem mais velho, que acaba por seduzi-la por "saber mais da vida" e se aproveita dela para manter seus prazeres e seus vícios, dificilmente The Souvenir de Joanna Hogg e, diga-se de passagem, qualquer rela ção humana, poderia se reduzir a essa descrição. A sequência de filmes, mais do que a história de um relacionamento, é um exercício de compreensão de um momento crucial do próprio passado de J. H. (seja este de Julie Harte ou de Joanna Hogg).
Tomando certa distância, o relacionamento com Anthony é também um convite para Julie trocar de roupas, no sentido figurado e literal (no filme de Hogg as experiências contaminam mais os objetos do que as palavras). Ao lado dos casacos cor de rosa, e blusas largas de pijama passam a coexistir ternos sob medida e lingeries retrô. Anthony introduz um romantismo em Julie. Tal romantismo, ao mesmo tempo que sustenta diversos abusos cometidos pelo namorado, um junkie, viciado em heroína, é também a possibi lidade de sonhar de olhos abertos, de viver a vida em outros termos.
A dependência emocional e financeira da mãe, interpretada por Tilda Swinton (que além da mãe de Honor Byrne, foi atriz principal do primeiro curta metragem universitário de Joanna Hogg na década de 1980), vai sendo substituída aos pou cos pelas angústias do relacionamento amoroso e, especialmente na parte II, pelas angústias da rea lização cinematográfica. Mas nenhuma ruptura se dá de uma vez, e Julie abre e fecha os olhos, como quando se acorda no meio da noite e não se sabe o que pertence aos sonhos ou à realidade.
Se, por um lado, o filme é cronológico e bem delimitado, sendo o início da parte I o primeiro encontro entre Julie e Anthony e o final, a morte dele. E a parte II, iniciando com o luto de Julie e terminando com a exibição do filme feito em homenagem a ele. Por outro lado, há um elemento caótico, tanto pela própria personalidade de Julie,
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The Souvenir parte I e II (Joanna Hogg, 2019/2021)
indecisa e impulsiva, quanto pelo caráter experimental, metafórico e autoconsciente da proposta de direção de Hogg. The Souvenir é ao mesmo tempo um quadro, o filme que estamos vendo, o filme produzido por Julie e ainda um terceiro filme que é projetado em sua formatura (cujas imagens não são as mesmas que vimos sendo filmadas pela pro tagonista na parte II).
Essas sobreposições operam de várias maneiras. Por vezes diretas, como as repetições dos títulos e iniciais. Por outras vezes com mais sutileza, como nas diversas evocações imagéticas indiretas da pintura The Souvenir: seja pelo figurino romântico, pela constante leitura de cartas de Anthony e pelas paisagens clássicas inglesas que costumam vir acompanhadas dessas leituras.
De maneira geral, os filmes de Hogg, são sempre centrados em uma casa (em Exhibition de 2013 e Archipelago de 2010 a locação é tão protagonis-
ta quanto as personagens), e apesar do mesmo acontecer em The Souvenir, sendo o apartamento de Julie a locação central e o reflexo de sua vida interior, esse apartamento está sempre se meta morfoseando e a personagem muda de locação constantemente. Ela vive entre a faculdade, a casa da mãe, os sets de filmagem, a casa de amigos e na parte II, o seu próprio apartamento é parcialmente transportado e reconstruído dentro do set de filmagem. A mesma dinâmica acontece com todos os outros aspectos do filme, desde o forma to (filmado em 16mm, com inserções de super 8 e fotografias em preto e branco) até a trilha sonora, os figurinos, a quantidade quase excessiva de per sonagens que entram e saem. Essas coexistências de técnicas, estilos e pequenas incongruências não são tão marcadas a ponto de produzirem muito estranhamento. Há uma fluidez no filme que pare ceria impossível depois da descrição dos procedi-
93 despir, vestir, fantasiar † roberta pedrosa
Honor Byrne em The Souvenir.
despir, vestir, fantasiar † roberta pedrosa
mentos acima, mas o que parece unir tudo isso é a personagem de Honor Byrne, seu momento de novas descobertas, sentimentos e incertezas.
"Quem era Anthony?" É a pergunta que Julie tenta incessantemente responder na parte II, quando ela vai procurar entender não só que vida ele levava quando ela não estava ao seu lado, como também reviver através das filmagens momen tos que eles tiveram juntos. "Quem era Julie?" É a pergunta proposta por Hogg. Nas quase 4h que somam as duas partes da sequência, nunca presenciamos uma cena que Julie também não participe ou observe. Nenhuma das perguntas tem uma resposta, Hogg filma sempre de modo a adicionar uma nova camada de compreensão e contradição. The Souvenir é o oposto da caricatura, ao invés de reduzir as pessoas a uma caracte rística marcante, busca sempre ir mais adiante, construir mais detalhes, tornar as pessoas mais complexas (e em alguma medida menos origi nais). As 4 horas poderiam facilmente se tornar 8 ou 12 guiadas não pela busca de uma resposta, mas pela fascinação da pergunta. †
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Cruzes desfeitas
Benedetta (Paul Verhoeven, 2021)
por Tainah Negreiros Souza
Se o Jesus de Pasolini era um sujeito indignado, comunista “possuído por um desejo revolucioná rio”, o Jesus de Verhoeven é homem e é mulher. Ele opera em uma via dupla ou, no mínimo, ambígua, só possível de ser emancipatória através da mulher mundana que o encarna. Jesus existe através de Benedetta como desejo, como delírio e é através dela que a figura dele é forjada no filme. Trata-se de uma visão bem humorada do clichê do homem branco, barbudo e cabeludo que reconhecemos através do imaginário da freira e das visões que ela tem. De novo, Jesus só existe através de Benedetta seja como imagem, estigma ou como figura desejante e que deseja. O Jesus de Verhoeven só existe quando encarnado, o que faz muito sentido vindo de um cineasta material como ele é.
Jesus é ao mesmo tempo o estigma como metonímia da conexão corpórea dele com o mundo, como compreensão, proximidade, punição (do conhecimento construído pela dor), bem como Jesus é ela, Benedetta. Ele é a mulher apaixona da incontornável, louca, histérica – implodindo a neurose no seu nascimento histórico religioso – monstruosa, cruel, culpada e sem culpa, tudo junto operando transformações impossíveis se não pela manifestação de seus desejos profundos.
É Benedetta que faz o vai e vem, a conexão, a liga, desde criança ao avistar a mágica na natureza e ao levar a boca até o seio da estátua de Virgem Maria. Benedetta é uma figura cordão e os estig mas são a materialidade disso quando acontecimento ou quando farsa, sendo a possibilidade farsesca e performática mostrada em uma lógica de verdade da mentira ou como mais uma dimensão dessa personagem em transformação.
Seria possível falar de Benedetta quase que exclusivamente pelo prazer da iconoclastia de Verhoeven, mas felizmente há algo na construção de sua visualidade que é mais recorrente e interessante que isso: a representação das mulheres, de suas conexões e desejos. Isso está presente não só na dinâmica da atração e paixão de Benedetta por Bartholomea mas em todo o espectro dos gestos e ações das personagens, de como reagem em uma dinâmica de disfarce, extrema mostração e subversão, ou ainda no aspecto mais cotidiano da realização de pequenos prazeres, como na bela cena em que Benedetta e Bartho lomea celebram o novo grande quarto que tem para viver a paixão.
Pensei por um bom tempo sobre como os seios aparecem no trailer e no poster, temendo que o filme girasse em torno do fetichismo do realizador homem e da sexualidade lésbica ou bissexual das personagens. Contrariando toda sorte de suspeita, o seio é polissêmico no filme e vai desde a imagem do peito ferido e deteriorado de uma das freiras do convento até seu aspecto metonímico de conexão radical em instâncias diversas. O seio é um dos elementos de aproxi mação de Paul Verhoeven do universo físico das mulheres. O cinema do diretor gravita em torno da a sexualidade das mulheres com interesse, fas cínio e alguma devoção. Mais uma vez ele também examina e expõe as conexões entre mulheres para além da sexualidade. Mais do que a relação entre Benedetta e Bartholomea, chama a atenção, por exemplo, a conversa final entre Benedetta e Madre Felicitá, interpretada por uma sober ba Charlotte Rampling. Da relação conflituosa
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anterior, em que havia uma disputa de espaços, até um profundo entendimento. Há uma imensa compreensão mostrada ali, no comentário sobre a dor, na solidariedade depois do conflito.
Há uma repetição profícua na obra de Verhoeven de mostrar mulheres em circunstâncias que as colocariam em disputa mas cujas relações enve redam para uma aproximação ambígua e, poderia dizer, afetuosa. Foi assim com as mulheres conectadas de Verhoeven em Showgirls (1995): seja Nomi (Elizabeth Berkley) e Molly (Gina Ravera) ou na central conexão entre Nomi e Cristal (Gina Gershon), cuja disputa orienta todo o filme e em torno dela uma fisicalidade bastante específica é construída para desembocar em um laço, um vínculo que elas decidem estabelecer. É assim também que acontece entre Michèle (Isabelle Huppert) e Anna (Anne Consigny) em Elle (2016). Antes uma foi amante do marido da outra e, depois, ainda mais amigas e talvez amantes. O último plano do filme é delas em uma conversa amena, em uma outra possibilidade de convivência em um filme de homens miseráveis todos. Entre homens mise ráveis todos também a freira Benedetta e a Madre Felicitá vão da benção às profecias que elas lançam não só sobre o vilarejo que abriga o convento mas
sobre uma ordem que elas se unem para desfazer a partir daquela inesperada aproximação. Verhoeven não consegue fugir da investigação da diversidade de motivos e forças que faz com que mulhe res se vinculem e esse, para além da iconoclastia, é o mais belo trunfo de Benedetta. †
96 cruzes desfeitas † tainah negreiros souza
Eléna Plonka em Benedetta.
Sobre este cinema de luz
Um Mundo Flutuante (Jean-Claude Rousseau, 2020)
por Fernando de Mendonça
Sobre este cinema de luz, como bem podemos denominar o conjunto integral de filmes de Jean -Claude Rousseau, haveria mesmo de recair o peso de uma responsabilidade, de um compromisso direto com os contornos do mundo, não para que de alguma forma ele seguisse a contramão de sua latência – toda ela alheia a isso que por aí chamam de cinema responsável, ou necessário, pior adjetivo que se pode dar a um filme neste primeiro quarto de século, como se tem feito tão habitualmente por cinefilias da cultura, junto a produtos e polê micas do momento –, mas, para que se cumprisse tudo aquilo que subsistia na poesia/profecia desde as primeiras imagens e sons captados por sua inquietação de estar e permanecer em um mundo de formas falíveis. Sim, cada peça desta filmogra
fia, dos curtas mais inofensivos aos longas de combate, todos os caminhos de Rousseau apontavam na direção da culminância que se atinge em Um mundo flutuante. Uma trajetória de anunciação. De iluminação. De luz, ao fim e ao princípio de tudo.
Dificilmente não se pensará para sempre que o legado deste realizador, desde a sua estreia há já quase quarenta anos, foi um dos que mais profundamente contemplou a redução humana em seu absoluto estado de isolamento, por meio de imagens, quadros, janelas e espelhos de uma precisão filosófica e, por isso mesmo, irresoluta e irrestritamente aberta. De tudo o que já se pensou e falou sobre a sua propensão ao estar só em um mun do fechado (de pequenos quartos a insondáveis vales), é certo que não se diminui a surpresa de
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encontrarmos hoje, neste cinema-de-câmara, um dos espíritos mais efetivamente preparados para enfrentar, com a câmera, o enjaulamento pandêmico que varreria o globo no ano de 2020. Pois foi ali, no olho do furacão, que um cineasta respondeu ao presente como se falasse a todos os tempos da história terrestre.
Das cartas e movimentos testamentários (Moça Lendo uma Carta à Janela, Jeune Femme à la Fenêtre Lisant Une Lettre, 1983 / Keep in Touch, 1987) às ruínas e densas escuridões (As Antiguidades de Roma, Les Antiquités de Rome, 1991 / O Vale Fechado, La Vallé Close, 1995) que muito habitaram o imaginário de Rousseau, chega-se hoje ao consumado olhar de seu vertiginoso esvaziamento formal e narrativo. Àquilo que o mundo se reduziu nos últimos dois anos era tudo ao que este realizador se impunha em sua vida criativa, desde sempre. À simplifica ção de meios e técnicas que se limitaram artistas condizia toda a rotina pregressa deste homem e de sua visão. A rigor, falamos de um cinema sem necessidade de redirecionamento, pois todo ele, em si mesmo, já nos traz em sua ontologia esta condição de desvio, de realocação e imediata refração do real. Uma ascendência congênere ao que se traça desde os primeiros cinemas e da guarida encontrada neste gesto de capturar imagens, de emoldurar matérias, de amparar memórias.
Não por acaso, o centro dramático de Um Mundo Flutuante, ancora-se – como num filme clássico – ao dilema existencial de um objeto: um guarda-chuva esquecido pelo próprio Rousseau em um quarto de hotel no Japão. De um elemento que se justifica pela sua qualidade de amparo, desampa ra-se a memória e se ironizam as mazelas do esque cimento, questionando-se sua real procedência, pois, em um filme (mesmo nos de alguém a quem se teima em aprisionar ao documental), toda lembrança e apagamento subsistem como procrasti nação da vida, como um arroubo de ficção. Vem daí a divertida armadilha deixada pela montagem
da cena em que o próximo hóspede encontrará o objeto perdido e pensará no que fazer a respeito, em um momento quando o “ator” (todas as aspas possíveis a este corpo no mundo) erra sua posição, sorri e se desculpa para a câmera / para Rousseau / para nós.
Para que se documente a vida, é preciso inventá-la. Para que se enxergue a luz, é preciso sombre á-la. Na recente e definitiva flutuação de Rousseau, todas as potências enfatizam que não se podem temer a ilusão e a escuridão; dessas, advêm todo o efeito contrário de seu cinema. Vê-lo afundado na sombra de uma representação com seu próprio corpo, expondo seu dispositivo numa coerência que remonta ao que já compunha nos anos de 1980, dá-nos a solene quietude de uma solidão consciente, austera, modulada por uma escolha pessoal de ocupação do mundo. Curiosamente, de um autor que sempre incomodou e desafiou as maneiras de olhar, oferta-se hoje um filme que, pelo seu equi líbrio e contenção, pode nos apaziguar e renovar a esperança de que, sim, a despeito dos tempos, continuaremos a ver, a lembrar, a resistir e dizer: estivemos aqui. †
98 sobre este cinema de luz † fernando de mendonça
Kimi
Kimi – Alguém está escutando (Steven Soderbergh, 2022)
por Luiz Fernando Coutinho
Antes do lançamento de Kimi, o novo filme do prolífico e sempre interessante Steven Soderbergh, o cineasta definiu-o como uma mistura de Janela Indiscreta (Alfred Hitchcock, 1954), A Conversação (Francis Ford Coppola, 1974) e O Quarto do Pânico (David Fincher, 2002). Hoje, depois de visto o filme, podemos lhe conceder que a equação parece perfeitamente adequada – e equação, talvez, sendo a melhor palavra para descrever esse processo simbiótico a que se dedica Kimi. Por outro lado, e coincidentemente, o filme se inscreve em uma tradição ainda ante rior, transversal ao tema de nosso dossiê: não
seria este um “filme de mulher paranoica” (como diria Mary Ann Doane), que já nos anos 1940, em Hollywood, debateu a sanidade ou insanidade da testemunha feminina de um crime?
Recentemente, vimos a Netflix voltar a se interessar por essa personagem, seja em A Mulher na Janela (Joe Wright, 2021) ou em sua delicio sa paródia A Vizinha da Mulher na Janela (Rachel Ramras, Hugh Davidson e Larry Dorf, 2022). Kimi, entretanto, se desvia desses na medida em que é o ponto de encontro entre Testemunha do crime (Roy Rowland, 1954) e a trilogia da para noia de Alan J. Pakula, ou seja, na medida em que
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Zöe Kravitz em Kimi.
integra o doméstico ao macropolítico, o íntimo ao corporativo: estamos, afinal, em um filme de Soderbergh. Estamos?
Podemos dividir a carreira de Soderbergh em dois segmentos. Em um deles, ele é o cineasta das narrativas polifônicas, cuja imagem que melhor as descreve é a do mosaico (título, aliás, da minissé rie que dirigiu em 2018). Em Contágio (2011) ou na trilogia Ocean’s, em Bubble (2005) ou em Nem um Passo em Falso (2020), em Traffic (2000) ou em Magic Mike (2012), chega-se mesmo a sentir que não há protagonistas. Em um texto sobre O Homem Leo pardo (1943), de Tourneur, Manny Farber descreve perfeitamente esse tipo de narrativa “que não é dominada pela atividade, peso, tamanho ou ritmo da figura humana”.
Kimi, nesse caso, se insere no outro segmento: está mais próximo de Erin Brockovich (2000) ou de Confissões de uma Garota de Programa (2009), filmes centrados em uma personagem feminina que, contra as agruras do capitalismo corporativo ou das crises econômicas, impõe seu peso, sua atividade, seu tamanho e seu ritmo. Kimi é, de certa forma, o que Contágio seria se pertencesse a esse segmento das narrativas focalizadas: diante de uma epidemia, o que era um olhar global e impessoal se tornaria – e se torna – o retrato de uma mulher (Zoë Kravitz, na linhagem de Julia Roberts, Sasha Grey ou Claire Foy), cuja presen ça determina todo o filme.
Apesar desse enfoque no “indivíduo em rela ção de forças com o capitalismo” – ou talvez por causa desse enfoque –, o filme integra de manei ra fascinante o contexto epidemiológico em que nasceu: para além do drama da personagem, cuja agorafobia foi agravada pelo coronavírus, estamos diante de um filme que, em termos de produção, reduz sua locação principal a um apartamento e, quando nas cenas externas, assimila a necessidade da filmagem ligeira à ansiedade desesperada da
protagonista. É um filme “menor” que, engenhosamente, tira o melhor proveito de suas condições restritivas de produção. É também o que realiza Kimi, afinal, quando converte o dispositivo de inteligência artificial em instrumento de fuga ou a pistola de pregos em arma.
Kimi é um dos melhores filmes de Soderber gh. É a memória do cinema e a inteligência do artesanato. Desde Ligadas pelo Desejo (1996), das irmãs Wachowski, não víamos um filme de apartamento em que a câmera desliza de forma tão habilidosa, perscrutando os espaços e agindo como vetor emocional para o exercício de gênero. Quando, no final, a câmera flana pelo apar tamento e encontra a janela, metaforizando o percurso da protagonista em direção a sua liber dade, nos perguntamos: teria Soderbergh final mente abandonado o cinismo? †
100 kimi † luiz fernando coutinho
Mesa-redonda
Mesa-redonda
“A Filha Perdida”
por Fernando de Mendonça, Luiz Fernando Coutinho, Letícia Weber Jarek, Miguel Haoni, Roberta Pedrosa, Tainah Negreiros e Victor Cardozo
Miguel: No dia 31 de dezembro de 2021, a Netflix lançou o filme de estreia da Maggie Gyllenhaal, A Filha Perdida. Adaptação do romance de Elena Ferrante, o filme narra a história de uma perso nagem chamada Leda Caruso (Olivia Colman), que, numa viagem à Grécia, se vê confrontada por dois planos de realidade: um plano estran geiro, encarnado por uma família, e mais especificamente por uma jovem mãe chamada Nina (Dakota Johnson) que também está de férias no balneário; e outro plano interno, nas memórias
que lhe assombram, que penetram o tecido fílmico através de flashbacks. O filme teve certa repercussão, mas produziu uma reflexão que nos pareceu insuficiente. E é devido à vontade de retornar a esse filme, de conversar mais sobre ele e sobre tudo o que ele provoca, que nos reunimos aqui nessa manhã, nesta mesa-redonda. Tivemos a primeira impressão de que as críticas ao filme não davam conta da sua complexidade: ou muito gerais, ou muito essencialistas (é um filme bom ou ruim, gosto ou não gosto), os textos se aven
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turaram pouco pelos seus meandros, penetra ram muito timidamente nos seus segredos. Num segundo momento, descobrimos que, na verdade, existem várias explorações interessantes deste filme, mas vindas de outros lugares. A cinefilia clássica, arvorada na história do cinema, acabou não entendendo o suficiente, enquanto gente que vinha da literatura ou da psicanálise parecia ir bem mais longe naquilo que o filme oferecia.
Letícia: Como o Miguel disse, quando eu vi o filme aqui em casa, fiquei presa nesse ciclo de recepção negativa. Num primeiro momento, eu não gostei do que vi mas, com o tempo, ele foi se condensando e gerando outras impressões. Eu assisti três vezes A Filha Perdida; não gosto do filme, mas acho que é uma obra interessante. Nesse sentido de um filme que gerou e continua gerando recepções bem extremas e extremistas, cada um no seu polo, eu cheguei a uma formulação: me parece que A Filha Perdida é um filme de tran sição, que se coloca num espaço intermediário, e que permanece, até então, na história do cinema americano comercial um tanto excepcional, ten do em vista sobretudo a representação materna. Quer dizer, durante muito tempo, a representa ção feminina e materna encontrava ou uma forma endeusada, santificada de uma mulher e mãe perfeita, ou um retrato completamente maligno, de uma mãe fálica, dominadora, hitchcockiana. Com pouca frequência, encontramos no cinema clássico hollywoodiano mães, no protagonismo, que são também mulheres que desejam, que são ambíguas e complexas, como é o caso de Stella Dallas (King Vidor, 1937) e Mildred Pierce (Michael Curtiz, 1945). Porém, ainda assim, são personagens, atrizes e cineastas que parecem lutar contra um discurso normativo que tenta colocar, a qualquer preço, o que seria a imagem saudável e plausível de uma mulher, também mãe, obrigato riamente dentro da regra, ou seja, uma santa ou uma puta – essa última, uma mulher indigna da
função materna. Dessa maneira, me parece que A Filha Perdida trabalha nesse meio-termo, tenta se colocar nesse lugar indefinido. E é muito curioso como o próprio filme parte e termina na fronteira, com a Leda à beira da praia, entre o mar e a terra, sendo marcado também por signos muito contraditórios. A princípio, temos um filme de praia, solar, num espaço belíssimo, extremamente burguês, mas que é contaminado por signos menos positivos, como a ferida da Leda, a gosma que sai da boca da boneca, os animais que entram na casa de veraneio. E revendo o filme, todos esses outros signos dessa face obscura me pareciam ser extremamente interessantes, sobretudo, pela forma com que eles dão a ver a adaptação de Gyllenhaal do livro de Elena Ferrante. Não acho de maneira alguma que esses signos sinis tros, obscuros, estão de um lado maligno; acho que eles denunciam o espectro da mãe endeusada e perfeita que parece, justamente, assombrar e amaldiçoar a própria Leda, na medida em que ela carrega uma culpa latente de não ser justamente esse tipo de mãe.
Fernando: Eu queria trazer um ponto, logo aqui no começo, porque eu acho que ele também aju da a gente a pensar o filme inteiro. E eu queria começar pela última frase do filme e do livro que, para mim, é a chave. Claro que a gente está trabalhando aqui com uma adaptação e já é consenso, há muito tempo, que não se pode esperar a mesma coisa num filme que nasce de um livro. Isso é óbvio. Mas o livro existe, a evidência dele hoje em dia é muito grande e não dá para ignorar. Quando eu vi o filme, o que mais me chamou atenção nas decisões da Maggie Gyllenhaal, em relação ao tratamento que a Elena Ferrante dá àquele enredo, está na última frase, porque no filme a personagem termina dizendo: “eu estou viva”. A protagonista telefona para suas filhas e uma delas estranha, devido o seu sumiço, e diz: “mãe, a gente estava pensando que você tinha morri
103 mesa redonda † a filha perdida
do”. Ao que ela responde: “não, eu estou viva na verdade”. E, no livro, é exatamente o oposto, a filha pergunta “pode nos dizer se você está viva ou morta?” e ela responde “eu estou morta, mas eu estou bem”. E eu penso que essa diferença, nos dois tratamentos, mostra uma decisão em relação ao tempo da personagem, porque falar de vida e falar de morte é falar de tempos diferentes da existência. E se tem algo que, para mim, careceu de uma abordagem mais depurada no filme é justamente a da temporalidade da personagem que se esclareceu nesta última frase. Eu passei o filme inteiro admirando algumas coisas, me incomodando com outras – o que é completamente natural –, mas o que mais me saltava aos olhos, no decorrer do filme, é que ele não estava me dando o tempo que o livro me deu. Porque o livro tem uma dinâmica de narração muito vigorosa. A Elena Ferrante tem livros muito diferentes ape sar dos temas muito semelhantes. Ela tem livros mais curtos, enquanto outros possuem um núme ro colossal de páginas. E esses livros mais curtos têm uma poeticidade muito concentrada, então a gente atravessa o livro sentindo o movimento, sentindo muito vigor na narrativa. E no filme da Maggie, eu não senti isso. Então, enquanto eu assistia ao filme, esse foi o meu primeiro choque. Porque trata-se de um filme longo para o padrão narrativo da Elena Ferrante, que aposta num tratamento de tempo que não me parece a aborda gem temporal trabalhada pela Ferrante no livro. E foi aí que eu percebi o meu incômodo diante
do filme. Não pelo enfoque do tema da maternidade, pois acho que a Maggie se apropriou bem dessas questões temáticas do livro, mas eu sinto que ela pesou a mão no trabalho em relação ao tempo, que ela poderia ter encontrado outros caminhos, por exemplo, para falar sobre o pas sado da personagem. Me incomoda o excesso de flashbacks, me incomoda o excesso de memórias… isso se deve também ao trabalho da grande Olivia Colman. O trabalho da Colman é tão primoroso que a gente quer mais Colman em tela. E como sai muitas vezes dela, isso vai fazendo o filme se desequilibrar. Para mim, o filme se desequilibra justamente por essa decisão temporal de querer nos mostrar uma personagem que está viva quando, na verdade, ela está morta. Justamente a minha ideia é essa, de pensar como “vida” e “morte” afetam o público. Eu sinto que a polêmica em torno do filme é diferente da polêmica em torno do livro, porque essa decisão do livro pela mor te, nos dá uma personagem, eu diria, muito mais “honesta”. Uma personagem muito mais transparente na sua crueldade, no seu egocentrismo, na sua necessidade de pensar em si acima de todas as coisas. E no filme, por haver a decisão pela vida, há essa vontade de “ah, vamos ser um pouco simpáticos com a personagem” e eu acho que, nessa tentativa de criar simpatia pela persona gem, abriu-se a margem para uma polêmica em torno do filme que acaba circulando, se atendo e se limitando à questão da maternidade, e não é só isso que importa no livro.
104 mesa redonda † a filha perdida
Tainah: Eu só queria seguir com a palavra, porque essas duas frases finais delimitaram justamente o meu ponto de partida. Foi essa mudança coloca da pelo Nando que me fez ficar pensando mais tempo sobre o filme. Quando eu vi a mudança do “estou morta, mas bem”, que é algo muito bom no livro, para “estou viva”, fiquei pensando por um tempo sobre isso. Há ainda alguns aspectos que eu senti que ficaram ainda mais organizados, a partir da fala do Fernando, como, por exemplo, essa sensação de que o filme é sem acúmulo. Falo, inicialmente, como uma espectadora incomodada. Ao mesmo tempo, gosto de algumas coisas. Uma das coisas que eu mais aprecio, no livro, é a sensação de invasão do que deveria ser um espaço de prazer e de emancipação daquela mulher. Leda estava ali na praia, porque “chega de filhas, né?”, e a chegada daquelas pessoas a ameaça. Acho que a figura ameaçadora das mulheres napolitanas é muito interessante e funciona visualmente. Quan do chega o barco com “a invasão” até eu fiquei “ah, lá vem esse pessoal…”, em um alinhamento com a personagem. Mas eu permaneci incomodada durante o filme inteiro por várias razões. O que mais me incomodou é que ele é muito respeitoso com a obra original e eu acho que, na adaptação, a palavra de ordem não deve ser “respeito” ou “fide lidade” com a obra. Acho que a Maggie escolheu respeitar as ações, concatenando-as da mesma forma dada pela Ferrante, mostrando tudo que o livro descreveu outrora. Isso me incomoda mas, ao mesmo tempo, o filme demorou comigo, eu senti que detestei, mas ele se manteve na minha cabeça, eu fiquei pensando... Sobretudo pelas atrizes, a Colman e a Dakota. Eu gosto muito dela no filme e gosto do confronto de morais maternas, mas, agora, depois do que o Nando falou, penso que não era para ser uma moral materna da Colman, pois ela estava ali para não ter que obedecer a esse tipo de regra e, no filme, a culpa volta... Ele tem uma dimensão de culpabilidade.
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Roberta: Eu acho o começo do filme muito forte. Assim como a Tainah, eu gosto do momento em que os turistas “invadem” a praia ameaçando a paz da Olivia Colman. É uma experiência turística muito comum e o filme acessa com muita pre cisão esse sentimento de frustração. Me agrada especialmente como o começo é silencioso, Colman ainda está reconhecendo o espaço, o ritmo do filme está de acordo com o ritmo da performance dela. Já no começo há um uso simbólico das frutas, que são lustrosas por cima e podres por baixo, mas a cena é cotidiana o suficiente para que isso passe quase despercebido. No decorrer do filme, eu sinto que não há mais tanto espaço para a sutileza, se criam muitos flashbacks e mui tos momentos de suspense, com um uso enfático da trilha sonora guiando o olhar do espectador de maneira muito explícita. Eu acho que esses recursos muito insistentes acabam com a parte mais interessante do filme que é o mistério dessa personagem: a ambiguidade das suas motivações e das suas ações.
Para mim, existem dois lados na personagem da Olivia Colman. Primeiro, o aspecto político -social que ela encarna, um sentimento comum a muitas mães: a frustração, a impaciência e a sobrecarga, que são geradas pelo lugar social da maternidade. Segundo, um aspecto particular da Leda: que é perversa. Ela sente culpa, mas tam bém prazer em roubar a boneca e em desestruturar a família da criança, e ela inclusive deixa a boneca à mostra quando o Ed Harris vai visitá-la. Ao longo do filme esse mistério-perverso vai perdendo espaço, as cenas com a Colman se tornam mais rápidas e com menos continuidade, sempre intercaladas com a entrada de outras persona gens ou flashbacks.
Fernando: Eu queria voltar a uma expressão que a Tainah usou, acho que com muito bom gosto: “invasão de um espaço de prazer e emancipação”. Eu penso, exatamente como a Tainah, que o filme
é sobre isso. E isso excede as questões da maternidade. Nesse ponto, para mim, uma cena chave do filme, e aí eu falo especificamente do filme, porque para mim foi a grande cena dele, em que a Maggie fez algo melhor do que estava no livro, é a cena em que a Leda vai ao cinema – o que nos interessa muito já que estamos falando de cine ma. No livro, a cena dura um parágrafo curto e, quando eu li, não me chamou atenção. Mas no filme, para mim, essa cena é nuclear. E, aqui, há um grande acerto da Maggie, e eu queria – assim como já destaquei algumas coisas que me desagra daram – destacar o lado do acerto também. Essa cena é um grande achado, porque nela a persona gem não está ali como mãe, não está em questão a autonomia, a relação acadêmica, enfim, ela é público de cinema ali dentro. Ela quer ver um fil me e ela não consegue porque entra um grupo de jovens desordeiros e fazem um barulho infernal e eu estaria na mesma posição dela. E a maneira como Olivia interpreta é fascinante. Para mim, é um dos maiores momentos dela no filme, ela treme os lábios, a gente sente a raiva – eu estaria me tremendo todo também lá naquela situação, mas talvez menos porque eu sou homem. E ela, enquanto mulher, quando se levanta para gritar contra aqueles jovens, não consegue nada além de um pouco mais de desrespeito e de incômodo – e “incômodo”, para mim, é uma palavra-cha ve na obra da Ferrante que, nesse momento, a Maggie consegue resgatar muito bem. Quem vai conseguir calar aqueles jovens, por um tempo muito curto, é um homem que se levanta e gri ta, porque a personagem da Leda não consegue nada. Tainah falou “invasão de um espaço de prazer e emancipação”, e o que é o cinema senão um espaço de prazer e de emancipação? Por isso eu queria voltar a essas palavras porque, nessa cena, a gente vê o prazer e a emancipação impedidos ao personagem da Leda. Ela não consegue nem o prazer nem a emancipação por causa de todo
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um contexto externo, opressor, que não a per mite ver o filme, mesmo que o filme seja ruim. No livro, a Ferrante diz “mesmo que o filme seja ruim, ela quer ver o filme”. A gente nem sabe exatamente qual é o filme que passa ali dentro. E eu volto àquilo que eu tinha dito antes: são esses momentos de presente que mais me interessam no filme.
A Roberta mencionou o personagem do Ed Harris que, para mim, é muito interessante. E eu não tenho visto ninguém falar sobre ele, pois só vejo falarem sobre as mulheres, mas eu acho que é muito importante, quando a gente olha uma obra feita por mulher – seja na literatura, seja no cinema, seja qual for – ver como é dado o tratamento aos personagens masculinos. Geralmente, a crítica e o público só se preocupam em ver como as mulheres estão tratando as mulheres. Mas é muito importante ver como elas estão tratando os homens. O Ed Harris, em si, é um ator que me parece vir de um histórico interessante nessa relação, em filmes que parecem “para mulheres”.
Eu me lembro dele num filme dos anos 90, Lado a Lado (Chris Columbus, 1998). Quando esse filme saiu disseram “nossa, o Ed Harris está deslocado nesse filme porque só tem mulher”, e o Ed Har ris está lá. Quando saiu As Horas (Stephen Daldry), em 2002, o filme é dominado por mulheres, mas Ed Harris está lá. Ele tem esse histórico que parece, na carreira dele, de conseguir se encaixar como uma presença bem-vinda num universo de mulheres, e é isso que acontece aqui, em A Filha Perdida, porque ele é um homem que não ameaça a existência da Leda. O tom de ameaça que há nele se dá a ver apenas na cena em que ela o vê com os amigos. Mas quando ele vai visitá-la sozinho não há nada ali que me pareça com uma “ame aça masculina”; há uma aliança, um diálogo, um entendimento, há quase um espelhamento que está acima das questões de gênero. Há um con tato humano entre a Leda e o personagem vivido pelo Ed Harris. Para mim, foi desnecessário eles terem mudado os nomes dos personagens do livro, ali o personagem vivido pelo Ed Harris se
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chama Giovanni, o ex-marido da Leda se chama Gianni, e o rapaz que é o salva-vidas se chama Gino. Os três homens que a cercam têm prati camente o mesmo nome e no filme isso se perde. Então, é interessante ver como esses personagens masculinos vão ser espelhamentos das alteridades que a Leda precisa ao mesmo tempo enfrentar e resistir, mas também tocar, se irmanar, conversar para poder sobreviver nessa sociedade opressora.
Letícia: Eu gostei do comentário da Tainah e do Fernando por retomar, justamente, a frase final do filme e do livro da Elena Ferrante. Durante um tempo, eu não conseguia me desvincular da conclusão proposta pelo livro (“Eu estou morta, mas estou bem”) que, a meu ver, trata-se de uma grande provocação – como espectadora, eu gos taria que essa provocação fosse recuperada pelo filme, nesses mesmos termos. Só que refletindo sobre a história do cinema e da representação de personagens femininas nessa tradição clássica e comercial, é muito difícil encontrar uma mulher independente, que é apenas uma mulher. E, de certa maneira, essa mesma história, que depois ganha outros rumos com a Nova Hollywood (que também não valorizarão esse tipo de per sonagem), e na qual se inscreve também a Maggie Gyllenhaal, lançou pra mim uma outra luz, talvez mais justa, sobre a escolha de terminar o filme afirmando que Leda está viva – “I’m alive, actually”. Porque, me parece, que esse tipo de personagem permaneceu muito tempo morta no cinema e que, na literatura, na verdade, encon trou um respiro. Existe uma diferença, com a qual nos batemos aqui, entre essas duas artes que oferecem desenvolvimentos diferentes para essa personagem, com tempos e espaços diversos – em suma, o problema da adaptação. E, no final das contas, não estamos falando de uma realizadora que produz num quadro mais livre. Ainda que ela seja uma atriz independente, tenha produzido o filme num âmbito independente e vendido para
a Netflix, perdura ainda uma moldura simbólica e estética que exerce uma espécie de pressão nas escolhas formais de A Filha Perdida.
Eu gosto dessa frase final, contudo, concordo com o Fernando e a Tainah quando discutimos a fidelidade/infidelidade em relação ao livro. Pois a Maggie Gyllenhaal parece se ater ao que ela pode ria descartar como elemento narrativo e altera gestos aos quais ela deveria se atrelar. Por exemplo, o momento em que ela resolve revelar os três anos de separação de Leda e suas filhas: quando a Leda de Ferrante fala sobre isso na loja de brinquedos, ela revela esse dado como uma afronta ao mundo burguês da família napolitana enquanto, no filme, não só essa informação crucial é guardada para um outro momento (mais íntimo), mas ela surta sem quase nenhum motivo aparente, mostra sua fragilidade e sai correndo. Numa outra cena, que se apresenta pra mim como um verdadeiro nó, um problema do foco da adaptação, o professor com quem ela tem um caso a repreende quando ela diz que não gosta de falar com suas filhas no telefone, afirmando que ela não deveria dizer isso. Para mim, isso se apresenta nitidamente como condenação fílmica frente à postura da personagem. E eu acho que, ainda que o sexo e a interação entre esses per sonagens esteja presente no livro da Ferrante, a Maggie Gyllenhaal acaba confundindo, uma confusão aliás muito própria ao cinema americano, a vida independente de uma mulher com a sua vida sexual; o desejo feminino não se refere unicamen te ao sexo, aos homens, existe também um desejo intelectual. No momento em que ela assiste a palestra do professor, a montagem mistura planos em que ela está transando com ele – a vulgaridade dessa simplificação, reduzir as ambições femininas ao âmbito sexual, é sem limites. E, por fim, outra falha da transposição que me perturba bastante é quando a ligação final, que conclui o filme, parte da Leda, e não da filha como no livro da Ferran te. Nesse sentido, o ciclo de condenação parece
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se fechar, como se sua filha nem se preocupasse com ela. Porém, eu entendo que a literatura como espaço feminino para criação oferece um pouco mais de liberdade, é menos sufocante que o cinema, uma produção a priori individual contra uma realização coletiva. O cinema parece impor um quadro simbólico do qual é difícil se emancipar, de maneira que a Gyllenhaal acaba caindo numa armadilha que ela gostaria de fugir.
Coutinho: Por mais que eu goste muito do livro, eu queria focar no filme enquanto objeto autô nomo. Falou-se muito sobre adaptação, mas me interessa também perceber as singularidades do filme. Depois da revisão, o que mais me impressionou – e isto é algo que vai de encontro à ideia de que este seria um filme disforme ou pregui çoso, sem uma “ideia cinematográfica” por trás – é a forma como a Gyllenhaal estrutura o fil me inteiro a partir do olhar da Leda. Não existe praticamente nenhuma cena em que não vejamos ou o corpo dela ou aquilo que o olhar dela, e somente ele, permite acessar. Toda a decupagem se dedica ao corpo da personagem, fazendo com que as ações externas à Leda só sejam vistas pelo ponto de vista dela ou pelo eixo do seu olhar. Nas duas vezes em que a Leda tira um cochilo, por exemplo, o filme é obrigado a lidar com a elipse. É uma dedicação muito intensa à personagem; uma dedicação que não deixa de ser uma forma de atenção e de generosidade (para lembrar da frase da Simone Weil que está no filme). Os únicos momentos em que a Gyllenhaal tensiona esse esquema de decupagem são aqueles em que a Nina devolve, de certa forma, o olhar; a Nina sendo essa personagem que é uma força misteriosa, que escapa, difícil de decifrar... É um filme muito rigoroso, que persegue de forma incan sável essa ideia de decupagem. Até os flashbacks são filmados assim, e funcionam como um olhar direcionado ao passado, ou para dentro.
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Sabe-se que a Gyllenhaal começou a traba lhar no filme enquanto estava fazendo The Deuce (David Simon e George Pelecanos, 2017), onde ela interpreta uma cineasta absolutamente atenta aos seus atores e atrizes. É um dos grandes papéis da última década, aliás. Me parece que, sendo a Gyllenhaal essa atriz que pulou para a realização, ela se interessa muito, enquanto diretora, em observar as atrizes com curiosidade. Essa é uma palavra-chave: curiosidade. A câmera tenta a todo momento descobrir alguma coisa que as atrizes podem revelar: um olhar mais insistente, um rosto que se vira para evitar contato visual, uma lágrima que luta para não cair, um lábio que treme, como diz o Fernando...
Miguel: A experiência da Maggie Gyllenhaal como atriz traz para o filme aquilo que ele talvez tenha de mais rico. Isso começa já na esco lha do elenco. O Fernando falou do Ed Harris, mas precisamos retornar à presença da Dakota Johnson, por exemplo, que carrega uma carga simbólica que a precede, que ultrapassa o seu trabalho. Filha da Melanie Griffith e neta da Tippi Hedren (de Os Pássaros e Marnie, Alfred Hitchcock, 1963 e 1964), ela traz para a cena a memória histórica da representação do feminino no cinema, da maternidade e da violência con tra as atrizes. Tudo isso é quase inevitável. Além dela, tem outros dois personagens secundários, recentemente descobertos (pelo menos por mim) que eu queria destacar: o marido da Leda (Jack Farthing) é o Príncipe Charles de Spencer (Pablo Larraín, 2021), a encarnação do príncipe-sapo, nos estudos que fizemos sobre o female gothic. E, na noitada embriagada com os dois viajantes, a mulher italiana (Alba Rohrwacher) é a louca do corvo de Três Andares (Nanni Moretti, 2021). A Filha Perdida quase abre um diálogo entre os dois personagens recentes dessa mesma atriz.
Uma coisa que acontece nessa cena, entre outras, é que ela revela o quanto nós somos des
preparados para desvendar o que acontece entre duas mulheres que se olham. Nesse filme, as mulheres se olham muito, mas esses olhares sem pre nos escapam, bem diferente do que acontece nos olhares entre homens ou entre um homem e uma mulher, que são mais rapidamente legíveis, muito mais codificados. Esse é um signo um pou co bloqueado na linguagem audiovisual. Tudo permanece sob o manto do "mistério".
Tainah: Eu pensei em Spencer, na princesa Dia na e em filmes que se alinham com um desejo de emancipação das personagens, mas a câmera, às vezes, retoma uma clausura. Quando eu vi Spen cer, eu fiquei muito angustiada porque o filme reitera formalmente o aprisionamento, numa certa psicologia da Diana até que, finalmente, do meio para o final, ela passa a correr e escapar do plano. Pensando como uma demarcação de diferença, me soa interessante. E aí, em A Filha Perdida, eu fiquei pensando muito sobre enquadramentos que se revelam claustros, sobre aprisionamentos na forma de movimentos de câmera, aspec tos incômodos…Mas eu queria retomar que eu vim aqui para defender o filme e eu não conclui indo para uma defesa, porque eu fiquei, enquanto assistia, quase que todo o filme rabugenta. Mas eu fui cedendo e eu acho que aí as atrizes foram fundamentais. Mesmo com todos os incômodos, mesmo com todas essas sensações de reiteraçãode que a câmera muitas vezes insiste naquilo que a personagem gostaria de se afastar -, eu ainda senti uma imensa compreensão do cansaço, tanto pela parte das atrizes quanto pela parte da Maggie, e isso me conectou com o filme. Talvez ela não tenha conseguido traduzir algumas coisas que me agradaram no livro, mas existe uma compreensão misteriosa: a compreensão de um cansaço da mãe branca - não podemos esquecer que nós estamos falando de uma maternidade específica. Eu sinto que elas comungam disso e isso transparece no filme, faz parte do mistério dele e aí volta para
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aquilo que o Miguel estava dizendo, tem a ver com os momentos em que elas se olham, todas. Acho que está traduzido nesse olhar. E, durante a conversa, eu lembrei de uma frase que aparece em mais de um filme da Agnès Varda: "eu estou feliz e não estou" – o primeiro é Uma canta, outra não (1977), o outro é Documenteur (1981). Eu acho que essa frase possui a mesma distância entre o "estou morta" e o "estou viva”: como uma corda, ora tensionada, ora solta, que o filme mantém, contudo, sempre esticada. Eu, no fundo, no fundo, fiquei feliz com a resolução final, pela vida, mesmo com a infidelidade ao livro, mas por uma questão pes soal de gostar das mulheres sobrevivendo nos filmes. Então assim, pessoalmente, quando ela diz que está viva... "Ah, sei lá, que bom!", sabe?
Então, eu só queria compartilhar uma parte dessa inquietação. Realmente ter lido o livro e ter tido uma grande empolgação com ele gerou tais expectativas. Eu queria mais acúmulo, como o Fernando queria, eu queria mais tempo, eu queria mais Leda, talvez por essa implicância com os flashbacks. Eu não conecto tanto as duas Ledas, uma como o passado da outra, não parece que o acúmulo desembocou ali, sabe? Mas ainda assim essa sensação de compreensão entre as mulheres do filme, e que o realizam, acho que foi o que ficou e é o que me faz defendê-lo. E eu fico um pouco chateada ao ver um certo prazer de uma crítica que, de cara, já vai dizer assim: "Ah, vocês estão dizendo que isso aí é bom, não é bom coisa nenhu
ma, vocês é que não estão vendo que não é bom." Quem foi que te disse? Eu sentia isso com Lady Bird (Greta Gerwig, 2017), também, um filme que eu defendo muito, com menos ressalvas. Eu sentia muito uma pressa, parecida com essa em rela ção à Filha Perdida, em desgostar de “um filme de mulher”: "Ah, fala sério que vocês estão gostando disso?" Eu sentia muito um tom de reprimenda e senti agora também e, por isso, que eu gostaria de marcar, mesmo com todos os incômodos e ques tões pendentes, a minha defesa do filme.
Coutinho: O Miguel vinha falando dos olhares entre as atrizes, Tainah falou de clausura... Me parece o gancho perfeito para falar sobre os flashbacks e porque eles me interessam. A expres são da Tainah, que o Fernando também retomou é perfeita: “invasão em um espaço de prazer e emancipação”. Os flashbacks também são isso: uma força invasiva no filme.
Eu vi muitas pessoas falarem sobre voyeuris mo, e confesso que não sei se esta seria a palavra mais adequada. O que a Leda vê na Nina, ou na criança, não é tanto uma Outra, mas uma espécie de espelho que devolve um reflexo. A questão, neste caso, é ver a si mesma na Outra, e é na medi da em que esse jogo se intensifica que começam a surgir os flashbacks: eles se tornam mais recorren tes, porque são o espelho que lança a personagem para dentro de si. Quando o olhar para fora cede lugar ao olhar para dentro, os fantasmas tomam
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O que a Leda vê na Nina, ou na criança, não é tanto uma Outra, mas uma espécie de espelho que devolve um reflexo.
conta, o filme se torna mais claustrofóbico e mais aterrorizante.
A leitura de que o filme pode ser visto como um terror é muito justa. Em última instância, assim como Spencer, ele é um filme sobre uma persona gem feminina assombrada pelos seus fantasmas. No Spencer, esses fantasmas são a família real, enquanto em A Filha Perdida, eles nascem desse espelho que mergulha a personagem em si mesma e nas suas memórias. É neste sentido que me interes sa a comparação que a própria Gyllenhaal faz com Império dos Sonhos (2006), do Lynch, por exemplo.
Roberta: Eu queria discutir um pouco sobre a recepção crítica do filme. É claro que eu acho importante terem mais mulheres atuando, dirigindo, escrevendo, concordo que o mundo cine matográfico é muito masculino e misógino, tanto na produção cinematográfica como na crítica. Mas eu fico muito incomodada ao escutar coisas como “nunca antes na história do cinema as mulheres tiveram tanto protagonismo”, “nunca antes as mulheres escreveram, dirigiram e tiveram posse de suas próprias histórias”. Acho que precisamos delimitar que "História do Cinema" é essa que tem tão poucas mulheres. Me parece que exemplos de protagonismo feminino existem em todas as épocas do cinema, tanto no cinema de estúdio, quan to no cinema independente. Mas o que acontece com esses filmes é que ou eles não circulam com a frequência que deveriam, ou não são discutidos do ponto de vista feminino. Nos últimos anos, pelo menos desde 2015, o protagonismo feminino é uma crescente, tanto nos streamings como a Netflix, quanto nos festivais de cinema. Acho que seria interessante pensar como A Filha Perdida se relaciona com essas histórias do cinema. Como as diferentes bolhas da cinefilia e da crítica receberam esse filme. Eu acompanhei um debate a respeito de um texto que foi publicado, onde um crítico foi questionado sobre o ponto de vista masculino que ele tinha sobre o filme da Maggie Gyllenhaal. Em
resposta ele escreveu que o lugar da crítica seria sempre um lugar de alteridade e o gênero não seria influente ou impeditivo de se compreender e deba ter um filme. Em certa medida eu concordo, mas parece que o crítico se esquiva do problema cen tral. Não é que os homens sejam incapazes de ler as mulheres, mas que determinada formação crítica foi construída de modo a excluir não só as mulheres (diretoras, atrizes, roteiristas), como também subjugar as temáticas femininas.
Letícia: Hesito em responder essa questão porque a Roberta se refere a uma ferida um pouco profunda. Num primeiro momento, eu deveria escrever um texto sobre esse filme. O que chamava muito minha atenção era a natureza anônima da Elena Ferrante, uma escritora sem rosto, que produz então nesse lugar obscuro... e também seguro. E, no extremo oposto, a Maggie Gyllenhaal, quer dizer, uma atriz extremamente conhecida, sob os holofotes, que sai em parte dessa luz para realizar um filme. E essa oposição me parecia muito curiosa, entre uma escritora sem rosto, num anonimato desejado, e uma atriz que passa para os bastidores a fim de dirigir um filme no qual ela não aparece; uma decisão consciente e acertada para poder interagir com as atrizes com maior liberdade. Isso me parece um dado interessante, não sei de que maneira ele se liga com toda nossa conversa... Mas, em relação ao filme da Maggie Gyllenha al, eu acho que ela está longe de ser uma realizadora independente-independente, com todas as letras. Ao contrário, ela está muito situada dentro da indústria americana e, a partir do momento em que ela produz um filme, ele ganha em peso, capital, e toda uma carga discursiva que cercam a produção americana e, sobretudo, seus retratos femininos. Agora, A Filha Perdida é um filme americano, comercial e que, nesse sentido, se inscreve nessa tradição. Certamente existem outras obras de realizadoras, produzidas em âmbitos mais independentes, que dão mais cor e diversidade
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à história do cinema: no cinema francês há uma proliferação magnífica de mulheres na direção, no cinema italiano e japonês as figuras femininas sempre foram trabalhadas com muito tato e proximidade, mas isso está longe de ser a regra e essas exceções não cobrem de maneira alguma essa ferida. Ou seja, a ausência das mulheres na produ ção e a predominância de um discurso que tende sempre ao sacrifício e à culpa feminina. Ainda, por mais que um filme seja realizado por Kinuyo Tanaka e Dorothy Azner, não significa que ele não será condescendente a esse discurso.
Ainda, refletindo sobre a recorrência de imagens de mulheres à beira do mar que representam com frequência um destino de morte e também de liberação, penso também que a imagem final de Leda apresenta um bom ponto de chegada que é, no mínimo, curioso. À beira da praia, ferida, mas
enfim viva. O que me lembra também outro filme, um filme de terror, extremamente ambíguo, de um cineasta próximo de afetos que dificilmente encontraram uma materialização no cinema: A Morta-Viva de Jacques Tourneur (1943). Daí vocês veem muito bem porque eu lembrei desse filme: enquanto a Leda de Ferrante é uma espécie de zumbi, a personagem da Maggie Gyllenhaal tem que declarar a sua existência. E é curioso que o filme cria um cerco em torno da Leda, produzindo uma espécie de ameaça; intimidação masculina que não é sublinhada no livro mas que, na mise en scène da Gyllenhaal, ganha uma série de signos (os cartazes da boneca desaparecida, a aproximação truculenta dos homens da família). E como essa moldura obscura, que eu comentei no começo do debate, cultiva a Leda de uma maneira bem particular: os insetos, as frutas podres, as feridas
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A Morta-Viva de Jacques Tourneur
não estão aqui para denunciar a maldade da per sonagem, o quão desajustada ela é, como foi com frequência o caso no cinema clássico, mas pra dar a ver precisamente o isolamento da Leda e, sobretudo, a inconveniência da sua presença para os outros. Eu penso muito em, por exemplo, A Filha de Satanás (King Vidor, 1949), em que a Rosa Moline de Bette Davis é emoldurada pelo cabelo negro, sendo consumida pelo fogo de seu desejo. No final do filme, ela morre nos trilhos do trem, no caminho que poderia levá-la à cidade grande, ou seja, em mais uma fronteira. Ambas as perso nagens são irascíveis e deliciosamente caprichosas, mas a Leda permanece viva à beira da praia.... E no final das contas, para resumir, se o livro da Fer rante é uma obra saudável com uma personagem doente, um pouco podre como a boneca, no caso da Gyllenhaal, temos um filme doente com uma protagonista que, apesar de tudo, está viva.
Creio que jaz aí a força do filme, ou seja, na sua imperfeição. Uma obra profundamente contraditória e problemática formalmente e, por isso, um filme interessante. E para puxar a fala da Roberta, é de uma cegueira crítica afirmar que A Filha Perdida tem uma “história pífia e uma trama pueril”, como fez Sérgio Alpendre. Não é como se os homens fossem incapazes de compreender e de serem sensibilizados por essas histórias, tanto do lado da realização, quanto da recepção. Por que há muitos e magníficos melodramas maternais realizados por diretores. Por exemplo, Cas savetes filmou essa cobrança da maternidade em Glória (1980) de uma maneira muito justa e muito dinâmica, fez disso quase um filme de ação. Paul Newman com a Joanne Woodward também, em O Preço Da Solidão (1972): temos uma personagem extremamente pesada, que carrega uma ferida histórica e estética, uma espécie de culpa mater na transfigurada em histeria, que não consome, contudo, o filme inteiro; eis aí sua singularidade, sua generosidade e ternura com esse personagem.
Eu não acho que os homens não consigam interpretar, pensar e se colocar nesse lugar "da outra", dessa outra mulher que, durante muito tempo, foi ligeiramente ausente no cinema hollywoodiano clássico. “Ligeiramente”, pois ela nunca gozou de uma existência plena, como os mais complicados protagonistas masculinos. Isso porque ela deve ser punida pela pluma e tesoura da censura: ainda que ela exista durante 90 minutos, no final, ela recebe o que “lhe é devido”, uma condenação que, por vezes, vem na forma da morte¹.
1 Há uma gama imensa de punições, variando entre os motivos do ciclo da “mulher decaída” e Madame X. A morte surge certamente como a solução mais abrupta, como no caso da esposa adúltera de A Morta-Viva, mas também para mulheres moralmente “condenáveis”, que desviam do caminho tradicional, essas que optam pela independência, pela ambição, pelo sexo fora do casamento, como em Three Wise Girls (1932, William Beaudine), Dark Victory (Edmund Goulding, 1945), Humoresque (Jean Negulesco, 1946) e Beyond The Forest (1949, King Vidor). Existe também uma espécie de morte simbólica quando, por exemplo, a prota gonista é “redimida” nos últimos minutos do filme, apre sentando-se numa versão pudica e sem graça de si mesma para o espanto das espectadoras, como em Dangerous e Baby Face (1933, 1935, Alfred E. Green) e, ainda, nos exem plares Ladies of Leisure (Frank Capra, 1930) e Forty Guns (Samuel Fuller, 1957) – Capra e Fuller parecem até mesmo duvidar da transfiguração imposta às suas protagonistas na conclusão desses filmes. Quando se adiciona a colher do melodrama maternal, a mistura entorna completamen te, o anonimato revela-se de fato como a sentença mais recorrente nesses filmes: Back Street (1932, John M. Stahl), Forbidden (Frank Capra, 1932), So Big (William A. Well man, 1932), Stella Dallas (1937, King Vidor), The Great Lie (Edmund Goulding, 1941) e The Great Man’s Lady (William A. Wellman, 1942). Em alguns casos, até mesmo a polícia deve intervir, sendo que esposas sozinhas ou mães solos não são um “bom sinal” aos olhos da censura, como em Mildred Pierce (1945, Michael Curtiz) e The Reckless Moment (Max Ophüls, 1949). Mais uma vez, a morte não deixa de marcar presença, como em Applause (1929, Rouben Mamoulian), The Sin of Madelon Claudet (Edgar Selwyn, 1931) e Madame X (David Lowell Rich, 1966). Numa versão mais adocicada e menos extrema desses dramas tipicamente femininos, o ciclo de comédias com Katharine Hepburn e Spencer Tracy põe a nu os problemas e tensões em torno da repre sentação feminina, sobretudo no que concerne a oposição entre domesticidade e carreira (The Woman of the Year e Adam’s Rib).
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Esse tipo de afirmação, que aponta a superfi cialidade do enredo de A Filha Perdida, provém unicamente de uma falta crônica de estudo. Pois se voltamos aos melodramas maternais e realinhamos seus enredos, nos damos conta que os problemas são assustadoramente simples, girando em torno de questões essenciais e existenciais: como conciliar ambição pessoal e família, incli nações maternas e sexuais, como fazer com que “a mãe e a puta” habitem o mesmo corpo e possam sobreviver? É falta de estudo. Nesse sentido, a cinefilia clássica estuda filmes que, devido a uma identificação com seus protagonistas, coloca os homens num lugar de glorificação, de heroísmo, mesmo de uma prazerosa marginalidade, e não se dedica a outros filmes que esses mesmos diretores dirigiram. São melodramas, colocados num segundo plano, que não são questionados, que não entraram para a história oficial da cinefilia, que não entram ainda hoje. Logo, não acho que o problema resida na falta de alteridade da parte desses críticos, o nó surge antes mesmo de tudo isso: é preciso conviver com esses filmes e não só com aqueles dos grandes diretores (Minelli, Ophüls, Sirk), esses que já foram digeridos pela história da crítica de cinema. Os “filmes de mulher”, e com eles, o melodrama como gênero, perpassam todo cinema clássico, contaminam e evoluem dentro da obra de certas atrizes (Greta Garbo, Joan Crawford, Bette Davis, Barbara Stanwyck, Margaret Sullavan e Jane Wyman). Estudar um gênero uni-
camente através das suas obras-primas, saudar incansavelmente a genialidade de seus diretores sem saber distinguir o que provém do sistema e do indivíduo, é pura preguiça. Ao lado de Sirk e de Minelli, trabalharam também Clarence Brown, Michael Curtiz, Edmund Goulding, Vincent Sherman, Archie Mayo, Alfred E. Green, Irving Rapper, Mitchell Leisen, Curtis Bernhardt... Daí a graça do cinema, não só do au-tor! Não vale só pegar nesses filmes com essas luvas: ora trata-se do gênio de um homem, ora trata-se da sua distância e senso crítico frente ao “lamaçal sentimental” do melodrama.
Para voltar à questão da alteridade, demorei para descobrir que não se coloca no lugar do outro automaticamente, daí a importância do estudo. E, dentro da cinefilia, estamos muito acostumadas a se colocar no lugar do homem, quase por uma questão de sobrevivência e de pertencimento, a compartilhar certas referências e códigos de conduta. O contrário nunca acontece. Nos colocamos aí porque é a regra, porque é a norma e é uma questão de sobrevivência. Se não o fazemos, não entramos para história – basta pensar na situação precária em que se encontrava a produção feminista experimental.
Por fim, creio que A Filha Perdida é um filme de transição, penso que esse “sertão vai virar mar e o mar vai virar sertão”. Acho que, com o tempo, surgirá cada vez mais esse tipo de filme, de mulheres sobreviventes “na fronteira”, entre dois espaços. Enfim, é preciso defender os filmes
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Ambas as personagens são irascíveis e deliciosamente caprichosas, mas a Leda permanece viva à beira da praia....
imperfeitos, os filmes doentes, não como obras -primas, mas como obras que se movem. A graça do cinema, e mesmo dos filmes perfeitos, se encontra aí, não?
Tainah: Eu penso muito nas mulheres que se duplicam em cena, em cineastas que duplicam figuras femininas em cena. Pois o “morta” e o “viva” vêm juntos, ao mesmo tempo. E aí algu mas cineastas e artistas plásticas vão encontrar a solução para essa convivência corpórea de vida e morte fazendo mais de uma no quadro, criando mais de uma figura na tela. Nesse caso, eu penso muito na Maya Deren, em suas lutas entre inte rior e exterior que tem sido meu objeto de estudo. E, no caso do Meshes of the Afternoon (1943), que tem uma viva e morta ao mesmo tempo, que se vê viva e morta. Tenho pensado muito sobre isso. E tenho gostado da convivência disso, por isso que gosto do vai e vem do "morta-viva" do
livro e do filme. Nesse sentido de que, às vezes, ambos coexistem. No livro, ela diz, ao mesmo tempo, "estou morta, mas bem". Me interessa essa convivência do "estou bem e não estou" da Varda e do "estou morta, estou viva", da Ferrante e Gyllenhaal. E eu acho que, se o filme de alguma maneira enfrentou isso, me interessa. Se o filme de alguma maneira enfrentou essa ambiguidade que, às vezes, se perde, fica mais frágil, principalmente quando cai na questão da culpa (a cena da loja por exemplo, que me irritou bastante). Mas se, em algum momento, eu senti que o filme confronta isso, eu acho que aí eu criei um vínculo com ele. E aí volta para a fala da Letícia: defendo muito a errância dele e de outros filmes que estão enveredando nessas representações. Me fez pensar em Café com Canela (2017), um filme de outra maternidade, uma maternidade negra; cheio de pequenas questões, mas que o final deixou uma imensa sensação de compreensão e de confron-
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tamento, de desejo de mostrar uma experiência complexa que é a maternidade não sanguínea, após uma perda. E aí as mães negras, muitas vezes a maternidade delas é de não ter o filho, de um filho que morreu. Só para falar de um filme também errante, um filme que às vezes me parece meio acadêmico, mas que considero belo. E aí vem a palavra da transição. São diretoras, no caso a Glenda Nicácio e o Ary Rosa no Café com Cane la, a Maggie, são pessoas que estão buscando seus lugares de representação, mesmo que haja uma longa linha de mulheres que trabalharam antes.
Mas aí eu só queria falar uma coisinha meio anedótica: eu sigo a Melanie Griffith no Instagram e ela postou assim: "gente, vejam esse filme" num tom de ineditismo. Mas talvez para aquela mulher branca de Hollywood, filha da Tippi Hedren, ex do Don Johnson, ela ficou embasbacada com A Filha Perdida. E eu fiquei, "é, para algumas mulheres parece o começo do mundo mesmo". Para algumas mulheres do mainstream... Eu senti que ela não estava defendendo o filme só porque era da Dakota, ela estava defendendo o filme mesmo. Ela
olhou e bateu! E aí é isso, vão ter vários encontros com o filme assim, de gente que vê e diz "eita, isso é uma novidade!" e que talvez abra caminho para outras obras, menos do mainstream
Fernando: O Miguel tinha provocado a gente a falar alguma coisa sobre os atores e as atrizes, e ele trouxe aquela informação sobre a Dakota e eu achei curioso ele relembrar isso, da ascendência dela, porque Os pássaros é um filme do qual eu lembro bastante enquanto eu vejo A Filha Perdi da, e vocês falando dos filmes de terror, da relação com os filmes de terror… Quando, no início do filme, a Leda está indo para a ilha de carro, me lembra a Tippi dirigindo o carro em direção à Bodega Bay. Livre também, e desafiando toda uma tradição machista em torno do que uma mulher pode fazer sozinha, numa viagem. Me lembra bastante quando tem a cena da pinha jogada contra as costas da Leda, aquilo vem da natureza, como se uma fúria pudesse acontecer a qualquer momento. Então, Os Pássaros foi um filme do qual eu me lem brei enquanto assistia esse filme e acabei recordando quando o Miguel acentuou a ascendência
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O corvo de Três Andares.
da Dakota, que é uma atriz que não me interessa muito enquanto atriz, mas me interessa enquanto imagem. Justamente nessa situação histórica que o Miguel apontou.
Outro elemento que eu fiquei guardando aqui na mente, que tanto o Miguel, quanto o Coutinho comentaram, foi a troca de olhares entre as mulheres; o que me parece um bom feito do filme, que me faz recordar um documentário que eu vi recentemente e soube até que Miguel e Letícia já falaram sobre esse filme, que é o Seja Bela e Cale a Boca!, da Delphine Seyrig (1981), em que um dos pontos questionados é justamente esse: da quase não-existência na história do cinema de amigas mulheres, que sejam simplesmente amigas, que não estejam num front de rivalidade, numa guerra pessoal, mas que sejam simplesmente amigas. E esse é um tema muito caro à Ferrante que é recuperado no filme também com qualidade, como um dos seus pontos fortes.
Miguel: Uma palavra que a Roberta falou, no começo da conversa, saltou aos meus ouvidos: "perversa". E eu lembrei do texto da Cineplot no qual o críti co, André Renato, volta a esse tópico, remontando à Dostoievski e às "maldadezinhas" de Memórias do Subsolo. Esse é um lado dos personagens que aparece muito na literatura realista - lembro de Macha do de Assis, Eça de Queirós, Gustave Flaubert. O realismo foi a escola que melhor lançou luz sobre as "maldadezinhas" da criatura social. E é muito visível o quanto essas características podem ser compreensíveis ou normalizadas quando aparecem num personagem masculino. Quando isso aparece num personagem feminino, isso fere as imagens -atalhos das duas idealizações femininas, a mãe e a puta, a santa e a diaba. Isso provoca um ruído. O que me interessa nesse filme é, justamente, o fato de que ele se dedica a uma personagem que é tudo, menos uma perversa. Leda é uma mulher normal, que tem reações muito normais, se tomar-
mos o referente na realidade ao qual o personagem se baseia: uma mãe cansada, cheia de raiva, que não aguenta mais falar com as filhas ausentes no telefone. Temos ainda muita dificuldade para ver e representar mulheres normais no cinema. A pre sença do horror, o retorno do reprimido, a ameaça permanente são, eles também, atalhos.
Leticia: Creio que se condenou muito o filme de Gyllenhaal por um certo estilo internacional, estilo de festival. Acho justa essa reprovação: essa câmera “exótica”, na mão, que é muito recorrente hoje. Contudo, eu acho importante colocar também que alguns realizadores que estão hoje no nosso panteão também lidavam e filmavam com um estilo recorrente, com uma linguagem cali brada a sua época; às vezes eles lutavam contra isso, pervertiam esses moldes, às vezes absorviam essas formas e encontravam lá alguma graça. Mesmo o filme do Tourneur que eu citei, A Morta-Viva, tem um final, na minha opinião, muito bom mas também bem catastrófico, porque o estúdio dá um jeito de colocar ali um discurso moralista. Hoje, falamos desse estilo internacional, desse estilo recorrente que nada significa, mas ele sempre existiu em outros momentos da história do cinema.
O Miguel falou também da “louca do corvo", de Três Andares de Moretti, mas ela não é louca, ela é muito sã. Ao contrário, o contexto em que ela vive é insano. E esse corvo aparece de uma maneira incrível, talvez entre cortes, em cima de sua mesa, quase sinalizando esse ambiente sufocante e uma possível fuga. Gosto de juntar esses elementos naturais, um pouco sinistros de A Filha Perdida e de Três Andares porque, no seu mutismo, eles parecem dizer muito sobre essa inquietação feminina.
Victor: Duas coisas que me chamaram atenção ouvindo vocês, e também durante o filme. Me parece que A Filha Perdida tem um certo programa,
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tanto de intenções quanto estético que, para mim, o Coutinho descreveu bem, e que ele acaba sendo insatisfatório um pouco por conta disso. Eu fico com a impressão de que ele se trai por um apego com o trabalho das atrizes e dos atores mesmo. E é curioso que vocês falaram dos cineastas medalhões, o John Ford, Mizoguchi, o King Vidor, que tinham a possibilidade de fazer "600 filmes" na vida, erra vam à vontade, tinham atores à disposição para fazer três filmes por ano. Era um sistema de pro dução que privilegiava essa maestria que eles acabavam alcançando com uma certa velocidade por que, em dez anos de carreira, eles filmaram mais do que um diretor ou uma diretora vai filmar na vida, hoje. Isso conta. Me parece um pouco injusto com a geração que não pode fazer isso.
E a Roberta falou desse passado de pequenos "big bangs" na história do cinema, nesse lugar que parece que foi agora que aconteceu, mas já estava acontecendo há muito tempo e em muitos casos de maneira muito fascinante. A televisão me parece uma boa oficina para esse tipo de coisa, para esse tipo de cozinha dramática, tentativa e erro de um mesmo modelo dramatúrgico. Você pega, por exemplo, uma colaboração com os atores, eles fazem certos tipos e depois você embaralha isso... Isso me parece muito caro a esse filme, dramatur gicamente tão satisfatório e que o diretor pode usar o seu olhar de formalista sobre essa drama turgia que já está muito bem lapidada. É muito difícil você ter tudo isso muito bem dominado num primeiro filme ou num segundo ou terceiro filme, me parece. Me pareceu uma recorrência à medida que eu ouvia vocês falando, que tem mui to a ver com essa ideia de que o filme tem uma direção e ele tropeça, ele se trai, às vezes ele aca ba sendo moralista quando ele não quer, às vezes uma escolha de plano, uma escolha estrutural trai as intenções do filme.
Mesa-redonda gravada em 19 de março de 2022. †
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Crônicas
Falar no escuro
por Raffaella Rosset
Há um lugar onde certos filmes simplesmente sabem que serão encontrados; este lugar é a sala de cinema. Para outros filmes a sala de cinema é um grande talvez, e, quem sabe, um nunca. A his tória da produção de filmes é também a da exibição. Por "filmes" eu quero dizer também pessoas e formas de trabalho. As pessoas que fazem e a maneira como fazem os filmes. Elementos que por fim se tornam o filme.
Um dos primeiros filmes que assisti em sala de cinema, depois de quase dois anos durante a pandemia em que vi filmes somente em casa, foi 007 – Sem tempo para morrer. O tamanho da imagem e o volume do som da sala foram tão tremen damente chocantes em comparação àqueles dos filmes que vi no confinamento, que quase saí da sessão. Um sentimento de “isto é demais”, “isto não dá espaço para mais nada acontecer aqui nes ta sala” me pareceu angustiante e eu senti falta, talvez, de algo que eu tinha quando via filmes em casa: um certo controle.
O afastamento e a volta para a sala – falo aqui de uma sala bastante convencional de cinema –tornou novidade a suntuosidade de ver um filme num lugar feito apenas para aquilo. Um lugar onde o filme é o que organiza todos os eventos. Ver um filme em sala de cinema é estar diante de algo incontrolável. O filme acontece em seu tempo – não há possibilidade de pausá-lo – em seu volume – os espectadores não o escolhem – e em sua dimensão – a da tela do lugar onde vamos vê-lo, etc.
Filmes como 007 são produzidos com consciên cia de que estarão nestes lugares; há alguma previsão de como o espectador entrará em contato com o filme. Em Le Plaisir, realizado em 1952 por Max Ophüls, o primeiro momento do filme é justamen te uma alusão a essa consciência. O narrador do filme diz: “Estou encantado em falar com vocês no escuro... / Como se estivesse sentado junto a vocês”, e encerrando com a doçura: “E talvez eu esteja”. É pressuposta ali a sala de cinema, ou no mínimo uma ideia de que o filme iria bem acompanhado de uma certa forma habitual de ver filmes – as pessoas sen tadas no escuro, atenção total ao filme.
Numa recente viagem de carro passei com amigas por uma cidade bastante deserta: pouca gen te na rua, poucos estabelecimentos, muito mato e estrada. Do nada: um cinema. Alguém no carro então diz: “Se a gente entrar nesse cinema nem vai parecer que estamos nessa cidade. Poderíamos estar em qualquer lugar”. A sala de cinema é um dado. É um lugar conhecido que se mantém mais
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Imagens do filme Le Plaisir, de Max Ophuls, 1952
ou menos parecido ao redor do mundo. 007 e Le Plaisir contam com esta ideia.
No entanto, há filmes que não contam com este espaço – porque não podem e por vezes porque não querem. Um dos maiores filmes que vi nos últimos anos nunca conseguiu ser exibido em sala de cinema, depois de inúmeras tentativas – envio para diversos festivais e curadores. O filme se cha ma Nos momentos bons. É um curta-metragem de um jovem português que vem fazendo filmes de maneira independente há meados de dois anos; chama-se Pedro Gavina Maia. Só vi este filme por que Pedro é amigo de um amigo também cineasta.
007 é um filme desenhado desde o princípio com a segurança de exibição em sala: todas as cenas, escolha de atores, as cores, a espacialidade do som contam com um espaço de exibição espe cífico. Nos momentos bons é um filme feito em queda livre; feito sem saber onde será encontrado ou como será encontrado.
Nesse filme vemos Pedro e um colega andando dentro de uma caverna escura com um gerador de luz ligado. Conforme andam pelo escuro levando a fonte de luz consigo, esse espaço vai sendo ilumi nado, vai se apresentando e se fazendo existir. O cineasta ali presente vai criando seu filme conforme caminha. Caminhada esta cheia de riscos: não se sabe o que aparecerá no caminho uma vez que, andando na escuridão, o caminho é pedregoso e irregular, a câmera está rodando sem cortes.
Esta imagem do cineasta criando o filme conforme anda sem saber onde vai parar é precisamente o que acontece com o próprio Pedro quando busca mostrar seu filme. Ophüls fala no escuro de maneira confortável com seu espectador. Está num escuro de mistérios conhecidos, está onde sabe que estaria. Nos momentos bons anda no breu.
Pedro me contou que criou uma exibição para seu próprio filme: convidou filmes de outros realizadores para passar junto com o dele, pessoas para
tocarem música antes e depois da projeção e fez uma sessão. Fez portanto o filme, curou e programou uma sessão e foi seu próprio exibidor. Tomou todas as etapas de existência do filme para si.
Filmes que têm que inventar seu percurso podem pensar em inventar suas salas de cinema. "Estou encantado por falar com vocês…" Onde? Aprofundar a experiência da incerteza projetando o filme de forma também incerta. Às vezes não é do desejo, mas da falta de saída.
A sala de cinema enquanto o que permanece depois que a sessão acaba, o esqueleto do cinema. Lugar que desde o momento em que entramos já sabemos como deveríamos agir, de certa estabilidade. No entanto, mesmo os filmes que parecem desfrutar com alguma segurança deste espaço no geral o fazem durante o período de seu lançamen to: quão simples é encontrar Le Plaisir e 007 nos cinemas hoje?
Em especial para aquele cineasta que não pode contar com esta constância em nenhum momento, projetar seus filmes em lugares instáveis pode ser a grande aventura.
Vou, por isso, aproveitar a abertura deste espa ço, esta nova revista, para propor uma exibição do filme do Pedro Maia aqui mesmo. Abaixo, o programa.
Nos Momentos Bons Pedro Maia, 2020, 24 minutos https://vimeo.com/696526864
Boa sessão! Estou encantada por falar com vocês por aqui. †
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no escuro † raffaella
falar
rosset
Paralelas partidas
por Felipe Cruz
É terrível a existência de duas retas paralelas porque elas nunca se cruzam e elas apenas se encontram no infinito
Matilde Campilho
com o passar do tempo, eu lembraria das coisas em outra ordem e então eu nunca teria mentido para ela: o que esse texto vai dificultar bastante que aconteça.
24 de junho de 2019.
Aniversário da mamãe. Não estou com ela por que meses atrás eu disse que não poderia ir até Macapá dessa vez por ter uma passagem marcada para São Paulo, para um evento que aconteceria por ocasião do lançamento de um livro meu. Era mentira. Quer dizer, era mentira naquele dia, em que eu disse isso para ela. Nada disso estava planejado para acontecer – eu inventei na hora. Depois que desliguei, fiz o que precisava para que o que eu havia dito deixasse de ser mentira, assim,
Desde que eu falei para minha mãe que eu sou gay, todas as palavras entre nós foram invadidas por uma distância que as refizeram estrangei ras. E é tão longa essa distância percorrida pelas palavras entre os nossos corações que, quando elas enfim chegam do outro lado, o idioma já se arruinou, incompreensível.
Liguei para mamãe logo pela manhã, desejando feliz aniversário. Perguntei do mingau de São João, da cachorra, desejei alegria e não mencionei meu pai. Agora que a distância era mais palpável, eu me sentia um pouco menos triste. Era menos
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dura a distância geográfica. Desliguei, me vesti. Uma amiga me esperava no centro de São Paulo porque iríamos ao cinema.
15 de janeiro de 2022.
É um dia comum, isto é, não tem qualquer relação com o dia 28 de abril, dia peculiar, por sua vez, porque foi quando meu pai morreu. Por isso não consigo entender por essa perspectiva o luto que tomou conta da casa enquanto o dia termi nava. Minha mãe me liga para avisar que doou a cama em que dormiu com o meu pai por mais de 30 anos e para dizer que vai tentar se livrar de mais objetos, deixar a casa apenas com o necessário. Eu entendo que não há muito para ser dito diante disso, que a morte de um marido é bem diferente da morte de um pai, que falar com um filho é muito diferente de falar com uma mãe e que o tempo para nós dois e os modos como ele vai continuar matando o meu pai é inteiramente distinto. E suspeito a intensidade do luto como um fenômeno que pouco ou nada tem a ver com a cama em que nunca mais vou deitar como fiz por toda a minha vida.
Um alerta me avisa, farol no mar, que aquele sinal na imensidão da falta aponta um outro continente do qual me aproximo, mas que não consigo enxergar ainda. Que a história do país avança – fascismo moendo gente como meu pai – e que a cama foi apenas mais uma baixa dessa guerra de séculos pela terra, pelo dinheiro, pela narrativa.
A casa já toda enlutada e o corpo do meu pai, a imagem que não existe, que ninguém viu, o cadá ver enterrado quase em segredo, lacrado dentro de um caixão esterilizado, coberto de terra com muitas eras geológicas misturadas, desapareceu numa noite chuvosa como essa, com ninguém presente além dos estranhos que enterravam gen te e mais gente naqueles meses de 2020. O objeto principal de memória desaparecido. Pulverizado,
penetrou as minhas vias respiratórias, e as de minha mãe, sendo cuspido por nós sempre que pronunciamos tantas palavras que não o mencio nam. Não há muito para ser dito e intuo que o quase nada por se dizer possa estar num filme que baixei há pouco tempo e que agora me preparo para assistir. 24 de junho de 2019. Encontrei minha amiga, entramos no cinema, há anos não vejo um filme do Almodóvar assim. Quando eu penso em representatividade, o que me ocorre é que há ainda muitas imagens intrinsecamente ligadas a mim que eu nunca vi fora da minha cabeça e isto me parece provocar um efeito, uma ignorância sobre si. Porque o mundo é também o que vemos dele com nossos próprios olhos e não simplesmente aquilo que imaginamos e desejamos, eu acho.
Deste filme de Almodóvar eu não sei nada, a não ser que se chama Dor e Glória e que conta com Antonio Banderas e Penélope Cruz no elen co. Rostos familiares, enraizados numa juventude que, entre outros subterfúgios, tentou se compreender e, portanto, se identificar, como cinéfila. O filme começa e vou assistir à histó ria de Salvador, um diretor gay que há algum tempo não trabalha e cuja infância num vilarejo espanhol acompanharei em paralelo. Imagino se tratar de uma dessas histórias em que se procura a criança no adulto, e vice-versa: neste caso, um menino tímido, excelente aluno e filho obediente, descobrindo o primeiro amor por um rapaz que irá trabalhar na casa da sua mãe. O reconhecerei no homem reticente interpretado por Banderas, errático, vagamente tímido, de quem cobram uma nova obra de arte enquanto aquela que é considerada sua obra-prima é celebrada em uma cinemateca.
Cobram que alguma coisa nasça das suas entra nhas novamente, o querem de novo voraz e ele
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parece inteiro letargia e desencanto. Um perso nagem perfeito para Banderas. Uma dramaturgia menor se desenvolverá dentro do filme – ficção inventada pelas personagens – e também nela procurarei o menino calado do vilarejo espanhol, cujo crescimento os olhos acesos de Cruz observam de perto, sempre parecendo marejados, à beira de.
O quê? O que sua mãe adivinha que o futuro lhe reserva, que terrível monstro ela presume caminhar pelas veias fleumáticas do seu filho? 15 de janeiro de 2022.
Madres Paralelas, sobre este filme eu sabia um pouco mais e aguardo reencontrar os olhos gigantes de Penélope Cruz. Para onde a atriz vai voltar seu olhar? É ainda com a voz da minha mãe ao tele fone que eu começo a assistir ao filme sobre duas mulheres que se tornam mães no mesmo dia, o que, vou entendendo, equivale a acompanhar duas mulheres para quem o mundo renascerá um estranho familiar no mesmo instante.
Algo se passará entre elas, em paralelo, o que significa simultaneamente, o que, por sua vez, significa de maneira cruzada. Imagino uma troca de bebês que não demora muito a se confirmar, mas a camada mais subterrânea do filme está, desde a apresentação de Janis, protagonista de Cruz, estranhamente à vista: uma mulher a reivindicar um senso de história, ou talvez um reconhecimento a respeito do apagamento da história, mais até do que da história em si; me ocorre agora. E o caminho de Almodóvar é o do melodrama, da trama com intensas curvas, muito fechadas, em que as personagens se chocam com as margens de uma narrativa. É nesta margem que estão enterrados os cadáveres que Janis insiste em exumar: território sem governo, onde o estado despeja desaparecidos por meio dos quais poder-se-ia certificar-se que nossa vida é tam-
bém e sempre um amontoado de sangue e berros, que, à nossa revelia, o que chamamos história é também e sempre a vida dos desaparecidos que Janis quer lembrados por fora porque já os lembra demais por dentro – e é justo compartilhar essa recordação com o país assassino em que ainda caminha.
As mães se recusam a esquecer, não só porque entendem no corpo que os sumidos dos olhos da história foram também gestados por mulheres como elas, que não esquecem, como também por ver seu corpo diariamente golpeado por novas camadas de histórias em crescimento, alimentadas por elas, ensinadas a falar e a andar por elas. As mães, ainda que quisessem e se esforçassem para isso, não conseguem esquecer. 24 de junho de 2019. O menino tímido no vilarejo espanhol vê o rapaz por quem está apaixonado nu. Ele vai buscar uma toalha e, ao retornar, encontra o rapaz encharca do e brilhante, na sala de casa. Desmaia de febre. É esta uma cena que eu nunca tinha visto no cinema. Não a do homem nu, mas a do menino vendo seu primeiro homem nu. Nasce o homem adulto interpretado por Banderas? Será esta a imagem ainda não filmada, a imagem sobretudo de um olhar, a força motriz de seu próximo filme?
De volta ao presente, Salvador conversa com sua mãe, ouve uma história do vilarejo em que cresceu e de onde, há muito, saiu. Percebendo o interesse crescente de Salvador na história que narra, a senhora já idosa se detém e anuncia sua recusa em continuar a narrativa. Conhece aquele olhar, sabe que o filho já está planejando recontar suas palavras em um filme. O que ela e as vizi nhas detestam, afinal, é a vida, e o que a vida tem a fazer em um filme?
Entendo. O livro que eu escrevi contando nossa história, mamãe nunca leu.
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15 de junho de 2022.
As mães se encaminham para onde estão os corpos. Antes, conversam com outras mulheres. A mais idosa lembra que seu pai levou consigo um chocalho que era dela, quando foi preso pela ditadura franquista. As coisas que levamos para o abismo, quem pode imaginar? Depois que os esqueletos ressurgem para o sol, Almodóvar fil ma suas atrizes dentro das covas, são seus corpos também que foram reencontrados, ou melhor, são os lugares de onde aqueles corpos saíram que foram reencontrados. E sim, o chocalho ainda estava lá.
Certa vez, mamãe voltou de viagem e encontrou, sobre a cama em que meu pai estava dormindo sozinho durante o tempo em que ela ficou fora, o livro que escrevi, contando nossa história. Estava aberto. Ele não falava comigo há mais de um ano. As coisas que levamos para o abismo, quem pode imaginar? †
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Na próxima edição...
Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, Noites de Paris, de Mikhaël Hers, Marie Dresler e Neve Campbell, Sylvie Pierre, crítica de cinema…