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Prefácios, posfácios e agradecimentos: conversando com os leitores

Por Alexandre Zarate Maciel

Prefácios, posfácios e agradecimentos: conversando com os leitores

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Fonte: Amazon

Tanto para o pesquisador acadêmico quanto para o leitor comum, os prefácios, posfácios, agradecimentos e campos intitulados “Este livro” são formas de conhecer melhor os métodos e as motivações dos jornalistas escritores de livros-reportagem. Esses pré ou pós-textuais das obras complementam o processo de leitura e asseveram o valor da apuração e checagem jornalísticas. No prefácio de “Arrastados”, de Daniela Arbex, que narra os bastidores do rompimento da Barragem de Brumadinho (MG), Pedro Bial (2022, p. 11) define a obra como “livro-monumento”: “Trata-se do duplo papel que cumpre uma das maiores reportagens já realizadas no Brasil: memorial em narrativa, narrativa imemorial, donde monumento”. A definição é certeira para classificar a produção de um livro-reportagem, que, ao contrário do jornalismo cotidiano, debruça-se sobre as problemáticas e acontecimentos após certo tempo que eles transcorreram, quando seus sedimentos se assentaram de alguma forma. Bial também aponta duas questões essenciais em um livro-reportagem: ouvir múltiplas testemunhas e narrar com destreza e emoção. “O livro tem mais de 200 personagens. Aqui está documentado, com precisão de detalhes, o que aconteceu naquele 25 de janeiro de 2019”. E acrescenta: “O leitor sente gosto de terra, vive a angústia das pessoas que foram por ela engolidas e acabaram cuspidas do tsunami de lama” (BIAL, 2022, p. 12). A própria Daniela Arbex explica detalhes de seu processo no posfácio “Brumadinho nunca mais?”. A sensibilidade da repórter para perceber, nos detalhes, formas inusitadas de abordar a tragédia aparece ressaltada no trecho em que Arbex (2022, p. 305) conta de sua surpresa ao verificar desenhos de crianças que perderam familiares em Brumadinho. “Nos desenhos que fizeram tudo foi pintado de marrom. Até conhecidos personagens da TV, como Bob Esponja, mudaram de cor aos olhos infantis”. Logo depois, revela: “A dor simbolizada naqueles desenhos mexeu muito comigo. Aos poucos, fui descobrindo que o medo era um sentimento comum e alcançava não só as crianças, mas principalmente os adultos. As pessoas sentiam medo de tudo, inclusi-

ve de dar entrevistas”. A transparência para os leitores desse olhar subjetivo da repórter complementa o sentido do livro-reportagem.

Prefácios do passado já tratavam das motivações dos jornalistas escritores

Desde o pioneiro “Os sertões”, de Euclides da Cunha, considerado um híbrido de olhar jornalístico com ensaio literário, a “voz” do profissional já aparecia transparente na apresentação da obra. Filtrando a experiência e cotejando diversos outros saberes, Euclides da Cunha elaborou, com tempo, seu livro Os sertões, diferente do material fugaz, baseado em telegramas, publicado originalmente no jornal “A Província de S. Paulo”, hoje “O Estado de S. Paulo”. No prefácio original, o autor descreve seu propósito: “Intentamos esboçar, palidamente embora, ante o olhar de futuros historiadores, os traços atuais mais expressivos das sub-raças sertanejas do Brasil” (CUNHA, 2010, p.19). O autor acreditava que os sertanejos estavam próximos ao “desaparecimento ante as exigências crescentes da civilização e a concorrência material intensiva das correntes migratórias que começam a invadir profundamente a nossa terra”. Em seguida, reafirma que o que aconteceu em Canudos foi, “na significação integral da palavra, um crime. Denunciemo-lo” (CUNHA, 2010, p.20). Ou seja, já desde antes do início da narrativa, Euclides declarava como o texto final estruturado em livro era diferente da cobertura telegráfica publicada no calor da guerra. Paulo Barreto, ou João do Rio, no entanto, é realmente o primeiro jornalista que percebe a importância de perpetuar seu trabalho – espalhado na forma de crônicas-reportagens no jornal carioca Gazeta de Notícias e na revista Kosmos, publicações das primeiras décadas do século XX – no formato livro. As obras mais clássicas são Religiões do Rio (1906), Cinematógrafo (1909), A alma encantadora das ruas (1910), Vida vertiginosa (1911) e Os dias passam (1912). Interessante perceber como o próprio João do Rio explicava aos seus leitores o seu trabalho. Em uma crônica do livro A alma encantadora das ruas, chamada A rua, João do Rio (2007, p. 31) explica o seu método de investigação: “É preciso ter o espírito vagabundo, cheio de curiosidades malsãs e os nervos com um perpétuo desejo incompreensível, é preciso ser aquele que chamamos flâneur e praticar o mais interessante dos esportes: a arte de flanar”. Lugar de repórter é no olho do furacão da rua, portanto.

Pesquisadora destaca a importância de detalhar o processo jornalístico

Na imprensa cotidiana, com exceção cada vez mais rara da grande reportagem, o processamento das notícias não deixa tempo disponível para uma análise epistemológica mais reflexiva. Os jornalistas precisam de uma noção operativa de objetividade, como apontou Tuchman (1983), para reduzir os riscos colocados pelos prazos de elaboração de notícias dentro da periodicidade, pelas ameaças de processos difamatórios e pelas constantes pressões dos superiores pela obtenção de “furos”, especialmente a apresentação antecipada dos acontecimentos antes dos concorrentes. Já no processo de elaboração do livro-reportagem e também no caso especial das grandes reportagens, com o tempo mais dilatado de que dispõe, o jornalista pode ensaiar uma superação da objetividade como um ritual estratégico, como constata Marocco (2011), apoiada nas concepções de Foucault (1996). Pressionado pelas rotinas produtivas do jornalismo, o repórter de redação tentaria esconder indícios de autoria em seus textos, invocando marcas discursivas de impessoalidade, que, por si, produziriam efeitos de imparcialidade. Buscando apoio na ciência positivista para seu reconhecimento social, esse jornalista teria, segundo Marocco (2011, p.2), abandonado o “discurso de opiniões sobre o cotidiano” por outro, supostamente “neutro”. Porém, Marocco (2011, p.5) enxerga nos livros-reportagem a possibilidade do “comentário”, como um tipo de texto que se ocupa do jornalismo para “dele elaborar outro texto que oferece o desvendamento de certos processos jornalísticos, ou a crítica dos mesmos, em operações de produção de sentidos”. Assim, nessas obras, como na de Zuenir Ventura, o jornalista naturalmente “fará um exercício de interpretação criativa do que é considerado jornalismo”. Adotando uma postura diferenciada e mais liberta de pressões, o autor de livros-reportagem pode superar os manuais de redação e seus

preceitos e inserir em sua própria narrativa, sem medo, as ponderações e autocríticas sobre as práticas jornalísticas que utiliza para compor sua obra.

Referências

BIAL, Pedro. Prefácio: livro-monumento. In: ARBEX, Daniela. Arrastados. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2022. CUNHA, Euclides da. Os sertões: v. 1 e 2. São Paulo: Abril, 2010. FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Edições Loyola, 1996 MAROCCO, Beatriz. Os “livros de repór-

teres”, o “comentário” e as práticas

jornalísticas. Contracampo, v. 22, p. 116129, 2011. Disponível em: <http://www.contracampo.uff.br/index. php/revista/article/view/86>. Acesso em: 1 jul. 2016. RIO, João do. A alma encantadora das ruas. São Paulo, Martin Claret, 2007. TUCHMAN, Gaye. La producción de lanoticia: Estudio sobre laconstrucción de larealidad. Barcelona: Editorial Gustavo Gilli S. A., 1983.

Elaborada pelo professor do curso de Jornalismo da UFMA, campus de Imperatriz, e doutor em Comunicação pela UFPE, Alexandre Zarate Maciel, a coluna Prosa Real traz, todos os meses, uma perspectiva dos estudos acadêmicos sobre a área do livro-reportagem e também um olhar sobre o mercado editorial para esse tipo de produto, seus principais autores, títulos e a visão do leitor.